Por uma decolonização do HIV e interseccionalização das respostas à aids

Felipe Cazeiro Jáder Ferreira Leite Andrei Junior da Costa Sobre os autores

Resumo

Com o advento da aids, uma articulação discursiva jornalística-biomédica-midiática contribuiu para acentuar a estigmatização sobre determinadas populações implicando uma colonização do HIV em que o vírus atingiria algumas pessoas enquanto outras estariam livres. Através de uma Análise do Discurso Crítica (ADC) realizou-se uma análise de retórica de algumas rupturas e continuidades discursivas nas áreas acadêmica-jurídica-midiática a partir de uma revisão narrativa de literatura (RNL). Os referenciais teóricos, éticos e políticos dos estudos decoloniais foram utilizados para a presente análise por entenderem que a colonialidade se reproduz em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser. Estes estudos foram articulados à uma crítica interseccional em que múltiplas formas de discriminação podem se sobrepor e serem experimentadas em intersecção tendo a contextualização sobre o que representou a aids, no Haiti, como eixo central comparativa para análise. Interessou-nos pensar a contribuição dessas perspectivas para lançar algumas provocações às respostas ao HIV/aids numa tentativa de superação de uma visão reducionista propagada por discursos morais e criminalizantes que, ao se posicionarem através de uma suposta neutralidade, dissimulam a interseccionalidade de gênero, classe, raça e sexualidade, levantando barreiras para as políticas e estratégias de promoção da saúde e prevenção ao HIV/aids.

Palavras-Chave:
Estudos decoloniais; Interseccionalidade; Políticas; Saúde; HIV/aids

Introdução

A construção discursiva do HIV/aids nos anos 80 se deu através de uma veiculação massiva em torno de uma linguagem estigmatizante que designava a doença como um “câncer gay”, além de ter sido validada pelos meios científicos, especialmente pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC-EUA), como Gay Related Immune Deficiency (GRID), pela incidência majoritária em homens homossexuais, transformando-os em vetores da doença, portadores de distúrbios e perversões (BASTOS, 2006BASTOS, F. I. Aids na terceira década. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.).

Nos dias iniciais da epidemia de aids, haitianos integraram o grupo dos “5H” de “homossexuais, heroinômanos, hemofílicos, haitianos e hookers (trabalhadores do sexo)” (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. História da Aids. Brasília: Ministério da Saúde [1982]. Disponível em: http://www.Aids.gov.br/pt-br/centrais-de-conteudos/historia-Aids-linha-do-tempo. Acesso em: 15 ago. 2020.
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). Essa formação apresentou um panorama social para a aids embasado em um tipo de sexualidade (a homossexual), um viés de raça/etnia (negritude e latinidade) e um gênero (masculino) (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009PELÚCIO, L; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex., Salud Soc. Rio de Janeiro, n. 1, p. 25-157, 2009.).

Ainda que tais construções tenham permanecido em alguns estudos, outros apontaram também sua impropriedade para objetivação da infecção. Porém, a associação moralmente impregnante no plano da linguagem, do simbólico e do que tem de político e social se colocou como enrijecida barreira para a objetivação do HIV/aids (PARKER, 2002PARKER, R. A aids no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. ABIA, IMS/UERJ, 2002.).

Embora muito se tenha avançado no plano científico-tecnológico, ainda se faz necessário compreender as artimanhas dessa construção midiática para decolonizar este saber biomédico, moral e político e seus efeitos que encontrou na aids seu ponto de ancoragem. Como alertou Herbert Daniel (1991), a invenção das várias maneiras de se pronunciar a aids, quando no local exato de poder, podem produzir terríveis patologias e sintomas sociais, daí a necessidade de superação dos efeitos estigmatizantes a ela associados para “reduzir a epidemia ao que ela é: uma doença como todas as outras” (DANIEL, 1991DANIEL, H. Anotações a margem do viver com AIDS. São Paulo: Hucitec, 1991., p. 7).

Portanto, tomando estes encadeamentos durante o processo de construção e a história política e social do HIV/aids até a contemporaneidade, objetivou-se, neste artigo, analisar criticamente alguns discursos jurídico-legais, midiáticos e científicos em torno da construção discursiva do HIV/aids permitindo compreender como são articulados eixos de poder e opressão nesse campo, tendo a contextualização sobre o que representou a aids, no Haiti, como eixo central comparativo para análise.

Contribuições decoloniais e interseccionais para respostas ao HIV/aids

As discussões pós-coloniais e decoloniais surgiram, inicialmente, com o pós-colonialismo. Em decorrência do giro decolonial, termo cunhado por Nelson Maldonado-Torres em 2005 (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 2, n. 11, p. 89-117, 2013.), ocorre neste campo a reivindicação de uma radicalização da pós-colonialidade enquanto um movimento crítico analítico da modernidade-colonialidade, de consistentes argumentos epistêmicos, teóricos e políticos de modo a “compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 2, n. 11, p. 89-117, 2013., p. 89). Em resumo, o projeto decolonial é aquele que, ao identificar a relação dicotômica colonizador-colonizado, busca apontar as múltiplas formas de dominação e opressão de povos (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e Perspectiva Negra. Soc. estado. Brasília, v. 31, n. 1, p. 15-24, 2016.).

Como reflete Bernardino-Costa (2015), o conceito sistema-mundo moderno/colonial constitui-se como uma categoria de análise do sistema capitalista para além dos Estados-Nação, incorporando em sua reflexão as transações econômicas, políticas e culturais. Aníbal Quijano (2005) reconfigura a ideia original de sistema-mundo moderno incorporando o termo colonial e destacando que a modernidade seria um “mito”, uma invenção que oculta a colonialidade (BERNARDINO-COSTA, 2015BERNARDINO-COSTA, J. Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organização política das trabalhadoras domésticas no Brasil. Soc. estado, Brasília, v. 30, n. 1, p. 147-163, abr. 2015.). Um ponto chave na teoria de Quijano (2005) é a ideia de raça, que auxilia a repensar a formação das relações sociais fundadas nessa ideia ou em outras, produzindo novas dicotomias, diferenciações e colonialidade, visto que a raça se converteu no primeiro critério fundante que demarcou a classificação social universal da população do mundo.

Um aspecto importante para a compreensão destes conceitos refere-se ao entendimento do projeto colonial sobre a divisão corpóreo-geopolítica do conhecimento em que a produção do saber se configura como característica própria de determinadas regiões do globo, de algumas instituições e de algumas agências, como o Branco Europeu, tratando-se de um processo de colonização do saber e da memória como aponta Mignolo (2006).

Ao acrescentar o termo “corpóreo”, o que se quer denominar é que esse processo não se reduz apenas a uma dimensão geopolítica, mas possui também uma dimensão corpóreo-política, na qual o corpo também é resultado de um processo de colonização e não é pensado como capaz de produção de conhecimento. Tal dimensão já tem sido incorporada por diversas/os intelectuais negras/os, a exemplo de bell hooks (1995).

Dentro desse contexto, a filósofa e autora Maria Lugones observa a desconsideração desses outros pensadores para com a categoria gênero. Lugones (2014) avança o pensamento decolonial alegando que a colonialidade não se encerra apenas na questão racial, afirmando o gênero para além da perspectiva biológica como entendia Quijano, mas como uma categoria relacional que é atravessada pela interseccionalidade de gênero e raça (COSTA; ALVES, 2020COSTA, T. B.; ALVES, M. C. Colonialidade da sexualidade: dos conceitos "clássicos" ao pensamento crítico colonial. In: ALVES, M. C.; ALVES, A. C. (org.). Epistemologias e Metodologias negras, descoloniais e antiracistas. 1. ed. Porto Alegre: Redeunida, 2020, p. 51-84.; GONÇALVES; RIBEIRO 2018). Para a autora, enquanto a mulher branca burguesa foi/é assujeitada na dicotomia inferior/superior e o homem negro na dicotomia humano/não humano, a mulher negra foi/é invisibilizada, por não ser compreendida nas categorias: mulher e negra (Lugones, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.).

Gonçalves & Ribeiro (2018)GONÇALVES, J. S.; RIBEIRO, J. O. S. Colonialidade de gênero: o feminismo decolonial de María Lugones. In: VII Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade, Rio Grande, 2018. Anais [...]. Disponível em: https://7seminario.furg.br/images/arquivo/46.pdf. Acesso em 10 out. 2020.
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afirmam a influência dos escritos de Kimberlé Crenshaw para o pensamento de Lugones sobre o papel da interseccionalidade na colonialidade de gênero. O termo interseccionalidade é nomeado em 1989, por Kimberlé Crenshaw (1991) – jurista estadunidense – que desenvolveu algumas das mais importantes elaborações teóricas desse conceito analítico que visa a ruptura da visão monolítica sobre os processos de opressão, entendendo os cruzamentos diversos de discriminação que uma mesma pessoa pode sofrer simultaneamente por seus marcadores (gênero, raça, classe, orientação sexual entre outros). Porém, não podemos apagar toda uma história de debates teóricos relacionados à luta de mulheres negras como Angela Davis, bell hooks e Sojourner Truth (Kyrillos, 2020KYRILLOS, G. M. Uma análise crítica sobre os antecedentes da interseccionalidade. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 28, n. 1, p. 1-12, 2020.).

Método

Entendendo os discursos como materialidades de ideologias hegemônicas que têm suas condições de produção em um contexto histórico e cultural, interessa-nos aqui traçar uma ilustração de como, desde o surgimento da anunciada epidemia de aids, a articulação discursiva científica-midiática-jurídica-legal operou para dar sentido a essa nova infecção, sendo explicitamente pautada em bodes expiatórios localizando-se numa lógica colonial.

Desta forma, pelo fato de a temática da decolonialidade do HIV/aids e sua interseccionalidade ser relativamente escassa em termos de artigos científicos, recorremos à revisão narrativa de literatura (RNL), por ser tornar mais apropriada para discutir o estado da arte de um determinado assunto. Ela é uma revisão mais ampla, dispensando uma metodologia rigorosa como aquelas em que são replicáveis em termos de reprodução dos dados específicos, como explicitam Vosgerau e Romanowsk (2014). No entanto, a RNL é fundamental para a atualização da produção de conhecimento sobre uma temática específica, pois pode evidenciar novas ideias, métodos e subtemas às vezes pouco discutidos dentro da literatura científica (Elias ., 2012Elias, C. S. R. et al. Quando chega o fim? Uma revisão narrativa sobre terminalidade do período escolar para alunos deficientes mentais. SMAD: Revista Electrónica em Salud Mental, Alcohol y Drogas, v. 8, n. 1, p. 48-53, 2012.).

Para tanto, foi realizada uma busca na base de dados SciELo utilizando os termos de indexação ou descritores “HIV e Interseccionalidade” / “HIV e Decolonialidade”, delimitando o intervalo temporal de 1980-2020. O critério utilizado para inclusão das publicações era ter as expressões utilizadas nas buscas no título ou palavras-chave, ou ter explícito no resumo que o texto se relaciona a interseccionalidade ou decolonialidade do HIV/aids. Desta forma, encontramos dois artigos e nenhum a ser excluído. Por este motivo, recorremos também a publicações de autores consagrados do campo como Richard Parker e Herbert Daniel.

Por conta dessa escassez de material, buscamos fontes de dados nas referências citadas dos artigos selecionados, e assim por diante a cada artigo encontrado para que pudéssemos ampliar a seleção de fontes compatíveis com o objeto de estudo do presente artigo. Deste modo, chegamos ao Paul Farmer, conseguindo trazer um comparativo de análise entre Haiti e Brasil.

Após a leitura das publicações encontradas, utilizamos a metodologia de Análise do Discurso Crítica para analisar alguns discursos jurídico-legais, midiáticos e científicos procurando identificar as relações intencionais escamoteadas neles. Para tal, utilizamos as perspectivas teóricas da interseccionalidade e do movimento decolonial como guias para analisar os efeitos de sentido presentes, além de nos orientarmos a partir de uma objetividade feminista no intuito de complementar ou aprofundar as lutas pela redistribuição igualitária através das políticas de reconhecimento. Ou seja: “a objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto” (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 07-41, 1995., p. 21).

A Análise do Discurso Crítica é um campo transdisciplinar com particular interesse na relação entre o mundo social e a linguagem. Afirma que o linguístico é social. Como assinala Magalhães:

A ADC oferece uma valiosa contribuição de linguistas para o debate de questões ligadas ao racismo, à discriminação baseada no sexo, ao controle e à manipulação institucional, à violência, à identidade nacional, à auto-identidade e à identidade de gênero, à exclusão social (MAGALHÃES, 2005Magalhães, I. Introdução: a análise de discurso crítica. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 21, n. spe, p. 1-9, 2005., p. 3):

Neste sentido, a ADC pode auxiliar na compreensão dos eixos de poder e opressão identificados nos discursos sobre o HIV/aids do presente artigo e para o entendimento de sua função colonial, que não permite a integralidade e interseccionalidade do fenômeno abordado, mas continua a reforçar a dominação sobre os corpos.

Assim, acreditamos que a prática crítica reflexiva e o esclarecimento do lugar de enunciação e interlocução da produção de conhecimento são essenciais para um saber-fazer teórico, social, crítico e político. Em vista disso, interessa-nos dialogar com uma produção de conhecimento que vem desempenhando grandes reflexões através de dois conceitos centrais: Colonialidade de Gênero e Interseccionalidade (LUGONES, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem. Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.; CRENSHAW, 1991CRENSHAW, K. W. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, California-EUA, v. 43, n. 6., p.1241-99, 1991.). Portanto, partimos de um projeto decolonial e sob um olhar interseccional com enfoque psicossocial em saúde.

Utilizamos esses conceitos para investigar a matriz colonial do HIV/aids, os atravessamentos das narrativas científicas, jurídicas criminalizantes e morais midiáticas que fabricam o disciplinamento e normatização dos gêneros e das sexualidades no campo das práticas sexuais através de eixos de poder e, por consequência, contribuem para a supremacia racial advinda da invenção da ideia de raça. Além disso, a perspectiva decolonial auxilia a repensar o lugar de fala (ANSARA, 2012ANSARA, S. Políticas da memória X Políticas do esquecimento: possibilidades de desconstrução da matriz colonial. Psicologia Política, São Paulo, v. 12, n. 24, p. 297-311, 2012.), visto que as pessoas soropositivas são faladas, na maioria das vezes, por outras pessoas e discursos (médico, jurídico, moral, religioso).

Deste modo, fazendo alusão às metáforas de combates comuns em contextos de pandemias como alertou Susan Sontag (2007), “combater o HIV” ou a epidemia, prevalência e incidência do HIV/aids é antes de tudo combater uma política e uma herança estigmatizante colonialista que segue se efetuando em complexas intersecções e opressões.

O discurso colonial da aids, a metáfora da peste e o ‘soropositivo’ como ameaça

Como podemos observar, o campo de produção discursiva sobre HIV/aids é ainda marcado por estigmatizações e preconceitos derivantes de um sistema colonizador que impera lucrar com a subalternidade e assujeitamento de corpos disruptivos às normativas morais de sexualidade, gênero e raça. Nesse entrecruzamento, figuras que carregam consigo a transgressão de mais de uma dessas ideologias disciplinares/docilizantes acabam sofrendo ainda mais estigmatização e preconceito, sobretudo quando as negligências de um Estado fomentam essas mesmas regras de morte (PARKER, 2000PARKER, R. Na contramão da aids: sexualidade, intervenção, política. São Paulo: Editora 34, 2000.; PARKER, 2001PARKER, R.; AGGLETON, P. Estigma, discriminação e aids. Rio de Janeiro: Abia, 2001.; CAZEIRO; NOGUEIRA DA SILVA; SOUZA, 2020).

Outrossim, esse mesmo campo discursivo também foi/é – e deve ser – disputado por atores que resistiram/resistem à múltiplas lutas cotidianas: pela (auto)aceitação de sua saúde, pelo direito à vida e com qualidade, pela transformação do imaginário social a respeito da doença, entre outras. Essa disputa opera trazendo rupturas, continuidades e deslocamentos nos discursos sobre a doença e as pessoas que vivem com HIV/aids. (DANIEL, 1991DANIEL, H. Anotações a margem do viver com AIDS. São Paulo: Hucitec, 1991.).

À frente das conclusões científicas sobre a aids em sua “descoberta” inicial (meados da década de 70 e início dos anos 80) estavam instituições como o Centro de Controle de Doenças (CDC-EUA), o Instituto Nacional de Câncer, em Bethesda e a Organização Mundial da Saúde (OMS), que trataram de associar a doença e sua transmissão a homossexuais, termo que naquela época incluía também as travestis e transexuais devido a pouca discussão sobre gênero e sexualidade na época (SOUTO, 2004SOUTO, B. G. A. As duas primeiras décadas da Aids: cenários e interações com a epidemiologia. Rev Med. Minas Gerais, v. 14, n. 4, p. 251-256, 2004.; ALTMAN, 1982ALTMAN, L. K. New homossexual disorder worries health officials. New York Times, New York, seção C, p. 1, 11 mai. 1982. Disponível em: https://www.nytimes.com/1982/05/11/science/new-homosexual-disorder-worries-health-officials.html. Acesso em: 24 jul. 2020.
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).

Em um apanhado sobre as duas primeiras décadas da aids e sua interação com a epidemiologia, Souto (2004) retoma a classificação elaborada pela OMS para classificar a transmissão do HIV tomando por base três padrões de transmissão: I, de pessoas heterossexuais envolvidas com práticas sexuais promíscuas (grifo nosso); II, transmissão predominantes entre homens homo e bissexuais e usuários de drogas ilícitas injetáveis; e III, maior transmissão entre pessoas com múltiplos parceiros sexuais, homo ou bissexuais.

O autor chega ainda a usar esses termos para se referir a classificação da transmissão do HIV em alguns países. Em suas palavras, na “Austrália e Nova Zelândia surgiu o que se denominou de padrão I, coincidentemente com a expansão do padrão II” (SOUTO, 2004SOUTO, B. G. A. As duas primeiras décadas da Aids: cenários e interações com a epidemiologia. Rev Med. Minas Gerais, v. 14, n. 4, p. 251-256, 2004., p. 251). Nota-se por essa classificação uma prevalência da figura homo e bissexual como transmissora do vírus pelo sexo, além do uso moralizante da palavra promíscua, denotando uma prática sexual “errada/desviante” em contraste com a prática sexual tida como certa, que ocorre entre um casal heterossexual monogâmico.

Ainda nessa fase inicial, Altman (1982), em um artigo da seção ciência do jornal mundialmente referenciado The New York Times, escreveu sobre uma “desordem homossexual” que preocupava os funcionários de saúde. Ao relatar a preocupação de algumas autoridades de saúde, o autor destaca que o CDC e o Instituto Nacional do Câncer em Bethesda estavam preocupados com as proporções epidêmicas do GRID (Gay-Related Immune Deficiency). Apesar de relatar que também houve infecções em 13 mulheres heterossexuais, o autor segue o artigo reportando as altas taxas de contaminação da doença em homens homossexuais e a suposta preocupação das entidades de saúde com esse contágio.

Pelúcio e Miskolci (2009), retomando os escritos de Farmer e Gilman sobre a relação aids-EUA-Haiti, apontam para o caráter invertido e fantasioso do colonialismo de países ditos “centrais” que operou a fabricação de um Outro negro, gay, hipersexualizado presente como antagonista na narrativa do mito de origem da aids, implicando na construção de “um léxico de culpabilização com forte teor racista, homofóbico e mesmo xenófobo” (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009PELÚCIO, L; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex., Salud Soc. Rio de Janeiro, n. 1, p. 25-157, 2009., p. 134). Os autores chegam a citar as autoridades norte-americanas de saúde pública como agentes que corporificaram, na figura do “paciente zero”, o responsável inicial pela epidemia (sendo este um comissário de bordo, frequentador de saunas gays), acusando-o, por meio de cálculos questionáveis, de ter contaminado cerca de 250 pessoas. Tal mito do paciente zero foi refutado em 2016 (PELÚCIO; MISKOLCI, 2009PELÚCIO, L; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex., Salud Soc. Rio de Janeiro, n. 1, p. 25-157, 2009.).

Borges (2014), ao fazer um retrospecto das manchetes sobre o tema HIV/aids veiculadas pelo jornal Notícias Populares, conhecido também como NP, especialmente no período de 1983 a 1985, reconhece a publicação de mitos sobre a doença, feita por este veículo, com manchetes como “Peste gay matou 80% das vítimas” (22/09/1983) “As lágrimas também transmitem a peste gay” (17/08/1985), “Ovelha transmite vírus da peste gay” (23/08/1985) sob a justificativa de que o nível de informação sobre a doença era limitado. O autor lança a defesa de que o jornal também publicou reportagens que denunciavam as reações negativas e a discriminação a qual envolviam as pessoas soropositivas. Todavia, desde 1980 o próprio jornal já havia publicado o aparecimento de casos em mulheres como sua chamada de junho que destacava: “Doença misteriosa mata só mulheres”, além de reforçar a metáfora da guerra para o HIV/aids (BELLINI; FRASSON, 2006Bellini, M.; FRASSON, P. C. Ciências e seu ensino: o que dizem os cientistas e os livros didáticos sobre HIV/AIDS? Ciênc. educ. (Bauru), Bauru, v. 12, n. 3, p. 261-274, dez. 2006.).

Em 2019, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS divulgou o material “Still not Welcome” (Ainda não é bem-vindo) relacionando 48 países e territórios que ainda mantinham algum tipo de restrição a viagem/permanência de pessoas estrangeiras PVHA, reiterando a imagem da pessoa que vive com HIV/aids como ameaça à saúde da população residente. Dentro desta lista, os países que possuem maiores restrições estão majoritariamente situados no Oriente Médio e com forte conservadorismo religioso. A exemplo desta observação está a Rússia, que realiza testes em pessoas estrangeiras (permissão para trabalho, estudos, permanência acima de 90 dias e para residência), além de fazer deportação de PVHA (UNAIDS, 2019UNAIDS. 2019. Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids. (não) Bem-vindo. Disponível em: <https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2017/06/2016_06_12_nao_Bemvindo_FINAL.pdf.>. Acesso em: 15 mar. 2020.).

Apesar de não possuir restrições a estadia ou permanência de pessoas estrangeiras que vivem com HIV/aids, o Brasil não está longe do preconceito contra essas pessoas e nem de sua superação. O avanço do conservadorismo no país é marcado por líderes religiosos que também propagam o ódio contra essas pessoas. O Uol Notícias divulgou a reação de pessoas soropositivas à fala do então Jair Messias Bolsonaro, em fevereiro de 2020, de que uma PVHA seria “despesa” para todos no Brasil. Segundo a notícia, esta não seria a sua primeira fala nociva para com essas pessoas. Em 2010, ainda como deputado federal, ao responder Mônica Lozzi, repórter do extinto programa humorístico CQC, Bolsonaro alegou que o poder público não tem que atender “esse pessoal que vive tomando pico na veia, ou vive na vida mundana [sic]” (TJARA, 2020TJARA, A. Estímulo ao preconceito: como soropositivos reagiram a fala do Bolsonaro. Uol Saúde. São Paulo, 08 fev. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/02/08/estimulo-ao-preconceito-como-soropositivos-reagiram-a-fala-de-bolsonaro.htm> Acesso em: 25 out. 2020.).

Como questionam Pelúcio e Miskolci (2009): o que mudou ou há de novo no campo da aids? Os autores suscitam que talvez a novidade pressuponha um deslocamento da “noção de controle” para a “noção de risco” prescindindo “que a disciplinarização venha de fora. Vivendo expostos ao risco, os desviantes precisariam se prevenir, enquanto “a sociedade em geral” se preveniria do contato com os desviantes” (Pelúcio; Miskolci, 2009PELÚCIO, L; MISKOLCI, R. A prevenção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissidentes. Sex., Salud Soc. Rio de Janeiro, n. 1, p. 25-157, 2009., p. 116).

A partir dessa suposição, percebemos sua materialização na noção de risco presente nos discursos midiáticos e na restrição da doação de sangue por pessoas LGBT configuradas na consideração de inaptos temporários por 12 meses no Art. 64 previsto na Portaria nº 158, de 4 de fevereiro de 2016, especificamente no inciso “IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes” (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 158, de 4 de fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. 2016 Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html. Acesso em: 18 jun. 2018.
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, p. 10).

Tal restrição ganhou grande repercussão em 2020 por ter sido vetada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), transformando-se em uma grande conquista pelos movimentos sociais visto que esse artigo também excluía homens homossexuais com vida sexual ativa, mesmo que estivessem com parceiro único e fixo, além de homens bissexuais, pessoas trans e homens que fazem sexo com outros homens (HSH) demonstrando ser uma discriminação totalmente seletiva.

Além disso, é possível perceber que a ótica do risco ainda atravessa a epidemiologia da aids como a atual institucionalização da PrEP (profilaxia pré-exposição), que consiste no uso de um medicamento antirretroviral para prevenir a infecção pelo HIV por grupos “mais expostos”: gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH); pessoas trans; trabalhadores/as do sexo e parcerias sorodiferentes (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Qual é a diferença entre a PrEP e PEP. 2017. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/faq/qual-e-diferenca-entre-prep-e-pep. Acesso em 13 dez. 2018
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). Não estão abrindo a possibilidade dos “grupos de risco” mais uma vez? Ao trazer estes grupos prioritários, mais expostos ou tidos como populações-chave para a utilização da PrEP, faz intensa aproximação à lógica estigmatizante dos “grupos de risco” que ocorreu no início da pandemia da aids.

Nesse contexto, podemos perceber também a seleção racial e de classe no acesso à PrEP pela população. Um relatório sobre a implantação da PrEP no Brasil em 2019 constatou que dos 4.907 usuários em PrEP em dezembro de 2018, 78% (3.831) foram gays e outros HSH cisgêneros, predominantemente autodeclarados brancos (64%) de 30 e 29 anos (41%) com 12 ou mais anos de estudos (75%). (BRASIL, 2019a).

Não é novidade que as respostas sobre o HIV/aids vêm sofrendo historicamente o impacto de sua construção linguística e de sua lógica colonial, moral e estigmatizante. Os tempos são outros? Mas décadas de silenciamento, mitos de superação da epidemia e uma reação de golpes e dos setores reacionários ao aumento das pautas políticas de gênero, sexualidade, raça, pobreza, entre outras, trazem a consequência da permanência do preconceito e das políticas de captura e extermínio que dizem respeito a toda a nossa herança escravocrata colonial conservadora. Neste sentido, podemos observar o que representou a aids no Haiti. Ao retratar as representações sociais sobre a aids no Haiti Rural, através de entrevistas estruturadas no período de 1983 a 1990, Paul Farmer (2004) nos mostra como o papel da cultura e de forças políticas, econômicas e sociais atuam para a estruturação das narrativas sobre a aids em países mais pobres e menos desenvolvidos como Haiti e que podemos traçar paralelos com o Brasil.

O Haiti, que também estava passando por uma ditadura (ditadura da família Duvalier), teve suas primeiras informações sobre a aids pelos EUA quando o CDC associou a doença ao país, tendo a imprensa apontado que haitianos seriam a principal causa dessa infecção. De início, a aids era vista como uma doença da capital e não do meio rural. O discurso midiático massivo operou para amarrar subjetivamente a relação entre haitianos e aids de tal modo que a representação de ser haitiano era também ser um “condenado da aids". Neste sentido, vê-se alguns exemplos citados por Paul Farmer: “Havia também rumores sobre haitianos na distante América do Norte: um dos informantes frequentemente falava sobre uma prima que teria perdido o emprego, em Nova York, ‘porque eles disseram que ela era haitiana e portadora da Aids’” (FARMER, 2004Farmer, P. Mandando doença: feitiçaria, política e mudança nos conceitos da Aids no Haiti rural. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, p. 534-567., p. 541).

Como uma representação de doença que vinha do sangue e não, até então, do sexo, a aids era tida como originada no Haiti, de pessoas com “sangue sujo/ruim”. Isto foi a perversa sugestão norte-americana: “Claro que eles dizem que é do Haiti; os brancos dizem que todas as doenças ruins são do Haiti” (FARMER, 2004Farmer, P. Mandando doença: feitiçaria, política e mudança nos conceitos da Aids no Haiti rural. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, p. 534-567., p. 546).

Percebe-se, mais uma vez, um processo civil colonizatório que demarca a posição de colonizador-colonizado no desenvolvimento do HIV/aids impedindo que o Haiti, como um país pobre, pudesse continuar se desenvolvendo visto que o turismo, que era uma segunda fonte de renda do país, fora extremamente afetado por essa assimilação e estigma, levando milhares ao desemprego e, por consequência da pobreza extrema e violência estrutural imposta, ao óbito. (Farmer, 2004Farmer, P. Mandando doença: feitiçaria, política e mudança nos conceitos da Aids no Haiti rural. In: HOCHMAN, G.; ARMUS, D. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, p. 534-567.).

Em Paul Farmer (2003, 2004, 2009), podemos ver como a construção discursiva da aids no Haiti reverbera associações com o contexto político-econômico maior, com o imperialismo norte-americano, com traços e heranças coloniais escravocratas, com a falta de solidariedade e com a corrupção da elite governante do país.

Um dos entrevistados na pesquisa de Paul Farmer (2004, p. 562), quando questionado sobre os EUA afirmar que Haitianos transmitiam aids ao mundo, declarou que: “Eles dizem que tem muito haitiano lá, agora. Eles precisam de nós para trabalhar para eles, mas agora tem demais lá”. Ou seja, há um elemento de interesse de exploração da mão-de-obra barata nesse contexto. Assim, ao discutir as carências do Haiti, Paul Farmer (2003) revela a aids como uma patologia do poder reiterada pela violência estrutural imperialista e geopolítica, pela ausência de direitos humanos e pela vulnerabilidade social.

Assim é que são produzidas as forças sociais nesse contexto e que também estruturam a cultura do risco das variadas formas extremas de sofrimento e adoecimento. Paul Farmer mostra exatamente como essa estruturação de risco ceifa a vida de muitos em detrimento da riqueza de outros. O autor atravessa o mundo a partir do Haiti passando pelo México, Rússia, Peru e Estados Unidos, buscando e identificando estruturas sociais e institucionais que selecionavam, através de uma violência estrutural, quem podia viver e quem deixaria morrer (FARMER, 2003Farmer, P. Pathologies of power: health, human rights, and the new war against the poor. Berkeley: University of California Press, 2003.). Vemos, portanto, como eixos de pobreza e violência estrutural são condições determinantes para riscos e adoecimentos. No Haiti, aids e violência política são duas principais causas de morte entre jovens adultos. Estaria o Brasil muito distante e diferente do que ocorreu no Haiti?

Esses indicadores não são resultados de acidente ou força superior; elas são consequência, direta ou indireta, da ação humana a partir de um jogo político de superioridade – colonialidade. As entrevistas de Paul Farmer seguem mostrando como forças sociais e econômicas podem ajudar a moldar uma epidemia de aids em países mais pobres e que são, em todos os sentidos, as mesmas forças que atuam para esse genocídio. Ambos são, desde o início, parte de uma herança colonial, de um Estados Unidos da América imperialista (re)colonizando o negro como pestilento (FARMER, 2009Farmer, P. On Suffering and Structural Violence: A View from Below. Race/Ethnicity: Multidisciplinary Global Contexts, v. 3, n. 1, out, p. 11-28, 2009.).

Não tão distante disso, uma discussão sobre a geopolítica no âmbito da saúde global tem sentido esses efeitos das forças sociais e econômicas como quando, por exemplo, João Biehl (2011) retrata que as desigualdades do poder, desde a destituição econômica até a discriminação racial, determinavam quem tinha acesso a quais serviços por conta de diversos interesses das parcerias público-privado em saúde global, transformando-a em um capital geopolítico e farmacêutico da “bala mágica”. Em consequência disso, em meio a intervenções para salvar a vida, populações mais marginalizadas são deixadas para resolver por conta própria e em detrimento de outras, como a população negra e a população em situação de rua (BIEHL, 2011Biehl, J. Antropologia no Campo da Saúde Global. Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 257-296, jan./jun. 2011.).

Assim é que a política da aids reproduz os traços coloniais discriminatórios de raça e pobreza e vemos resultados desiguais para os doentes, bem como estigma e discriminação incessantes. Exemplo disso é a mortalidade da aids ser mais fatal entre negros do que brancos, conforme o boletim epidemiológico aids de 2019 do Ministério da Saúde, estando a mulher negra em situação de maior vulnerabilidade (BRASIL, 2019b).

Além disso, a maioria dos medicamentos produzidos para o HIV/aids são patenteados e parecem operar numa lógica do monopólio absoluto criando obstáculo para o acesso universal, como expõe o BIEHL (2011, p. 285) sobre o caso da Índia, um dos países que fornecem antirretrovirais para o Brasil:

A Índia foi um país crucial na última década, usando com proveito o período de transição instituído pela Organização Mundial do Comércio para que os países-membros pudessem traduzir em lei a forte proteção de patentes. Durante esse período, a Índia especializou-se na fabricação de genéricos de medicamentos de HIV/AIDS patenteados, que tiveram grande importância na redução de preços no mundo e garantiram acesso a tratamento em países de poucos recursos. Mas, a partir de 2005, a fabricação de genéricos de drogas patenteadas foi terminantemente proibida. Isso não poderia ter vindo em hora pior, pois medicamentos patenteados, como Tenovir e Efavirenz, substituíram tratamentos de primeira linha preexistentes, tornando-se o tratamento de escolha universalmente aceito. Como último recurso, os governos poderiam emitir “licenças compulsórias” que lhes permitiriam fabricar ou importar genéricos em um momento de crise sem consultar o detentor da patente. [...] Mas emitir licenças compulsórias não é solução sustentável, no longo prazo. Devido a restrições recentes na importação de genéricos, o licenciamento compulsório exige que os países tenham capacidade interna de produção farmacêutica, o que significa que a maioria dos países de poucos recursos não pode utilizar essa ínfima flexibilidade embutida no regime de propriedade intelectual reinante. (BIEHL, 2011Biehl, J. Antropologia no Campo da Saúde Global. Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 257-296, jan./jun. 2011., p. 285).

Essa judicialização da saúde demonstra o interesse político, econômico e social de uma indústria como a farmacêutica evidenciando-se, assim, sua prioridade ao capital econômico mais do que humano e social. Portanto, diante de um crescente discurso de direitos humanos e possibilidades farmacêuticas, somos aqui confrontados com os limites básicos de infraestruturas onde uma colonialidade do HIV/aids se apresenta elencando barreiras para uma vida com HIV/aids. A partir dessa geopolítica, quais efeitos teriam para a política de tratamento universal no Brasil para cidadãos mais pobres e marginalizados no país onde as infecções se espalham rapidamente devido às vulnerabilidades que se encontram?

Sem dúvida, o Brasil teve um declínio significativo na mortalidade de aids. Contudo, da perspectiva dos pobres urbanos e das populações marginalizadas, a política da aids não é uma forma inclusiva de assistência. Os serviços locais de triagem e tratamento do HIV/aids, bem como os direitos sociais e econômicos para os mais pobres e marginalizados são, praticamente, inexistentes. O Brasil, que inovou no acesso ao tratamento como um direito humano através da Lei 9.313 de 1996 (BRASIL, 1996Brasil. Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS. Diário Oficial da União, 1996; 13 nov.), precisa (re)definir e implementar mais efetivamente um direito à saúde que transcenda medicamentos e exigências individuais, e garantir que a assistência e a prevenção primárias sejam potentes o suficiente para reduzir a vulnerabilidade à doença, a colonialidade do HIV e à uma necropolítica da aids (CAZEIRO; Nogueira da Silva; Souza, 2020) que segue exterminando aqueles “indesejáveis” (LGBT, população negra, mulheres, usuários de drogas e pessoas em situação de rua).

Logo, a interseccionalidade de gênero, sexualidade, raça, classe e sua relação com o HIV/aids nos convidam a visitar velhos desafios que se somam aos novos na busca de respostas mais integrais, pois, por meio dos efeitos atravessados de condições objetivas de exclusão, incorporação subjetiva do estigma e dominação sexista, tais correlações tendem a se configurar como um dos mais eficazes mecanismos de genocídio (LÓPEZ, 2011LÓPEZ, L. C. Uma Análise das Políticas de Enfrentamento ao HIV/Aids na Perspectiva da Interseccionalidade de Raça e Gênero. Saúde Soc. São Paulo, v. 20, n. 3, p. 590-603, 2011.).

Segundo López (2011), a expansão da aids sobre a população negra no Brasil precisa ser compreendida dentro de um sistema de correlações de forças que não foi projetado em sua integralidade, mas que operou a partir de uma conjectura racista de seleção e proteção do segmento branco a partir da existência de desigualdades sociais. Compreensões estas que começaram a ser apontadas com outras autoras como Guimarães (2001)GUIMARÃES, M. A. C. Afro-descendência, Aids e vulnerabilidade subjetiva. Boletim Internacional sobre prevenção e assistência à aids, n. 46, p. 8-9, 2001., Lopes (2003)LOPES, F. Mulheres negras e não negras vivendo com HIV/aids no estado de São Paulo: um estudo sobre suas vulnerabilidades. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. e Taquette (2009)TAQUETTE, S. (Org.) Aids e juventude: gênero, classe e raça. Rio de Janeiro: UERJ, 2009., quando relacionaram em seus estudos as categorias de gênero, raça e HIV/aids.

Tais fatores determinantes são mais bem ilustrados no estudo de Santos (2016), quando expõe a dupla vulnerabilidade às IST e HIV/aids por mulheres negras através de uma análise crítica do racismo institucional, das desigualdades socioeconômicas e do quadro epidemiológico. A autora percebe que essa vulnerabilidade perpassa questões que vão desde o comportamento sexual e social “esperado” para cada gênero e a dinâmica de poder entre eles avaliando que a submissão da mulher negra com relação às questões sexuais, étnico-raciais, socioeconômica e sua responsabilização pelas questões reprodutivas dificultam o diálogo com seus parceiros e aumentam drasticamente sua vulnerabilidade e infecção pelas IST e HIV/aids (SANTOS, 2016SANTOS, N. J. S. Mulher e negra: dupla vulnerabilidade às DST/HIV/Aids. Saúde Soc. São Paulo, v. 25, n. 3, p. 602-618, 2016.).

Portanto, o enfoque decolonial e interseccional pode delatar diversas violências e colonialismos sobre os corpos. Pode nos dar pistas para pensar a disseminação do HIV/aids entre a população negra como decorrente das desigualdades e violências e de uma colonialidade do poder. Pode, também, contribuir para a organização de formas de enfrentamento e intervenções que contemplem tais recortes, seja na área da saúde como na educação, da sociedade civil, na política, entre outras.

Helman (2009HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 2009.) assinala que o HIV/aids, quando relacionado à população negra, toma a imagem de um invasor que estaria ancorado em temas de xenofobia dada a sua articulação com imigrantes, turistas e estrangeiros, especialmente africanos e haitianos. E quando relacionado à população LGBT, toma a imagem de punição moral por conta da dissidência sexual e de gênero na qual perpassam estas identidades que não estariam nos moldes esperados pela norma cis-heterossexista da sociedade (cisgênera e heterossexual), potencializando uma suposta culpabilização pelo vírus.

Ao retomarmos os conceitos utilizados, verifica-se como a colonialidade do gênero e a perspectiva interseccional permitem aprofundar a compreensão do sistema hierárquico e as desigualdades vivenciadas pelas pessoas soropositivas, permitindo perceber como alguns eixos de poder – raça, classe, gênero, sexualidade e soropositividade – sobrepõem-se e se cruzam, gerando e reforçando opressões.

Como nos lembra Bernardino-Costa (2015)COSTA, T. B.; ALVES, M. C. Colonialidade da sexualidade: dos conceitos "clássicos" ao pensamento crítico colonial. In: ALVES, M. C.; ALVES, A. C. (org.). Epistemologias e Metodologias negras, descoloniais e antiracistas. 1. ed. Porto Alegre: Redeunida, 2020, p. 51-84. em sua pesquisa com trabalhadoras domésticas, é importante reconhecer que nem sempre essas categorias sociais de diferenciação atuam como fontes de desempoderamento, ou como numa tradição foucaultiana, de assujeitamento. Ao revés, a depender do contexto social, classe, raça, sexualidade, gênero e soropositividade podem atuar como fontes de projetos decoloniais, engendrando lutas e resistências como na grande epidemia da aids, em meados da década de 80, em que as reivindicações da organização dos movimentos sociais, das pessoas acometidas pelo vírus e da sociedade civil possibilitaram grandes avanços para o tratamento da doença. Reivindicações estas que continuaram paulatinamente com o desenvolvimento do movimento social de luta contra o HIV/aids até a atualidade, rompendo e continuando com outras reflexões permitindo a atualização das pautas e reatualização das lutas e respostas ao longo dos anos como, por exemplo, a citada conquista em 2020 da eliminação da restrição infundada de pessoas LGBT para doação de sangue no Brasil (BRASIL, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria Nº 158, de 4 de fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos. 2016 Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html. Acesso em: 18 jun. 2018.
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).

Se sexualidade, gênero, raça, classe e soropositividade são consideradas eixos de poder, é oportuno trazer à lembrança as considerações foucaultianas de poder em que ele não é uma propriedade de uma instituição específica, mas designa um campo relacional. Assim, as relações de poder alteram-se constantemente originando novos conflitos e novos pontos de re(ex)sistência, concomitantemente, produzindo novos sujeitos (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1979.).

Portanto, a depender da contextualização, o conceito de interseccionalidade e a perspectiva decolonial podem ser utilizados não somente para enfatizar uma dimensão negativa, de opressão e desempoderamento ou assujeitamento, mas também para pensar a emancipação, organização e mobilização política (CRENSHAW, 1991CRENSHAW, K. W. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review, California-EUA, v. 43, n. 6., p.1241-99, 1991.).

Considerações finais

A partir das análises realizadas, concluímos que a perspectiva decolonial e interseccional, que conjuga o olhar racial, de classe, gênero e sexualidade, auxilia a (re)pensar como se atravessam, agenciam e potencializam eixos de opressão e dominação, mas também vislumbrar intervenções que possibilitem processos de desconstrução destas desigualdades, abrindo possibilidades para uma decolonização do HIV/aids, de transformação das instituições para a promoção da igualdade racial, de gênero, de sexualidade e no aprofundamento da democracia e no recrudescimento da resistência para um tratamento mais integral em saúde, para as questões de prevenção, incidência e prevalência do HIV/aids, bem como para uma informação mais objetivada sobre esse vírus.

Como afirmam Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016)COSTA, T. B.; ALVES, M. C. Colonialidade da sexualidade: dos conceitos "clássicos" ao pensamento crítico colonial. In: ALVES, M. C.; ALVES, A. C. (org.). Epistemologias e Metodologias negras, descoloniais e antiracistas. 1. ed. Porto Alegre: Redeunida, 2020, p. 51-84., a partir de Hooks (1995), em detrimento da razão colonial, o corpo colonizado foi essencialmente fixado em certas identidades sob a ótica dominante de corpo destituído de vontade, de voz e subjetividade pronto para a servidão. Neste sentido, pensar a pessoa que vive com HIV/aids enquanto um corpo colonizado requer levantar questionamentos sobre quais são os corpos (re)colonizados pelo discurso (hegemônico) da aids? Questionamentos estes que, por si, solicitam que consideremos as relações discursivas e coloniais entre HIV/aids, raça, classe, gênero e sexualidade como práticas sociais e eixos de poder que atravessam os corpos de quem vive com HIV/aids.

A partir da decolonialidade do HIV/aids, é preciso decolonizar seus efeitos, desimpregnar suas ideologias morais para a objetivação da infecção em um conhecimento politicamente localizado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2020
  • Aceito
    29 Jul 2022
  • Revisado
    27 Jun 2022
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