Resumo
Há estudos que sugerem necessidade de maior participação da atenção primária à saúde (APS) na regulação assistencial. Na última década, o município do Rio de Janeiro descentralizou a regulação ambulatorial, conferindo maior protagonismo a médicos da APS no processo regulatório. Este estudo, realizado entre 2019 e 2020, analisou o processo local de regulação do acesso à atenção especializada na APS desta cidade, a partir de entrevistas com profissionais e gestores e análise documental. Os resultados foram organizados nas categorias “atores da APS na regulação: papéis, interações e ferramentas”, “a regulação na APS ampliando a capacidade de coordenação do cuidado” e “a prática da regulação ambulatorial sob domínio da urgência”. Identificaram-se vantagens comparativas do arranjo descentralizado para a interação entre solicitante e regulador, ampliação parcial da capacidade de coordenação do cuidado, competição por vagas e iniquidades de acesso, além de frágil interface entre APS e atenção especializada. A descentralização da regulação é promissora, porém requer atenção ao processo de trabalho na APS e sinergia com os processos regulatórios centralizados, tendo a rede regionalizada como pano de fundo.
Palavras-Chave:
Atenção Primária à Saúde; Acesso aos serviços de saúde; Regulação em saúde
Abstract
There are studies that suggest the need for greater participation of primary health care (PHC) in care regulation. In the last decade, the city of Rio de Janeiro has decentralized outpatient regulation, giving PHC physicians a greater role in the regulatory process. This study, carried out between 2019 and 2020, analyzed the local process of regulating access to specialized care in PHC in this city, based on interviews with professionals and managers, document analysis and visits to services. The results were organized in the categories “PHC actors in regulation: roles, interactions and tools”, “PHC regulation expanding the coordination capacity of care” and “the practice of outpatient regulation under the urgency domain”. Comparative advantages of the decentralized arrangement for the interaction between requester and regulator were identified, partial expansion of the ability to coordinate care, competition for vacancies and inequities in access, in addition to the fragile interface between PHC and specialized care. Decentralization of regulation is promising, but requires attention to the work process in PHC and synergy with centralized regulatory processes, with the regionalized network as a backdrop.
Keywords:
Primary Health Care; Access to health services; Regulation in health
Introdução
O tempo de acesso a serviços especializados de saúde é um problema em diferentes países com sistemas universais e a gestão do acesso se dá, frequentemente, através da noção de listas de espera (CONILLCONILL, E. M.; GIOVANELLA, L.; ALMEIDA, P. F. Listas de espera em sistemas públicos: da expansão da oferta para um acesso oportuno? Considerações a partir do Sistema Nacional de Saúde espanhol. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2783-2794, jun. 2011.et al., 2011). Em experiências internacionais, outra questão crítica é a baixa comunicação entre serviços, que tem sido apontada como uma barreira à integralidade da atenção, dificultando a continuidade e coordenação do cuidado (NÚÑEZNÚÑEZ, R. T.; LORENZO, I. V.; NAVARRETE, M. L. V. La coordinación entre niveles asistenciales: una sistematización de sus instrumentos y medidas. Gac Sanit, Barcelona, v. 20, n. 6, p. 485-495, nov-dic. 2006.et al., 2006; SUTER ., 2009SUTER, E. et al. Ten key principles for successful health systems integration. Healthcare Quarterly, Toronto, v. 13, p. 16-23, Oct. 2009.; VARGAS ., 2018VARGAS, I. et al. Understanding communication breakdown in the outpatient referral process in Latin America: a cross-sectional study on the use of clinical correspondence in public healthcare networks of six countries. Health Policy Plan., v. 33, p. 494-504, 2018.; MIRANDA-MENDIZÁBAL ., 2020MIRANDA-MENDIZÁBAL, A. et al. Conocimiento y uso de mecanismos de coordinación clínica de servicios de salud de Latinoamérica. Gac Sanit., v. 34, p. 340-9, 2020.).
Um dos gargalos do Sistema Único de Saúde (SUS) é o acesso à atenção especializada, em virtude de ofertas assistenciais insuficientes e/ou desigualmente distribuídas bem como de seus modos de financiamento, organização, gestão do acesso e funcionamento (TESSER; POLI, 2017TESSER, C. D.; POLI, N. P. Atenção especializada ambulatorial no Sistema Único de Saúde: para superar um vazio. Ciênc saúde colet. Rio de Janeiro, v. 22, n. 3, p. 941-951, 2017.; SOLLA; CHIORO, 2008SOLLA, J.; CHIORO, A. Atenção ambulatorial especializada. In: GIOVANELLA, L. et al. (org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2008. p. 627-73.). A regulação assistencial (ou do acesso), noção adotada no Brasil, tem sido considerada estratégica na gestão das redes de atenção à saúde (RAS) e da atenção especializada em especial (MAGALHÃES JR, 2006MAGALHÃES JR, H.M. O desafio de construir e regular redes públicas, com integralidade, em sistemas privado-dependentes: a experiência de Belo Horizonte. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.; BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria GM nº 1559, de 1 de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do Sistema Único de Saúde. Brasília, 2008.). Princípios e diretrizes como equidade, transparência, utilização adequada e tempo oportuno de acesso têm sido evocados em suas diferentes conformações (ambulatorial, urgências, leitos, etc.) (BARBOSABARBOSA, D. V. S.; BARBOSA, N. B.; ESTELA, N. Regulação em Saúde: desafios à governança do SUS. Cad Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 24, n.1, p.49-54, 2016.et al., 2016; VILARINSVILARINS, G. C. M.; SHIMIZU, H. E.; GUITIERREZ, M. M. U. A Regulação em Saúde: aspectos conceituais e operacionais. Saúde em Debate. Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 640-647. 2012.et al., 2012).
A regulação assistencial ambulatorial (de exames e consultas) tem sido operada em centrais de regulação (municipais e/ou estaduais), ainda que recomendações de maior participação da Atenção Primária à Saúde (APS) já existam na política nacional (MELO ., 2021MELO, E. A.; GOMES, G. G.; CARVALHO, J. O.; PEREIRA, P. H. B.; GUABIRABA, K. P. L. A regulação do acesso à atenção especializada e a Atenção Primária à Saúde nas políticas nacionais do SUS. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 31, n. 1, p. 1-26, 2021.), sob o signo da micro-regulação (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília, 2011.), considerando inclusive o papel conferido à APS como base das RAS e coordenadora do cuidado (OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.). Há também heterogeneidade no grau de implementação de processos regulatórios no Brasil, com frequente, porém tímida, participação da APS, e marcante desintegração desta com a atenção especializada (ALMEIDAALMEIDA, M. M. M.; ALMEIDA, P. F.; MELO E. A. Regulação assistencial ou cada um por si? Lições a partir da detecção precoce do câncer de mama em redes regionalizadas do Sistema Único de Saúde (SUS). Interface, Botucatu, v. 24, supl. 1, p. e190609, 2020.et al., 2020; SILVA, 2017SILVA, J. R. S. Regulação assistencial e atenção básica em algumas experiências estudadas no Brasil [TCC]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca; 2017.).
O município do Rio de Janeiro foi alvo, desde 2009, de grande expansão de cobertura e investimento qualitativo na APS (PINTO ., 2017PINTO, L. F et al. A regulação municipal ambulatorial de serviços do Sistema Único de Saúde no Rio de Janeiro: avanços, limites e desafios. Ciênc Saúde Colet, v. 22, n. 4, p. 1257-1267, 2017.). Uma das inovações produzidas a partir de 2012 foi a descentralização da regulação ambulatorial para a APS, na qual parte dos médicos locais (integrantes das equipes de saúde) passaram a ter atribuições no processo regulatório até então exclusivas da central de regulação. Trata-se de experiência singular de regulação a partir da APS no cenário nacional, ainda pouco estudada, sobretudo no que se refere à sua organização e funcionamento. Este artigo analisa o processo de regulação assistencial em unidades de APS do Rio de Janeiro, buscando identificar suas repercussões no processo de trabalho das equipes (notadamente do médico regulador) e nas dinâmicas de acesso dos usuários aos serviços especializados.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso, de natureza qualitativa, desenvolvido na cidade do Rio de Janeiro entre julho de 2019 e janeiro de 2020, por meio de entrevistas com gestores e profissionais de saúde, complementadas por análise de documentos municipais.
A partir de indicação de gestores do nível central da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), escolheu-se inicialmente uma região da cidade com disponibilidade de serviços e desenvolvimento de regulação na APS consideradas adequadas por tais atores, brevemente apresentada no Quadro I.
Rede SUS no município do Rio de Janeiro e na área programática do estudo, Rio de Janeiro-2020.
Nesta área foram definidas duas unidades de APS (chamadas de Clínicas da Família) para o estudo, sendo uma com presença da residência e de médicos de família e comunidade e outra sem ambos, com a primeira se aproximando do funcionamento ideal da regulação (para os gestores) e a segunda representando a realidade da maior parte das unidades da cidade. As duas contam com Estratégia de Saúde da Família (ESF) e são denominadas neste artigo de unidades A e B, com características apresentadas no Quadro II.
Ao todo foram realizadas 19 entrevistas, envolvendo gestores/gerentes (do nível central, regional e local, ligados à regulação e/ou à APS) e profissionais de saúde da APS com tempo mínimo de atuação de um ano (médicos reguladores locais, médicos solicitantes, agentes comunitários de saúde e auxiliar administrativo), priorizando-se, para o foco deste artigo, aquelas dos atores com atuação local nos serviços. Os entrevistados foram escolhidos a partir da noção de atores chave e da técnica “bola de neve”.
As entrevistas, com duração aproximada de 60 minutos, foram gravadas em áudio e transcritas (excetuando-se duas que não tiveram a gravação autorizada). Os participantes com falas citadas no texto foram identificados por letras (G para gestores e P para profissionais) e números (segundo sua ordem de realização). Foram analisados 10 documentos municipais de domínio público (alguns sugeridos pelos entrevistados e outros encontrados na internet) abordando a regulação ambulatorial, publicados entre 2009 e 2018, conforme indicado no Quadro III.
Documentos do município do Rio de Janeiro relativos à regulação ambulatorial no período entre 2009 e 2018, Rio de Janeiro-2020.
Os registros de campo (feitos após a ida aos locais de trabalho onde foram realizadas as entrevistas) e a análise documental foram utilizados de maneira auxiliar na contextualização e compreensão de elementos do estudo. O material das entrevistas foi submetido a procedimentos de análise de conteúdo temática (GOMES, 2001GOMES, R. A. Análise de dados em pesquisa qualitativa. In MINAYO, M. C. S (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.). Os resultados foram organizados e analisados nas dimensões: “atores da APS na regulação: papéis, interações e ferramentas”, “a regulação na APS ampliando a capacidade de coordenação do cuidado” e “a prática da regulação ambulatorial ‘sob domínio da urgência’ ”. A análise foi realizada em diálogo preferencial com formulações sobre regimes de regulação com ênfase no regime profissional (CECÍLIO ., 2014CECÍLIO, L. C. de O. et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 30, n. 7, p. 1502-1514, jul. 2014.), microrregulação (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília, 2011.; OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.) e coordenação do cuidado (RODRIGUES ., 2014RODRIGUES, L. B. B. et al. A atenção primária à saúde na coordenação das redes de atenção: uma revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 343-352, 2014.; ALMEIDA ., 2018ALMEIDA, P. F. et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 244-260, 2018.).
A pesquisa seguiu as recomendações éticas da CONEP, tendo sido aprovada por Comitês de Ética em Pesquisa da instituição dos pesquisadores e da SMS-RJ, sob os pareceres de número 3.263.136 e 3.358.407, respectivamente. Os participantes foram esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa e consentiram em dela participar.
Resultados e Discussão
Atores da APS na regulação: papéis, interações, ferramentas e práticas
A regulação assistencial é um campo tenso, com disputas sobre controle de recursos assistenciais e lógicas de decisão, sendo em geral apresentado sob a ótica de gestores formais da saúde (MELO ., 2021MELO, E. A.; GOMES, G. G.; CARVALHO, J. O.; PEREIRA, P. H. B.; GUABIRABA, K. P. L. A regulação do acesso à atenção especializada e a Atenção Primária à Saúde nas políticas nacionais do SUS. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 31, n. 1, p. 1-26, 2021.), embora alguns autores o concebam como práticas formais e informais exercidas por diferentes tipos de atores (gestores, profissionais, políticos, usuários), marcadas por diferentes perspectivas e conflitos (CECÍLIO ., 2014CECÍLIO, L. C. de O. et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 30, n. 7, p. 1502-1514, jul. 2014.). Isto pode ser pensado tanto no âmbito do sistema quanto de um serviço de saúde (OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.). Deste modo, buscamos inicialmente caracterizar a atuação dos profissionais das unidades estudadas na regulação descentralizada.
O Quadro IV descreve a atuação de diferentes profissionais na regulação local.
No processo de regulação das unidades, destaca-se a centralidade dos médicos reguladores, únicos atores com a prerrogativa formal de regular, por vezes atuando também como responsáveis técnicos (RT) das unidades ou preceptores de programas de residência médica. A maior parte destes profissionais acumula funções assistenciais e/ ou formativas além da função de regulação.
Segundo um gestor que participou do processo de descentralização desde o início, a ideia era colocar os RT’s das unidades como reguladores por serem em tese mais qualificados. Outro fator que contribuiu para essa definição era o fato de que já recebiam uma gratificação por responder a outras tarefas, como a de liderar processos de governança clínica.
Então optou-se pelo médico mais qualificado da unidade [...]. Ninguém melhor do que aquele médico para advogar pelo seu paciente. Era esse o discurso. (G2).
Chamou-nos a atenção uma situação ocorrida na unidade B, em que a gerente precisou convencer um médico, através do argumento de que os pacientes da unidade teriam mais dificuldades em conseguir agendamentos de exames e consultas, caso ele não aceitasse ser o RT.
Nos últimos anos, abriu-se a possibilidade de incluir mais médicos na regulação, além do RT, com perfil de acesso como regulador ao software de regulação utilizado (o SISREG), disponibilizado pelo Ministério da Saúde, conforme a necessidade da unidade, respeitando a proporção de um médico regulador para cada 3 equipes de saúde da família (RIO DE JANEIRO, 2017). No entanto, identificamos que na unidade A havia 12 profissionais com função de regulador para 14 equipes, enquanto na unidade B havia 1 regulador para 5 equipes, proporção esta apontada como geradora de sobrecarga.
No que se refere aos chamados médicos solicitantes, viu-se que tomam decisões clínicas importantes ao solicitarem encaminhamentos ou exames, por exemplo. Além disso, outros profissionais por vezes esclarecem dúvidas de usuários sobre sua situação em listas de espera do SISREG. Em ambas as unidades, os atores locais frequentemente se referem à regulação como sinônimo de agendamento. Modificar a classificação de risco de um usuário que agravou visando maior agilidade no agendamento, por exemplo, não parece ser percebido como uma ação regulatória. Dessa maneira, dão ênfase a uma etapa (mesmo que importante) do processo e parecem considerar que apenas o regulador formal faz regulação, com os demais trabalhadores aparentemente não se vendo nem sendo vistos como reguladores. Possivelmente isto se associa a uma naturalização dos termos utilizados nos perfis do SISREG e ao maior poder decisório do médico regulador.
Embora avance quando comparado com a concentração de decisões nas centrais de regulação, o sentido dado à regulação neste arranjo parece mais tímido do que a noção de microrregulação, entendida como raciocínio regulatório (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília, 2011.; OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.) e que envolve diferentes profissionais das equipes. Na prática, no entanto, percebemos que muitos deles são mais atuantes na regulação do que conseguem enunciar. Ainda que a atividade de regulação ocupe mais tempo e energia do regulador formal, algumas equipes acompanham filas de espera, checam solicitações devolvidas e compartilham informações sobre agendamentos efetivados e pendentes em suas reuniões, por exemplo. A preocupação com os não agendados e o monitoramento das filas refletem a presença de práticas microrregulatórias que poderiam ser ainda mais efetivas se o discurso oficial fosse de que todos regulam em algum grau, inclusive com maior confiança no solicitante, deixando-o agendar alguns tipos de exames e consultas, ou ainda fazendo rodízio planejado da função de regulador formal, visando gerar maior alteridade e colaboração entre os profissionais.
No que tange à interação entre solicitantes e reguladores, observaram-se diferenças consideráveis entre as unidades. Na unidade A, a troca é vista como fundamental para a qualificação da regulação, havendo bastante diálogo, o que é atribuído à presença da residência médica. Uma oficina semanal sobre regulação é realizada, na qual se conversa sobre os fluxos da rede e a operação do sistema de regulação, gerando como efeito a diminuição do número de solicitações devolvidas.
Já na unidade B, não parecia haver contato tão próximo entre regulador e solicitante, justificado em parte por falta de tempo em meio à sobrecarga e acúmulo de funções do RT. Além menor interação, foram indicados alguns desconfortos, questionando-se o poder e capacidade técnica de um médico que devolve/nega a solicitação feita por outro e levantando-se a questão de que cada médico tem um critério diferente:
Na realidade atrito entre os profissionais não, mas eu questiono: quem são esses médicos reguladores? Por que que eles vão questionar o meu diagnóstico? (P6).
Neste sentido, é importante observar em que medida a regulação descentralizada favorece ou não a ampliação da capacidade clínica e de cuidado dos profissionais e é assim percebida, contribuindo para uma maior resolutividade da APS e consequente diminuição de encaminhamentos sem indicação (BADUY ., 2011BADUY, R. S. et al. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 295-304, 2011.; STARFIELD, 2002STARFIELD, B. Atenção Primária - equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO/Ministério da Saúde, 2002.), ou se o sentido de controle é o que predomina, tal como se observa na atenção gerenciada (IRIARTIRIART, C.; MERHY E. E.; WAITZKIN, H. La atención gerenciada en América Latina. Transnacionalización del sector salud en el contexto de la reforma. Cadernos de Saúde Pública, v. 16, n. 1, p. 95-105, 2000.et al., 2000). É razoável supor que os diferentes entendimentos e percepções dos atores locais sobre tal processo, indicados anteriormente, influenciem seus modos de realização e seus efeitos.
O contato com outros colegas reguladores da região, por sua vez, foi retratado pelos interlocutores como fundamental, ocorrendo sobretudo através de aplicativos de mensagens como o WhatsApp. Em um deles, reguladores de unidades da AP se ajudam, anunciando, por exemplo, quando surge uma vaga rara.
No que se refere à plataforma de regulação, a lentidão é colocada como um problema. A conectividade foi elogiada. A nomenclatura utilizada no SISREG para os procedimentos (exames e consultas), por sua vez, foi criticada por confundir ou deixar em dúvida os profissionais. Além disso, segundo eles, os fluxos sofrem recorrentes alterações, sendo preciso se atualizar constantemente. Em meio a tantas “pegadinhas”, como diz um regulador, o NIR da CAP , que costuma se reunir mensalmente com os RT´s , apoia esclarecendo fluxos e tirando dúvidas.
Em geral, os profissionais parecem seguir os fluxos formais de regulação, negando a utilização de fluxos paralelos e relações de amizade como forma de conseguirem acesso para seus pacientes. Não sabemos se esta é uma realidade da AP (ou das unidades estudadas), ou ainda uma limitação da entrevista, que captaria a fala e não a ação. Apesar disso, foi afirmada a existência de outras vias de acesso, por exemplo, às vagas em hospitais federais e universitários, para além do sistema formal. De todo modo, o discurso dos entrevistados retrata uma força do regime de regulação governamental (no qual se definem e operacionalizam normas, regras e fluxos), conceito proposto por Cecílio et al. (2014). Os mecanismos e fluxos oficiais estabelecidos pelos gestores convivem com o regime de regulação profissional (no qual frequentemente se fazem adaptações e agenciamento de contatos informais) de maneira aparentemente menos tensa do que o observado em outros estudos que apontaram a existência de disputas entre lógicas formais e informais de acesso à atenção especializada (OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.; CECÍLIO ., 2014CECÍLIO, L. C. de O. et al. O agir leigo e o cuidado em saúde: a produção de mapas de cuidado. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 30, n. 7, p. 1502-1514, jul. 2014.).
A regulação na APS ampliando a capacidade de coordenação do cuidado
A coordenação do cuidado, frequentemente entendida como uma orquestração dos cuidados de um usuário na rede, visando produzir continuidade e integração de ações, é um elemento estratégico e crítico na APS, dependendo de elementos como a capacidade clínica e de cuidado das equipes, o poder de influenciar o acesso, o compartilhamento de informações clínicas, a existência de retaguarda especializada para a APS e a interação entre atores de diferentes serviços de saúde (RODRIGUES ., 2014RODRIGUES, L. B. B. et al. A atenção primária à saúde na coordenação das redes de atenção: uma revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 343-352, 2014.; ALMEIDA ., 2018ALMEIDA, P. F. et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 244-260, 2018.).
Na investigação, uma das principais razões para a descentralização da regulação ambulatorial, segundo gestores entrevistados, foi a aposta no fortalecimento da coordenação do cuidado pela APS, conferindo poder regulatório a médicos das unidades, com maior proximidade e conhecimento sobre as necessidades dos usuários. Pudemos identificar alguns aspectos que indicam influências deste desenho de regulação na coordenação do cuidado. Médicos enfatizam, neste sentido, a possibilidade de terem mais acesso às vagas, gerando maior agilidade para a continuidade do cuidado. Em alguns casos, reguladores conseguem agendar até no mesmo momento do atendimento, quando eles próprios são também solicitantes:
Tem um lado bom também porque às vezes você precisa da vaga (...) e você consegue a vaga na hora (...). Então tem esse lado bom que às vezes você agiliza a vida do seu paciente, ele precisa de um exame e você já entrega para ele na hora (P9).
Esta situação, que costuma se dar quando o mesmo profissional é solicitante e regulador, pode no entanto gerar favorecimento de alguns usuários, pois, nas equipes em que há essa coincidência, ocorre uma aceleração do processo de agendamento. A desigualdade também pode acontecer caso o regulador não dê a mesma atenção às solicitações de outras equipes.
A proximidade do processo regulatório com o usuário, por sua vez, é vista como um fator que auxilia na coordenação do cuidado. A partir do vínculo construído entre a equipe de saúde família e o usuário, é possível conversar ou dar orientações sobre exames que serão realizados, por exemplo. A atuação dos ACS se destaca neste sentido:
Às vezes a gente até vê o local, vê o ônibus que tem que pegar porque tem gente que tem dificuldade porque não sabe ler [...]. A gente tenta explicar também o preparo, [...] às vezes a família também não liga muito, acaba esquecendo. Então a gente já grifa ali e marca texto, explica para a pessoa (P4).
Esta responsabilização pelo usuário também se verifica no processo de solicitação e agendamento. A maioria dos médicos considera problemáticas as longas distâncias para o local da consulta/exame, gerando inclusive absenteísmo, em virtude de limitações dos usuários (inclusive financeiras) para se locomover na cidade. Diante disto, solicitantes dizem colocar observações no SISREG indicando a unidade desejada, e reguladores, embora por vezes se pautem mais pela gravidade do que pela proximidade, parecem utilizar tal tipo de informação:
A gente escolhe de acordo com onde tem vaga [...] dependendo da distância também porque às vezes se for um lugar muito difícil acaba que o paciente não quer ir e acaba perdendo. Aí a gente tenta botar no lugar mais próximo possível. Ou não pode ir ou não tem dinheiro para ir porque a população é de baixa renda aí tem que pegar ônibus, acordar muito cedo e aí acaba não indo. Então a gente tenta se preocupar com isso, de ser um lugar bom e próximo para eles, acessível (P8).
Apesar da organização regional da gestão (como AP), não há poder desta sobre o conjunto de serviços especializados existentes na região. Além disso, há poucos serviços especializados com abrangência/responsabilidade regional definida, além de elevado tempo de espera para exames e especialidades como cirurgia geral, nefrologia, oftalmologia, ressonância magnética e psiquiatria/psicologia. Mesmo com a ressalva de que estamos tratando de uma região intra-municipal da segunda maior cidade do país (e não de um município pequeno que acessa serviços especializados num município maior de uma região intermunicipal), esta situação vai ao encontro de estudos que apontam a carência de uma política direcionada à atenção especializada com perspectiva de fortalecimento regional (OLIVEIRA ., 2016OLIVEIRA, L. A. et al. Processos microrregulatórios em uma Unidade Básica de Saúde e a produção do cuidado. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v. 40, n. 109, p. 8-21, 2016.; ALMEIDA ., 2018ALMEIDA, P. F. et al. Coordenação do cuidado e Atenção Primária à Saúde no Sistema Único de Saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. esp. 1, p. 244-260, 2018.), incluindo espaços de cogestão e planejamento da rede baseado nas necessidades da população e serviços especializados de referência com responsabilidade territorial definida.
Isto é preocupante na medida em que o exercício mais pleno da coordenação do cuidado, visando a integralidade, requer a efetivação de redes regionalizadas, que por sua vez depende de elementos como o financiamento, as políticas de gestão do trabalho e o próprio modo de organização e gestão da rede, podendo afetar a oferta assistencial e os tempos de espera (SANTOS, 2018).
Diante de limites na gestão de uma rede complexa, com parte da atenção especializada sendo ofertada em serviços geridos por outros entes para além da SMS, a proximidade entre solicitantes e reguladores é valorizada pelos profissionais (especialmente da unidade A), que apontam vantagens provenientes dessa troca:
Muitas vezes você tem uma patologia que pode ser encaminhada por duas abas. Que que vai fazer diferença nesses dois? Tempo. Qual que ele vai conseguir mais rápido? Eu como médico solicitante não tenho como saber. Mas médico que regula, que está na ponta sabe e aí ele me fala qual que é. Mais um motivo para o regulador ficar na ponta também, porque se está na central eu não consigo saber o tempo e isso faz diferença. (P2)
Alguns estudos (ALBIERI; CECÍLIO, 2015ALBIERI, F. A. O.; CECILIO, L. C. de O. De frente com os médicos: uma estratégia comunicativa de gestão para qualificar a regulação do acesso ambulatorial. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. esp, p. 184-195, 2015.; GIANNOTTI, 2013GIANNOTTI, E. M. A organização de processos regulatórios na gestão municipal de saúde e suas implicações no acesso aos serviços: um estudo de caso do município de Guarulhos. Dissertação (Mestrado em Serviços de Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.) indicam limitações na regulação centralizada, pois tende a ser baseada apenas no conteúdo escrito, havendo menor diálogo entre solicitante e regulador. Este problema é atenuado no arranjo descentralizado, em que pelo menos a análise e autorização das solicitações tendem a ocorrer mais rápido, havendo maior possibilidade de negociação entre solicitante e regulador e de sensibilidade à realidade dos usuários e do seu contexto de vida. No entanto, referindo-se a outras unidades da região, alguns profissionais apontaram problemas na qualidade dos encaminhamentos, relacionados à baixa capacidade clínica dos profissionais e/ou ao preenchimento inadequado das solicitações, provocando aumento da fila de espera (sem indicação clínica) no primeiro caso, e retornos de solicitações para o final da fila no segundo.
Ao analisar as solicitações de consultas em oftalmologia geral realizadas pelos médicos da APS no Rio de Janeiro, Gonçalves (2019)GONÇALVES, J. B. Análise dos encaminhamentos para primeira consulta em oftalmologia geral a partir de dados do Sistema de Regulação (SISREG III) no município do Rio de Janeiro em 2017 (Dissertação de Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2019. constatou excesso de solicitações incompletas, sem a descrição detalhada do quadro clínico e com ausência de critério na classificação de risco. A autora ressalta que esta situação pode se dar em função da possibilidade de contato direto entre o solicitante e o RT e que estas informações poderiam eventualmente ser úteis para os especialistas, lançando luz, de um modo diferente, sobre efeitos colaterais da proximidade entre solicitante e regulador.
A interação entre os diferentes tipos de serviços de saúde, por sua vez, é crítica, o que parece ser agravado pela fragmentação da responsabilidade sobre os serviços especializados (sob gestão municipal, estadual e federal). Um gestor regional aponta essa fragilidade:
A gente se fala em reunião, em e-mail, mas a rede não se fala, não se conhece e não se comunica e quando se comunica é sempre por um caso muito extremo ou aquilo que todo mundo já tentou de um tudo, já bateu cabeça e aí tudo bem, aí pedem auxílio aos demais quando poderia ter solicitado ajuda lá no início. Essa é a situação da rede (G10).
Baixa comunicação é relatada também por profissionais quando criticam a necessidade de o usuário ter de voltar à APS para viabilizar exames e consultas solicitados por especialistas (sem a possibilidade de discussão entre eles), ou quando a APS não consegue encaminhar o usuário para um especialista que já o atendeu a fim de dar continuidade a alguma avaliação ou tratamento. Vale lembrar, ainda, a inexistência de compartilhamento eletrônico de informações clínicas entre APS e serviços ambulatoriais especializados (embora exista prontuário eletrônico na APS), além de pouca possibilidade de interação entre médicos generalistas e especialistas por canais mais diretos, como telefone por exemplo.
Santos (2018), em recente estudo realizado na Bahia, constatou a dificuldade de comunicação entre os níveis de atenção como um dos fatores que comprometem a coordenação do cuidado. Portanto, apesar dos avanços alcançados, o modelo da regulação descentralizada não parece ter superado este problema comum em outros municípios do Brasil (ALMEIDA ., 2021ALMEIDA, H. B. et al. As relações comunicacionais entre os profissionais de saúde e sua influência na coordenação da atenção. Cad Saúde Pública, v. 37, n. 2, 2021.) e em diferentes países (NÚÑEZ et al., 2006).
Magalhães Jr e Pinto (2014) afirmam que a coordenação do cuidado deve ser feita pela APS, porém não de maneira exclusiva, cabendo também à atenção especializada parte desta função. Com base nisso pode-se perceber, no tipo de situação anteriormente mencionada, o risco de burocratização e peregrinação do usuário em nome da APS como porta de entrada e coordenadora do cuidado. A integração da assistência, por sua vez, pode ser facilitada por meio de protocolos clínicos que facilitem o cuidado compartilhado (KRINGOS ., 2010KRINGOS, D. S. et al. The breadth of primary care: a systematic literature review of its core dimensions. BMC Health Service Research. London, v. 10, n. 1, p. 65-78, 2010.) e, especialmente, da criação de espaços de diálogo entre os profissionais da rede assistencial, com apoio da gestão (BADUY ., 2011BADUY, R. S. et al. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 295-304, 2011.; ALBIERI; CECÍLIO, 2015; GIANNOTTI, 2013GIANNOTTI, E. M. A organização de processos regulatórios na gestão municipal de saúde e suas implicações no acesso aos serviços: um estudo de caso do município de Guarulhos. Dissertação (Mestrado em Serviços de Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.).
Ao considerar estes elementos, parece-nos que o arranjo descentralizado de regulação contribuiu parcialmente para a coordenação do cuidado pela APS, sobretudo pelo que representou dentro das suas unidades (maior acesso à regulação, maior conhecimento sobre a rede, maior proximidade entre regulador e solicitante e com a realidade do usuário). No entanto, tal modelo é constrangido pela frágil regionalização da rede (no âmbito da atenção ambulatorial) e pela desarticulação entre os serviços. Assim como em experiências que adotaram outros modelos de regulação, a inexistência de fluxos organizados (BOUSQUAT ., 2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, p. 1141-1154, 2017.) e as fragilidades comunicacionais com insuficientes mecanismos para articulação (ALMEIDA ., 2021ALMEIDA, H. B. et al. As relações comunicacionais entre os profissionais de saúde e sua influência na coordenação da atenção. Cad Saúde Pública, v. 37, n. 2, 2021.) permanecem como entraves para o cuidado integral, mesmo com o maior protagonismo regulatório da APS na experiência estudada.
A prática da regulação ambulatorial “sob domínio da urgência”
A ideia de um modelo de regulação descentralizada pode sugerir mas não deve ser interpretada como a inexistência de regulação central, mas como um modelo híbrido, com componentes centralizados e descentralizados. De fato, em última instância, é a central municipal de regulação do Rio de Janeiro que disponibiliza ou não vagas para regulação pela APS e que define o modo como isto ocorre.
Para os médicos reguladores entrevistados, o modo de disponibilização das vagas no SISREG torna a atividade desgastante na medida em que precisam acessar a plataforma constantemente para verificar se há vagas. Elas podem ser disponibilizadas desde às 7h até às 22h, sendo necessário que o regulador entre no sistema num momento em que a vaga esteja disponível, uma coincidência nem sempre possível, reconhecida inclusive pelos gestores: “Depende-se de uma sorte, entre aspas, de o regulador conseguir” (G1). Em alguns exames e especialidades com menor oferta no município é preciso que ele seja bem ágil na hora de agendar, pois as vagas acabam rapidamente.
As vagas de cirurgia, endoscopia são mais difíceis e acabam muito rápido. As outras acabam rápido também, mas tem um tempinho a mais [...]. Às vezes a vaga acaba tão rápido e você tem que decidir entre uma vaga que acaba em 30 segundos. (P9)
Diante desse cenário, os reguladores adotam estratégias para arrumar tempo para seu ofício. Muitos dizem regular de casa, no fim do dia, para não atrapalhar os atendimentos. Outros regulam entre os atendimentos, no horário de almoço, nos caminhos de ida e volta para o trabalho e em dias de descanso. O trabalho fora do expediente é apontado como um grande problema pelos profissionais, que alegam não ganhar hora extra para isso e que o fazem para conseguir as vagas de que os pacientes necessitam. Os gestores que se encontram há mais tempo na rede lembram que houve uma melhora neste processo, pois nos primeiros anos de sua implementação as vagas podiam ser disponibilizadas 24 horas por dia, havendo relatos de pessoas que regulavam de suas casas durante a madrugada e até se reuniam em bares para regularem juntos.
Dessa maneira, o acesso dos usuários aos exames e consultas ambulatoriais é facilitado ou dificultado de acordo com a disposição que o seu regulador local tem de olhar o sistema de regulação constantemente. Na unidade A (considerada por alguns gestores como uma das que apresentam melhores resultados na regulação), um ACS valoriza um médico da unidade que se dedica exaustivamente à regulação: “Ele vê vagas assim e está sempre regulando (...). A gente fala que ele é o amante da profissão. Está sempre dedicado (P4).”
Tal situação pode impor uma condição de culpa ao profissional e colocar em dúvida o compromisso de quem não opera com tamanha dedicação. O sofrimento é verbalizado pelos reguladores, que vêem a tarefa como adoecedora e inviável de ser mantida a longo prazo:
[...] No meu horário de almoço eu vou comer, estou ali no SISREG para ver se tem vaga de alguma coisa. Vou de Uber, por exemplo, não estou dirigindo, olho o SISREG [...]. Infelizmente eu acabo precisando fazer isso. Eu me sinto útil assim para ajudar os pacientes, mas eu sei que isso é meio patológico também (P1).
Um solicitante também critica e afirma que “isto é uma coisa para solteiros”:
Eu sei que alguns médicos levam trabalho para dentro de casa [...] mas quando eu boto meu pé ali para fora eu desligo. Desligo porque eu tenho filho, tenho esposa [...] e eu não vou sentar em casa para botar SISREG para o paciente. (P6).
Reguladores locais parecem ser alimentados pela ideia de que depende deles garantir o acesso dos usuários e por isso entendem o sobre trabalho como necessário. Neste movimento, a exemplo do que vem acontecendo em outros domínios, os limites das jornadas vão se indeterminando, numa tentativa de mobilização máxima do potencial de trabalho (ALTOÉ; LOURAU, 2004ALTOÉ, S.; LOURAU, R. Analista institucional em tempo integral. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.).
Nos últimos anos, as novas tecnologias têm contribuído para que o trabalho se torne ilimitado tanto em relação ao tempo quanto ao espaço, sendo possível, no caso em tela, acessar o SISREG por smartphones, por exemplo, de qualquer lugar, a qualquer momento. Isso não parece ocorrer por meio de explícitas exigências autoritárias, mas pelo desejo dos empregados em serem bem-sucedidos ou reconhecidos pelo seu esforço, numa atmosfera gerencial que transforma a energia libidinal em força de trabalho (GAULEJAC, 2007GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo: Idéias e Letras, 2007.). De acordo com Limeira (2018)LIMEIRA, R. M. N. Cartografia de fronteira: o Apoio como estratégia de enfrentamento à violência institucional no SUS (Dissertação de Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018., o modelo de gestão vigente na APS carioca, de matriz gerencialista, produz formas de assujeitamento do trabalhador, facilitadas pela terceirização da gestão para Organizações Sociais da Saúde. Num cenário desses, por sua vez, não seria de se estranhar se estratégias de relativização de algumas regras, como compartilhamento informal de senhas e autorização de solicitações com frágil avaliação, acabassem sendo acionadas pelos atores locais, inclusive como forma de sobrevivência.
A sobrecarga dos reguladores poderia ser diminuída mediante configuração de agendamento automático para alguns exames e consultas com ampla oferta ou baixo tempo de espera, como é o caso de dermatologia e mamografia, agregando-se mecanismos de acompanhamento para evitar acesso sem indicação e iatrogenias. Esta automação, que era utilizada anteriormente à descentralização, parece ter dado lugar a outro extremo, pois a maioria dos procedimentos passou a ter necessidade de que um terceiro analise, autorize e agende. Perguntados sobre a recomendação de separarem quatro horas semanais para atividade de regulação prevista desde 2018 (RIO DE JANEIRO, 2018), gestores apontaram baixa adesão e médicos indicaram inviabilidade devido às demandas que não cessam de bater às suas portas durante o dia de trabalho e à manutenção de desencontro entre o tempo do regulador (que tem outras funções na unidade) e o tempo da disponibilização das vagas.
Em decorrência desse modelo, iniquidades no acesso dos usuários foram reportadas. Alguns reguladores, ao mesmo tempo em que se sentem felizes por seus pacientes, lamentam que isto não aconteça em outras unidades:
[...] então é muito frustrante porque tem muitas clínicas que acabam ficando injustiçadas. Depende muito da pessoa que está olhando, tem que ter uma pessoa que fique ali tarada no SISREG olhando, procurando vaga para o paciente porque se não fizer isso ninguém magicamente vai marcar para ele [...] (P1).
O modo de disponibilização das vagas promove uma competição entre os reguladores e aqueles “tarados no SISREG” - expressão utilizada por mais de um entrevistado - conseguem mais vagas para os usuários de suas unidades. Dessa forma, concordamos com Gonçalves (2019), para quem este modelo inviabiliza um agendamento de acordo com o princípio de equidade, na medida em que os reguladores locais não são regidos por uma visão sistêmica acerca das demandas e ofertas, fazendo com que pacientes com quadro clínico menos grave de uma unidade possam ter acesso à atenção especializada antes de usuários com maior gravidade/necessidade acompanhados em outro serviço de APS. Vale destacar que, conforme apontam a Política Nacional de Regulação (BRASIL, 2008) e diferentes autores (VILARINS et al., 2012; BARBOSA et al., 2016), a produção de equidade no acesso é considerada um dos objetivos da regulação. Este, portanto, é um ponto de preocupação no modelo do Rio de Janeiro, pois tende a gerar iniquidades no acesso.
Uma alternativa para diminuir esses desequilíbrios seria a programação com regionalização virtual das vagas e/ou o estabelecimento de cotas parametrizadas por unidade mediante estudos que considerassem características da população adscrita (SPEDO SPEDO, S. M.; PINTO, N. R. S.; TANAKA, O. Y. O difícil acesso a serviços de média complexidade do SUS: o caso da cidade de São Paulo, Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 953-972, 2010.et al., 2010), mantendo parte da oferta na central e adotando estratégias de monitoramento para evitar desperdícios de vagas (caso uma unidade não utilizasse sua cota em tempo hábil). Isto também daria mais visibilidade às especialidades e exames em que há déficit de oferta ou fragilidade clínica da APS.
Tal corrida por vagas remete ainda à organização da oferta de atenção especializada na cidade e aos modos de programação do SISREG. É oportuno lembrar, neste sentido, a importância da organização regional da atenção especializada (SANTOS, 2011SANTOS, A. M. dos. Redes regionalizadas de atenção à saúde: desafios à integração assistencial e à coordenação do cuidado. Salvador: EDUFBA, 2018. 311 p.; BOUSQUAT ., 2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, p. 1141-1154, 2017.; DIAS, 2012DIAS, M. P. Estratégias de coordenação entre a atenção primária e secundária à saúde no município de Belo Horizonte (Dissertação de Mestrado) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2012.), inclusive em metrópoles com grande população e extensão territorial, facilitando processos de planejamento e programação regional das ofertas, além de maior possibilidade de criar canais de interação entre APS e serviços especializados.
A noção de microrregulação no SUS, ao invés de atomização sujeita à competição como neste caso, ou ao controle de decisões clínicas com motivações financeiras como acontece na atenção gerenciada (IRIART et al., 2000), precisa ser operada considerando a ideia de rede e a necessidade de efetiva articulação entre processos regulatórios locais e centralizados, buscando aumentar a qualidade da regulação e o acesso em tempo oportuno -e com equidade- à atenção especializada (MELO ., 2021MELO, E. A.; GOMES, G. G.; CARVALHO, J. O.; PEREIRA, P. H. B.; GUABIRABA, K. P. L. A regulação do acesso à atenção especializada e a Atenção Primária à Saúde nas políticas nacionais do SUS. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 31, n. 1, p. 1-26, 2021.).
Considerações finais
Dentre os efeitos positivos da descentralização da regulação ambulatorial no Rio de Janeiro, podemos destacar a ampliação do acesso à regulação bem como maior influência de elementos locais (próximos das realidades dos usuários e dos solicitantes) nas decisões regulatórias. Parece haver também uma ampliação de competências clínicas e fomento a diálogos entre profissionais mediados pelo acesso dos usuários a exames e consultas especializadas, efeito mais presente em unidades com residência em MFC.
Como limites, encontramos frágil regionalização das ofertas de atenção ambulatorial especializada, baixa comunicação entre serviços diferentes da rede e competição entre reguladores locais por vagas geridas centralmente, que resulta em iniquidades no acesso e sobrecarga dos profissionais.
Ainda que marcado mais pela singularidade do que pela extensividade dos seus achados, este estudo evidencia o caráter promissor da incorporação de atribuições regulatórias mais robustas na APS para a coordenação do cuidado, desde que adequadamente sintonizadas com o processo de trabalho das unidades, com a conformação de redes regionalizadas e com as instâncias encarregadas da gestão das ofertas assistenciais da rede, incluindo seu planejamento e programação.
Agradecimentos
Ao Programa Inova Fiocruz. À VDPI/Ensp.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
05 Maio 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
11 Nov 2021 - Aceito
02 Maio 2022 - Revisado
16 Fev 2022