Resumo
Objetivou-se conhecer as vulnerabilidades vivenciadas pelos familiares/cuidadores de crianças com condição crônica. Pesquisa qualitativa sustentada pelo referencial teórico do filósofo francês Roselló, da qual participaram 15 familiares/cuidadores de crianças com condições crônicas. As informações foram coletadas nos anos de 2018 e 2019 e submetidas à análise temática. Os resultados são apresentados em três temas: A doença como expressão da vulnerabilidade do ser criança; A doença crônica da criança como condição de vulnerabilidade do familiar/cuidador; O suporte das redes de apoio: potencialidades e vulnerabilidades no cotidiano da criança com condição crônica e do familiar/cuidador. Conhecer os componentes da vulnerabilidade vivenciados pelas famílias das crianças com condição crônica é algo complexo, pois exige refletir sobre as situações que essas famílias enfrentam, tendo em vista suas peculiaridades, sentimentos, organização familiar e acessibilidade aos serviços de saúde. Portanto, o conhecimento acerca do contexto em que essas famílias estão inseridas é fundamental para que se possa estabelecer um planejamento adequado das ações de saúde voltadas à promoção de seu bem-estar.
Palavras-Chave:
Criança; Doença crônica; Família; Saúde da criança
Introdução
O adoecer na infância agregado ao diagnóstico de uma condição crônica impõe à criança uma vida diferente daquela imaginada/idealizada, pois conviver com essa condição gera uma série de sentimentos e situações extremamente complexas, tanto para a criança quanto para seus familiares/cuidadores (BELLATO et al., 2015). As doenças crônicas na infância causam, ao longo do tempo, sequelas que impõe limitações à criança, requerendo habilidades e competências especiais de cuidado de seus familiares/cuidadores (XAVIERXAVIER, D. M.; GOMES, G. C.; CEZAR-VAZ. Meanings assigned by families about children’s chronic disease diagnosis. Rev Bras. Enferm., v. 73, n. 2, p.e20180742, 2020. Doi:10.1590/0034-7167-2018-0742et al., 2020). Considera-se familiar/cuidador toda pessoa com forte conexão pessoal com a criança, como um parente próximo, a exemplo dos pais. Os cuidadores fornecem uma ampla assistência em todos os aspectos da vida cotidiana, realizando o cuidado direto (ADASHEK; SUBBIAH, 2020ADASHEK, J.; SUBBIAH, I. Caring for the caregiver: a systematic review characterizing the experience of caregivers of older adults with advanced cancers. Esmo Open, v. 5, n. 5, p. e000862, 2020. Doi: 10.1136/esmoopen-2020-000862).
Esses familiares/cuidadores vivenciam o que Roselló (2009) denomina de vulnerabilidade existencial ao darem-se conta da vulnerabilidade ontológica, nesse caso da criança enquanto ser humano, finito e vulnerável. Esse sofrimento decorre, então, da percepção da criança como exposta às facticidades existenciais, vulnerável ao sofrimento e ao adoecimento.
O sofrimento é potencializado quando os familiares/cuidadores percebem que a doença da criança é incurável, ao conviver com incertezas, inseguranças e necessidades contínuas de reorganização do cotidiano, para atender as demandas de cuidado (BROCKBROCK, K. E.; WOLFE, J.; ULLRICH, C. From the child's word to clinical intervention: novel, new, and innovative approaches to symptoms in pediatric palliative care. Children (Basel), v. 5, n. 4, p. E45, 2018. Doi:10.3390/children5040045et al., 2018). Portanto, independente da condição crônica, supõe-se uma mudança na vida, que não é apenas relacionada à estrutura somática do ser humano, mas também a sua integridade, sendo associada ao sofrimento. Cada família interpreta a o adoecimento por meio de suas percepções, inseridas culturalmente e influenciadas pelo seu modo de ser no mundo e pelas relações afetivas estabelecidas com e entre seus membros (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
O enfrentamento da condição crônica provoca transformações na vida da criança e de sua família, demandando intenso envolvimento emocional, desde o impacto com o diagnóstico até as implicações da doença ao longo da vida. Assim, os cuidados em saúde se tornam complexos, exigindo dos familiares/cuidadores responsabilização, que pode ir além das competências inerentes ao cuidado de uma criança (PIMENTA et al., 2020).
Assim, a inclusão desses familiares/cuidadores no cuidado prestado pelos profissionais de saúde, não significa a resolução da vivência dolorosa enfrentada, mas a possibilidade de ajudá-los a suportar essa vivência, superando-a, no sentido físico, emocional, moral, social e espiritual (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
A despeito de todas as limitações impostas pela vulnerabilidade a sua vivência pode tornar-se algo positivo, impulsionando o ser humano a buscar a recuperação da sua autonomia, ameaçada pela condição existencial humana. A vivência da vulnerabilidade pode ocorrer em diferentes eixos: Ontológica (constituição do ser que é limitado, dependente e determinado por sua finitude); Ética (relaciona-se ao dever moral de proteger os indivíduos mais frágeis), Social (possibilidade do ser humano ser objeto de violência no meio social); Natural (entorno ambiental repercute sobre a vida do ser humano e vice-versa) e Cultural (desconhecimento acerca das diferentes ordens de saber, tornando o indivíduo manipulável e desprotegido do abuso de poder de outrem). Nesta pesquisa identificaram-se quatro dessas vulnerabilidades: ontológica, ética, social e cultural (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
Considerando que a vulnerabilidade possui permanência e intensidade variadas, é importante a compreensão no campo da saúde das esferas que produzem a vulnerabilidade do ser humano. Dessa forma, os profissionais e os serviços de saúde poderão oferecer às crianças e suas famílias autonomia para o gerenciamento da experiência de viver com a condição crônica.
Com base no exposto, e visando contribuir com a discussão acerca dessa temática, estabeleceu-se a seguinte questão de pesquisa: quais as vulnerabilidades vivenciadas pelos familiares/cuidadores de crianças com condição crônica? Objetivou-se conhecer as vulnerabilidades vivenciadas pelos familiares/cuidadores de crianças com condição crônica.
Metodologia
Pesquisa qualitativa sustentada pelo referencial teórico de Roselló (2009), que descreve a vulnerabilidade como uma experiência intimamente arraigada na condição humana. Assim, o ser humano está exposto ao perigo de adoecer, de ser agredido, de fracassar e de morrer, vivendo na vulnerabilidade. O estudo foi conduzido e estruturado de acordo com os Critérios de Consolidação para Relatórios de Pesquisa Qualitativa (COREQ) (SOUZA, 2021SOUZA, V. R. et al. Tradução e validação para a língua portuguesa e avaliação do guia COREQ. Acta Paul Enferm., n. 34, p. eAPE02631, 2021.).
Este estudo faz parte de uma pesquisa multicêntrica desenvolvida em quatro municípios do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Santa Maria, Palmeira das Missões e Pelotas) e um de Santa Catarina (Chapecó), intitulada “Vulnerabilidades da criança e adolescente com doença crônica: cuidado em rede de atenção à saúde”. Os dados apresentados neste manuscrito referem-se às informações coletadas em Pelotas.
As informações foram coletadas nos anos de 2018 e 2019, pelos membros do grupo de pesquisa, previamente capacitados para tanto. Participaram do estudo os familiares/cuidadores de crianças com condição crônica (internadas nas pediatrias de hospitais públicos do município em questão), tendo como critérios de inclusão: ser familiar/cuidador de criança de seis a 12 anos com condição crônica. Foram excluídos os familiares/cuidadores de crianças em cuidados paliativos ou em situações críticas de vida.
Para a coleta dos dados, utilizaram-se entrevistas semiestruturadas, com questões abertas e fechadas sobre a perspectiva dos familiares/cuidadores acerca da vivência da condição crônica da criança. O local de realização das entrevistas foi a residência dos familiares/cuidadores, sendo o encontro previamente agendado. As entrevistas tiveram duração média de 60 minutos, foram gravadas em aparelho celular e transcritas na íntegra, manualmente (com dupla conferência). Participaram 15 familiares/cuidadores, sendo dez mães, três pais e duas avós. As informações atingiram a saturação, pois nenhum novo elemento foi encontrado nas falas de novos participantes, não necessitando acrescentar novas informações para compreensão do fenômeno estudado (HENNINK; KAISER; MARCONI, 2017HENNINK, M. M.; KAISER, B. K.; MARCONI, V. C. Code Saturation Versus Meaning Saturation: How Many Interviews Are Enough? Qualitative Health Research, v. 27, n. 4, p. 591-608, 2017.).
Os preceitos éticos da Resolução n° 466/12 foram respeitados (BRASIL, 2012BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília; 2012.). Para tanto, antes da realização da pesquisa o projeto foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa, sob o CAEE 54517016.6.1001.5327, e parecer número 1.523.198. Preservou-se a identidade dos participantes nomeando-os com a consoante “F” (Familiar) seguida de numeral crescente, conforme a ordem das entrevistas (F1, F2, ...). A análise das informações ocorreu de forma indutiva, utilizando-se a análise temática, seguindo seis etapas: (1) familiarização do pesquisador com os dados (ocorre a leitura e releitura dos dados com anotação de ideias iniciais); (2) geração de códigos iniciais (codificação das características pertinentes de todos os dados de forma sistematizada, bem como a coleta de dados importantes para cada código); (3) busca dos temas (compilação dos códigos em temas possíveis, juntando os dados importantes para cada tema potencial); (4) criação do mapa temático (é verificado se os temas funcionam nos extratos codificados e no conjunto integral de dados, originando um mapa temático da análise); (5) refinamento dos temas (aprofunda-se a análise para aprimorar as particularidades de cada tema); (6) elaboração do relatório final (exame final dos extratos selecionados, associação entre análise, questão de pesquisa e bibliografia científica para elaboração do relatório da análise) (BRAUN ., 2019BRAUN, V.; CLARKE, V.; HAYFIELD, N.; TERRY, G. Thematic Analysis. In: LIAMPUTTONG, P. (edit.). Handbook of Research in Health Social Sciences. Australia: Springer, 2019. p. 843-860.).
Apresenta-se a seguir o mapa temático construído (Figura 1).
Resultados e Discussões
Constatou-se que os familiares/cuidadores vivenciam situações de vulnerabilidade ontológica, ética, cultural e social, sendo essas intimamente interligadas, influenciando-se mutuamente. Não é possível tratá-las separadamente, devendo compreender toda a situação em que a pessoa se encontra, pois tais condições interferem na saúde da criança e nos cuidados prestados pelo familiar/cuidador.
A doença como expressão da vulnerabilidade do ser criança
Neste tema apresentam-se os relatos dos familiares/cuidadores sobre suas perspectivas acerca das vulnerabilidades vivenciadas pela criança com condição crônica. Os participantes citaram como dificuldade no cuidado as limitações que implicam tanto na fala quanto na locomoção, bem como a agitação da criança, atingindo assim a sua constituição ontológica.
Então tudo fica mais difícil, por ela não andar e não falar [...]. (F6)
Ah é difícil porque ele é muito agitado, [...] qualquer tipo de barulho ele fica muito agitado [...]. (F9)
Que tem dias que ele está muito agitado, [...] outros dias ele está mais calmo. (F14)
Outra questão evidenciada com vulnerabilidade ontológica do ser foi a dificuldade enfrentada pela falta de aceitação da criança às restrições impostas pela condição e/ou tratamento. O diabetes, por exemplo, implica em mudanças e restrições de hábitos, principalmente alimentares. A criança não compreende a seriedade da doença e as consequências que pode gerar, conforme a cuidadora F11 precisa estar sempre “brigando”, pois, a criança não compreende o motivo de não poder fazer coisas que outras crianças fazem, evidenciando uma vulnerabilidade social.
[...] então ela vai numa festinha, por exemplo, ela tem que cuidar o que come [...] a gente tem que cuidar o que ela come, porque senão ela sacaneia, faz lá um jeitinho de comer um doce. [...]. [...] então a gente cuida nisso [...] mais é de controle [...] às vezes se torna uma dificuldade [...]. (F7)
Ele não tem maturidade para entender a doença dele, está sempre bravo, sempre brigando [...] já tem a rebeldia da própria idade né, já tem esse agravante e gera mais esse monte de coisa. Nada ele pode, nada eu deixo, porque ele não me passa confiança por já ter me mentido várias vezes, a mentira dele é dizer que pode quando eu não estou junto e ele não pode comer ou tomar alguma coisa. [...]. Sempre essa rebeldia de querer fazer uma coisa e não pode [...]. (F11)
Percebe-se também na fala de F11 a superproteção da mãe ao filho, que só pode fazer algo caso ela esteja junto, limitando e restringindo o filho na socialização com as demais crianças, aumentando sua vulnerabilidade social.
Viver com alguma condição crônica tem maior proporção quando acomete um pré-adolescente. Esse cenário caracteriza-se como vulnerabilidade ontológica, devido à não compreensão da nova condição existencial. Pelo fato da doença crônica na infância e na adolescência ser inesperada, indesejada pela família, surgem muitas dificuldades a serem enfrentadas (FREITAGFREITAG, V. L.; MILBRATH, V. M.; MOTTA, M. G. C. Tornar-se mãe de uma criança com paralisia cerebral: sentimentos vivenciados. Psicologia em Estudo, v. 25, p. e41608, 2020. Doi: 10.4025/psicolestud.v25i0.41608et al., 2020).
Essas crianças vivenciam muitas alterações no cotidiano, como mudanças alimentares, prática de exercício físico, monitoramento de glicemia e aplicação de insulina que são, muitas vezes, realizadas pelos próprios pré-adolescentes. Então, o autocuidado com relação à aplicação de hemoglicoteste (HGT) e insulina pode ser percebido negativamente, pois causa dor e desconforto, desmotivando e causando sintomas depressivos. Contudo, a autonomia do pré-adolescente gera sentimentos positivos, como capacidade de se cuidar e ser responsável por si. A independência também aumenta a adesão ao tratamento, trazendo resultados positivos (BERTOLDO ., 2020BERTOLDO, C. S. et al. Perspectiva de adolescentes que vivem com diabetes mellitus sobre autocuidado. Pesquisa qualitativa em saúde: avanços e desafios, v. 3, p. 347-358, 2020. Doi: 10.36367/ntqr.3.2020.347-358).
Para a criança é difícil aceitar o tratamento, assustador inicialmente, evidencia sua vulnerabilidade ontológica pelo medo de ser ferida, bem como a vulnerabilidade cultural pela falta de compreensão acerca da sua condição crônica, conforme observado no relato de F7 sobre o medo que a criança tinha de agulhas.
Foi o aceitamento inicial [...]. O medo das agulhadas toda hora, que ela tinha pânico disso aí. (F7)
A cronicidade expõe as crianças a procedimentos invasivos, que envolvem experiências dolorosas e assustadoras. Para tentar diminuir essas vivências negativas, é necessário preparar a criança, sendo o uso do brinquedo terapêutico uma ótima ferramenta. O brincar auxilia no desenvolvimento saudável das crianças, oferecendo amplos benefícios físicos, emocionais, cognitivos e sociais, além disso, proporciona que as crianças desenvolvam suas habilidades motoras, simulem cenários e suas consequências de forma segura e envolvente, reduzindo o estresse e a preparando para os procedimentos a serem realizados (NIJHOFNIJHOF S.L. et al. Healthy play, better coping: The importance of play for the development of children in health and disease. Neurosci Biobehav Rev., v. 95, p. 421-429. Doi: 10.1016/j.neubiorev.2018.09.024.PIMENTA, E.A.G. et al. Cuidar de crianças com necessidades especiais de saúde: Do diagnóstico às demandas de cuidados no domicílio. Braz J of Develop, v. 6, n. 8, p. 58506-58521, 2020. Doi:10.34117/bjdv6n8-311et al., 2018).
Acredita-se que na vivência da doença o ser reconhece a própria vulnerabilidade, o caráter desagradável e frágil do corpo humano. A pessoa doente se dá conta da fragilidade constitutiva do seu ser e, então, conhece melhor a si próprio (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
O ser humano é potencialmente um ser doente, pois pode adoecer a qualquer momento precisamente pela sua vulnerabilidade intrínseca, assim, a doença e o processo de adoecer são formas evidentes e tocantes da vulnerabilidade humana. Essa capacidade de adoecer que tem o ser humano pode ser compreendida como o marco da vulnerabilidade humana (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). Contudo, existem condições que favorecem o cuidado da criança com condição crônica, como sua aceitação e entendimento sobre a doença e o tratamento:
Aí em casa era mais fácil, a gente explicar para ela e ela entendia melhor [...] desde bem novinha ela já faz sozinha as insulinas dela, já mede e tudo, tudo ela que faz. (F7)
Assim, a criança ao compreender sua condição e as limitações a que está exposta minimiza suas vulnerabilidades.
A doença crônica da criança como condição de vulnerabilidade do familiar/cuidador
Os participantes esboçaram suas vulnerabilidades ontológicas, enquanto seres humanos cuidadores de crianças que vivenciam o adoecimento e a condição crônica. O choque inicial do diagnóstico da cronicidade, os questionamentos sobre haver falha ou não em seus cuidados somados ao sentimento de culpa ou culpabilização pelo surgimento da doença, evidenciam também as vulnerabilidades éticas, enquanto responsáveis pelos cuidados da criança.
[...] não foi por negligência porque o que a gente mais ouve é condenação, o que tu fez? Por que que tu não cuidou? O que deu para esse guri comer? [...] tudo acham que é negligência da mãe. [...] a gente fica se culpando. (F11)
[...] todos me culpam dizem para mim que era para correr mais atrás, que era para exigir. Só que por mais que tu exijas, não é tu que manda [...]. Eu corri para tudo que foi lado por várias vezes, mas [...] não vejo andar [...]. Só eu sozinha não adianta. (F13)
A condição crônica ocasiona mudanças na dinâmica familiar, os membros da família procuram estratégias para enfrentar e se adaptar a essa realidade, visando proporcionar o cuidado mais adequado (GOMES ., 2017GOMES, G. C. et al. (Des)preparo do familiar para o cuidado à criança com doença crônica. Revista de Enfermagem da UFPI, v. 6, n. 1, p. 47-53, 2017. Doi: 10.26694/reufpi.v6i1.5737). Roselló (2009) traz a reflexão de que a vulnerabilidade do ser humano está intimamente ligada à doença, pois, esta supõe uma mudança na vida da pessoa, que não se refere somente à estrutura somática do ser humano, mas também a sua integralidade.
Diante da condição crônica da criança, a vulnerabilidade vincula-se diretamente ao cuidado, assim como a ideia de responsabilidade. A culpabilização que recai sobre o cuidador, referente à doença da criança, gera sofrimento, sendo a condição apontada como negligência. Nesse sentido, percebe-se que, muitas vezes, falta apoio para esses cuidadores, somando-se a vulnerabilidade ética que vivenciam, pois eles se compreendem com o dever moral de proteger as crianças (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
Observam-se, nos relatos, sentimentos desencadeados nos familiares/cuidadores frente ao diagnóstico da condição crônica da criança, principalmente medo de perda do filho ou de que alguma complicação decorrente da condição crônica deixe sequelas. Assim, caracteriza-se a vulnerabilidade ontológica enquanto ser humano cuidador, que se percebe diante da possibilidade de finitude da criança. Além disso, a vulnerabilidade ética também é percebida, referente à necessidade de proteger o(a) filho(a) frente a sua fragilidade:
[...] ele não tem noção da gravidade dessa doença dele. Já internou nove vezes nesses três anos e já foi quatro vezes para a UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). Eu achei que ia perder ele nessa última vez que ele internou estava bem difícil, nunca vi ele tão ruim [...] a gente sabe que é muita coisa que acontece, é amputação, é os órgãos que vão parando aos poucos e aí eu já fico apavorada que ele recém tem treze anos e já internou muitas vezes [...]. Aí a doutora me diz que eu estou supervalorizando, mas eu acho que é medo. (F11)
Se não adiantasse [...] iam pegar e tirar, amputar, que era para não ter risco de subir porque se sobe, generaliza [...]. Eu durmo, eu acordo todos os dias pensando apavorada, como é que deve estar [...], mas quem é que consegue dormir tranquilo, consegue deitar a cabeça no travesseiro tranquilo sabendo de tudo que pode acontecer [...]. (F13)
Nesses relatos, evidencia-se a preocupação constante do familiar/cuidador com as internações hospitalares e as complicações da patologia, situações potencialmente traumáticas, afetando até o sono devido à preocupação. Além disso, a fala de F11 reflete a superproteção ao filho, evidenciando sua vulnerabilidade ética, enquanto responsável por lidar com a fragilidade desse.
Os familiares/cuidadores frente ao diagnóstico da condição crônica enfrentam dúvidas, medos e incertezas, porém o tempo é muito curto para compreender e organizar esses sentimentos, conhecer a doença, prover recursos e se adaptar à realidade imposta. Sendo assim, a vulnerabilidade ontológica/ética muitas vezes passa despercebida, podendo aumentar com o tempo e não ser resolvida (DIAS ., 2020DIAS, B. C. et al. Dinâmica familiar e rede social de famílias de crianças com necessidades especiais de cuidados complexos/contínuos. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 41, p. e20190178, 2020. Doi: 10.1590/1983-1447.2020.20190178).
Ver o sofrimento da criança revolta os familiares/cuidadores, pois eles se reconhecem incapazes de administrá-lo, organizá-lo e submetê-lo à lógica. A dor irrompe na existência humana sem prólogo, aparece no palco da vida individual e altera as dimensões do ser (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). Vários sentimentos são vivenciados pelos pais após o diagnóstico de doença crônica nos filhos como, angústia, medo, culpa, desesperança, impotência e insegurança, esses sentimentos merecem atenção dos profissionais de saúde, pois compreender a experiência do paciente e sua família é fundamental para realizar um cuidado de acordo com suas necessidades e identificar melhores estratégias conforme suas vivências singulares (HAWKINS ., 2020HAWKINS, L. M. et al. Patient and family experience with chronic transfusion therapy for sickle cell diasease: A qualitative study. BMC Pediatra, v. 20, n. 1, p. 172, 2020. Doi: 10.1186/s12887-020-02078-x)
Através dos relatos percebe-se a angústia que os familiares/cuidadores sofrem, a fala de F11 mostra que em alguns momentos ela demonstra estar bem para conseguir manter-se forte frente às adversidades vivenciadas, porém, na verdade, sente-se sobrecarregada fisicamente e emocionalmente:
E a gente entende que é difícil, não é fácil o lado dele também. Mas a gente tem que ser um pouco mais linha dura, porque se deixar esmorecer aí é pior. A gente tem que se fazer de forte. (F11)
Os participantes relatam o sentimento de impotência quando não percebem a melhora do filho, pois mesmo fazendo o seu melhor para que a criança não sofra ou sinta dor, em algumas ocasiões, não conseguem resolver as dificuldades e não sabem a quem recorrer. Assim, a vulnerabilidade ética intensifica-se:
Jogou a informação assim eu não sabia nem o que fazer [...] o mínimo de uma mãe, eu acho, que é cuidar e ficar sempre em cima vigiando [...] e não é por falta de cuidado, porque eu estou sempre em cima dele [...] não falto em nenhuma consulta. (F11)
[...] estava tendo febre, estava tendo dor e ele (médico) dizia que isso tudo era normal, que ia passar com o tempo que não tinha mais o que fazer. [...] eles sabem que eu vou bater os pés, se tiver que ir à promotoria de novo eu vou, que nem eu fiz uma reportagem na televisão quando eles estavam negando atendimento pra ele [...] isso é uma coisa que mágoa, porque tu sabe que é um filho teu que precisa [...] tu não tem para onde correr. [...] eles dizem que já tentaram fazer tudo e que agora não sabem mais o que vão fazer [...]. (F13)
O cuidador principal, por ser responsável pelos cuidados da criança, quando surge o diagnóstico da condição crônica, sente-se culpado, responsabilizando-se pela doença, acreditando que não fez tudo possível para evitar ou que fez algo errado. O sentimento de culpa surge com o aparecimento da patologia pelo significado negativo desta experiência. É justamente esse sentimento de culpa, que faz com que os pais/cuidadores exagerem nos cuidados, superprotegendo (PIMENTELPIMENTEL, R. R. S.; TARGA, T.; SCARDOELLI, M. G. C. From diagnosis to the unknown: perceptions of parents of children and adolescents with diabetes mellitus. Revista de Enfermagem UFPE online, v. 11, n. 3, p. 1118-1126, 2017. Doi: 10.5205/1981-8963-v11i3a13486p1118-1126-2017et al., 2017). Presenciar o sofrimento e a dor de um filho gera nos pais sentimentos de angústia, medo e principalmente impotência, pois eles não conseguem fazer nada para parar a dor/sofrimento do filho (FAIRFAX et al., 2019; MEDEIROS et al., 2020).
O ser humano é frágil pelo fato de ser finito, sendo que vive com segurança apenas quando identifica sua vulnerabilidade e a vulnerabilidade do outro, aprendendo a lidar para conviver com ela. Assim, descortina-se sua maior vulnerabilidade a existência finita, sendo sua única certeza a morte (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
No relato de F2 percebe-se as vulnerabilidades que enfrenta em decorrência da limitação visual que possui. Quando a equipe da escola liga avisando sobre alguma intercorrência com a criança, ela precisa da ajuda da outra filha para poder se deslocar até a escola:
Não tem como eu estar indo sozinha buscar ele, onde eu saia a minha guria que saia comigo, porque eu sozinha assim para mim andar, como esta os buracos eu posso torcer o pé. Ou andar assim posso tropicar, posso cair. [...] por causa da dificuldade da visão. (F2)
Complementarmente, outras condições do cuidador também trazem fragilidades para o cuidado da criança com condição crônica, como no caso de F1, quando estava gestante, teve que parar o tratamento da filha, pois não conseguia acompanhá-la:
[...] até teve uma época que ela parou de fazer porque eu não pude levar mais ela, porque eu estava grávida e aí a gente dormia as duas na mesma [...] cama de hospital, ou na poltrona aquela ali e eu estava no final da gestação, então estava bem incômodo tudo e aí ela parou de ir, foi quando a gente passou para o hemocentro de novo. (F1)
Outro aspecto importante que contribui para a descontinuidade do cuidado e dificuldade durante a hospitalização é o familiar/cuidador ter emprego e/ou outros filhos.
A única dificuldade que eu tive é porque eu trabalho [...] tinha que sair para trabalhar [...] e eu deixei os outros dois em casa, porque eu tenho mais dois filhos e fui ficar com ela [...] todo tempo com ela, ela tinha medo de ficar sozinha. (F5)
A minha dificuldade, como eu tenho três filhos, de ficar eu com ela todo tempo, não dá, eu tenho os outros dois, por isso até que eu não consigo [...] estar sempre em função, e o meu marido está sempre trabalhando. (F15)
A permanência dos pais durante a internação do filho gera diversas preocupações, pois é necessário compreender que a maioria desses não possui condições de ficar todo o tempo com a criança internada, por condições socioeconômicas desfavoráveis que não possibilitam sua ausência no trabalho ou até mesmo no cuidado dos demais filhos, não tendo com quem deixá-los.
Geralmente é a mãe que abdica de seu trabalho para cuidar da criança hospitalizada, em muitos casos o local de trabalho não aceita o atestado médico do filho. Além disso, os outros filhos também sofrem modificações em seu cotidiano, deixando de frequentar a escola e sendo cuidados por familiares e amigos, até mesmo fora de suas casas (MELLO; FRIZZO, 2017MELLO, D. S.; FRIZZO, G. B. Depressão, ansiedade e suporte familiar para mães na primeira hospitalização do filho. Psicologia, Saúde & Doenças, v. 18, n. 3, p. 814-827, 2017. Doi: 10.15309/17psd180315).
O suporte das redes de apoio: potencialidades e vulnerabilidades no cotidiano da criança com condição crônica e do familiar/cuidador
Os familiares/cuidadores apontam as redes de apoio como minimizadoras das vulnerabilidades que enfrentam. Na maioria das vezes, essa rede é composta por membros da família, madrinhas, colegas e amigos:
É só eu e meu esposo e minha sogra que manda a bombinha, não tem mais ninguém. (F2)
[...] fica com minha mãe, minha sogra. (F3)
Só a minha família”. (F4)
Tenho a minha família [...] somos em sete. (F5)
Tem a madrinha dele que está sempre aqui, está sempre atenta também [...] ela tem muito cuidado [...]. (F8)
É tranquilo, na função assim em casa [...] todos acho que já se acostumaram na função de cuidar dela. Então cada um cuida um pouquinho. (F10)
Foi tudo muito natural, muito correto, os amigos todo mundo ajudou, os parentes todo mundo ajuda, os colegas dele são um exemplo, estão sempre ajudando. (F12)
O pai dele, eu, às vezes as minhas vizinhas [...] e a minha mãe e meu pai. (F13)
É eu, o pai dele e a irmã dele de oito anos, somos nós quatro. (F11)
Não, é só eu e o pai dele mesmo. (F14)
Meu marido [...] me ajuda com ela, que fica com eles para eu não ter que largar o serviço. Fica com ela, fica com o outro, para eu ficar com ela. [...] tem minhas cunhadas, minhas cunhadas trabalham. [...] elas até gostariam de ajudar mais. (F15)
A condição crônica da criança traz para as famílias a necessidade de superação da vulnerabilidade ontológica, impondo transformações e lutas, com obstáculos que precisam ser ultrapassados. Além disso, o ser humano ao dar-se conta de sua vulnerabilidade, pode buscar abrigo contra ela, empoderar-se dos seus direitos e assim diminuir suas vulnerabilidades. Assim, ao identificarem suas fragilidades e dificuldades os familiares/cuidadores buscam por redes de apoio para minimizarem as situações de vulnerabilidade que vivenciam (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). O apoio social é importante para a família no enfrentamento da condição crônica (SILVA ., 2017SILVA, M. E. A. et al. Network and social support in children with chronic diseases: understanding the child’s perception. Texto Contexto Enfermagem, v. 26, n. 1, p. e6980015, 2017. Doi:10.1590/0104-07072017006980015).
O processo de cuidar implica em sua própria essência a virtude da responsabilidade. Cuidar um ser humano frágil ou vulnerável é exercer uma forma de responsabilidade social (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.). Para as famílias de crianças com condição crônica, a rede de apoio social é aquela que auxilia a enfrentar essa condição (GOMES ., 2019GOMES, G. C. et al. Social support network of the Family for the care of children with cerebral palsy. Revista Enfermagem UERJ, v. 27, n. e40274, p. 1-6, 2019.).
Além de familiares e amigos, profissionais de saúde e a religião também são vistos como rede de apoio:
Nutricionista, os endócrinos, médicos. (F12)
E eu tenho uma segunda família, porque nós somos Testemunhas de Jeová né, e nós somos uma família, então quando um precisa o outro sempre está lá. (F5)
Eu leio muito livro espírita e não deixa de ser um apoio [...]. (F15)
Observa-se que a religiosidade ou espiritualidade são importantes e constituem-se como rede de apoio para essas famílias, representando uma fonte de esperança no enfrentamento das dificuldades. Além disso, contribuem para minimizar dor e angústia que marcam o cotidiano do familiar/cuidador, aliviando os medos advindos da doença (NEVES ., 2017NEVES, E. T. et al. Rede de apoio de familiares de crianças em pronto atendimento pediátrico. Revista Pesquisa Qualitativa, v. 5, n. 7, p. 53-65, 2017. Disponível em: <https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/74/63> Acesso em: 13 ago. 2021).
A falta de vínculo e apoio dos serviços de saúde a essas famílias potencializam a vulnerabilidade social enfrentada, fragilizando-as ainda mais. Os familiares/cuidadores referem não utilizar a Unidade Básica de Saúde (UBS) por diversos motivos: não ter médico especialista (pediatra), não ser resolutiva ou não ter fichas suficientes, assim, acabam recorrendo ao Pronto Socorro (PS) quando precisam de atendimento, especialmente na agudização da condição crônica.
Dificilmente ela vai ao posto de saúde, que quando [...] eu sinto que ela está doente, que ela tem alguma coisa de errado já levo direto no PS [...] lá sempre atendem ela, as pediatras já conhecem ela e tudo. (F6)
O que dificulta é o que às vezes tu acha que pode consultar num postinho mesmo e aí às vezes não tem um médico, está difícil agora. [...] às vezes tu tem que tirar uma ficha e é três, quatro fichas e não tem como, aí o recurso é o PS mesmo [...]. (F8)
Não tem pediatra. E a informação aqui pelo posto é muito mais difícil [...] a gente tentou, mas eu tive problema na hora de coletar, porque coletaram errado [...]. Aí eu desisti da função dela no posto [...] eu acho que depois é a função de não ter pediatra né, no posto, tu não ter como acompanhar. [...] então ou tu levas no pronto socorro [...] para ser atendido por pediatra ou paga. (F10)
A UBS deveria ser a porta de entrada no serviço de saúde, porém o que ocorre é a grande procura por serviços de média e alta complexidade. Tal procura pode ser considerada pela baixa resolutividade da atenção básica, profissionais sem capacitação específica para o atendimento, equipamentos e materiais insuficientes, havendo a migração dos usuários para os serviços de urgência e emergência (FREIRE ., 2020FREIRE, A. P. F. B. et al. Percepção de pacientes em um serviço de Pronto Atendimento: Os limites da Dor e a busca por cuidados. Braz. J. of Develop., v. 6, n. 3, p. 11306-18, 2020.).
Além disso, quando existe a vinculação com um profissional de saúde específico, ocorre a busca pelo serviço onde este atua. Isso, muitas vezes, só se estabelece após a peregrinação por múltiplos serviços de saúde.
[...] depois voltamos e ela continuou se tratando com a [...] (nome da médica) que é essa que trata ela até hoje. A gente sempre consulta na faculdade de medicina [...] teve uma época que foi no [...] (nome do serviço de saúde), aí ela começou a fazer no hemocentro as transfusões, aí parou de fazer no hemocentro e começou a internar porque no hemocentro não tinha mais médicos, a médica foi embora. Aí ela ficou [...] um ano e pouco eu acho internando [...] (nome do hospital) todos os meses e agora a gente conseguiu passar para o hemocentro de novo. (F1)
Nesse sentido, os profissionais de saúde devem articular redes de apoio para que os familiares/cuidadores não se sintam desamparados. A enfermagem pode contribuir com informações sobre patologia, tratamento, cuidado, prevenindo futuras complicações, atentando também para os cuidadores, que sofrem junto com as crianças (GOMES ., 2016GOMES, G. C. et al. Chronic Disease in children: Family experience in diagnostic reception. Revista de Enfermagem UFPE online, v. 10, supl. 6, p. 4837-4844, 2016.).
Percebe-se que muitas famílias não possuem um serviço e/ou profissional de saúde como rede de apoio, sem o apoio para os cuidados e o acompanhamento contínuo da criança procuram pelo serviço de pronto atendimento nos momentos de exacerbação da doença, ou tentam contornar a situação com seus conhecimentos:
[...] faz em casa tratamento, agora esses dias que ele usou a bombinha para não precisar levar ele [...] para o hospital, porque se eu levo ele [...] fica internado [...]. (F2)
Quando é assim uma coisa mais leve [...] aí a gente dá o predsim, tem o nasonex também que ele usa que eu tenho receitado. Então a gente controla [...] o que dá para controlar em casa [...], mas às vezes, quando tu vês que não dá [...] tem que levar direto para o PS, que aí não dá para esperar. (F8)
As mães prestam os cuidados aos filhos com base nos saberes que possuem, utilizam medicações que fazem parte da farmácia caseira como forma de complementar o tratamento e amenizar os sintomas agudos, além disso são influenciadas pelas condutas dos profissionais de saúde, sendo imprescindível que estes lhes proporcionem o suporte necessário (NEVES ., 2017NEVES, E. T. et al. Rede de apoio de familiares de crianças em pronto atendimento pediátrico. Revista Pesquisa Qualitativa, v. 5, n. 7, p. 53-65, 2017. Disponível em: <https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/74/63> Acesso em: 13 ago. 2021).
Como potencialidade na rede de apoio está a atenção terciária que é buscada pela confiança na ajuda que fornece:
Foi fácil os médicos, já chegou mais especializado para ela [...] o médico já com aquela situação dela, para bronquite [...]. Pneumologista, né? E aí eu acho essa facilidade [...]. Então eu acho bom, estou sempre assistida, eu me sinto assim ali. (F15)
Outro facilitador, citado pelos cuidadores, é o bom atendimento dos profissionais, que fortalece o vínculo, aumentando as potencialidades para enfrentar as vulnerabilidades vivenciadas.
[...] lá fomos muito bem atendidas, os exames dela não demoraram, os resultados foram muito rápidos, e a gente teve acompanhamento. Vários tipos de acompanhamento para ela se entreter, dos enfermeiros, teve até do dentista que foi lá visitar ela. Então, lá eu gostei muito do atendimento [...]. (F5)
Facilidade foi o atendimento lá que foi bom, foi bastante orientado. (F12)
Claro que lá no hospital qualquer lugar que a gente ia a gente era muito bem recebido, era muito bem cuidado as gurias, era um carinho enorme com ela [...]. (F1)
A equipe de saúde deve ser uma referência de apoio para esses familiares/cuidadores, por meio de estratégias eficazes e ações de saúde com direcionamento nas necessidades da criança e família (KALANTAR-ZADEH ., 2021KALANTAR-ZADEH, K. et al. Living well with kidney disease by patient and care-partner empowerment: kidney health for everyone everywhere. Clin. Exp. Nephrol., v. 25, n. 6, p. 567-573, 2021. Doi: 10.1007/s10157-021-02044-5)
Questionados sobre os serviços de saúde como redes de apoio eficazes os familiares/cuidadores apontam que embora recorram aos serviços de urgência e emergência (PS) esses locais não se constituem como redes de apoio, pois o ambiente, geralmente, não é apropriado para crianças, além da demora do atendimento nesses locais.
[...] dificuldade é o ambiente [...] o ambiente hospitalar é ruim para a criança [...] é um ambiente que não era legal. Quanta coisa a gente vê. Fora o risco de contaminação, porque a imunidade dela já é baixa e a demora. (F1)
No pronto socorro é que tem mais dificuldade, porque, [...] passar por aqueles corredores ali, é ruim [...]. Enxerga de tudo ali, né? E o raio-x que demora [...]. E ela enxergar certas coisas eu acho ruim, [...] já vem para casa apavorada [...]. Teve assim momentos horríveis de ver, ainda mais para ela [...]. (F15)
É importante salientar que o ambiente do pronto socorro pode ser assustador para familiares e principalmente crianças, desde o espaço físico, organização dos materiais, sala de observação, os procedimentos invasivos realizados, os barulhos e até mesmo a luminosidade excessiva podem causar desconforto. Somado a isso, os pacientes sejam eles pediátricos ou adultos são expostos a áreas comuns, contexto caracterizado como um lugar assustador, com situações que a criança nunca vivenciou (LIMA ., 2018LIMA, D. A. et al. Children’s satisfaction and dissatisfaction with pain management in a Pediatric Emergency Department. Rev Esc Enferm USP, n. 52, p. e03373, 2018. Doi: 10.1590/S1980-220X2017044503373).
Os familiares/cuidadores apontaram que por não possuírem uma rede de apoio nos serviços de saúde, enfrentam dificuldades no tratamento da criança, como por exemplo acesso a medicamentos, fisioterapia ou procedimentos cirúrgicos. Muitas vezes, são necessárias ações judiciais para acessar serviços, medicamentos e equipamentos:
Sendo que nessa drenagem fizeram uma biópsia e eu nem sabia dessa biópsia. Aí depois com o tempo que eu fui à promotoria da justiça, no conselho tutelar da criança da saúde e aí eu consegui que fizessem o tratamento dele [...] brigando porque ninguém queria atender. [...] dificuldade que a gente encontra mais é para conseguir as coisas [...] tem muita coisa via judicial [...]. Tem muita coisa que tem mês que, às vezes, não vem então é sempre uma dificuldade [...] qualquer coisa do estado, do município, tu vais nas farmácias e as coisas tão sempre em falta [...] tem que estar sempre correndo atrás [...] fisioterapeuta também entrei na justiça, consegui também. (F3)
Evidencia-se nessa fala a vulnerabilidade cultural vivenciada por F13, não possuindo conhecimento sobre a biopsia que a criança realizou. Além disso, o limite de acesso aos serviços de saúde configura-se como uma vulnerabilidade social, pois em muitos casos o atendimento não é vinculado a uma rede de saúde. Portanto, a família necessita realizar esse trajeto de forma independente e, caso não tenha recursos, a criança pode ter seu estado de saúde agravado, podendo morrer sem receber o atendimento necessário (ROSELLÓ, 2009ROSELLÓ, F. T. Antropologia do Cuidar. 1.ed. Petrópolis: Vozes, 2009.).
Em alguns casos o tratamento envolve procedimentos cirúrgicos que as vezes não são realizados devido à falta do profissional anestesista no serviço do Sistema Único de Saúde (SUS):
Ela tinha que fazer a cirurgia. Tem adenoide grande [...] só que tem o anestesista. [...] Tá, mas quanto é o anestesista? [...] aí era quatro mil só o anestesista. Não tenho como fazer. (F15)
A falta de profissional que atenda pelo SUS é comum, ampliando a vulnerabilidade das famílias e das crianças com condição crônica. O médico do SUS orientou a família a procurar um médico particular, para realizar os cuidados à criança, o que era inviável, ficando a criança sem o atendimento. Isso está relacionado com a vulnerabilidade social vivenciada pelas famílias de crianças crônicas, vinculada à escassez de recursos que são indispensáveis para a efetiva prevenção e tratamento das doenças. A dimensão social busca mostrar como os serviços podem melhorar a vida da população, por intermédio das políticas públicas para o cuidado e a autonomia dos indivíduos, não atendidos nesses casos (AYRES, 2009AYRES, J. R. de C. M. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde e Sociedade, v. 18, n. 2, p. 11-23, 2009.).
Nesse sentido, considerando que os serviços de saúde são os espaços onde esses familiares/cuidadores dessas crianças procuram atendimento, diagnóstico e tratamento para a condição crônica, e que esses espaços não conseguem suprir suas necessidades em saúde, amplificam-se as situações de vulnerabilidade social dessas famílias, pois as práticas coletivas de enfrentamento e as adversidades, como a indisponibilidade de recursos e acesso a estes, são componentes sociais.
Considerações finais
Buscar conhecer os componentes da vulnerabilidade vivenciados pelas famílias das crianças com condição crônica é algo complexo, pois exige analisar e refletir sobre as situações enfrentadas, tendo em vista as peculiaridades, os sentimentos, a organização familiar e a acessibilidade aos serviços de saúde.
Constatou-se que a vulnerabilidade é algo intrínseco ao ser humano, vivenciada por todos, em menor ou maior grau. Para as famílias das crianças as vulnerabilidades acentuaram-se após o adoecimento da criança, expondo-as a vivência de períodos difíceis. Nesse contexto, considera-se que, por meio do acolhimento nos serviços de saúde é possível minimizar as situações de vulnerabilidade ontológica, ética, cultural e social vivenciadas por familiares/cuidadores e crianças.
Como limitações do estudo, apresenta-se o fato de não conseguir entrevistar outros membros do núcleo familiar e a dificuldade de encontrar as famílias, por muitas residirem na zona rural.
Acredita-se que, por meio do conhecimento dos componentes das vulnerabilidades vivenciadas por essas famílias e crianças, os profissionais de saúde possam agir, planejando e avaliando formas para minimizar essas situações, oferecendo ferramentas para que os familiares/cuidadores desenvolvam seu empoderamento e que assim sejam capazes de reconhecê-las, confrontá-las e minimizá-las.
Agradecimento
Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
08 Set 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
29 Mar 2021 - Aceito
02 Set 2022 - Revisado
28 Jul 2022