Resumo
O estudo teve como objetivo analisar a assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei na perspectiva de gestores e profissionais de saúde. Trata-se de um estudo de caso, de abordagem qualitativa, realizado em janeiro de 2020, com 10 profissionais que atuavam no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Estado do Rio Grande do Norte. Para coleta de dados, utilizou-se um questionário sociodemográfico e entrevista semiestruturada. O conteúdo textual decorrente das entrevistas foi submetido à análise textual lexicográfica, com auxílio do software IRAMUTEQ, e a análise dos dados foi realizada a partir de literatura pertinente. Emergiram três categorias: As mudanças nas relações de trabalho e o impacto na assistência; A organização da Rede de Cuidado; e A assistência intramuros e os entraves para desinstitucionalização. Conclui-se que a assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei é influenciada pelas relações de trabalho; tem dificuldades relacionadas à estrutura física e à dinâmica das instituições; enfrenta entraves para garantir a desinstitucionalização, ao passo que fragmenta os vínculos e não implementa o Projeto Terapêutico Singular. Todavia, esforços têm sido empreendidos para articular a rede de cuidado de base territorial.
Palavras-Chave:
Assistência à saúde; Transtornos mentais; Prisioneiros; Administração de serviços de saúde; Pessoal de saúde
Abstract
The study aimed to analyze the care of people with mental disorders in conflict with the law from the perspective of managers and health professionals. This is a qualitative case study conducted in January 2020 with 10 professionals working at the Psychiatric Custody and Treatment Hospital of the State of Rio Grande do Norte, Brazil. For data collection, a sociodemographic questionnaire and semi-structured interview were used. The textual content resulting from the interviews was submitted to lexicographic textual analysis, with the help of the IRAMUTEQ software and data analysis was performed based on pertinent literature. Three categories emerged: Changes in work relationships and impact on care; The organization of the Care Network; and Intra-wall care and barriers to deinstitutionalisation. It is concluded that the care for people with mental disorders in conflict with the law is influenced by work relationships; has difficulties related to the physical structure and dynamics of institutions; it faces obstacles to ensure deinstitutionalization while fragmenting ties and not implementing the Singular Therapeutic Project. However, efforts have been made to articulate the territorial-based care network.
Keywords:
Delivery of health care; Mental disorders; Prisoners; Health service administration; Health personnel
Introdução
No cenário internacional, a partir dos anos 1980, o aumento da população carcerária associado à discussão acerca da necessidade de promoção dos direitos humanos, com ênfase na reintegração social das pessoas com transtornos mentais, suscitou o debate quanto à ética no cuidado ao “louco-infrator”, tanto no âmbito jurídico, quanto no campo da saúde (FORREST; HOPIKIN, 2019FORREST, A.; HOPKIN, G. Mental health in the criminal justice system: A pathways approach to service and research design. Crim Behav Ment Health. v. 29, p.207-217, 2019.; OLAGUNJU et al., 2018).
Tal debate, que assumiu amplitude em épocas diferentes em cada país, buscou superar o discurso que justificava a adoção da medida de segurança, a saber: defesa social contra a “periculosidade” dos “loucos-infratores”; incluindo-os dentro da noção de “populações vulneráveis” (LHACER, 2019LHACER, P. M.V. Transinstitucionalização: Caminhos e Descaminhos na Dinâmica de Internações e Desinternações de Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei no Estado de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências), Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 319. 2019.). Destaca-se que, para além da ausência ou precariedade no acesso à renda, a concepção de vulnerabilidade associa-se também às fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a bens e serviços públicos (CARMO; GUIZARDI, 2018CARMO, M. E. do; GUIZARDI, F. L. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, e00101417, 2018.). Nesse contexto, os denominados “loucos infratores” passaram a ser designados como pessoas com transtorno mental em conflito com a lei (LHACER, 2019LHACER, P. M.V. Transinstitucionalização: Caminhos e Descaminhos na Dinâmica de Internações e Desinternações de Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei no Estado de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências), Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 319. 2019.).
No Brasil, à luz da conjuntura internacional, a Reforma Psiquiátrica orienta a transferência do cuidado de pessoas com transtornos mentais de espaços segregatórios para dispositivos de base territorial (AMARANTE; NUNES, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. de O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018.) e passou a questionar a aplicação da medida de segurança e, consequentemente, a existência dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP).
Do ponto de vista político-institucional e jurídico, a medida de segurança é um dispositivo de caráter preventivo e assistencial, aplicado àqueles considerados inimputáveis ou semi-imputáveis, os quais não respondem judicialmente por seus atos em virtude de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e que pode ser cumprida em regime ambulatorial ou em HCTP, por período indeterminado (BRASIL, 1984BRASIL. Ministério da Justiça. Lei de Execução Penal nº 7210, de 11 de julho de 1984. Brasília: Ministério da Justiça, 1984.). Todavia, a aplicação da medida de segurança reflete, de um lado, o paradoxo no sistema penal que absolve a pessoa com transtorno ou deficiência mental pelo delito cometido, mas aplica a medida de segurança com pena privativa de liberdade prevista para o crime; e de outro, denota o descumprimento aos princípios da desinstitucionalização de pessoas com transtornos mentais, considerando a RPB (LHACER, 2019LHACER, P. M.V. Transinstitucionalização: Caminhos e Descaminhos na Dinâmica de Internações e Desinternações de Pessoas com Transtorno Mental em Conflito com a Lei no Estado de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências), Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 319. 2019.; SOARES FILHO; BUENO, 2016SOARES FILHO, M. M.; BUENO, P. M. M. G. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 21, n. 7, p. 2101-2110, July 2016.).
Ademais, com a aprovação da Lei nª 12.403/11, que alterou o Código de Processo Penal e permitiu a aplicação da medida cautelar de internação de pessoas com histórico de uso problemático de álcool e outras drogas, observou-se uma tendência crescente no número de admissões em HCTP (KOLKER, 2016KOLKER, T. Hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no contexto da reforma psiquiátrica: realidades evidenciadas pelas inspeções e alternativas possíveis. In: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Louco Infrator e o Estigma da Periculosidade. Brasília: CFP, 2016.).
Acrescentem-se os casos de indivíduos que são encaminhados de presídios para HCTP, por desenvolverem transtornos mentais durante o cumprimento da pena (ARNAU, 2020ARNAU, F. et al. Sociodemographic, Clinical, and Therapeutic Aspects of Penitentiary Psychiatric Consultation: Toward Integration Into the General Mental Health Services. J Forensic Sci, v.6 5, n. 1, p. 16-165, 2020.; LIMA; DIMENSTEIN, 2019LIMA, A. I. O.; DIMENSTEIN, M. Transtornos Mentais Comuns entre Trabalhadores do Sistema Prisional. Psicol. pesq. Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 53-63, 2019.; SOARES FILHO; BUENO, 2016SOARES FILHO, M. M.; BUENO, P. M. M. G. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 21, n. 7, p. 2101-2110, July 2016.).
Com a finalidade de modificar esse cenário, em 2014, foi instituído o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, alinhado com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) (BRASIL, 2014BRASIL. Portaria nº 94, de 15 de janeiro de 2014. Dispõe sobre a avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, vinculado à Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional. Diário Oficial da União, Brasília, 2014.).
Mais recentemente, a Portaria GM/MS nº 2.298, de 9 de setembro de 2021, reformulou as normas para a operacionalização da PNAISP, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que, embora muito recente para permitir a análise de seus impactos, suscita preocupações por não mencionar o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei em seu escopo (BRASIL, 2021BRASIL. Portaria GM/MS nº 2.298, de 9 de setembro de 2021. Dispõe sobre as normas para a operacionalização da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília: Ministério da Saúde, 2021.).
Este estudo se justifica pela escassez de estudos que avaliam os impactos da assistência prestada nos HCTP no processo de desinstitucionalização das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei e considerando a relevância de pesquisas avaliativas no direcionamento de melhorias no cuidado da população estudada. Ademais, dentre os atores envolvidos na assistência e, consequentemente, no processo de desinstitucionalização desse grupo, destacam-se os gestores e os profissionais de saúde dos HCTP, pois a visão desses responsáveis pela assistência pode revelar avanços ou retrocessos na qualidade do cuidado prestado.
Nessa conjuntura, questionou-se: como se efetiva a assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei? O objetivo do estudo foi analisar a assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei sob a perspectiva de gestores e profissionais de saúde.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso de abordagem qualitativa realizado em janeiro de 2020 no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) do estado do Rio Grande do Norte. Destaca-se que é parte de um estudo maior, cujo objetivo foi avaliar a assistência às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei, o qual resultou na construção e validação do modelo lógico e da matriz de critérios para atender tal finalidade (OLIVEIRA ., 2021OLIVEIRA, L. V. et al. Modelo lógico e matriz de critérios para avaliação da assistência à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 11, p. 5671-5680, 2021.).
O HCTP é o único do estado destinado, exclusivamente, para assistência a indivíduos com transtornos mentais em conflito com a lei e segundo dados fornecidos pela Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP), possui uma população de 45 internos, com ocupação de 100% das vagas disponíveis na instituição. Acrescente-se que a gerência institucional é realizada pela SEAP, através de dois policiais penais, que ocupam os cargos de direção e vice-direção no HCTP e; a assistência à saúde dos internos é feita por profissionais de saúde vinculados à Secretaria da Saúde Pública do Estado (SESAP), a saber: médico psiquiatra (1), enfermeiro (2), técnico em enfermagem (16), psicólogo (1), assistente social (1).
A amostra foi do tipo intencional, incluindo gestores e profissionais da equipe de saúde, considerando o seguinte critério de inclusão: atuar na instituição, desenvolvendo ações de gestão ou de assistência à saúde, por no mínimo seis meses, que apresentassem vivência e experiência com a temática estudada. Foram excluídos sujeitos que estavam de férias ou de licença no período da coleta de dados.
No total, foram elegíveis para o estudo três gestores (representantes da SEAP, SESAP e HCTP) e sete profissionais de saúde, do nível médio e superior, representado as seguintes categorias: médica, enfermeiro, técnico de enfermagem, farmacêutica, psicologia, assistência social, totalizando 10 participantes, sem nenhuma recusa dos selecionados.
A SESAP, a SEAP e o HCTP foram visitados pela pesquisadora responsável, que identificou e convidou os sujeitos que atendiam aos critérios de inclusão para participarem da pesquisa. Para coleta de dados, foram utilizados dois instrumentos. O primeiro, com a finalidade de caracterizar os sujeitos da pesquisa, foi um questionário sociodemográfico contendo as seguintes variáveis: idade, sexo, formação, nível de escolaridade, cargo/função e tempo de atuação na HPCT.
O segundo instrumento foi um roteiro de entrevista semiestruturado construído a partir da matriz de critérios de avaliação para assistência prestada às pessoas com transtorno mental, validada por experts na área, contemplando as dimensões : estrutura, processo e resultados, bem como os componentes político-gerencial e tático-operacional; contendo seis questões norteadoras que abordavam as condições estruturais, os encaminhamentos e as dificuldades e/ou facilidades para efetivação da assistência às pessoas com transtorno mental em conflito com a lei (OLIVEIRA ., 2021OLIVEIRA, L. V. et al. Modelo lógico e matriz de critérios para avaliação da assistência à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 11, p. 5671-5680, 2021.).
As entrevistas, realizadas em locais e horários definidos pelos participantes, foram audiogravadas e tiveram duração média de 20 minutos. Posteriormente, foram transcritas na íntegra no software Microsoft Office Word 2016® e importadas para o LibreOffice versão 6.0.4.2. Posteriormente, transcriadas com a intenção de adequar o material, gramaticalmente, à língua portuguesa por requisito informacional, correção de concordância verbal, vícios de linguagem e vocabulário vernáculo.
As respostas obtidas nas entrevistas receberam processamento informacional lexicográfico no software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), versão 07 alpha 2. Realizou-se a análise a partir do agrupamento de textos (entrevistas) monotemáticos reunidos em um único arquivo (corpus).
No IRaMuTeQ, foram utilizadas a Classificação Hierárquica Descendente (CHD - Método de Reinert) e a Análise de Similitude com árvore máxima, como métodos de tratamento dos dados. Estabeleceu-se como critérios para inclusão dos elementos em suas respectivas classes: frequência maior que o dobro da média de ocorrências no corpus e associação com a classe determinada pelo valor de khi2 igual ou superior a 3,84 (MARCHAND; RATINAUD, 2011MARCHAND, P.; RATINAUD, P. L’analyse de similitude appliqueé aux corpus textueles: les primaires socialistes pour l’election présidentielle française. In: Actes des 11eme Journées internationales d’Analyse statistique des Données Textuelles; Liège, Belgique. Belgique; 2011.).
Os 10 textos originaram seis classes, as quais subsidiaram a elaboração de três categorias, a partir da distribuição das classes no plano cartesiano da análise fatorial de correspondência, a saber: As mudanças nas relações de trabalho e o impacto na assistência a partir da classe 1- As relações de trabalho e o impacto na assistência; A organização da Rede de Cuidado, pelo compilado das classes; 2 - Articulação com o território; e 6 - Desafios para efetivação do Matriciamento; e A assistência intramuros e os entraves para desinstitucionalização, organizada pelas classes 3 - Fragmentação dos vínculos familiares; 4 - A assistência inviabilizada pelos muros; e 5 - Assistência alicerçada no medicamento. Ressalta-se que a interpretação e análise dos dados foi realizada a partir de literatura pertinente no que concerne à temática.
O estudo foi conduzido em consonância com as normas para pesquisas envolvendo seres humanos, estipuladas pela Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, parecer 3.084. 950.
Os participantes do estudo foram instruídos quanto à pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A fim de garantir o anonimato dos participantes, os gestores foram identificados com a letra “G” seguida pelos números 1, 2 e 3 (G1 a G3), e os profissionais da assistência com a letra “A” acompanhada dos algarismos arábicos 1 ao 7 (A1 a A7).
Resultados e Discussão
O perfil sociodemográfico dos sujeitos da pesquisa mostrou distribuição paritária entre os sexos, com média de idade de 48,3 anos ± 9,1 (mínimo de 35 e máximo de 59 anos), eram predominantemente casados (7; 70%), psicólogos (3; 30%), com média de trabalho de 6,8 anos ± 7 (mínimo de 1 e máximo de 22 anos) na instituição.
A análise do corpus proveniente das entrevistas com gestores e profissionais de saúde denotou 3.640 ocorrências de palavras, distribuídas em 1.057 formas. Por meio da Classificação Hierárquica Descendente, foram analisados 101 segmentos de texto, com retenção de 79,21% do corpus para construção das seis classes advindas das partições de conteúdo (Quadro 1).
Dendrograma resultante da Classificação Hierárquica Descendente do corpus textual. Natal-RN, 2020
Categoria 1 - As mudanças nas relações de trabalho e o impacto na assistência
A classe 1, com 16,25% do corpus analisado, denota os impactos na assistência a partir de mudanças no processo de trabalho, com ênfase para atuação do gestor da instituição pesquisada, conforme destacado nas falas que seguem:
A assistência melhorou muito com a atual gestão que é mais humanizada, trata os internos com respeito (A1)
O atual gestor, apesar de ser um policial penal, tem um olhar totalmente humano para o interno e para a família, e essa mudança repercutiu em todo o processo de trabalho, antes os policiais penais não entendiam o transtorno mental e tratavam [os internos] com muita truculência e agressividade, o que só piorava o quadro deles. Agora a gente consegue prestar uma assistência melhor com o auxílio da segurança (A2)
Realça-se, nesse contexto, a interdependência entre a assistência ofertada às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei e a compreensão acerca do direito à saúde de tais sujeitos. Historicamente, perpetuou no imaginário popular a concepção de que as pessoas que cometem delitos devem padecer, inclusive fisicamente, e ser destituídas de seus direitos fundamentais básicos, dentre eles a assistência à saúde (FOUCAULT, 1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir – história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.).
Estudo desenvolvido por Batista, Araújo e Nascimento (2019)BATISTA, M. A.; ARAÚJO, J. L.; NASCIMENTO, E. G.C. Assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade provisória: análise da efetividade do Plano Nacional de Saúde do Sistema Penitenciário. Arq. Ciênc. Saúde UNIPAR, v. 23, n. 2, p. 71-80, maio/ago. 2019. discute que, no Brasil, a premissa dos “direitos humanos para humanos direitos”, além de desrespeitar os princípios constitucionais, repercute no cotidiano dos serviços de saúde e afeta, de forma negativa, a assistência ofertada às pessoas privadas de liberdade. Ademais, sabe-se que os sintomas presentes em alguns transtornos mentais, como discurso desconexo, alucinação, delírios e agressividade demandam habilidades e conhecimentos específicos que favoreçam o cuidado, sobretudo no contexto de emergências psiquiátricas (OLIVEIRA; GARCIA; TOLEDO, 2019).
Todavia, estudos desenvolvidos com profissionais de saúde sinalizam dificuldades no cuidar de pessoas com transtornos mentais em situação de crise (NASCIMENTONASCIMENTO, B. B. et al. Dificuldades no atendimento às situações de urgências e emergências psiquiátricas. Arq. ciências saúde UNIPAR. v. 23, n. 3, p. 215-220, 2019.et al., 2019; OLIVEIRA; GARCIA; TOLEDO, 2019OLIVEIRA, A. de; GARCIA, A. P. R. F.; TOLEDO, V. P. Padrões de conhecimento utilizados por enfermeiros no cuidado ao paciente em primeiro surto psicótico. Esc. Anna Nery. Rio de Janeiro, v. 21, n. 3, e20170001, 2017.). Logo, infere-se que tais dificuldades sejam ainda mais acentuadas em profissionais da segurança, o que associado ao estresse inerente do exercício laboral – vigiar, fiscalizar, inspecionar, revistar e acompanhar os presos – favorecem condutas equivocadas (LIMA; DIMENSTEIN, 2019LIMA, A. I. O.; DIMENSTEIN, M. Transtornos Mentais Comuns entre Trabalhadores do Sistema Prisional. Psicol. pesq. Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 53-63, 2019.).
Destaca-se, ainda, que as mudanças na postura da gestão local, com repercussão no trabalho dos policiais penais, convergem com estudo desenvolvido por Monteiro e Araújo (2019)MONTEIRO, R. P.; ARAUJO, J. N. G. Manicômio Judiciário e Agentes Penitenciários: entre Reprimir e Cuidar. Psicol. cienc. prof. Brasília, v. 38, n. spe 2, p. 144-158, 2018., o qual identificou que as práticas de policiais penais em um HCTP estavam alicerçadas no cuidado, na dedicação e no respeito à singularidade das pessoas custodiadas.
As falas sinalizam também uma aproximação da gestão e, consequentemente, dos profissionais do HCTP com os pressupostos da desinstitucionalização que norteiam a Política Nacional de Saúde Mental no país, o que por sua vez, reverbera em mudanças no processo de trabalho dos profissionais entrevistados. Como sugerem as falas:
A gestão e toda a equipe começaram a compreender a noção do cuidado no território e criaram instrumentos para promover essa desinstitucionalização (G1)
A facilidade é que a gestão local que tem um olhar humanizado e compreendeu o paradigma da desinstitucionalização, compreendeu que desinternar é apenas o primeiro passo (G2)
A desinstitucionalização é um processo prático de transformação que, a começar pelo manicômio, desmonta a solução institucional, não mais com ênfase na cura, mas no projeto de intervenção de saúde e de reprodução social dos sujeitos. Assim, revela-se tanto em um processo de desconstrução de conceitos e práticas, como de construção de novas realidades, as quais devem ser conduzidas em dispositivos de base territorial (NUNES; AMARANTE, 2018).
Compreende-se que as mudanças na postura da gestão, dos agentes penais e da equipe de saúde coadunam com o direcionamento para efetivação da desinstitucionalização quanto à busca por promoção e garantia de direitos de cidadania às pessoas com transtornos mentais (BRAGA, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde soc. São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019.). Não obstante, é mister destacar que, para além do processo de desospitalização dos internos, a desinstitucionalização dos mesmos exige modificações estruturais, culturais que ofertem reintegração social nos territórios em que habitem (NUNES; AMARANTE, 2018).
Realça-se que, no contexto brasileiro, a expressão “desinstitucionalização” frequentemente é utilizada como sinônimo de desospitalização, tendo por significado a saída do paciente de dentro de hospital. Todavia, ao considerar que a desinstitucionalização representa o combate à psiquiatria clássica (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001ROTELLI, F.; LEONARDIS, O.; MAURI, D. Desinstitucionalização, uma outra via. In: NICÁCIO, F. (org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 17-59.); a prevenção de internações inadequadas em hospitais psiquiátricos e implantação de serviços de base comunitária para o cuidado dos egressos das internações (AMARANTE, 2010AMARANTE, P. O homem e a serpente. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.); bem como a efetivação das etapas : desospitalização, habilitação psicossocial, inclusão social e promoção de valor social (VENTURINI, 2016VENTURINI, E. A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.); fica evidente que a desospitalização é apenas a etapa inicial do processo de desinstitucionalização (NASCIMENTO; SILVA, 2020NASCIMENTO, M. S.; SILVA, M. B. B. Desinstitucionalização em debate: uma etnografia em eventos de saúde mental. Saúde Debate. Rio de Janeiro, v. 44, n. 3, p. 33-44, out. 2020.).
É mister mencionar também que as transformações no âmbito da gestão do HCTP podem ter relação com o movimento de reestruturação do sistema prisional do Estado do Rio Grande do Norte, iniciado no ano de 2017, após rebeliões ocorridas em penitenciárias estaduais (MELO; ARAÚJO, 2017MELO, J. R.S.; ARAÚJO, R. M. A cogestão no sistema penitenciário do Rio Grande do Norte: limites e contribuições. Ágora: R. Divulg. Cient., v. 22, n. 1, p. 87-103, 2017.).
A crise suscitada pelas rebeliões culminou com intervenção do Ministério Público e com a elaboração do Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Rio Grande do Norte (PLADISPEN/ RN), que elencou a desinstitucionalização das pessoas privadas de liberdade com transtorno mental em conflito com a lei como um eixo estratégico de reintegração social, além de viabilizar a realização de concurso público para o provimento de peritos do Instituto Técnico-Científico de Peritos (RIO GRANDE DO NORTE, 2017RIO GRANDE DO NORTE. Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Rio Grande do Norte. Natal: Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania, 2017.). Como demonstram as falas que seguem
A gestão estadual fez um plano que incluiu como um de seus objetivos a desinstitucionalização dos pacientes, ao menos para agilizar as desinternações (G1).
Teve o aumento do número de peritos do ITEP, então agora os pacientes estão recebendo alta mais rápido (A4).
É válido destacar que o PLADISPEN/RN foi construído a partir do diálogo entre diversas Secretarias, dentre as quais a SEAP e a SESAP (RIO GRANDE DO NORTE, 2017RIO GRANDE DO NORTE. Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Rio Grande do Norte. Natal: Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania, 2017.), o que permitiu avanços no tocante a intersetorialidade tão necessária no cuidado aos internos do HCTP. Acrescente-se o aumento do número de peritos do ITEP, os quais realizam as avaliações psiquiátricas dos internos, direcionando a cessação ou manutenção das Medidas de Segurança.
A partir do referido plano, também foram realizadas alterações na equipe da saúde do HCTP, como a contratação de um psicólogo e um farmacêutico para compor a equipe. Porém, até o período da coleta de dados, o estado do Rio Grande do Norte não havia implantado o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde.
Categoria 2- A organização da Rede de Cuidado
As classes 2 e 6 agrupam a percepção dos gestores e profissionais da saúde quanto à organização da rede de cuidado extramuros, o que é apontado como avanço na assistência prestada por contribuir com o processo de desinstitucionalização.
A classe 2, “Articulação com o território”, integrou 18,75% dos textos e apresentou em destaque as palavras atenção básica, rede, território, paciente e família. Compreende-se, por meio dessa classe, que a assistência prestada pelos profissionais no HCTP propõe-se, ainda que recentemente, a direcionar os internos para uma rede de cuidados de base territorial, como vê-se nas falas desses sujeitos
Antes o paciente que conseguia a desinternação era entregue aos familiares para que eles tomassem a iniciativa de buscar os serviços que ofertavam cuidados em saúde mental, no atual processo, já são entregues diretamente aos cuidados das equipes da rede que foi mobilizada previamente (A5).
Quando a gente sabe da proximidade da cessação da medida de segurança do paciente, vamos explicando primeiro para família, procuramos o CAPS de referência do território em que o paciente desinternado vai morar, procuramos a atenção básica, para fazer a articulação (A6).
O avanço na articulação entre o judiciário e a saúde e isso tem favorecido o processo de desinstitucionalização, essa aproximação entre as duas secretarias tem permitido melhorias (G3).
No Brasil, a partir da promulgação da Lei nº 10.216/2001, a fim de favorecer o processo de desinstitucionalização, tem sido organizada a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), a qual é composta pela atenção básica em saúde, atenção psicossocial especializada, unidades de urgência e emergência, serviço residencial de caráter transitório e hospitalar, assim como estratégias de desinstitucionalização e reabilitação psicossocial (BARBOSA; CAPONI; VERDI, 2018BARBOSA, V. F.B.; CAPONI, S. N.; VERDI, M. I.M. Risco como perigo persistente e cuidado em saúde mental: sanções normalizadoras à circulação no território. Saude soc. São Paulo, v. 27, n. 1, p. 175-184, 2018.).
É importante delimitar que as noções de rede de atenção psicossocial e de rede de cuidados, embora complementares, não são sinônimas. A rede de cuidado pressupõe a ampliação das possibilidades de acolhimento do usuário e de seus familiares, potencializando o exercício da cidadania e da inclusão social (BARBOSA; CAPONI; VERDI, 2018BARBOSA, V. F.B.; CAPONI, S. N.; VERDI, M. I.M. Risco como perigo persistente e cuidado em saúde mental: sanções normalizadoras à circulação no território. Saude soc. São Paulo, v. 27, n. 1, p. 175-184, 2018.).
Os participantes deste estudo destacam a corresponsabilização dos distintos atores envolvidos no processo de desinternação, na interlocução com o território e associam esta conduta a diminuição da reincidência dos internos ao sistema prisional, o que é denotado nos depoimentos de A3 e G3.
A comissão de garantia do processo de desinstitucionalização tem a função de acompanhamento no território, o que inclui necessariamente os egressos do hospital de custódia (A3).
Essa mudança tem diminuído a reincidência dos desinternados ao hospital de custódia o que antes se aproximava dos 100 de reincidência atualmente é quase nula (G3).
Tais achados coadunam com estudo de Bessoni et al. (2019), que evidencia os benefícios de abordagens orientadas para os serviços comunitários na melhora no comportamento social, na diminuição dos casos de crise e agressividade e, consequentemente, na diminuição das internações em enfermarias psiquiátricas.
A classe 6 foi denominada “Desafios para efetivação do Matriciamento”, integrou 20% do corpus e apresenta as dificuldades para articulação da rede de cuidado no território.
A questão macro política de desestímulo as noções de cidadania, de direitos humanos, o desmontem do SUS, da saúde mental, além de profissionais pouco habilitados para entender a saúde para além de questões biológicas (G1).
Profissionais que não estão sensíveis a entender os sujeitos como protagonistas de suas histórias e sujeitos com direitos; outro problema grave diz respeito às políticas partidárias que periodicamente causam rotatividade dos profissionais na rede e repercutem nesse processo que está sendo construído entre o hospital de custódia e a RAPS (G2).
Os municípios as vezes não se sentem na responsabilidade de receber esses pacientes (G2).
É sabido que o processo de desinstitucionalização, sobretudo de pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei, ainda que fundamentado em aparatos normativo-legais, não é linear, mas um jogo dinâmico, contínuo e, em grande parte, conflitivo, que envolve uma pluralidade de atores, contextos, concepções e interesses, e perpassado por questões além dos problemas estruturais e cenários de insuficiência (COSA; RONZANI; COLUGNATI, 2017).
Nesse interim, os achados do presente estudo assemelham-se à pesquisa desenvolvida por Rocha e Lucena (2018)ROCHA, E. N.; LUCENA, A. F. Projeto Terapêutico Singular e Processo de Enfermagem em uma perspectiva de cuidado interdisciplinar. Rev. Gaúcha Enferm. Porto Alegre, v. 39, e2017-0057, 2018., que elencou os seguintes desafios para execução do matriciamento (corresponsabilização de distintos atores para um cuidado longitudinal de pessoas com transtornos mentais): a falta de capacitação dos profissionais das redes de cuidado; a rotatividade dos profissionais da RAPS que gera a ruptura nos processos de trabalho; e as limitações para efetivação da intersetorialidade.
Ademais, no tocante aos egressos dos HCTP, o risco presumido de perigo por um lado tensiona as relações familiares e, por outro, fomenta sanções normalizadoras à circulação dos mesmos no território, condicionando o seu retorno às instituições totais.
Muitos nem saem do hospital de custódia porque não tem mais vínculo familiar, nem tem dispositivo no território que se responsabilize por eles. Ou saem direto para o manicômio (A7).
Não há mais espaço para que eles vivam fora, aí eles são empurrados de volta para o confinamento (A5).
Instituições totais caracterizam-se pelo caráter segregatório dos internos e pela perda da subjetividade e individualidade dos sujeitos, a exemplo dos manicômios e prisões (GOFFMAN, 2015GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. [Tradução Dante Moreira Leite] 9. ed São Paulo: Perspectiva, 2015.). Ademais, sabe-se que quanto maior o tempo de confinamento menor a chance de reinserção social dos internos, de modo que tais instituições adquirem um caráter de equipamento híbrido, ao articular as funções de punição, detenção provisória e gestão da miséria, sem fins de reabilitação e reinserção social (FIGUEIRO; DIMENSTEIN, 2016FIGUEIRO, R. A.; DIMENSTEIN, M. Castigo, gestão do risco e da miséria: Novos discursos da prisão na contemporaneidade. Estud. psicol. Natal, v. 21, n. 2, p. 192-203, 2016.).
Categoria 3 - A assistência intramuros e os entraves para desinstitucionalização
As classes de 3 a 5 integram a compreensão dos participantes da pesquisa quanto à assistência ofertada no contexto do HCTP e sinalizam os entraves para efetivação da desinstitucionalização a partir das carências estruturais e da própria dinâmica de trabalho.
A classe 3, “Fragmentação dos vínculos familiares”, que integrou 16,25% das palavras, apresenta a quebra de vínculo familiar e social como características da privação de liberdade.
Há pacientes que estão no hospital de custódia há mais de 17 anos e perderam a vivência com a família e com a sociedade (A1).
Há resistência familiar em receber os pacientes após a alta o paciente, eles sabem que sempre vai requerer assistência da família (A6).
Sabe-se que a ruptura de laços familiares e de suporte são elementos fundamentais para compreender as motivações das internações de longa permanência, sendo o manicômio um dos locais de “despejo” visando o controle social (BESSONI ., 2019BESSONI, E. et al. Narrativas e sentidos do Programa de Volta para Casa: voltamos, e daí? Saúde soc., São Paulo, v. 28, n. 3, p. 40-53, 2019.). A mesma perspectiva ocorre nos HCTP, pois o encerramento da Medida de Segurança é condicionado à existência de vínculo familiar, deste modo, àqueles que não possuem família mantém-se na instituição de forma perene.
Compreende-se que a capacidade das famílias em acolher e cuidar de pessoas em sofrimento psíquico é questão central nas políticas de saúde mental contemporâneas, a fim de que seja garantida a continuidade dos cuidados (CAMPOS; BEZERRA; JORGE, 2019CAMPOS, D. B.; BEZERRA, I. C.; JORGE, M. S.B. Produção do cuidado em saúde mental: práticas territoriais na rede psicossocial. Trab. educ. saúde. Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, e0023167, 2020.). Todavia, é necessário refletir que a resistência dos familiares dos internos do HCTP em recebê-los tem distintas motivações, dentre as quais se destacam baixo nível socioeconômico, pouco suporte dos dispositivos da RAPS, falta de informação e medo, sobretudo nos casos em que o delito foi cometido contra algum familiar (BARBOSA; CAPONI; VERDI, 2018BARBOSA, V. F.B.; CAPONI, S. N.; VERDI, M. I.M. Risco como perigo persistente e cuidado em saúde mental: sanções normalizadoras à circulação no território. Saude soc. São Paulo, v. 27, n. 1, p. 175-184, 2018.).
A classe 4 foi denominada “A assistência inviabilizada pelos muros”, agrupou 12,5% do corpus textual e denotou como vocábulos significativos: hospital de custódia e sair. Compreende-se, por meio dessa classe, que as limitações impostas pelo cenário estudado dificultam a desinternação e a desinstitucionalização.
O PTS dificilmente é implementado primeiro porque as regras são institucionais, o espaço é uma prisão, então não se insere na lógica do cuidado em saúde-mental (A3).
O PTS deveria pensar o que o paciente vai fazer quando chegar em casa? No que ele vai se ocupar? (A6).
O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um mecanismo utilizado para oferecer aos usuários outras formas de cuidar e de se auto cuidar em saúde mental e se configura em um dispositivo de superação do cuidado tradicional (ROCHA; LUCENA, 2020). Tal instrumento pode viabilizar a mudança de uma situação de extrema exclusão a outra de laços sociais e de posse de recursos que possibilitem as trocas sociais (CAMPOS; BEZERRA; JORGE, 2019).
Não obstante, a elaboração e implantação do PTS implica, dentre outras características, o delineamento de estratégias de cuidado que correspondam a singularidade e subjetividade do sujeito, de sua família e de suas necessidades específicas, o que não pode ser realizado no cenário estudado em decorrência das regras institucionais e das limitações impostas pelo ambiente prisional (SOARES FILHO; BUENO, 2016SOARES FILHO, M. M.; BUENO, P. M. M. G. Direito à saúde mental no sistema prisional: reflexões sobre o processo de desinstitucionalização dos HCTP. Ciênc. saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 21, n. 7, p. 2101-2110, July 2016.).
A classe 5, “Assistência alicerçada no medicamento”, com 16,5% do corpus analisado, revela a assistência centrada na medicalização dos sujeitos.
A assistência ocorre a partir de medicamentos psicotrópicos (A4).
A assistência é médico-biológica pautada no medicamento, focando em controlar os sintomas, a agressividade (A3).
Chegam sem prontuário médico, no máximo, com uma receita dizendo que medicamento estão usando (A2).
Apesar das tentativas de ruptura com a concepção biologicista e fragmentária do processo saúde-doença mental defendida pela psiquiatria clássica, o tratamento medicamentoso ainda é concebido como aspecto central (BRAGA, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde soc. São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019.).
A centralização do tratamento configura-se como estratégia disciplinar de contenção física e psíquica da pessoa com transtorno mental, e ainda que contenha os sintomas e a agressividade dos sujeitos, sem a adesão de outras estratégias de cuidado, não é capaz de produção de qualidade de vida e de saúde mental (BESSONI ., 2019BESSONI, E. et al. Narrativas e sentidos do Programa de Volta para Casa: voltamos, e daí? Saúde soc., São Paulo, v. 28, n. 3, p. 40-53, 2019.).
Outrossim, o processo de medicalização psiquiátrica excessiva, tão comumente identificados nos sistemas prisionais nacionais e internacionais, reforçam o processo de mortificação e patologização dos sujeitos (FREITAS; CALIMAN, 2017FREITAS, M. M. B.; CALIMAN, L. V. A Saúde e o Psicotrópico no Sistema Prisional. Rev. Polis Psique. Porto Alegre, v. 7, n. 3, p. 61-83, dez. 2017.), impedindo que os mesmos vivenciem bons encontros, paixões alegres e afecções do corpo que gerem arte, potência e transformação de realidades (FÉLIX SILVA; SOARES, 2021FÉLIX-SILVA, A. V; SOARES, G. P. Processos de Subjetivação em Arte e Saúde Mental em um Manicômio Judiciário. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 41, n. spe 4 e212322, set. 2021.).
Análise de similitude
A análise de similitude sobre a compreensão dos gestores e profissionais de saúde de um HCTP acerca da assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei elucida a assistência com foco no indivíduo, com pequena articulação entre a assistência realizada no âmbito do cenário da pesquisa e os dispositivos de base territorial.
Isto pode ser visto pelo destaque no vocábulo “paciente” (Figura 1), que está diretamente ligada às palavras “assistência”, “equipe”, “hospital de custódia” e “atenção básica”. Todavia, não há ligação direta, por exemplo, entre as palavras equipe e atenção básica.
Análise de similitude da compreensão dos gestores e profissionais de saúde de um HCTP acerca da assistência às pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei. Natal-RN, 2020.
É possível inferir que, apesar dos avanços apontados pelos participantes desta pesquisa, ainda são incipientes os processos de diálogo entre a RAPS e o HCTP. Achados semelhantes aos estudos de Soares Filho e Bueno (2016).
Ao analisar a Figura 1, ganham destaque as seguintes ligações entre os vocábulos: hospital de custódia-sair; hospital de custódia-processo-saúde mental-desinstitucionalização-facilidade-interno. Apreende-se, assim, que os profissionais de saúde e gestores entrevistados compreendem que o objetivo da assistência é viabilizar a saída dos internos da instituição, bem como correlacionam tal aspecto ao processo de desinstitucionalização.
Ressalta-se que para operacionalizar o processo de desinstitucionalização dos internos, faz-se necessário reforçar o Matriciamento e, por conseguinte, a implantação do Projeto Terapêutico Singular (BRAGA, 2019BRAGA, C. P. A perspectiva da desinstitucionalização: chaves de leitura para compreensão de uma política nacional de saúde mental alinhada à reforma psiquiátrica. Saúde soc. São Paulo, v. 28, n. 4, p. 198-213, 2019.).
Considerações finais
Para os sujeitos da pesquisa, mudanças na gestão institucional, com direcionamento para “humanização” nas relações interpessoais, têm proporcionado melhorias no processo e nas relações de trabalho entre os policiais penais e os profissionais de saúde, bem como entre toda equipe e os internos e seus familiares. Tais mudanças favorecem a assistência e contribuem com o processo de desinternação dos internos.
Outrossim, a gestão local e a gestão estadual têm demandado esforços para articular a rede de cuidado territorial, o que tem agilizado o processo de desinternação e de inserção das pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei em dispositivos de cuidado da Rede de Atenção Psicossocial e da Assistência Social.
Todavia, no espaço intramuro, a assistência ofertada é, essencialmente, medicamentosa. Além disso, as carências estruturais e as características da instituição (celas, horários rígidos e a própria privação de liberdade) inviabilizam o desenvolvimento do Projeto Terapêutico Singular e fomentam a quebra de vínculo familiar, o que reforça o quão tais instituições se afastam dos pressupostos da RPB e fomentam o agravamento do quadro de adoecimento dos internos.
O presente estudo aprofunda uma realidade local, de modo que os dados precisam ser interpretados a partir desta realidade e não podem ser generalizados para outros cenários. Todavia, permite a apreensão de aspectos que são determinantes para a reflexão e o desenvolvimento da temática pesquisada.
Os conhecimentos produzidos nesta pesquisa podem contribuir para o direcionamento de políticas e práticas que visem a melhoria da assistência ao grupo estudado. Ademais, recomenda-se que sejam desenvolvidos estudos que comparem a perspectiva de gestores e profissionais à de usuários e familiares no cenário em tela.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Set 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
10 Jun 2021 - Aceito
20 Ago 2022 - Revisado
20 Jul 2022