Resumo
Objetivamos compreender as adaptações do programa Consultório na Rua ao contexto territorial, a partir das bases normativas, realizadas por uma equipe atuante na cidade de São Paulo, que oferece cuidado em saúde para as pessoas em situação de rua. Realizamos análise de implantação da mesma, por meio de pesquisa participativa e estudo avaliativo de caso, que envolveu observação participante, entrevistas e análise documental. Os trabalhos de campo e posterior discussão com a equipe subsidiaram a elaboração do modelo lógico e a elaboração e preenchimento da matriz de avaliação. Os resultados indicam avançado grau de implantação do caso estudado, com exceção do atendimento aos usuários de substâncias psicoativas e da garantia da logística à itinerância da equipe. O programa enfrenta desafios diante de restrições da gestão e limitações da rede de serviços do município, que impedem o alcance da equidade.
Palavras-Chave:
Atenção Básica; Pessoas em situação de rua; Redução de danos; Avaliação de programas e projetos de saúde
O problema
O Consultório na Rua (CnR), programa estabelecido pelo Ministério da Saúde para atendimento às pessoas em situação de rua (PSR), inspirado em diversas iniciativas municipais e fruto das exigências de movimentos sociais, tem sido objeto de estudos de diversas naturezas. Foram realizadas pesquisas que abordaram a análise de saberes ideológicos e instrumentais que podem eventualmente se fazer presentes em algumas equipes (KAMI ., 2016KAMI, M. T. M. et al. Saberes ideológicos e instrumentais no processo de trabalho no Consultório na Rua. Rev Esc Enferm USP, v. 50, n. 3, p. 442-449, 2016.); outras abordaram as práticas implementadas pelas eCR no cuidado em saúde (ENGSTROM; TEIXEIRA, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, 2016.; LONDERO; CECCIM; BILIBIO, 2014LONDERO, M. F. P.; CECCIM, R. B.; BILIBIO, L. F. S. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 18, n. 49, p. 251-260, 2014.; MACHADO; SIMAS, 2017MACHADO, K. da S.; SIMAS, R. S. Redução de danos, insumos e experiência estética: uma análise da prática no Consultório na Rua do município do Rio de Janeiro. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup., v. 1, n. 1, p. 67-83, 2017.).
Ainda a respeito do tema, a construção do cuidado oferecido por uma eCR e pela rede de atenção à saúde (HALLAIS; BARROS, 2015HALLAIS, J. A. da S.; BARROS, N. F. de. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cadernos de Saúde Pública, v. 31, n. 7, p. 1497-1504, jul. 2015.) constitui polo de indagações e estudos. No entanto, há lacunas no que tange à compreensão mais aprofundada dos processos de trabalho, sobretudo considerando a articulação entre a proposta, os recursos destinados às equipes e a atenção efetivamente ofertada. Nota-se o restrito número de estudos avaliativos das eCR (FERREIRA; ROZENDO; MELO, 2016FERREIRA, C. P. da S.; ROZENDO, C. A.; MELO, G. B. de. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 8, p. 1–10, 2016.; MEDEIROS, MEDEIROS, C. R. S. Análise sobre a implementação do programa de saúde específico para a população em situação de rua: Consultório na Rua. [s.l: s.n.].2016) e, dentre estas, nenhum dirigido a analisar convergências e discrepâncias entre o conteúdo da proposta e sua implantação em realidades específicas. Estudo sobre a implantação de eCR não se deu sob a perspectiva da avaliação, limitando-se a descrever os processos, sem confrontá-los com o plano inicial (PAULA ., 2018PAULA, H. C. de et al. Implementation of the Street Outreach Office in the perspective of health care. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 71, n. supl 6, 2018.).
A transposição de diretrizes políticas para o plano operacional envolve o confronto entre a realidade e os planos e intenções contidos nos documentos normativos (FURTADO; CAMPOS, 2005FURTADO, J. P.; CAMPOS, R. O. A transposição das políticas de saúde mental no Brasil para a prática nos novos serviços. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 8, n. 1, mar. 2005.). Tal realidade não seria diferente em relação às eCR, razão pela qual nos propusemos a analisar como uma eCR específica lida com o cuidado em saúde da população-alvo a partir de suas bases normativas, verificando possíveis adaptações ao contexto em que atua, por meio de estudo de caso avaliativo, apoiado em proposta de matriz de implantação para os Consultórios na Rua.
O cuidado em saúde para PSR apresenta desafios à rede pública de serviços. A vida nas ruas, considerada situação de extremo desvalor pela sociedade em geral, intensifica dificuldades de socialização (GRAEFF, 2012GRAEFF, L. Corpos precários, desrespeito e autoestima: o caso de moradores de rua de Paris. Psicologia USP, v. 23, n. 4, p. 757-775, 2012.), suscitando também dificuldades no acesso a bens e serviços (MENEZES, 2012MENEZES, F. L. Percursos sem abrigo: histórias das ruas de Paris, Lisboa e Londres. Lisboa: Editora Mundos Sociais, 2012.). Verificam-se limitações de alguns trabalhadores da saúde em lidar com as especificidades dessa clientela, expressas nos obstáculos burocráticos interpostos ao atendimento, na alegação de despreparo de ordem pessoal, profissional e institucional (BORYSOW; FURTADO, 2014BORYSOW, ID. A C.; FURTADO, J. P. Access, equity and social cohesion: evaluation of intersectoral strategies for people experiencing homelessness. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. 6, 2014.).
À Política Nacional para Inclusão Social das PSR, estabelecida em 2008 após diversas reinvindicações de movimentos sociais, se somaram outras reivindicações mais específicas por cuidados de saúde, que coincidiram com a divulgação de projetos voltados ao cuidado de usuários de substâncias psicoativas, e projetos voltados à reclusão desse público, em destaque o crack, num momento de disputa eleitoral no governo federal. Tudo isso levou o Ministério da Saúde (MS) a sáe aproximar e se inspirar em iniciativas municipais de certo êxito, nessa direção, e desenvolver a proposta de CnR para a rede pública de atenção básica (BORYSOW, 2018; BRASIL, 2012BRASIL. Portaria 122, de 25 de janeiro de 2012. Brasília, Diário Oficial da União, 2012.). As equipes de Consultório na Rua (eCR) foram delineadas como porta de entrada desse segmento populacional à Rede de Atenção à Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Portaria 122, de 25 de janeiro de 2012. Brasília, Diário Oficial da União, 2012., 2014BRASIL. Portaria nº 1.029, de 20 de maio de 2014. Brasília, Diário Oficial da União, 2014.). O estudo da gênese do CnR (BORYSOW, 2018) revelou o complexo processo de formulação dessa política pública, marcada pela expressão de demandas e pressão por direitos nas instâncias de decisão do governo federal. Essa diversidade encontra-se refletida nas Portarias 122 e 123 de 2012, e 1029 e 1238 de 2014.
No presente estudo, procuramos identificar diferenças entre o programa desenvolvido pelo MS e a intervenção efetivamente em funcionamento a partir de um estudo de caso. O maior ou menor sucesso da implantação pode subsidiar compreensão tanto sobre os marcos legais quanto sobre os contextos a que ela se destina, e o maior ou menor protagonismo dos profissionais encarregados de levar a proposta literalmente ao nível de rua.
Método
Realizamos pesquisa participante (GRIEB ., 2015GRIEB, S. D. et al. Qualitative Research and Community-Based Participatory Research: Considerations for Effective Dissemination in the Peer-Reviewed Literature. Progress in Community Health Partnerships: Research, Education, and Action, v. 9, n. 2, 2015.) por meio de estudo de caso (YIN, 2015YIN, R. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a edição ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.), com enfoque avaliativo para compreender a atuação de uma eCR em seu contexto e a influência desses elementos contextuais sobre as práticas do CnR. Analisamos em profundidade um caso único para evidenciar os ajustes, adaptações, subtrações e acréscimos realizados por uma equipe à sua prática cotidiana (o trabalho real), a partir das normas estabelecidas para o plano nacional (o trabalho prescrito), e assim propor metodologia de análise de implantação.
A eCR definida integra a rede de atenção básica da Secretaria Municipal de Saúde do município de São Paulo-SP. As eCR, neste município começaram a ser implantadas em 2013, quando o município e o governo federal estavam sob a gestão do mesmo partido político propositor do programa CnR. Em 2016, o município contava com 18 equipes dessa natureza, dez delas geridas por uma organização social e as demais por uma entidade filantrópica (SÃO PAULO, 2016SÃO PAULO (ESTADO). Documento Norteador dos Consultórios na Rua (CnaR). São Paulo: [s.n.].), como é o caso da eCR que constituiu o presente estudo. A equipe abordada foi escolhida pela coordenação regional de saúde, com base no critério de estabilidade do quadro de profissionais que a integrava. Na área de atuação da eCR havia: 2 unidades básicas de saúde (UBS), 1 Centro de Atenção Psicossocial III (CAPS) adulto e 1 outro voltado à infância, 1 CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD), 1 Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e serviços socioassistenciais voltados às PSR. A eCR abordada era classificada como modalidade III e integrada por: 6 agentes comunitários de saúde (ACS), 3 agentes sociais (AgS), 1 auxiliar administrativo, 1 motorista, 1 enfermeira, 2 auxiliares de enfermagem, 1 médico, 1 psicólogo e 1 assistente social.
A aproximação e realização dos trabalhos de campo se deram por meio de três etapas:
1) Leitura de prontuários e outros registros; observação participante da rotina na rua de vários profissionais; e entrevistas semiestruturadas com quatro profissionais que participaram do processo de implantação das eCR e oito usuários do serviço.
2) Sistematização e legitimação do modelo lógico (CHAMPAGNE ., CHAMPAGNE, F. et al. Modelizar as intervenções. In: Avaliação: conceitos e métodos. [s.l: s.n.]. p. 61-76, 2011.2013), elaborado a partir dos trabalhos da primeira etapa. Esse modelo foi apresentado e aperfeiçoado junto à equipe do serviço e, posteriormente, analisado por uma equipe de avaliadores.
3) Elaboração de matriz de critérios para avaliar o grau de implantação da eCR, adaptando proposta desenvolvida por Vieira da Silva (VIEIRA-DA-SILVA, 2014VIEIRA-DA-SILVA, L. M. Avaliação de Políticas e Programas de Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.). A matriz foi constituída pelas diretrizes indicadas na proposta federal, além de elementos identificados na observação participante e na reunião com a equipe. Foram atribuídas pontuações a estes elementos, vinculadas aos tercis classificatórios: = 0 e < 33,3% da pontuação máxima indica intervenção não implementada; = 33,3% e < 66,6%, intervenção parcialmente implementada; = 66,6% da pontuação máxima indica avançado grau de implantação. Realizamos dois encontros finais com a equipe, devido à dificuldade de agenda de todos, e procedemos com ambos da seguinte forma: apresentação da matriz sem preenchimento, a fim de debater com os trabalhadores o conteúdo dos itens classificatórios e o peso de cada um; preenchimento da matriz por cada trabalhador; e apresentação da pontuação estabelecida pela equipe de pesquisa e uma conversa comparando este resultado e os resultados trazidos por cada membro, o que levou ao estabelecimento de uma pontuação final considerando a maioria das pontuações dadas (Tabela 2). O percurso metodológico, executado entre outubro de 2016 a maio de 2017, foi permeável à participação dos trabalhadores da equipe como informado acima; contudo, a participação dos usuários do serviço foi apenas nas entrevistas e observação participante.
O material oriundo das três fases foi analisado pelos autores por meio da proposta de avaliação do grau de implantação, segundo Vieira da Silva (2014) e Champagne . (2011)CHAMPAGNE, F. et al. A Análise de implantação. In: Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011..
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS) e pelo CEP da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, número CAAE 45553015.2.0000.0065.
Resultados
Estruturação e prática da equipe do Consultório na Rua
A UBS sede da eCR pesquisada possuía equipe de atenção básica para PSR antes de 2013, por meio do chamado Programa A gente na Rua (PAR), constituídas de equipes de enfermeiros e ACS os quais, em boa parte, eram egressos de vida em situação de rua. A SMS adaptou estas equipes do PAR, colocando-as no formato de Estratégia Saúde da Família (eSF) e, posteriormente, no modelo eCR. Foram contratados funcionários oriundos das antigas eSF para PSR a fim de integrarem as novas eCR.
Se, por um lado, este registro anterior, representado pelo PAR, facilitou o processo – já que havia similitudes entre esta última e as eSF – por outro, suscitaram também certa confusão entre os trabalhadores. Segundo coordenador da eCR:
Eu lembro até do próprio gerente questionar ‘bom, mas o que mudou?’. Ele falava claramente na época ‘eu acho até a estratégia melhor do que o consultório na rua, mas se a proposta é outra por que não se muda a estratégia?’ E houve várias tentativas de reunião do tipo, bom, é só o consultório na rua que vai atender (a PSR) como era a estratégia? (E1).
Oito das dezoito equipes do município continuaram vinculadas à mesma organização filantrópica autora e executora da primeira proposta municipal. Para os integrantes da eCR em análise, as principais mudanças ocorridas com o advento da nova proposta seriam na composição das equipes e na disponibilidade de veículo para percorrer os territórios. Além disso, as eCR foram objeto de esforço visando mais integração com outros serviços, sendo convocadas para reuniões de gestão da rede de saúde.
A eCR realizava busca ativa de pessoas com necessidades em saúde nas ruas e nos equipamentos sociais, como principal atividade. A clientela era composta por meio do acolhimento na UBS pelos ACS, nas procuras espontâneas, conforme ilustrado na afirmação de um usuário: “Eu conheci eles foi lá no refeitório. Aí, peguei encaminhamento, vim pra cá pra doutora (sic)” E2. Deve-se ressaltar que procuras espontâneas, na UBS, são motivadas inicialmente por necessidades de urgência em saúde bucal, na sua maior parte, segundo relato da equipe acompanhada. Além disso, oferecia na UBS duas atividades semanais em grupo com enfoque psicossocial, voltadas a pessoas com transtorno mental, e dois grupos de redução de danos, em praças da área de atuação, em colaboração com o CAPS AD.
Foi possível acompanhar a abordagem dos trabalhadores às PSR na própria rua, que se iniciou por meio de conversas informais e convite para participação de atividades que incluíram tarefas lúdicas e abordagem de aspectos pessoais, como o uso problemático de drogas. Segundo a psicóloga, “Os grupos trazem a oportunidade de se explorar mais as questões emocionais” (T1). Dentre alguns ACS, observamos preocupação em retirar substâncias alcoólicas dos usuários, no momento das atividades em grupo. A princípio, os ACS explicaram ser uma estratégia para favorecer o foco na atividade e promover o que eles chamaram de redução de danos. No entanto, mais tarde, disseram que tal atitude se inspirava em suas próprias trajetórias de vida e nos tratamentos religiosos que se submeteram, a base de abstinência.
O conjunto da equipe desenvolve campanhas de educação em saúde, além de vacinações e aplicação de contraceptivos femininos. Não havia oferta de material para o uso seguro de substâncias psicoativas (SPA). Não eram realizadas buscas específicas da equipe para os casos de transtorno mental e uso prejudicial de substâncias psicoativas. Quando havia suspeita de transtornos mentais, a psicóloga realizava ao menos um atendimento individual na UBS e incorporava os usuários ao chamado grupo psicossocial. Esses casos também eram encaminhados para a psiquiatra do NASF. Nos casos de transtorno mental grave (TMG), era acionada a colaboração do CAPS do território. Verificamos com certa regularidade que dificuldades na lida com características intrínsecas da clientela (usuários com falas confusas, delírios, sintomas indicativos de depressão) eram, em grande parte, interpretadas como demandas à psicóloga da equipe.
Durante os nossos trabalhos de campo, as ações de matriciamento pelo CAPS estavam suspensas. Divergências entre as gestões da UBS e do CAPS, relacionadas a descompassos estratégicos oriundos de modelos diferentes de gestão, levaram à interrupção da colaboração. O contato entre eCR e CAPS, neste contexto, se restringia ao encaminhamento e compartilhamento de casos e à realização conjunta de visitas de rua, uma vez por mês. Os profissionais do NASF participavam, semanalmente, das reuniões da eCR para a discussão de casos comuns.
Havia um veículo à disposição da equipe para translado de usuários incapacitados de locomoção autônoma até a UBS e outros serviços, e para locomoção da própria equipe pelo território, mas permitido seu uso sob análise da gestão. Segundo membros da equipe, havia constante estímulo para que os usuários se deslocassem até a UBS, o que parecia ter obtido êxito, visto que um relatório de gestão aponta mais frequência da clientela à eCR acompanhada, quando comparada às outras. Além do veículo, o translado era apoiado por meio de cartões de transporte urbano para o deslocamento dos ACS pelo território junto com usuários, quando necessário. Durante as visitas programadas, eventual desencontro com um dado usuário, em seus locais de circulação, implicava na extensão do percurso previsto pelo ACS, à procura do paciente. Quando necessário, consultava-se a base de dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, que reunia o registro de pessoas atendidas nos serviços socioassistenciais.
O trabalho da eCR seguia definição de área e população adscrita, semelhante ao das duas UBS de referência. A equipe raramente extrapolava o perímetro do território formalmente definido, a não ser no caso de desencontros com usuários. Para as PSR, a delimitação de área de abrangência era um desafio na continuidade do cuidado. Segundo uma usuária: Eles vão lá no abrigo, aí eles falaram assim ‘Você tem que ir lá para a UBS, porque a região de vocês é essa aqui.’, porque eu não posso procurar outro (serviço) porque é por causa da rua, pega aqui, né? (E4). Outra usuária preocupou-se com a impossibilidade de manter-se vinculada à eCR:
E6: Fazer o que, complica, complicou, que a única pessoa que estava entendendo a minha doença era ela (médica), e agora eu não sei para onde eu vou mais.
Pesq: E fica longe daqui onde a senhora está agora?
E6: Não, estou pegando só pernoite, eu pego pernoite num abrigo, pernoite em outro abrigo, só pernoite.
Em uma das UBS de sua área, a eCR possuia sala para a equipe e consultório, e efetivava colaboração com as eSF por meio de exames e atendimentos odontológicos. Mas, apenas as PSR que retomaram a vida em domicílio se tornavam cadastradas pelas eSF. Já as equipes da outra UBS não realizavam nenhum atendimento e encaminhavam as PSR para a eCR. O horário de funcionamento da eCR seguia o período de atendimento das UBS, havendo adaptações apenas no inverno e em situações específicas, como no acompanhamento de pessoas com TMG a consultas fora do expediente da equipe.
Ademais, eram ofertados atendimentos clínicos na unidade, por um ou mais profissionais da eCR – médica, enfermeira, auxiliares de enfermagem e psicóloga. Os profissionais de ensino superior também efetivam atendimentos na rua, após primeira abordagem dos ACS, apenas para casos que envolviam aparente transtornos mentais graves, curativos e administração de medicação quando necessário. Nessa ocasião, podia haver coletas para detecção de tuberculose, gravidez, sífilis, hepatite e HIV, dentre outros.
Ainda no dia a dia da equipe, eram efetivados encaminhamentos a diversos serviços e às outras equipes da UBS com acompanhamento dos Agentes Sociais (AgS), que são responsáveis por auxiliar na garantia do atendimento e da proteção de pessoas em risco pessoal e social, e aproximar as equipes dos modos de vida das PSR (BRASIL, 2012BRASIL. Portaria 122, de 25 de janeiro de 2012. Brasília, Diário Oficial da União, 2012.). Por sua vez, a assistente social priorizava iniciativas tradicionalmente ligadas ao núcleo de responsabilidade da profissão, como questões ligadas à moradia ou abrigamento, bem como aquelas ligadas à obtenção de documentos e acesso a serviços em geral, buscando sempre articular tais ações com o apoio da equipe. O esforço cotidiano da equipe e a abrangência de suas ações, que iam do clínico ao socio-assistencial, parecia satisfazer algumas expectativas dos usuários. Conforme afirmado por um paciente do serviço:
São pessoas que me dão uma força, na hora que eu tava caído no chão. Eu morava aqui na Quatorze Bis, sempre morei aqui. Então me tirou da rua, hoje moro no abrigo. Eu não tenho o que reclamar, porque me tirou do buraco (E3)
Além das abordagens gerais e intersetoriais, a ação específica e in loco realizadas pela equipe é igualmente reconhecida, conforme opinião a respeito explicitada por outro usuário:
Eles chegam, eles são muito bons, eles são muito atenciosos, esses meninos agente de saúde, [...] eles vão atrás mesmo, a pessoa pode estar lá na tenda, pode estar lá no chão [...] eles chegam junto se a pessoa está fedendo, está isso e aquilo outro, tem cheiro, vai ali, se está na invasão ruim, suja, eles entram, eles examinam, sabe (sic).(E4)
A agenda de visitas é organizada pelos ACS com base nas prioridades definidas pela gestão do município a partir do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB) que determina a preeminência de pessoas com hipertensão, diabetes, gravidez, puerpério, tuberculose e HIV/AIDS. Pessoas apresentando ao menos uma destas condições deveriam ser visitadas mensalmente e monitoradas quanto à frequência nas consultas e adesão aos tratamentos prescritos. O relativamente fácil acesso à equipe, por parte dos usuários, facilita a adesão e a observação do tratamento, por parte dos usuários:
Então eu sempre venho aqui (UBS), mas às vezes eu perco a receita, falo com a doutora, falo com o pessoal da UBS que faz a circulação aqui na região que dá assistência. Comigo pelo menos o que eu vejo, os profissionais que sempre foram na rua com profissionalismo (E5).
As ações desenvolvidas e atendimentos ofertados, que vimos caracterizando, somam centenas de casos a cada semestre. A seguir, sintetizamos os atendimentos realizados pela eCR acompanhada, no último semestre de 2016 (Tabela 1).
Os dados apresentados em relação ao álcool se restringem aos casos cujo uso desencadeou outros problemas de saúde (19,4% do total dos atendimentos mensais). No entanto, o número de pessoas que consomem álcool regularmente, segundo integrantes da eCR, é muito maior. Esta região se caracteriza pela presença de atendimento relativamente pequeno (8,53% do total de casos atendidos) de usuários de crack, em comparação às outras áreas da cidade, conforme relatórios de gestão.
Sistematizando a estruturação e prática do CnR
Os elementos que vimos expondo auxiliaram a sistematizar os correlatos recursos, ações, produtos utilizados na produção de resultados e impactos específicos, por meio de modelo lógico da eCR (figura 1). Nas discussões suscitadas no processo de elaboração do modelo, percebemos que a equipe considerava prioritário superar a falta de conhecimento das PSR sobre seus direitos e como acessá-los – além de responder às necessidades em saúde propriamente ditas. A instituição filantrópica a que a equipe estava vinculada repassava à eCR (por meio do convênio com a SMS) o salário dos trabalhadores, oferecia o veículo e treinamentos; a SMS, por sua vez, oferecia o local para as atividades, e a organização social que gerenciava a UBS auxiliava com recursos da ESF. A eCR procurava articulá-los, mas alguns nem sempre estão disponíveis – como a pouca frequência de cursos de capacitação e a falta de salas específicas na UBS para atividades em grupo e consultas de enfermagem e psicológicas.
Análise do grau de implantação
A matriz de avaliação do grau de implantação da eCR foi elaborada tomando como referência a portaria 122/2012 articulada aos vários subsídios oriundos dos trabalhos de campo e dos dois encontros realizados com a equipe, momento em que foi debatida e teve a pontuação revisada (tabela 2). Tal revisão, oriunda de críticas da eCR exigiu novas consultas ao material oriundo das observações e entrevistas para definição final da matriz.
Para os temas considerados mais relevantes foram definidas pontuações com 0 ou 5 ou 10, conforme a condição crescente de implantação; aqueles considerados menos relevantes foram pontuados com 0 ou 2,5 ou 5, conforme a condição crescente de implantação. Na coluna destinada à ponderação, encontram-se respectivamente as pontuações potenciais máximas e a pontuação efetivamente obtida pela eCR analisada. A nota alcançada pela equipe, em cada quesito, encontra-se destacada na referida tabela. No seu conjunto, a equipe abordada apresentou um grau de implantação de 75% do máximo possível, equivalente a uma implantação em grau avançado.
O encontro para apresentação da tabela pontuada foi aguardado com curiosidade pela equipe. Segundo seus integrantes, o processo foi positivo enquanto momento de reflexão do trabalho desenvolvido por eles. Houve concordância com as pontuações definidas (segundo os critérios expostos). Alguns membros da equipe desconheciam algumas normativas e puderam se aproximar destas diretrizes, outros puderam revisar sua atuação e tomar consciência das adaptações realizadas segundo a realidade do território. Esse exercício proporcionou discussões importantes para a análise e proposições de ação por parte da equipe.
Discussão
A partir do processo avaliativo com o uso da matriz de implantação, pudemos analisar processos internos e externos à equipe pela ótica dos princípios do SUS.
A equipe acompanhada apresentou formação completa, e atuava pela integração parcial dos saberes de cada categoria profissional, ampliando, em certo sentido, as possibilidades de cuidado segundo a proposta da interdisciplinaridade (CAMPOS, 2000CAMPOS, G. W. S. Um método para análise e co-gestão de coletivos: a constituição de sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo: Hucitec, 2000.). O trabalho dos ACS e AgS contribuía na vinculação dos usuários com a equipe e UBS, possibilitando acordos com os usuários para início e continuidade dos tratamentos (ENGSTROM; TEIXEIRA, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, 2016.). Porém, a busca ativa e o acompanhamento sistemático dos usuários acabam ficando sob responsabilidade única dos ACS e AgS. O restante da equipe centralizava a maioria de seus atendimentos na UBS, o que justamente afetava o princípio da interdisciplinaridade, e reproduzia a lógica de uma equipe de eSF, no sentido dos demais profissionais centralizarem suas atividades na UBS e irem ao território fora da UBS em situações específicas, provocando restrições no acesso aos profissionais de nível superior.
Mesmo sem uso diário do veículo, observamos a presença dos ACS e AgS no território, estabelecendo confiança e responsabilização mútua nos tratamentos. Mas, o uso restrito do veículo reduzia a distância percorrida pelos agentes, dificultando a cobertura, fato também verificado em outra eCR (FERREIRA; ROZENDO; MELO, 2016FERREIRA, C. P. da S.; ROZENDO, C. A.; MELO, G. B. de. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 8, p. 1–10, 2016.). Para PSR itinerantes, esta limitação de deslocamento da equipe pode ocasionar rupturas no acompanhamento e dificultar a equidade, na perspectiva de Vieira da Silva (VIEIRA-DA-SILVA, 2014VIEIRA-DA-SILVA, L. M. Avaliação de Políticas e Programas de Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2014.). A inserção de equipamentos e insumos para exames rápidos e curativos no veículo poderiam potencializar as ações de cuidado nas ruas. Também entendemos que a restrição do período de funcionamento da eCR ao horário comercial, impedia o reconhecimento de potenciais usuários do serviço cuja localização e encontro só seria possível à noite, tornando a equipe menos adaptada ao público-alvo.
A atuação nas ruas em casos de transtornos mentais ou complicações clínicas garante um cuidado que rompe com os muros dos serviços e permite maior interação entre o sistema de saúde e as condições de vida das PSR (LONDERO; CECCIM; BILIBIO, 2014LONDERO, M. F. P.; CECCIM, R. B.; BILIBIO, L. F. S. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 18, n. 49, p. 251-260, 2014.). Os casos envolvendo transtornos mentais e outras complexidades são os momentos que parecem justificar a reunião da equipe nas ações de rua.
A equipe consegue construir vínculo com as pessoas que realizam uso abusivo de SPA, utilizando-se de ferramentas relacionais, tais como o acolhimento sem julgamentos, a escuta qualificada, entre outras (MACHADO; SIMAS, 2017MACHADO, K. da S.; SIMAS, R. S. Redução de danos, insumos e experiência estética: uma análise da prática no Consultório na Rua do município do Rio de Janeiro. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup., v. 1, n. 1, p. 67-83, 2017.). A experiência dos ACS e AgS com a vida nas ruas lhes oferece o conhecimento das normas dos territórios psicotrópicos (FERNANDES; PINTO, 2002FERNANDES, L.; PINTO, M. El Espacio Urbano Como Dispositivo De Control Social: Territorios Psicotrópicos Y Políticas De La Ciudad. Humanitas, humanidades médicas, p. 147-162, 2002.), ou seja, dos espaços de comercialização e consumo de SPA que possuem variadas regras de convívio, facilitando a abordagem e a confiança mútua. Mas, ao não oferecerem insumos para garantir segurança nesse uso, o princípio pragmático da redução de danos é afetado, assim como da equidade em saúde. A redução de danos agrega ações diversificadas para atenuar os prejuízos associados ao uso de SPA. Mas, para realmente obter sucesso, essa estratégia depende da articulação de ferramentas relacionais e pragmáticas (SOUZA, SOUZA, T. de P. A norma da abstinência e o dispositivo “drogas”: direitos universais em territórios marginais de produção de saúde (perspectivas da redução de danos). [s.l: s.n.].2013).
Ademais, a conformação do CnR na política de atenção básica e o modus operandi utilizado pelo PAR influenciou a organização da equipe em estudo, no que se refere à reprodução da dinâmica de equipes de atenção básica tradicionais. Além disso, a reprodução da lógica biomédica por alguns membros da equipe, principalmente, quando atuam restritos às prioridades elencadas pelo SIAB, impede a efetivação do cuidado integral.
A influência da lógica missionária cristã pareceu também permear a dinâmica de parte da equipe em estudo. A atuação da eCR para além das necessidades de saúde e na abordagem aos consumidores de álcool não parecia ser apenas baseada na garantia de direitos, mas também inspirada pela postura de levar auxílio aos necessitados e livrá-los do uso prejudicial de SPA. Se considerarmos todo o histórico de caridade da Igreja Católica para os grupos desassistidos desde o período colonial, a presença de representantes e/ou pessoas influenciadas por essa instituição nas formulações do CnR (BORYSOW, 2018), a gestão da eCR, aqui analisada, por um grupo filantrópico de origem cristã e o histórico de alguns dos ACS em tratamentos promovidos por instituições cristãs, não seria surpresa identificarmos essa lógica missionária entre os componentes da equipe. Isso pareceu favorecer a dedicação dos trabalhadores na assistência, mas ocasionou um cuidado híbrido composto pelo cuidado em saúde, garantia de direitos e posturas caritativas, moralistas e controladoras sobre as PSR, oriundas de valores cristãos, principalmente, frente ao uso de SPA.
Em relação à articulação interserviços e intersetores, ocorrida por meio de reuniões e compartilhamento de algumas ações entre a eCR e outras equipes de saúde e de assistência social, identifica-se uma tentativa de superação da iniquidade, possibilitando a adequação do cuidado às necessidades de seu público-alvo (BORYSOW; FURTADO, 2014BORYSOW, ID. A C.; FURTADO, J. P. Access, equity and social cohesion: evaluation of intersectoral strategies for people experiencing homelessness. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. 6, 2014.; ENGSTROM; TEIXEIRA, 2016ENGSTROM, E. M.; TEIXEIRA, M. B. Equipe “Consultório na Rua” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1839-1848, 2016.). Ainda assim, há barreiras na rede de serviços: a estrutura organizacional inflexível em relação aos horários e aos modos de circulação dos usuários, e o restrito aporte de educação permanente dificultam a obtenção da melhoria do acesso das PSR aos cuidados em saúde. A eCR necessitou pressionar para que as PSR fossem cadastradas como usuárias da UBS onde está sediada, mesmo sem comprovante de residência, como determina a portaria MS 940/2011, fato também verificado no trabalho de outras eCR (FERREIRA; ROZENDO; MELO, 2016FERREIRA, C. P. da S.; ROZENDO, C. A.; MELO, G. B. de. Consultório na Rua em uma capital do Nordeste brasileiro: o olhar de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Cadernos de Saúde Pública, v. 32, n. 8, p. 1–10, 2016.; KAMI ., 2016KAMI, M. T. M. et al. Saberes ideológicos e instrumentais no processo de trabalho no Consultório na Rua. Rev Esc Enferm USP, v. 50, n. 3, p. 442-449, 2016.). Tal situação, justificada indevidamente pelo fato de as PSR não terem moradia e então não pertencerem ao “território”, afeta os princípios da universalidade e equidade do SUS (BORYSOW; FURTADO, 2014BORYSOW, ID. A C.; FURTADO, J. P. Access, equity and social cohesion: evaluation of intersectoral strategies for people experiencing homelessness. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. 6, 2014.; VIEIRA-DA-SILVA, 2009VIEIRA-DA-SILVA, L. M. Equidade em saúde: uma análise crítica de conceitos. Cad. Saúde Públ., v. 25, n. sup 2, p. 217-226, 2009.) reforçando a invisibilidade dessa população (HALLAIS; BARROS, 2015HALLAIS, J. A. da S.; BARROS, N. F. de. Consultório na Rua: visibilidades, invisibilidades e hipervisibilidade. Cadernos de Saúde Pública, v. 31, n. 7, p. 1497-1504, jul. 2015.; KAMI ., 2016KAMI, M. T. M. et al. Saberes ideológicos e instrumentais no processo de trabalho no Consultório na Rua. Rev Esc Enferm USP, v. 50, n. 3, p. 442-449, 2016.). A eCR acompanhada sente-se pressionada pela extensão e diversidade das demandas oriundas de sua clientela e pela interlocução frágil com outras equipes.
A burocratização para acolhimento das PSR em abrigos e albergues leva a eCR a atuar como mediadora junto às equipes socioassistenciais, principalmente, nos casos de transtornos mentais e pacientes com problemas crônicos graves. A lógica especialmente excludente que atinge pessoas com TMG nos serviços públicos (BORYSOW; FURTADO, 2014BORYSOW, ID. A C.; FURTADO, J. P. Access, equity and social cohesion: evaluation of intersectoral strategies for people experiencing homelessness. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 48, n. 6, 2014.; VIEIRA-DA-SILVA, 2009VIEIRA-DA-SILVA, L. M. Equidade em saúde: uma análise crítica de conceitos. Cad. Saúde Públ., v. 25, n. sup 2, p. 217-226, 2009.) é aqui reproduzida. Assim, a equipe assume responsabilidade por alguns determinantes do processo saúde/doença, extrapolando suas ações (LONDERO; CECCIM; BILIBIO, 2014LONDERO, M. F. P.; CECCIM, R. B.; BILIBIO, L. F. S. Consultório de/na rua: desafio para um cuidado em verso na saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 18, n. 49, p. 251-260, 2014.), inclusive quando inicia processos para o acesso das PSR aos abrigos, moradias e benefícios sociais que poderiam ser de responsabilidade compartilhada com a Assistência Social. Apesar do desgaste constante, ao se ocupar da reinserção social, a eCR atua como promotora da intersetorialidade e da transetorialidade (JUNQUEIRA, 2000JUNQUEIRA, L. A. P. Intersetorialidade, transetorialidade e redes sociais na saúde. Revista de Administração Pública, v. 34, n. Vi, p. 35-45, 2000.).
Conclusão
A avaliação do grau de implantação permitiu identificar a pertinência da equipe no oferecimento de cuidado em atenção básica, na vinculação com os usuários, na interlocução e no trabalho interserviços e intersetores, e no apoio a demandas que extrapolam o que é, tradicionalmente, reconhecido como do setor saúde, mas que se afiguram fundamentais nesse segmento populacional. No entanto, há aspectos a serem desenvolvidos de modo a garantir a equidade para essa população, sobretudo na garantia de mobilidade da equipe pelo território, do trabalho interprofissional in loco, e melhoria do fluxo entre eCR e equipes das UBS, além de garantia dos insumos necessários à redução de danos.
Esses elementos podem ser vistos como fragilidades importantes como no caso da pandemia da Covid-19, que tem desafiado os serviços de saúde e de assistência social em desenvolver estratégias para manter o cuidado a esse segmento social frente às complicações da doença e ao risco de contágio (BORYSOW; MANAIA, 2021BORYSOW, I. da C.; MANAIA, M. M. DA C. Pessoas em situação de rua e Covid-19: reflexões sobre a integração social, autocuidado e políticas públicas. In: Sobre a pandemia: experiências, tempos & reflexões. São Paulo: Hucitec, 2021. p. 127–149.). Se esse fato já tensiona as equipes a remodelarem suas atividades, a falta de estrutura para o atendimento in loco atrapalhará ainda mais o trabalho frente à Covid-19.
O uso de matriz de análise de implantação foi validado pela equipe aqui em análise, no sentido de auxiliar na sistematização das informações oriundas do trabalho cotidiano e provocar reflexões para a melhoria dos processos da equipe.
Evidenciou-se que as propostas feitas nos níveis centrais do SUS inevitavelmente sofrem adaptações, resistências e novas elaborações a partir das condições e histórico local. Os problemas identificados junto à equipe acompanhada parecem ser oriundos menos de seu grau de implantação e muito mais de um paradoxo da própria política e dos demais serviços da rede.
O sucesso do CnR parece estar justamente quando essa mesma população puder prescindir dele para obter atenção em saúde no SUS, sem barreiras.
Agradecimento
Agradecemos à FAPESP pela concessão da bolsa de estudos do autor principal.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
13 Out 2021 - Aceito
31 Maio 2022 - Revisado
20 Maio 2022