Transitar doente: laços e desenlaces entre os adolescentes sobreviventes de câncer infantojuvenil, seus familiares e a instituição hospitalar

Maria Tereza Piedade Rabelo Ana Laura Prates Pacheco Mariana Cabral Schveitzer Claudio Arnaldo Len Sobre os autores

Resumo

Os objetivos deste artigo abrangem compreender o impacto da experiência de adoecimento em sobreviventes de câncer infantojuvenil e em seus familiares ao longo dos processos de transição inerentes à vida e, também, explorar o papel que a instituição hospitalar pode desempenhar no decorrer dessas passagens. Uma pesquisa com método psicanalítico foi realizada em um hospital público, filantrópico e considerado referência em oncologia pediátrica. Foram feitas entrevistas em profundidade com 12 adolescentes e suas respectivas mães. A análise das entrevistas embasou-se no referencial psicanalítico de Freud e Lacan, originando duas chaves de leitura: (1) a incidência do Real sobre os sobreviventes e suas mães e os efeitos de indiferenciação no registro Imaginário e de inibição ao sustentar um projeto próprio no futuro; e (2) o efeito de alienação nos sujeitos e em seus corpos produzido por meio da idealização da instituição hospitalar e seu saber biomédico. A partir da análise das entrevistas, foi possível identificar problemáticas relacionadas à modalidade de laço estabelecida entre os entrevistados e instituição hospitalar. Embasados nesta pesquisa, a instituição estudada interessou-se em construir um ambulatório de transição norteado pela ética da psicanálise, visando auxiliar o jovem no desenlace da instituição mediante, principalmente, a sua reinserção social.

Palavras-chave:
Psicanálise; Oncologia Pediátrica; Transição; Saber Biomédico.

Introdução

O aumento da sobrevida de pacientes com doenças crônicas acometidas na infância e juventude fez com que o processo de transição desses adolescentes dos serviços da pediatria para os serviços de saúde de adultos se tornasse um campo de pesquisa emergente na área da saúde (ANELLI , 2017ANELLI, C. G. et al. Challenges in transitioning adolescents and young adults with rheumatologic diseases to adult Care in a Developing Country - the Brazilian experience. Pediatr Rheumatol, v. 15, n. 1, p. 47, 2017.).

A partir do paradigma biomédico, considera-se transição um processo multidimensional que visa promover no adolescente sua autonomia em relação a seus cuidados em saúde (ROHATINSKY, 2018ROHATINSKY, N. Healthcare Transition in Pediatrics and Young Adults with Inflammatory Bowel Disease: A Scoping Review. Gastroenterol Nurs, v. 41, n. 2, p. 145-158, 2018.). Medidas como a criação de ambulatórios de transição, publicações de diretrizes, declarações e outras iniciativas, estão sendo tomadas pela comunidade científica com o intuito de minimizar o problema (HART, 2019HART, L. C. et al. What Care Models Have Generalists Implemented to Address Transition from Pediatric to Adult Care? a Qualitative Study. J Gen Intern Med, v. 34, n. 10, p. 2083-2090, 2019.).

Jovens adultos com histórico de adoecimento infantojuvenil podem apresentar importante declínio com os cuidados, por exemplo, piora na adesão ao tratamento e até mesmo seu abandono após a mudança para o serviço de adulto, configurando-se uma questão de saúde pública (WIEMANN , 2019WIEMANN, C. M. , et al. Development of a group-based, peer-mentor intervention to promote disease self-management skills among youth with chronic medical conditions. J Pediatr Nurs, v. 48, p. 1-9, 2019.). Seguindo essa lógica, na oncologia pediátrica o número de pacientes denominados pela literatura científica de “sobreviventes” aumentou, e a transição desses adolescentes tanto para os serviços de saúde de adultos, como sua contrarreferência para outros níveis de cuidado em saúde, tornou-se um desafio.

Apesar da vasta publicação internacional sobre esse tema, a grande maioria das pesquisas é quantitativa e visa principalmente promover a autonomia do indivíduo em saúde com base em treino e aprimoramento de habilidades. Esses estudos são norteados sobretudo por terapias fundamentadas em neurociências, psicologia cognitivo-comportamental e psicologia positiva (TOBIN , 2018TOBIN, J. et al. Posttraumatic growth among childhood cancer survivors: Associations with ethnicity, acculturation, and religious service attendance. J Psychosoc Oncol, v. 36, n. 2, p. 175-188, 2018.; HART, 2019HART, L. C. et al. What Care Models Have Generalists Implemented to Address Transition from Pediatric to Adult Care? a Qualitative Study. J Gen Intern Med, v. 34, n. 10, p. 2083-2090, 2019.; WIEMANN , 2019WIEMANN, C. M. , et al. Development of a group-based, peer-mentor intervention to promote disease self-management skills among youth with chronic medical conditions. J Pediatr Nurs, v. 48, p. 1-9, 2019.).

De acordo com Birman (2010BIRMAN, J. Muitas felicidades?! O imperativo de ser feliz na contemporaneidade. In FREIRE FILHO, J. (org.) Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p. 27-47.), na contemporaneidade vige o imperativo da felicidade a qualquer custo, centralizando o culto ao indivíduo e à sua autonomia, a qual foi elevada ao estatuto de valor moral. Diante disso, na perspectiva da saúde, a qualidade de vida tornou-se um imperativo ditado pelo discurso da ciência, e as pesquisas passaram a adotar a melhora na autoestima e a autonomia do indivíduo como os bens finais a serem alcançados. A problemática dessa leitura é que a dimensão subjetiva do humano é deixada de lado, com todas as suas idiossincrasias e conflitos, como se o sofrimento oriundo das experiências fosse uma escolha racional e que, por meio de uma reprogramação, o indivíduo pudesse voltar ao “normal”.

A partir dessa perspectiva, a transição da adolescência para a fase adulta geralmente aparece como um balizador da transição entre serviços de saúde. O conceito de adolescência utilizado por esses estudos, com frequência, naturaliza a adolescência enquanto fase de desenvolvimento, assim como normatiza a ideia de crise a ser atravessada por todos (DE SOUZA, 2020; NASCIMENTO; LOIOLA, 2018).

A adolescência, enquanto fase de desenvolvimento, é uma invenção ocidental recente, que sofreu grande influência dos saberes normativos da psicologia e pedagogia (ARIÈS, 1981ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.). Assim como a adolescência, a normatização da ideia de crise nesse período também é uma construção ocidental (CAMPOS, 2014CAMPOS, G. F. V. A. Adolescência: de que crise estamos falando? Dissertação (Mestrado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.).

Diferentemente de uma leitura desenvolvimentista, a psicanálise lacaniana trabalha com o conceito de constituição subjetiva a partir de uma leitura lógica que supõe outra temporalidade. Tanto na escuta clínica de crianças quanto na de adolescentes, a direção de tratamento visa ao sujeito do inconsciente (PACHECO, 2012PACHECO, A. L. P. Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. São Paulo: Annablume, 2012. ).

Para a psicanálise, a adolescência comporta um tempo de (re)atualização de conflitos vividos na infância, e não uma estruturação psíquica diferente. A entrada na puberdade, permeada pelas mudanças no corpo, coloca à prova as teorias sexuais infantis, e o púbere entra em contato com um não saber relacionado ao real do sexo. Os ideais estão em plena (re)construção. A sexualidade, antes realizada de maneira autoerótica, agora é vivida aos pares, e a impossibilidade de uma relação de completude entre os sexos é experimentada (ALBERTI, 2009ALBERTI, S. Esse sujeito adolescente. 3. ed. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos; 2009.).

O interesse pelo tema surgiu por meio da escuta clínica de pacientes que não conseguem corresponder a esse discurso hegemônico da ciência. São adolescentes com doença oncológica estável, que, apesar de todo encorajamento da equipe, permanecem “paralisados”, enlaçados ao hospital, às vezes, em seguimento semanal por conta de um quadro de dor crônica sem justificativa orgânica.

A proposta deste artigo é trazer reflexões que consideram, por meio de uma leitura psicanalítica, a subjetividade oriunda do impacto da experiência de adoecimento, indagando: a quais soluções subjetivas estão os adolescentes e seus familiares propensos a construir diante da experiência de adoecimento? Como a instituição hospitalar e os profissionais de saúde podem atuar na transição dos pacientes da pediatria para o serviço de adulto sem acarretar a medicalização de mais uma esfera de suas vidas?

Caminho metodológico

Pesquisa com método psicanalítico, conduzida por uma psicanalista a partir da escuta pautada na dimensão inconsciente da fala (SAURET, 2003SAURET, M. J. A pesquisa clínica em Psicanálise. Psicologia USP, v. 14, n. 3, 89-104, 2003.). A psicanálise foi definida por Freud (1923 [1922]/1996)FREUD, S. (1923 [1922]/1996). Dois verbetes de enciclopédia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud , vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago . a partir de três eixos:

[...] (1) um procedimento para a investigação de processos psíquicos que são quase inacessíveis por qualquer outro modo; (2) um método [baseado nessa investigação] para o tratamento de distúrbios neurológicos; e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica (FREUD, 1923 [1922]/1996, p. 253FREUD, S. (1923 [1922]/1996). Dois verbetes de enciclopédia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud , vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago .).

A prerrogativa freudiana agrega, no âmbito da pesquisa em psicanálise, o tratamento, a investigação e a teoria. Com isso, torna-se indissociável a pesquisa em psicanálise da intervenção (NOGUEIRA, 2004NOGUEIRA, L. C. A Pesquisa em Psicanálise. Psicologia USP, v. 15, n. 1-2, p. 83-106, 2004., p. 83).

Para a pesquisa que está sendo discutida no presente artigo, a transferência, fenômeno considerado a mola propulsora de toda análise, foi levada em consideração. De acordo com Freud, a transferência é a nomeação utilizada pela psicanálise para descrever o que ocorre na relação entre o paciente e o psicanalista, é “a reencarnação de alguma figura importante saída da sua infância ou do passado e, consequentemente, transfere para ele sentimentos e reações que, indubitavelmente, se aplicam a esse protótipo” (FREUD, 1940 [1938]/1996, p. 189FREUD, S. (1940 [1938]/1996). Esboço de Psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud , vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago .). No entanto, a transferência não é um fenômeno plausível de acontecer somente no setting analítico tradicional.

Freud (1919 [1918]/1996)FREUD, S. (1919 [1918]/1996). Linhas de progresso na terapia psicanalítica. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud , vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago . anteviu que a psicanálise não seria exclusiva do âmbito privado, mas também que chegaria ao setor público e que, para isso, precisaria de algumas mudanças em sua prática. Lacan (1967 [2003])LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003., por sua vez, formalizou a práxis psicanalítica fora do setting tradicional através de duas noções: a intensão, que seriam os operadores clínicos, e a extensão, que seria a psicanálise no mundo. A psicanálise, em intensão, funda a extensão, ou seja, os operadores clínicos são os mesmos, independentemente do local em que a psicanálise é praticada.

Diante disso, novos desenhos de pesquisa norteados pelos operadores clínicos da psicanálise em intensão, quais sejam, desejo do analista, ética da psicanálise e transferência, possibilitam uma liberdade maior em relação à pesquisa com o método psicanalítico desde que o rigor seja mantido (SAURET, 2003SAURET, M. J. A pesquisa clínica em Psicanálise. Psicologia USP, v. 14, n. 3, 89-104, 2003.).

O instrumento para a coleta de dados utilizado foi a entrevista em profundidade, que, a partir das noções de psicanálise em extensão e intensão, funciona como uma ampliação das entrevistas preliminares, etapa comum a todo início de tratamento analítico (SAURET, 2003SAURET, M. J. A pesquisa clínica em Psicanálise. Psicologia USP, v. 14, n. 3, 89-104, 2003.). Apesar de o tempo das entrevistas ser incomparável com o processo analítico, vale ressaltar que a modalidade de transferência nesta pesquisa foi permeada pelo laço anterior dos entrevistados com a instituição hospitalar e seu saber. Os participantes da pesquisa não estavam em tratamento analítico prévio com o entrevistador, porém a psicanalista que conduziu as entrevistas fazia parte do corpo clínico do hospital. Diante disso, a analista pôde com maior facilidade ocupar inconscientemente para os entrevistados o lugar de representante da instituição e seu saber.

Foram entrevistados 12 adolescentes com idades entre 15 e 24 anos e suas respectivas mães. Na condução das entrevistas, apesar da elaboração prévia das perguntas, o percurso de fala escolhido pelo participante foi respeitado, possibilitando assim que a regra fundamental da psicanálise, a associação livre, ocorresse (LACAN, 1958[2008]LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008.). A quantidade de entrevistas realizadas e o tempo de duração variaram de acordo com a demanda de fala de cada participante.

A entrevista foi composta de três momentos diferentes: no primeiro, mãe e filho juntos. As perguntas disparadoras abordaram a representação da adolescência e da fase adulta. No segundo momento, somente com a mãe, os temas abordados foram: (i) como a mãe imagina o filho no futuro e (ii) o impacto das vivências de adoecimento e dor na esfera social. No terceiro momento, somente com o adolescente, os temas destacados foram: (i) como ele se imagina futuramente, (ii) como ele tem lidado com as mudanças no corpo relacionadas à adolescência, (iii) medos e angústias, (iv) como têm sido para ele os encontros amorosos e (v) o impacto das vivências de adoecimento e dor na esfera social.

Segue o quadro 1, com a quantidade de entrevistas realizadas com cada participante nas diferentes etapas da entrevista. Para resguardar a identidade dos adolescentes e de suas mães, esta pesquisa utilizou nomes fictícios.

Quadro 1
Quantidade de entrevistas realizadas com cada participante do estudo. São Paulo, 2019

O presente estudo manteve-se fiel à política da psicanálise sustentada por Lacan (1958 [1998])LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998., cuja direção é a escuta do sujeito do inconsciente. A escolha de incluir a mãe na pesquisa deu-se no nível da tática e da estratégia. Lacan (1958 [1998])LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998., ao estabelecer pontos fundamentais na direção de tratamento, fez uma crítica aos analistas pós-freudianos que abriram mão do rigor clínico, herança deixada por Freud, em troca de uma sistematização rígida da técnica.

Lacan (1958 [1998] p. 594)LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998., ao sustentar os pilares da clínica, deixou o analista livre em relação à tática “quanto ao momento, ao número e também à escolha de minhas intervenções, a tal ponto que a regra parece ter sido inteiramente ordenada para não atrapalhar em nada meu trabalho de executante”. Já em relação à estratégia, o psicanalista é menos livre em virtude de a estratégia estar diretamente relacionada ao manejo da transferência, mas ainda assim é livre à medida que o analista acompanha os efeitos de suas intervenções.

A inclusão da mãe na pesquisa foi primeiramente um manejo transferencial com a equipe, uma vez que os adolescentes eram descritos de forma fenomenológica pelos profissionais como “falados pela mãe”. Os membros da equipe não acreditavam na possibilidade de fala desses jovens sem a mãe. Após o início da pesquisa, esse manejo se mostrou fundamental para o consentimento da escuta separada do adolescente. Todas as entrevistas foram gravadas e, depois, transcritas. Após o encerramento do processo, foi ofertado seguimento clínico para todos os entrevistados que assim solicitaram. Dos 12 adolescentes, 10 seguiram em acompanhamento clínico.

O lugar dos pais no atendimento infantojuvenil é um tema de debate recorrente na psicanálise. O primeiro caso infantil atendido por Freud (1909 [1996])FREUD, S. (1909 [1996]). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. X. Rio de Janeiro: Imago., o do pequeno Hans, aconteceu por intermédio do pai da criança. Embora, atualmente haja um amplo consenso no meio psicanalítico de que a criança e o adolescente em transferência sejam os sujeitos da análise, a criança é um “analisante em plenos direitos” (informação verbal), segundo Lefort & Lefort (1985LEFORT, R.; LEFORT, R. Psicose no adulto e na criança: uma só estrutura. Conferência proferida na EBP - Seção Bahia e publicada em apostila de circulação Interna. 1985. p. 17-28.) a realização de manejos com os pais é necessária visto que dificilmente uma criança e/ou um adolescente chegarão sozinhos para atendimento e poderão arcar com os custos não só monetários de um trabalho analítico (FARIA, 2016FARIA, M. R. Introdução à psicanálise de crianças: o lugar dos pais. São Paulo: Toro, 2016.; PACHECO, 2012PACHECO, A. L. P. Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. São Paulo: Annablume, 2012. ; PEUSNER, 2016PEUSNER, P. Fugir para adiante. O desejo do analista que não retrocede ante as crianças. São Paulo: Agente Publicações, 2016.).

A inclusão apenas de mães no estudo deu-se pelo fato de elas serem as únicas cuidadoras dos adolescentes participantes da pesquisa. É provável que isso tenha ocorrido por razões sócio-históricas que não serão abordadas neste artigo. Mesmo levando em conta essa característica, é importante ressaltar que, para a psicanálise, a maternidade é uma função, não tendo a ver com o gênero nem com os pais biológicos (PACHECO, 2012PACHECO, A. L. P. Da fantasia de infância ao infantil na fantasia: a direção do tratamento na psicanálise com crianças. São Paulo: Annablume, 2012. ).

Foram incluídos no estudo todos os pacientes que estavam em acompanhamento no ambulatório de dor, fora de tratamento quimioterápico no momento da coleta de dados, com escore mínimo de 80 na escala de Karnofsky11É uma escala que avalia desempenho e classifica os pacientes de acordo com o grau de suas inaptidões ou deficiências funcionais. Quanto menor a classificação na escala, pior a expectativa de recuperação e retorno às atividades diárias (VESZ et al., 2013). e com um quadro de dor crônica há, no mínimo, seis meses.

Foram excluídos do estudo os pacientes com comorbidades neurológicas e psiquiátricas. O critério de seleção da idade dos pacientes está de acordo com a definição da Organização das Nações Unidas (ONU), que estabelece os limites cronológicos da adolescência entre 15 e 24 anos (EISENSTEIN, 2005EISENSTEIN, E. Adolescência: definições, conceitos e critérios. Adolescência e saúde, v. 2, n. 2, p.1-2, 2005.). Esse critério foi escolhido em virtude de a instituição estudada atender pacientes acima de 21 anos no ambulatório fora de tratamento e de dor. Neste estudo, usou-se a definição de dor crônica com duração superior a seis meses, em conformidade com a orientação da International Association for the Study of Pain (IASPINTERNATIONAL ASSOCIATION FOR THE STUDY OF PAIN, 1994. Disponível em: <Disponível em: www.iasp-pain.org >. Acesso em 26 setembro 2018.
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), para fins de pesquisa.

O presente estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (CEP/UNIFESP), sob o nº 1.455/2016, por meio do CAAE nº 61290016.7.0000.5505.

Resultados e Discussão

Os dados de identificação dos adolescentes, o diagnóstico oncológico e os tratamentos realizados até o momento da entrevista seguem apresentados no quadro 2, e os dados de identificação das mães, a classe social e a confirmação de recebimento do benefício assistencial seguem apresentados no quadro 3.

Quadro 2
Dados gerais dos adolescentes participantes da pesquisa (n=12). São Paulo, 2019
Quadro 3
Dados gerais das mães participantes da pesquisa (n=12). São Paulo, 2019

A análise dos dados embasou-se no referencial psicanalítico de Freud e Lacan, originando duas chaves de leitura: (1) a incidência do Real sobre os sobreviventes e suas mães e os efeitos de indiferenciação no registro Imaginário e de inibição ao sustentar um projeto próprio no futuro e (2) o efeito de alienação nos sujeitos e em seus corpos produzido por meio da idealização da instituição hospitalar e seu saber biomédico.

Primeira chave de leitura: a incidência do Real sobre os sobreviventes e suas mães e os efeitos de indiferenciação no registro Imaginário e de inibição ao sustentar um projeto próprio no futuro

O diagnóstico oncológico é reconhecido como um acontecimento no corpo que desvela a condição humana: a verdade de sua finitude. Por outro lado, há uma necessidade no homem de recalcamento dessa verdade (FREUD, 1916 [1915]/1996FREUD, S.. (1916 [1915]/1996). Sobre a transitoriedade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud , vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago .). Lacan (1955-1956 [1985])LACAN, J. (1955-1956). O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985., nessa mesma direção, fez uma advertência, ressaltando que não seria possível olhar de frente nem o sol nem a morte, o que salienta a necessidade humana de mediação frente à morte.

Diante desse pressuposto, o desvelamento da finitude causado pelo adoecimento oncológico exigirá soluções subjetivas singulares, construídas inconscientemente na tentativa de o sujeito se proteger da angústia desencadeada.

A angústia, afeto nomeado por Lacan (1962-1963 [2005])LACAN, J. (1962-1963). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2005. como aquele que não engana, emerge quando ocorre um abalo das coordenadas simbólicas do sujeito. No desencadeamento da angústia, é como se o Outro em sua função de “bússola simbólica” parasse “se subitamente toda norma vem a faltar, quer dizer tanto o que faz a anomalia como o que faz a falta, se de repente isso não falta, é neste momento que começa a angústia" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 52LACAN, J. (1962-1963). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2005.). Lacan construiu o conceito de Outro com letra maiúscula para diferenciá-lo dos outros nossos semelhantes. O Outro é considerado o discurso do inconsciente, tesouro dos significantes, lugar de onde vêm as identificações, muitas vezes anteriores ao sujeito, e sob os quais ele deve se localizar (LACAN, 1966 [1998]LACAN, J. (1966). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998.). Na angústia, o Outro aparece como Real, inconsistente, e o sujeito experiencia uma abolição de si mesmo "nos faz aparecer como objeto, ao revelar a não-autonomia do sujeito" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 58LACAN, J. (1962-1963). O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2005.).

O principal conceito psicanalítico utilizado na construção dessa chave de leitura foi o Real. De acordo com Faria (2019FARIA, M. R. O real, simbólico e imaginário na obra de Jacques Lacan. São Paulo: Toro . 2019.), os registros Imaginário, Simbólico e Real na teoria lacaniana formaram o eixo epistemológico pelo qual Lacan construiu seu ensino e clínica. O Imaginário exerce uma função ilusória de completude do eu, o Simbólico, pautado na linguagem, sustenta a estrutura do desejo inconsciente, e o Real é o que escapa à simbolização. Tanto o impossível como o que não cessa de não se inscrever na cadeia simbólica são características do registro do Real. “O impossível é o Real” (LACAN, 1969-1970 [1992], p. 175LACAN, J. (1969-1970). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1992.).

Em vários trechos das entrevistas, foi possível identificar marcas dessa experiência que toca o Real.

Em mim, eu acho que houve um bloqueio que eu não consigo nem identificar o que aconteceu, através de tudo isso, sabe? Até hoje eu fico assim, me perguntando. (Mãe da paciente Karen, 20 anos).

Diante dessa experiência de vazio de sentido que o diagnóstico oncológico instaurou, explicações pela via da culpa foram recorrentes nas entrevistas.

Eu me sinto culpada, eu acho que é porque eu queria tanto uma menina, e eu não soube pedir direito e ela veio desse jeito. (Mãe da paciente Karen, 20 anos).

Às vezes, tem coisa que a gente faz que não pode contar nem para o psicólogo. Foi antes da minha doença, só eu e a pessoa que fez sabe. Eu não devia ter feito, se eu pudesse voltar no tempo. Toda hora bate na cabeça, eu não consigo esquecer. (Paciente Roberto, 20 anos).

Soler (2002SOLER, C. O inconsciente a céu aberto. Rio de Janeiro: Zahar . 2002.), ao falar sobre o sentimento de culpa, escreve sobre o caráter epistêmico desse sentimento, ressaltando que, diante de uma infelicidade, em uma dor que não tem sentido, imposta como Real, o sujeito pode, a partir do movimento de se responsabilizar pela via da falha, bem como da do erro, construir um sentido e sair do vazio. A culpa nesse contexto é uma tentativa de dar sentido a esse Real angustiante presente na experiência de adoecimento.

Outra construção evidenciada: as tentativas de nomear o imprevisível, o contingencial que a experiência de adoecimento desvelou, apareceram deslocadas para outros medos, que, aos ouvidos da equipe de saúde, podem soar irracionais.

Eu vivo por ela. Por mim, ela nem ia na escola, o secretário brigou muito comigo. A minha vida é fechada com ela. Eu não deixo ela sair de casa, porque ela pode pegar uma bactéria. (Mãe da paciente Ivete, 15 anos).

Outro fenômeno que se repetiu nas entrevistas e que foi escutado como uma solução subjetiva foi uma modalidade de laço entre mãe e filho, permeada pelo traço de indiferenciação no registro Imaginário. O fazer um com dois corpos, que pode amenizar, mesmo de forma imaginária, o desamparo desencadeado pela experiência de adoecimento.

Peço a Deus para ele ficar vivo enquanto eu estiver viva. Estamos na guerra juntos, se é para morrer, morre junto. (Mãe do paciente Roberto, 20 anos).

E eu deixei de respirar um pouco a eu mesma para respirar a ela [...] Eu acho que ela tem que pôr na cabeça dela, ela tem eu por ela e ela por mim. (Mãe da paciente Beatriz, 18 anos).

Os trechos “se é pra morrer, morre junto” e “deixei de respirar um pouco a eu mesma para respirar a ela” demonstram a tentativa de aplacar, por meio do corpo do filho, a angústia.

Do lado dos adolescentes, o que se manifestou nas entrevistas foi, no nível do consentimento a essa demanda de completude imaginária, uma posição subjetiva que denuncia um apagamento em nome do amor materno.

Às vezes, a minha mãe fala umas coisas bem pesadinhas. Fico chateada, mas não falo nada. Deus deu dois ouvidos para ouvir mais e uma boca para falar menos. Que nem quando estou sentada, quero sair para ela sentar. Posso estar com dor que quero sair para ela sentar. (Paciente Ivete, 15 anos).

Ela quer me proteger demais. Para falar a verdade, me incomodo com isso. Ela quer que eu fique ao lado dela o tempo todo. Eu fico perturbado com isso, mas não consigo falar. Não tem aquele momento que ela vai para um lugar e eu vou para outro. (Paciente Roberto, 20 anos).

O momento da entrevista em que foi abordado como a mãe imaginava o filho no futuro ou como o adolescente se imaginava futuramente foi marcado pelo silêncio e, muitas vezes, uma preocupação relacionada ao adoecimento surgia e justificava a impossibilidade de eles se permitirem planejar fora do contexto hospitalar.

Se Deus não tivesse dado essa doença, eu já seria a dona do meu nariz, agora, nessa doença, eu não sou mais nada. (Paciente Beatriz, 18 anos).

Eu não tenho muito aprendizado, os professores me passam só por causa dos meus problemas de saúde. Eu quero trabalhar, mas que patrão que vai pagar para o funcionário, quase todo dia estou aqui. A minha mãe vai tentar me aposentar. (Paciente Roberto, 20 anos).

Amigos eu não tenho, é difícil ter amigos da minha idade. Quando eu estudava ninguém conversava comigo direito, por causa dos meus problemas de saúde. Tinham nojo. Falavam que eu ia passar o meu problema de saúde para eles. (Paciente Sônia, 21 anos).

A transição da adolescência para a fase adulta também apareceu nas entrevistas como algo distante, permeado de forma maciça pela experiência de adoecimento.

A convivência na doença, com a dor e a adolescência, misturou tudo, não tem como. Porque você sente dor, está adolescente e está doente, então é diferente. Você está doente, o foco é isso, está adolescente passando para uma fase adulta e não vai viver a fase adulta agora. É por isso que a fase adulta para mim não tem nada. (Paciente Beatriz, 18 anos).

Para mim, eu não vejo diferença, desde os meus 17 anos venho para cá, passo muito tempo aqui. (Paciente Bianca, 24 anos).

Minha adolescência eu não sou muito afeito a ela, eu ficava bem apartado da turma do colégio. Tinha um distanciamento, rolava bullying comigo, pela minha doença. É como se houvesse alguma muralha, entre mim e o que as pessoas fazem comumente nessa fase. A fase adulta ainda não sei dizer. (Paciente Lucio, 24 anos).

As soluções subjetivas nomeadas de indiferenciação no registro Imaginário, vivenciadas na relação mãe e filho, e de inibição na sustentação de um projeto próprio no futuro, são denunciadas com frequência por pediatras e outros profissionais acostumados a cuidar de crianças e adolescentes com histórico longo de adoecimento. No entanto, eles utilizam outros termos e leituras. Esses profissionais costumam se referir a esses pacientes como regredidos, infantilizados, e alguns usam os termos “relação simbiótica com a mãe”. Em relação à mãe, é comum ouvir, nesses casos, que elas falam pelo filho. Frente a esses quadros, são recorrentes as leituras de ordem moral dos profissionais da equipe a respeito do julgamento que fazem sobre como as famílias “usam” a doença, acusando-as de permanecer nessa posição, por exemplo, somente para continuarem recebendo benefício assistencial, ou deslizam para uma leitura das mães como mártires e ficam fixados no sentimento de dó.

Diante disso, levar o sujeito do inconsciente em consideração pode ser uma ferramenta importante para o campo da saúde, pois enseja uma lógica contida na posição do sujeito, viabilizando uma leitura do posicionamento dos pacientes e de suas famílias diferentemente da moral e do julgamento. A possibilidade da mudança de um olhar da instituição é fundamental para que não estigmatizem nem hostilizem os pacientes e consigam assim auxiliá-los na retomada de suas vidas e no desenlace da instituição (CASTAÑO , 2013CASTAÑO, G., et al. Saúde Coletiva e Psicanálise: entrecruzando conceitos em busca de políticas públicas potentes. In: ONOCKO-CAMPOS, R. (org.). Psicanálise e Saúde Coletiva - Interfaces. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 2013, p. 17-38.).

Segunda chave de leitura: o efeito de alienação no sujeito e em seus corpos produzido por meio da idealização da instituição hospitalar e do saber biomédico

Devido ao longo tempo, à intensidade do tratamento e ao fato de o início da doença ser frequentemente na infância, um fenômeno comum na oncologia pediátrica é a paralisação de sobreviventes e familiares na experiência de adoecimento. Perante esse quadro, verifica-se o esvaziamento de um saber próprio sobre o que lhes ocorreu e o posicionamento passivo diante principalmente da figura do médico.

Jones, Parker-Raley, Barczyk (2011JONES, B. L.; PARKER-RALEY, J.; BARCZYK, A. Adolescent cancer survivors: identity paradox and the need to belong. Qual Health Res, v. 21, n. 8, p. 1033-1040, 2011. ) realizaram uma pesquisa com sobreviventes de câncer infantil que constata a dificuldade de alguns jovens em construir um futuro e em ter sua própria identidade após o tratamento oncológico. Outra pesquisa demonstrou que alguns sobreviventes não se sentiam curados e que buscavam a construção de um novo senso de normalidade para que conseguissem se encaixar (CANTRELL; CONTE, 2009CANTRELL, M. A.; CONTE, M. T. Between being cured and being healed: the paradox of childhood cancer. Qual Health Res, v. 19, n. 3, 312-322, 2009.).

Pesquisas que investigaram a percepção dos sobreviventes a respeito do tratamento oncológico demonstraram que eles são muito gratos à instituição, mas apresentaram como queixa o papel de subordinação que ocuparam ao longo do tratamento. Também reivindicaram um cuidado relacionado à sua saúde social, salientando um desequilíbrio ao longo do tratamento entre uma grande preocupação com o aspecto físico em detrimento da saúde psicossocial (FREDERICK , 2017FREDERICK, N. N. et al. Preparing childhood cancer survivors for transition to adult care: the young adult perspective. Pediatr Blood Cancer, v. 64, n. 10, 2017.; SVEDBERG , 2016SVEDBERG, P. et al. Support from healthcare services during transition to adulthood - Experiences of young adult survivors of pediatric cancer. Eur J Oncol Nurs, v 21, p. 105-112, 2016.).

Barrett, Mullen e McCarthy (2020BARRETT, P. M.; MULLEN, L.; MCCARTHY, T. Enduring psychological impact of childhood cancer on survivors and their families in Ireland: A national qualitative study. Eur J Cancer Care (Engl), p. 2-10, 2020.) realizaram uma pesquisa qualitativa com adultos sobreviventes de câncer infantojuvenil que demonstra a recorrência de diagnósticos em saúde mental após o tratamento. Os participantes relacionaram o desencadeamento das crises com a experiência de adoecimento oncológico. Almeida (2017ALMEIDA, M.D. Sobreviventes de câncer infanto-juvenil: contribuições da psicanálise e novos dispositivos clínicos. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017.), em sua tese de doutorado, entrevistou sobreviventes de tumores no sistema nervoso central e verificou problemáticas na elaboração da experiência de adoecimento. Alguns sobreviventes não conseguiram recuperar sua integridade corporal e seguiram se sentindo ainda doentes; outros ainda estavam no trauma, impossibilitados de realizar o luto das perdas decorrentes do tratamento.

Ao se analisar esse fenômeno por meio de uma leitura psicanalítica, observa-se que as instituições, assim como o casal parental, são fortes representantes do Outro para o sujeito por conta da relação de poder estabelecida. Soma-se a esse poder já existente nas instituições a consistência do saber biomédico e, com isso, há o risco de se instalar uma modalidade de transferência com a instituição atuada principalmente com a figura do médico, produzindo no sujeito uma alienação muito maciça ao saber biomédico, o qual pode gerar do lado do sujeito um fenômeno de petrificação do seu ser no significante doente.

Freud, ao escrever sobre a dinâmica da transferência assegurou que a transferência experienciada em instituições poderia ser ainda mais intensa “[...] ocorre com a maior intensidade e sob as formas mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental [...]” (FREUD, 1912 [1996], p. 113FREUD, S. (1912 [1996]) A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago .). Diante disso, Freud (1912 [1996])FREUD, S. (1912 [1996]) A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XII. Rio de Janeiro: Imago . também revelou que a transferência, nesses casos, ao invés de agir como resistência levando o paciente a sair da instituição, pode acabar aprisionando-o, fazendo com que fique a ela retido por mantê-lo distante da vida.

Lacan, por sua vez, também se debruçou sobre o estudo da transferência, principalmente no que tange seu manejo na direção de tratamento e, ao longo de sua obra, elaborou novos desdobramentos. Para o presente estudo, em virtude da análise da relação que o sobrevivente e seu familiar podem estabelecer com o saber biomédico, optou-se por eleger o momento da obra em que Lacan (1973 [2003])LACAN, J. (1973). Prefácio à edição alemã dos escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2003. afirma que, na transferência, se trata do amor do sujeito endereçado ao saber do Outro, mais especificamente à crença na consistência desse saber que, no contexto da análise, fica encarnado na figura do psicanalista, e, em uma instituição de saúde, na figura de seus profissionais.

A base para a construção dessa chave de leitura foi o conceito de Outro e a relação entre os operadores lógicos de constituição subjetiva (alienação e separação) e o conceito de transferência.

Para Lacan, alienação e separação são operações lógicas que ocorrem de forma concomitante. A alienação, de acordo com Lacan (1964 [2008])LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008., é o destino para nos humanizarmos. Já a operação de separação está relacionada ao registro do Real. Portanto, de acordo com Lacan, a condição do sujeito do inconsciente é sempre da ordem da divisão subjetiva entre a necessidade de alienação aos significantes do Outro e a experiência de falta-a-ser, pois esse saber, por mais consistente que pareça, não consegue dar conta de toda a dimensão do ser.

É importante ressaltar que a aproximação proposta neste artigo não é com a alienação primordial, a qual, concomitantemente à operação de separação no momento da constituição subjetiva, instala a condição de falta-a-ser, mas, sim, com as alienações secundárias que produzem as identificações entre outras saídas do sujeito para lidar com sua condição de ser faltante (ZANOLA, 2018ZANOLA, P. C. Alienação e sua travessia na psicanálise lacaniana. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Curitiba, 2018.).

As operações de alienação e separação também são utilizadas pelo meio psicanalítico para pensar o percurso de uma análise e o manejo da transferência por parte do analista ao longo desse processo (GUEGEN, 1997GUEGEN, P. G. A transferência como logro. In: FELDSTEIN, R.; FINK, B.; JAANUS, M. Orgs.). Para ler o seminário 11 de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar , 1997, p.93-107.). É imprescindível que o analista esteja advertido dos perigos contidos no fenômeno da transferência. Lacan (1964 [2008])LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 2008., diante desses riscos, frisou que na transferência o psicanalista deve ocupar o lugar de sujeito suposto saber. O analista, ao operar a partir desse saber suposto e não de um saber total, possibilitará transformações importantes na relação do analisante com o saber e, ao final do processo de análise, o analista precisará suportar sair do lugar idealizado de saber que ocupou no decorrer desse processo. Safatle (2017SAFATLE, V. Lacan, revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo de emancipação política. Estudos Avançados, v. 31, n. 91, p. 211-227, 2017.), a partir da leitura lacaniana sobre o fenômeno da transferência, salienta que pensar o destino da transferência pode ser uma fonte de emancipação, já que ela existe em todos os lugares em que houver poder e identificação.

O relato da mãe da paciente Beatriz demonstra como a modalidade de transferência com a instituição de saúde e seu saber pode produzir efeitos iatrogênicos no sujeito e em seus familiares.

Eu tenho a irmã da minha colega, ela sofre com os dentes dela, porque não pode ir para outro hospital. Outro dentista não cuida do dente dela, porque ela tem câncer e coitada luta para passar e não pode. Aqui ela tem tudo, tem até clareamento, tem tudo. Aqui ela tem toda a assistência. Eu dou graças a Deus mesmo. Nunca vou ter o que falar. É bom demais aqui. Ela disse que não vai ficar velha, não. Ela não quer fazer 21 para não perder a vaga dela. (Mãe da paciente Beatriz, 19 anos).

Essa mesma paciente demandou internação à equipe devido à dificuldade de controlar sua dor crônica e externalizou para diferentes profissionais a vontade de morar no hospital. Tanto a vontade de não querer crescer quanto a de querer morar no hospital denunciam o efeito iatrogênico que a instituição pode gerar quando encarna para o sujeito a vertente de um Outro onipotente.

Nas entrevistas, os pacientes e suas mães disseram que devem suas vidas à instituição e que não saberiam para onde ir caso acontecesse algo ao hospital. A gratidão excessiva pode indicar, do lado do sujeito grato, uma espécie de dívida que o deixa impossibilitado de negociar, permanecendo assujeitado às demandas da instituição. O relato abaixo ilustra essa posição.

Uma vez, eu fiz uma entrevista de emprego e falei dos meus problemas de saúde. Isso aqui só se você encaixar as suas consultas nas suas férias ou na folga uma vez por semana. Às vezes, tenho consulta três vezes por semana. Fico pensando às vezes nessa questão, não ter um emprego fixo por causa dessa vida hospitalar que eu tenho. A gente depende de um emprego para ter uma renda e poder sobreviver. Isso causa pensamentos ruins, angústia. A doutora falou uma vez que sou paciente de alto risco, por isso preciso manter essa frequência, precisa estar sempre monitorando. (Paciente Leonardo, 24 anos).

Um ponto que chama a atenção na posição de Leonardo é que, em nenhum momento, ele cogitou conversar com sua médica a respeito da dificuldade que enfrentara na entrevista nem sobre o conflito que sente frente à necessidade de trabalhar para sobreviver versus a demanda de controle do hospital. Leonardo é muito grato aos médicos que o salvaram e demonstrou, ao longo de toda sua entrevista, uma posição passiva em relação ao que lhe é dito e demandado pela instituição. Parece que ele se identificou de forma petrificada ao significante paciente de alto risco e que, portanto, não teria o que tentar flexibilizar.

Outra fala que ilustra a consistência que o saber biomédico pode encarnar para o sujeito é o relato da mãe da paciente Larissa.

Eu não tirava fotos da L, e não conseguia comemorar o aniversário dela. A doutora falou que tem um tempo para a doença voltar, cinco anos. Quando ela fez 5 anos, a gente fez uma festa de dois dias, porque, para mim, ela estava nascendo naquele dia.” (Mãe da paciente Larissa, 19 anos)

Para alguns sobreviventes, o gerenciamento dos riscos de possíveis efeitos tardios, gerados pelo tratamento oncológico, pode funcionar como uma sombra, causando impasses em suas vidas, como demostraram as falas do paciente Leonardo e da mãe da paciente Larissa.

A partir do conceito de prevenção quaternária, os possíveis efeitos iatrogênicos gerados nos sujeitos podem ser problematizados em razão da passagem do controle das doenças para a administração excessiva dos riscos. Isso ocorre por meio de uma medicalização da vida em nome da prevenção (JAMOULLE; GOMES, 2014JAMOULLE, M.; GOMES, L. F. Prevenção Quaternária e limites em medicina. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Rio de Janeiro, v. 9, n. 31, p. 186-191, 2014.).

Vale ressaltar que a proposta é discutir principalmente a responsabilidade por parte da instituição frente aos fenômenos de paralisação na vida e petrificação do ser no significante doente. No entanto, não é possível deixar de fora a implicação do sujeito na produção desses fenômenos. Com isso, trata-se de uma discussão ética a respeito do posicionamento da instituição, não havendo garantias sobre como o sujeito irá se posicionar.

Embasados nesta pesquisa, a instituição estudada interessou-se em construir um ambulatório de transição com o objetivo de auxiliar no processo de transição dos pacientes e de seus familiares, visando principalmente à reinserção social. A metodologia de intervenção norteia-se por teorias psicanalíticas de Freud e Lacan, a partir do conceito de transferência e da ética da psicanálise e, também, pela proposta de um trabalho de interlocução da psicanálise com o campo das humanidades em saúde, especificamente, a filosofia e a literatura.

O aspecto singular relacionado à posição dos sujeitos e às suas histórias impossibilita generalizações. No entanto, as chaves de leitura apresentadas a partir da análise dessas entrevistas permitem ampliar a discussão a respeito do processo de transição para além do plano informativo.

Conclusões

A transição deve ir além do plano informativo embasado no saber biomédico para não acarretar a medicalização de mais um âmbito da vida dos jovens. É importante que o médico no final do tratamento “se deixe cair” da posição idealizada que ocupou em outras etapas do tratamento para que novos enlaces com outros significantes ocorram na vida dos sobreviventes.

A partir da análise dos relatos, conclui-se que é de suma importância a ampliação do conceito de transição para uma mudança de cultura na pediatria. O processo de transição desses jovens deve ocorrer de forma gradativa ao longo do tratamento, por meio de medidas que reconheçam o efeito da passagem do tempo para os sujeitos, seus familiares e equipe de saúde, independentemente do fato de estarem doentes.

Os sobreviventes são reconhecidos como um público vulnerável pela comunidade científica, mas ainda são poucas as políticas públicas que os auxiliam. Com base nisso, ressalta-se a necessidade de mais debate e reflexão a respeito das práticas assistenciais e políticas oferecidas a esse público.

Concluiu-se pela necessidade de criação de uma metodologia de intervenção que amplie o processo de transição incluindo a perspectiva de transitar doente, não se restringindo apenas à transição da adolescência para a fase adulta e/ou à transição da pediatria para o serviço de adultos. Essas transições no estudo, quando apareceram, surgiram como um futuro ainda distante; em contrapartida, as dificuldades relacionadas ao adoecimento apareceram com muita intensidade, denunciando a necessidade de um cuidado desde o início do tratamento.

É por meio de novos encontros e desencontros que outros laços e desenlaces poderão ocorrer para além da experiência de adoecimento. E é nessa junção de novas vivências à experiência de adoecimento − não mais considerada “a única experiência” − que os sujeitos poderão construir não apenas seu saber sobre o que lhes ocorreu, mas também suas próprias teorias sobre amor, sexo e morte, sem a predominância do saber biomédico, evitando, dessa forma, a petrificação do ser no significante doente.22M. T. P. Rabelo: desenho do estudo, coleta de dados, análise dos resultados, revisão bibliográfica e redação do artigo. A. L. P. Pacheco: desenho do estudo, análise dos resultados, fundamentação teórica psicanalítica. M. C. Schveiter: desenho do estudo, análise dos dados, redação e revisão do artigo. C. A. Len: desenho do estudo, análise dos dados e revisão do artigo.

Agradecimentos

O presente artigo é resultado de dissertação de mestrado, cuja pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Brasil, por meio de bolsa de pesquisa de mestrado.

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  • 1
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  • 2
    M. T. P. Rabelo: desenho do estudo, coleta de dados, análise dos resultados, revisão bibliográfica e redação do artigo. A. L. P. Pacheco: desenho do estudo, análise dos resultados, fundamentação teórica psicanalítica. M. C. Schveiter: desenho do estudo, análise dos dados, redação e revisão do artigo. C. A. Len: desenho do estudo, análise dos dados e revisão do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2020
  • Revisado
    17 Mar 2021
  • Aceito
    02 Abr 2021
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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