Autolesão não suicida em mulheres jovens: compreensão dos significados envolvidos no ato autolesivo

Gerlany Leal Cronemberger Raimunda Magalhães da Silva Sobre os autores

Resumo

A autolesão entre mulheres jovens é problema de saúde pública ainda pouco conhecido e compreendido por pais, educadores e profissionais de saúde. Procurou-se compreender o comportamento autolesivo em mulheres jovens numa perspectiva do significado, ações e interpretação da situação vivenciada. Trata-se de pesquisa com abordagem qualitativa que utilizou entrevista semiestruturada para coleta de dados, no período de janeiro a março de 2020. Os dados foram organizados pelo programa MAXQDA e analisados com base no Interacionismo Simbólico. As cinco entrevistadas são jovens educadas pelas mães, possuem pouco ou nenhum contato com os pais. Narraram histórias de abuso sexual, rejeição paterna, bullying e baixo acolhimento no ambiente escolar. Estabeleceram uma percepção pessimista de si, oriunda de interpretações próprias e de suas interações sociais. Enxergaram a autolesão como refúgio. Praticaram a autolesão quando estavam sob sentimentos negativos insuportáveis. Viviam num ciclo de substituição do sofrer psicológico pelo padecimento físico. Todas admitiram possuir temperamentos ansiosos, baixa autoestima e inabilidades socioemocionais. A autolesão tem vínculo direto com os significados que essas jovens se atribuem. Nas escolas, a incorporação de conhecimento sobre bem-estar deve ser estimulada para a formação de pessoas mais eficazes na resolução de problemas.

Palavras-Chave:
Autolesão não suicida; Autolesivo; Mulheres; Jovens; Saúde Mental

Introdução

A autolesão não suicida (ANS) se caracteriza como um problema emocional que denota comportamentos deliberados, os quais envolvem agressões diretas ao próprio corpo (SILVA; BOTTI, 2017SILVA, A. C.; BOTTI, N. C. L. Comportamento autolesivo ao longo do ciclo vital: Revisão integrativa da literatura. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, Porto, n.18, p. 67-76, dez. 2017.). O pretexto de autolesão é aliviar algum sofrimento emocional, sentimento de raiva, tristeza, angústia e vazio interno, emoções sentidas de maneira muito intensa e insuportável, levando a pessoa à autolesão na tentativa de atenuar sentimentos negativos (ARANTANGY ., 2018ARANTANGY, E. W. et al. Como lidar com a automutilação: guia prático para familiares, professores e jovens que lidam com o problema da automutilação. 2. ed. São Paulo: Hogrefe, 2018.).

A ANS se expressa no formato de lesões leves, como arranhar a pele com as unhas ou se queimar com pontas de cigarros, passando por maneiras moderadas, como cortes superficiais nos braços, ou atingindo modalidades mais graves, como a autonucleação dos olhos e a autocastração (GUERREIRO; SAMPAIO, 2013GUERREIRO, D. F.; SAMPAIO, D. Comportamentos autolesivos em adolescentes: uma revisão da literatura com foco na investigação em língua portuguesa. Revista Portuguesa de Saúde Pública, Lisboa, v. 31, n. 2, p. 204–213, dez. 2013.). Geralmente, esse comportamento surge na adolescência e perdura por um período de 10 a 15 anos ou mais, chegando a décadas se não houver tratamento adequado (ARATANGY et al., 2018).

A probabilidade de comportamentos autolesivos é significativamente maior no gênero feminino, nas pessoas que vivem em sistemas não nucleares e naquelas com maior insucesso escolar (GUERREIRO, 2014GUERREIRO, D. F. Comportamentos autolesivos em adolescentes: características epidemiológicas e análise de fatores psicopatológicos temperamento afetivo e estratégias de coping. 2014. Tese (Doutorado em Medicina) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2014.).

Conforme Guerreiro e Sampaio (2013), estudos científicos sobre o assunto, em língua portuguesa, ainda se mostram modestos, dificultando uma pesquisa mais aprofundada e a comparação de resultados em realidades semelhantes. É possível que essa carência de conhecimento interfira na atuação de profissionais da Atenção Primária à Saúde, pais e professores.

Políticas públicas de saúde mental com crianças e adolescentes inexistem em 90% dos países, segundo a OMS (2002)ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Relatório Mundial da Saúde: saúde mental: nova concepção, nova esperança. Lisboa: CLIMEPSI Editores, 2002. Disponível em: https://bit.ly/3gRlNpl. Acesso em: 05 jan. 2019.
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. No Brasil (2019)BRASIL. Lei n.º 13.819, de 26 de abril de 2019. Institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998. Brasília, DF: Congresso Nacional, 2019a. Disponível: https://bit.ly/32a5nob. Acesso em: 5 abr. 2019.
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, a recente Lei 13.819, de 26 de abril de 2019, instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação, mas se restringiu a apontar ações de notificação. Assim, não indicou meios de prevenção, nem de como fazer a abordagem, nem modalidades de tratamento para a ANS.

Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (2018), de 10% a 20% dos adolescentes no mundo vivenciam problemas de saúde mental, mas permanecem não diagnosticados e tratados inadequadamente. Não abordar as condições de saúde mental dos adolescentes traz consequências que se estendem à idade adulta, prejudicando a saúde física e mental e limitando futuras oportunidades (OPAS, 2018ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). Jovens e saúde mental em um mundo em transformação. OPAS Brasil, Brasília, DF, 10 out. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3iWYwV5. Acesso em: 05 jan. 2020.
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).

Na intenção de aprofundar o conhecimento sobre a autolesão não suicida, foi indagado: quais os sentidos atribuídos pelas jovens à autolesão? Como as jovens interpretam a autolesão e como pretendem mudar?

Para tanto, procurou-se compreender a autolesão não suicida em mulheres jovens numa perspectiva do significado, ações e interpretação da situação vivenciada.

Métodos

A metodologia qualitativa permitiu compreender a matéria, tanto do significado quanto da intencionalidade inerentes aos atos das jovens com ANS; e as relações e contextos sociais envolvidos no fenômeno estudado, tal como anotam Minayo e Costa (2018MINAYO, M. C. S.; COSTA, A. P. Fundamentos teóricos das técnicas de investigação qualitativa. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, v. 40, n. 40, p. 139–153, 2018.).

Recorreu-se ao Interacionismo Simbólico (IS), especificamente às premissas de Herbert Blumer (1969), para fundamentar o estudo. Os princípios do IS possibilitaram o alcance dos objetivos da pesquisa, isto é, de analisar e compreender os significados que as entrevistadas deram a si e à autolesão, pautando-se nas suas interações sociais e no modo como agiam com base nas interpretações que faziam da situação. A oportunidade de ressignificação de si e das coisas e, por conseguinte, da ANS por meio de interpretações intrapessoais e interpessoais mais otimistas guiou a análise da motivação das jovens para mudança de comportamento (BLUMER, 1969BLUMER, H. The methodological position of symbolic interactionism. In: BLUMER, H. Symbolic Interactionism: perspective and method. Berkeley: University of California Press, 1969. p. 1-60.).

O estudo ocorreu na cidade de Picos, estado do Piauí (PI), Brasil, no âmbito da Atenção Primária e atenção especializada em saúde mental: respectivamente, no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do tipo II. Picos dispõe de seis equipes de NASF que apoiam as 35 equipes de Saúde da Família, na Atenção Primária, fornecendo 100% de cobertura da população (BRASIL, 2020aBRASIL. Ministério da Saúde. E-gestor atenção básica. Brasília, DF, 2020a. Base de relatórios públicos dos sistemas da Atenção básica. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relatoriosPublicos.xhtml. Acesso em: 08 jun. 2020.
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, 2020bBRASIL. Ministério da Saúde. E-gestor atenção básica. Brasília, DF, 2020b. Base de dados de informação e gestão da atenção básica. Disponível em: https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relHistoricoCoberturaAB.xhtml;jsessionid=J0Hbj7kkQpFkSZVNTf6P3fXG. Acesso em: 08 jun. 2020.
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).

O estudo foi efetivado conforme as seguintes etapas:

1ª) Escolha do tema, levantamento bibliográfico e observação prévia do mundo empírico envolvido no estudo.

2ª) Procedemos a uma visita à psicóloga do NASF e à equipe do CAPS II com o fim de: exibir o Termo de Anuência devidamente assinado pelo gestor, permitindo a realização da pesquisa, os objetivos e métodos de coleta de dados; identificar mulheres jovens, atendidas pelo Setor de Psicologia, com histórico de um ou mais episódios autolesivos para compor a amostra da pesquisa.

3ª) Nesta fase, examinamos os prontuários das possíveis entrevistadas, adotando como critérios de inclusão: mulheres de 10 a 24 anos. Essa faixa etária é considerada, pelo Ministério da Saúde do Brasil, como o período da adolescência (EISENSTEIN, 2005EISENSTEIN, E. Adolescência: definições, conceitos e critérios. Adolescência e Saúde, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p.1–2, abr./jun. 2005. Disponível em: http://www.adolescenciaesaude.com/detalhe_artigo.asp?id=167. Acesso em: 02 jun. 2019.; SAWYER ., 2018SAWYER, S. M. et al. The age of adolescence. The Lancet Child & Adolescent Health, Cambridge, v. 2, n. 3, p. 223-228, mar. 2018.), e corresponde mais adequadamente ao crescimento do adolescente e ao comportamento autolesivo e sofrimento psíquico autorreferido. Excluímos as jovens com transtornos da personalidade borderline: apesar de a autolesão não suicida ter a possibilidade de surgir como um sintoma do transtorno borderline, essas duas condições diferem. Pessoas com tal transtorno da personalidade exprimem comportamentos agressivos e hostis, enquanto aquelas com autolesão não suicida expressam atitudes mais colaborativas e relacionamentos positivos (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.). Foram também excluídas do estudo mulheres com transtornos psicóticos e aquelas cujo ato autolesivo tenha sido iniciado durante delírio ou confusão mental (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.).

4ª) Houve o primeiro contato individualizado com as jovens e com as suas mães (nos casos das entrevistadas menores de 18 anos), para a nossa apresentação e demonstração de interesse pelo tema e a fim de expressar a importância da participação das adolescentes no estudo. Nesse oportuno encontro, buscamos aproximação empática com as futuras entrevistadas e obtivemos as assinaturas dos Termos de Consentimento e Assentimento. Então, foram explicadas as finalidades do estudo, os métodos para coleta de dados, sigilo das informações, riscos e benefícios em participar da entrevista. Após a concordância e a assinatura dos referidos Termos, a entrevista foi realizada apenas com a jovem, ora em Unidades Básica de Saúde, ora no Centro de Atenção Psicossocial de Picos.

A amostragem não probabilística foi determinada por conveniência, composta de cinco entrevistadas que experimentam ou experimentaram a ANS, atendidas no Núcleo de Apoio à Saúde da Família de Picos e/ou CAPS II de Picos. Não houve recusa nem desistência das jovens de participar do estudo. A quantidade da amostra encontra-se entre a recomendada por Polkinghorne (1989)POLKINGHORNE, D. E. Phenomenological research methods. In: VALLE, R.S.; HALLING, S. (eds.). Existential-phenomenological perspectives in psychology: exploring the breadth of human experience. [S.l.]: Plenum Press, 1989. p. 41-60., que é de 5 a 25 pessoas que vivenciaram o fenômeno.

5ª) A entrevista com a finalidade de privilegiar os pontos de vista e interpretações das participantes foi conduzida por uma das pesquisadoras: enfermeira mestranda em saúde coletiva pela Universidade de Fortaleza, especialista em saúde mental pela Universidade Federal do Piauí e com 20 anos de atuação na atenção psicossocial.

O instrumento de coleta de dados composto por 28 questões abertas foi elaborado com a finalidade de conhecer: o significado da ANS para as jovens; quais os motivos as levaram à autolesão; quais os fatores influenciadores e protetores; a existência ou não de desejo de abdicar da autolesão; estratégias pretendidas para a mudança do comportamento autolesivo entre as jovens que, porventura, cogitem essa possibilidade e quais os acolhimentos encontrados por elas para o enfrentamento da autolesão. Os dados sociodemográficos e de temperamento das participantes foram levantados para a conformação de seu perfil.

Um teste-piloto da entrevista foi realizado antes da coleta de dados, e as informações oriundas deste colaboraram para o ajuste do instrumento final da pesquisa. A obtenção dos dados ocorreu nos meses de janeiro a março de 2020.

Os áudios das entrevistas foram transcritos após uma escuta atenta, e foram destacadas as frases e declarações consideradas relevantes ao estudo, atentando, assim, para o que Moustakas (1994)MOUSTAKAS, C. E. Phenomenological research methods. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, 1994. denomina como “horizontalização”.

O encontro aconteceu em salas reservadas no serviço de saúde, onde a participante ficou sozinha com a pesquisadora e à vontade para falar livremente de sua situação de vida. Cada entrevista teve duração de aproximadamente uma hora e 30 minutos, e não foi necessário repetir nenhuma delas. Os áudios foram gravados, transcritos e devolvidos às jovens para aprovação ou contestação. Após aprovados, foram arquivados por nós de modo sigiloso. As observações de campo foram anotadas após cada entrevista. A saturação foi observada pelas duas pesquisadoras após transcrição da terceira entrevista.

6ª) Analisamos os indicativos colhidos; e, de início, foi realizada uma leitura, a fim de identificar as primeiras impressões e possíveis projeções do Interacionismo Simbólico sobre as informações relatadas, o que Bardin (2016)BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016. chama de “leitura flutuante”. Essa etapa seguiu as fases de exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação (GOMES, 2016GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria método e criatividade. Petropólis, RJ: Vozes, 2016. cap 4.).

A interpretação dos resultados se deu mediante as evidências científicas e marcos teóricos sobre a compreensão do significado do comportamento autolesivo, correlacionados com as três premissas do Interacionismo Simbólico (IS) de Blumer (1969), conforme se segue.

  • Embasando-nos na primeira premissa que estabelece o ser humano como orientador de seus atos em direção às coisas em função do que estas representam para ele, bem como no fato de que a autolesão é uma agressão dirigida a si, identificamos o significado que a jovem atribui a si.

  • O segundo princípio do IS diz que o significado das coisas surge como consequência da interação social que cada qual mantém com o seu próximo. Assim, foram averiguadas as influências motivadoras e protetoras do comportamento autolesivo provenientes da interação social da participante com o seu meio.

  • O terceiro pressuposto rege a possibilidade de transformação por meio de um processo interpretativo desenvolvido pela própria pessoa à medida que ela se depara com certos elementos. Com isso, examinamos sua mobilização para a mudança do comportamento autolesivo.

A análise de conteúdo possibilitou-nos a organização das falas em 33 categorias e destas em cinco temáticas de análise: 1) Como as jovens com ANS construíram a percepção de si? 2) Quais características sociodemográficas e experiências de vida as levaram à percepção que possuem de si mesmas? 3) Interação dos fatores protetores e motivadores envolvidos na ANS; 4) Acolhimentos recebidos pelas jovens para o enfrentamento da ANS; e 5) Percepção da necessidade de mudança no comportamento autolesivo pelas próprias jovens considerando, principalmente, o entendimento da percepção de si e as mudanças de comportamento sobre a autolesão (GOMES, 2016GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S.; DESLANDES, S. F.; GOMES, R. Pesquisa social: teoria método e criatividade. Petropólis, RJ: Vozes, 2016. cap 4.).

Os resultados obtidos foram apresentados às entrevistadas e obtiveram sua aprovação para publicação.

Por causa da pandemia de Covid-19, não foi possível coletar dados em uma amostra maior. A pesquisa obteve a aprovação do Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza, sob o Parecer n° 3.773.916.

Resultados

A organização dos dados apresenta: as características sociodemográficas das jovens com ANS; a interação dos fatores motivadores e protetores para a ANS; o quanto se machucou; a percepção de si, as mudanças do comportamento; e os acolhimentos encontrados pelas jovens.

No Quadro 1, indicamos o perfil sociodemográfico e de temperamento, bem como a companhia das participantes na maior parte do dia.

Quadro 1
Características sociodemográficas das jovens com ANS

Como observável no Quadro 2, elaborado com base nos achados de Bone, Lewis e Lewis (2020), todas as jovens contam com todos os fatores influenciadores internos considerados pelo estudo. Entre os fatores ambientais ou sociais que podem predispor alguém à ANS, abordamos aqueles verificados ao longo de toda a análise dos discursos das jovens, como abuso sexual, insegurança alimentar, bullying e ambiente escolar pouco acolhedor, rejeição paterna, influência de pares e de redes sociais.

Quadro 2
Interação de fatores motivadores e protetores para a ANS
Quadro 3
Machucou-se mais do que planejou?

As entrevistadas E1, E2 e E4 produziram ferimentos mais graves do que esperavam ao planejarem a ANS.

No Quadro 4, é comprovável o fato de que as mulheres envolvidas na pesquisa possuem percepções autocríticas exacerbadas e negativas, enxergam a ANS como escape ou refúgio (E1 e E3), alívio do sofrimento (E2 e E4) e pedido de ajuda (E5). Todas pretendem abandonar a autolesão, canalizando a necessidade de autodano (E1), com apoio profissional (E1, E2 e E3), expressando sentimentos contidos (E3), adquirindo maturidade (E4) e percebendo a ineficácia da ANS para a resolução de problemas (E5).

Quadro 4
Percepção de si, da ANS e da mudança do comportamento autolesivo

Os suportes às jovens com ANS são ofertados por outras mulheres da família, como mães (E2, E4 e E5) e irmã (E1). Apenas E2 referiu ter sido abordada por educador que percebeu sua autolesão. E5 referiu ter sido ajudada por meio de palestra sobre saúde mental na escola. E1, E2, E3 e E4 já contam com acompanhamento profissional, principalmente de psicólogos, ou demonstraram a intenção de buscá-lo (E5). A procura de ajuda em plataformas digitais foi mencionada pelas entrevistadas E2, E4 e E5.

Quadro 5
Acolhimentos encontrados pelas jovens com ANS

Discussão

As jovens com ANS entrevistadas têm entre 14 e 24 anos, intervalo etário propenso à ocorrência tanto de transtorno mental comum como ansiedade e depressão (LOPES ., 2016LOPES, C. S. et al. ERICA: Prevalence of common mental disorders in Brazilian adolescents. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, Supl 1, p. 1s-9s, 2016.) quanto de ANS (REIS et al., 2019).

Embora a ANS se dê em diversas faixas etárias, os estudos sobre o tema expõem dados que evidenciam a maior prevalência de ANS entre adolescentes, com o início do ato ocorrendo dos 12 aos 14 anos de idade (REIS et al., 2019a). O início cada vez mais precoce do ato autolesivo entre adolescentes exige o conhecimento sobre a ANS por toda a comunidade e o olhar atento para reconhecer o comportamento logo após os últimos anos da infância.

Quanto à escolaridade, quatro jovens estão no ensino médio e, destas, duas possuem histórico de reprovação escolar. Uma investigação de Reis et al. (2019) revela que os jovens dos níveis fundamental e médio praticam ANS mais frequentemente do que aqueles que estão em nível superior, e apontam diferenças significativas no que se refere ao ano de escolaridade.

Educadores possuem uma proximidade natural e cotidiana com seus alunos, tornandose observadores singulares de possíveis sinais de ANS, como humor depressivo, baixo desempenho escolar, pouco ou nenhum pertencimento ao grupo e, até mesmo, uso de roupas inapropriadas ao ambiente, a fim de ocultar ferimentos oriundos da autoagressão.

Todas as participantes relataram a prática de alguma crença, fato que, segundo MihaljevicMIHALJEVIC, S. et al. Do spirituality and religiousness differ with regard to personality and recovery from depression? A follow-up study. Comprehensive Psychiatry, New York, v. 70, p. 17–24, 2016.et al. (2016), tem potencial para melhorar a capacidade de ter esperança, fé e propósito de vida, no tratamento da depressão. Haja vista tais achados, entende-se que a espiritualidade constitui um fator de proteção para as jovens com ANS, já que sua prática enseja sentimentos mais otimistas sobre si e sobre a vida.

Diferenças étnicas devem ser observadas na ocorrência de ANS. Autores acreditam que certos fatores, como pressões culturais e prevalência de transtornos mentais de cada etnia, interfiram no comportamento autolesivo e que mulheres negras estão mais propensas à autolesão (AL-SHARIFI; KRYNICKI e UPTHEGROVE, 2015AL-SHARIFI, A.; KRYNICKI, C. R.; UPTHEGROVE, R. Self-harm and ethnicity: A systematic review. International Journal of Social Psychiatry, London, v. 61, n. 6, p. 600-612, 2015.). Contrariando Al-Sharifi, Krynicki e Upthegrove (2015), para quem pessoas negras possuem maior propensão à ANS, a entrevistada que se declarou negra demonstrou menor necessidade de cometer a ANS e maior habilidade para o enfrentamento do problema dos que as jovens pardas e a branca.

Conforme mostrado, todas provêm de famílias de baixa renda. A renda familiar é um importante indicador do ambiente psicossocial e sociocultural de uma pessoa, de modo que é suscetível de contribuir para criação de situações adversas durante a infância e adolescência (GALOBARDES ., 2006GALOBARDES, B. et al. Indicators of socioeconomic position (part 1). Journal of Epidemiology and Community Health, London, v. 60, n. 1, p. 7–12, jan. 2006.). JebenaJEBENA, M. G. et al. Food insecurity and common mental disorders among Ethiopian youth: structural equation modeling. PLoS ONE, San Francisco, v. 11, n. 11, p. 1–20, 2016.et al. (2016) atribuem maior probabilidade de transtornos mentais em pessoas que se desenvolveram em condições de insegurança alimentar.

Concordando com Mok MOK, P. L. H. et al. Family income inequalities and trajectories through childhood and self-harm and violence in young adults: a population-based, nested case-control study. The Lancet Public Health, Oxford, v. 3, n. 10, p. e498–e507, oct. 2018.et al. (2018), que associam riscos elevados de autolesão entre sujeitos que crescem em famílias de baixa renda, acreditamos que a precária situação econômica da família da E3 constitui uma situação de insegurança alimentar e fator estressor crônico de risco para sofrimento psíquico, inclusive ANS. Quatro entrevistadas são de famílias chefiadas por mulheres, condição que, segundo Jebena et al. (2016), eleva o risco socioeconômico de transtornos psíquicos.

Todas as entrevistadas admitem ter um temperamento que as conduz a uma inabilidade socioafetiva ante as situações de vida. Os temperamentos autorrelatados pelas jovens que cometem ANS coincidem com os demonstrados por Guerreiro e Sampaio (2013) como os mais prevalentes entre adolescentes autolesivos.

As entrevistadas demonstraram solidão. Apesar de contarem com a companhia de suas mães (E4 e E5) e do pai (E3), sentem-se como os jovens portugueses do estudo de ReisREIS, M. et al. Comportamentos autolesivos nos adolescentes: resultados do estudo HBSC 2018. Revista de Psicologia da Criança e do Adolescente, Lisboa, v. 10, n. 1, p. 207–217, 2019.et al. (2019), muitas vezes, sozinhas. Os poucos espaços destinados à promoção de lazer, cultura, esportes e interação social de jovens contribuem para a sensação de solidão dessas mulheres.

As conclusões de Stanford, Jones e Hudson (2018)STANFORD, S.; JONES, M. P.; HUDSON, J. L. Appreciating complexity in adolescent self-harm risk factors: psychological profiling in a longitudinal community sample. Journal of Youth and Adolescence, New York, v. 47, n. 5, p. 916-931, May 2018. de que há uma ampla diversidade de fatores que motivam a ANS, e que estes interagem, vêm colaborar para o entendimento de que o comportamento autolesivo das participantes desta pesquisa é complexo e não está relacionado a uma ou a outra causa isoladamente. Como mostram Hawton, Saunders e O’connor (2012)HAWTON, K.; SAUNDERS, K. E. A.; O’CONNOR, R. C. Self-harm and suicide in adolescents. The Lancet, New York, v. 379, n. 9834, p. 2373–2382, 2012., a ANS nas jovens resulta de uma combinação de fatores genéticos, biológicos, psiquiátricos, psicológicos, sociais e culturais.

Bone, Lewis e Lewis (2020)BONE, J. K.; LEWIS, G.; LEWIS, G. The role of gender inequalities in adolescent depression. The Lancet Psychiatry, Oxford, v. 7, n. 6, p. 471-472, 2020. explicam a predisposição das mulheres aos transtornos depressivos, evidenciando fatores internos e externos. Aqueles de ordem interna são relacionados às características biológicas ou psicológicas, como hormônios sexuais ou diferenças nas vulnerabilidades emocionais; e os de ordem externa são ambientais ou sociais. Exprimem, entretanto, que tais fatores não se mostram facilmente distinguidos, uma vez que os externos modificam as vulnerabilidades individuais e, assim, passam também a ser internalizados.

Adolescentes que sofreram abuso sexual tiveram 60% mais chances de se envolverem em ANS do que seus pares não abusados (BAIDEN; STEWART; FALLON, 2017BAIDEN, P.; STEWART, S. L.; FALLON, B. The role of adverse childhood experiences as determinants of non-suicidal self-injury among children and adolescents referred to community and inpatient mental health settings. Child Abuse and Neglect, Oxford, v. 69, p. 163-176, 2017.). De tal modo, esses pesquisadores concordam com HailesHAILES, H. P. et al. Long-term outcomes of childhood sexual abuse: an umbrella review. The Lancet Psychiatry, Oxford, v. 6, n. 10, p. 830-839, out. 2019.et al. (2019), que associaram o abuso sexual na infância a problemas psicossociais. Transcrevemos o relato de E2:

Eu estava dormindo na casa de vó. Eu estava de vestido. Ele (tio paterno) me puxava, apertava minha perna, tentava me beijar. Falou que queria ficar comigo. E criança não tem força para homem. Ele foi abrir a minha perna e eu o chutei. Eu sei que ele não conseguiu fazer nada.

No que tange à situação econômica das participantes, conquanto E3 não vincule diretamente no seu discurso a vulnerabilidade alimentar à ANS, a escassez de alimentos provocada, concomitantemente, pela baixa renda da família e doença do pai parece elevar seu nível de estresse, com o qual não sabe lidar.

Vê-se também que o bullying e a rejeição dos colegas aumentam a probabilidade de o jovem se envolver em ANS (ESPOSITO; BACCHINI; AFFUSO, 2019ESPOSITO, Concetta; BACCHINI, Dario; AFFUSO, Gaetana. Adolescent non-suicidal self-injury and its relationships with school bullying and peer rejection. Psychiatry Research, v. 274, p. 1–6, 2019.). A E4 começou a se cortar após sofrer intimidação por meio de bullying. Já E5 não refere bullying, mas diz que o comportamento autolesivo teve início quando mudou de escola e não encontrou um ambiente acolhedor.

O cuidado insatisfatório paterno foi correlacionado a maiores taxas de ANS. Em contrapartida, a superproteção paternal não constitui um fator de risco de autolesão (JOHNSTONE ., 2015JOHNSTONE, J. M. et al. Childhood predictors of lifetime suicide attempts and non-suicidal self-injury in depressed adults. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, Carlton South, v. 50, n. 2, p. 135-144, 2015.). A rejeição paterna e o baixo envolvimento com o pai, decerto, concorreram para a formação de baixa autoestima, diminuta sensação de proteção entre as jovens e maior predisposição à ANS.

Observou-se que E3 convive com episódios de violência intrafamiliar, num ambiente conflituoso ao qual passou a desenvolver aversão. MagalhãesMAGALHÃES, J. R. F. et al. Repercussões da violência intrafamiliar: história oral de adolescentes. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 73, n. 1, e20180228, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3292Lqp. Acesso em: 05 jun. 2019.et al. (2018) mencionam que a violência intrafamiliar leva ao adoecimento físico e mental, provocando sentimento de tristeza profunda, comportamentos autolesivos e ideação suicida.

Ter contato com ações de autolesão e suicídio noutras pessoas, inclusive amigos, predispõe ao desenvolvimento de ANS (O’CONNOR ., 2009O’CONNOR, R. C. et al. Self-harm in adolescents: Self-report survey in schools in Scotland. British Journal of Psychiatry, London, v. 194, n. 1, p. 68-72, jan. 2009.), o que é corroborado pelo trecho do discurso de E2:

Quando eu comecei a me cortar, foi com a minha prima. Eu perguntei a ela o que ela fazia para tirar a dor que sentia, e ela falou que se cortava. Ela se matou.

Apenas E4 revelou participar de um grupo on-line de pessoas que se machucavam deliberadamente e ensinavam estratégias para a autolesão. As demais já frequentaram grupos de apoio. O contato com estímulos à ANS na internet conduz à normalização do comportamento; constitui uma ferramenta de contágio da autolesão (MARCHANT ., 2017MARCHANT, A. et al. A systematic review of the relationship between internet use, self-harm and suicidal behaviour in young people: the good, the bad and the unknown. PloS one, San Francisco, v. 12, n. 8, e0181722, 2017.).

Fatores protetores são entendidos como aqueles que fortalecem os aspectos saudáveis de uma pessoa. São desenvolvidos em âmbito individual, familiar, escolar e comunitário e exemplificados, respectivamente, como habilidades de aprender com as experiências, convivência familiar positiva, estímulo escolar à sensação de pertencimento pelo aluno e oportunidades de lazer (BRESSAN et al., 2014BRESSAN, Rodrigo Affonseca et al. Promoção da saúde mental e prevenção de transtornos mentais no ambiente escolar. In: ESTANISLAU, Gustavo M.; BRESSAN, Rodrigo Affonseca (org.). Saúde mental na escola: o que educadores devem saber. Porto Alegre: Artmed, 2014. p. 37-47.).

Foi observada, no estudo, uma exposição desproporcional das jovens entre os fatores de risco e os de proteção. As participantes da pesquisa parecem contar apenas com seus precários fatores individuais de proteção, constituídos em seus singulares contextos desfavoráveis.

A pesquisa de FoxFOX, K. R. et al. Self-criticism impacts emotional responses to pain. Behavior Therapy, New York, v. 50, n. 2, p. 410-420, mar. 2018.et al. (2018) contém maior preocupação no âmbito do estudo dos comportamentos autolesivos não intencionais. Os autores constatam que a ANS está relacionada com a elevada autocrítica e, também, que o aumento da autocrítica é interferente na adaptação à dor física. Sua investigação assevera que pessoas altamente autocríticas se enxergam como merecedoras de dor e de punição e que a dor física melhora o humor de sujeitos autocríticos. Essas constatações conduzem tanto a uma melhor compreensão do engajamento de pessoas em comportamentos autolesivos não suicidas quanto à verificação de imprevisibilidade da gravidade das lesões, mesmo quando planejadas para terem baixa letalidade. Seguindo as observações desses autores, notamos que a busca pela melhora de sentimentos negativos por meio da dor, bem como o aumento da tolerância a ela em prol de um bem-estar imediato eleva o risco de sequelas e de morte entre as jovens do estudo.

As pessoas interpretam as ações umas das outras, no lugar de simplesmente reagir a elas. Tais reações não são simplesmente respostas às atitudes do outro, mas também às interpretações que fazem dessas ações. Ou seja, as ações e reações das pessoas se baseiam no significado que elas atribuem às condutas alheias (REIS; FREHSE, 2018). Consistem em um moto contínuo, em repetitivas ações, interpretações e reações, não apenas estímulo e resposta (BLUMER, 1969BLUMER, H. The methodological position of symbolic interactionism. In: BLUMER, H. Symbolic Interactionism: perspective and method. Berkeley: University of California Press, 1969. p. 1-60.). O reconhecimento de que os seres humanos interpretam as ações uns dos outros como instrumento para agir reciprocamente denota implicações para o comportamento humano.

GasparGASPAR, S. et al. Non-suicidal self-injuries and adolescents high risk behaviours: highlights from the Portuguese HBSC Study. Child Indicators Research, Dordrecht, v. 12, n. 6, p. 2137–2149, 2019.et al. (2019) assinalam que os adolescentes se lesionam deliberadamente por se sentirem inúteis e/ou por acharem que falharam em algo. Essas concepções pessimistas que as participantes têm de si não decorrem apenas dos temperamentos próprios de cada uma. Foram formadas desde sempre. De certa maneira, elas foram levadas a aprender por meio de suas interações sociais (p.ex., abuso sexual, rejeição paterna, rejeição de pares, bullying, ambiente escolar pouco acolhedor) a se verem como os outros as faziam pensar que elas eram, assim como diz Blumer (1969) na sua primeira premissa.

De fato, a análise dos relatos permite inferir que a fragilidade das estruturas sociais nas quais estão inseridas contribuiu, juntamente com outros fatores, para torná-las suscetíveis a uma má interpretação de si mesmas, a atribuírem um baixo valor a si e a adotarem um comportamento para resolução de problemas (no caso, a ANS) baseado nesses significados. Corroborando as ideações de Reis et al. (2019), as jovens com ANS exprimem baixa confiança em seus potenciais.

Os autorrelatos das entrevistadas demonstraram o engajamento na ANS com a finalidade de atenuar sentimentos negativos, como angústia, raiva e tristeza. Klonsky e Lewis (2014)KLONSKY, E. D; LEWIS, S. P. Assessment of nonsuicidal self-injury. In: NOCK, M. K. (ed.). Oxford Library of Psychology: The Oxford handbook of suicide and self-injury. New York: Oxford University Press, 2014. p. 337-351. ainda se referem à ansiedade, estresse, frustração, culpa, vergonha, sentimentos de vazio e desesperanças como emoções conducentes à ANS. Após a autolesão deliberada, uma sensação de alívio é referida pelas jovens, como mencionado no estudo de Reis et al. (2019), uma espécie de analgésico emocional. Como remate, depois do alívio, vem a culpa, produzindo novos sentimentos negativos, ocasionadores de atos seguidos de autolesão.

Como possibilita a compreensão do mundo empírico em estudo, o IS, especialmente na terceira premissa, permite a ressignificação desses sentidos e, assim, a mudança do comportamento autolesivo nas mulheres com ANS. Isto posto, é importante que as entrevistadas tenham acesso a instrumentos que favoreçam a transformação deste sistema interpretativo que lhes é tão cruel.

Quando questionada sobre outros meios de enfrentamento da ANS, E5 apontou, talvez, um dos mais eficazes e que coincide com o terceiro pressuposto de Blumer (1969): a percepção do próprio comportamento e da ineficácia do ato autolesivo para resolução de problemas:

Eu acho que, na maioria das vezes, não é a questão do que a gente faz para não se machucar. Na maioria das vezes, a questão é o que fazer para não sentir aquele sentimento ruim que faz a gente querer fazer isso. Como a gente vai reagir a certas coisas? Como a gente vai saber lidar com certos momentos do dia a dia? Então, eu acho que é mais isso.

As mães das participantes da pesquisa, chefes de família, acumulam sobrecargas que possivelmente lhes dificultam o olhar mais atento para as jovens que, indubitavelmente, não contam com envolvimento paterno para o enfrentamento da autolesão.

Kutcher, Wei e Estanislau (2014)KUTCHER, S.; WEI, Y.; ESTANISLAU, G. M. Educação em saúde mental: uma nova perspectiva. In: ESTANISLAU, G. M.; BRESSAN, R. F. (org.). Saúde mental na escola: o que os educadores devem saber. Porto Alegre: Artmed, 2014. p. 63-80. acreditam que as escolas são os loci ideais para a educação em saúde mental, pelo fato de constituírem centros de formulação de conhecimento e por serem os ambientes onde os jovens passam a maior parte do seu dia. Neste estudo, entretanto, o ambiente escolar ora mostrou-se pouco acolhedor (E4 sofre bullying, e E5 sentese mal na escola), ora pareceu não perceber o comportamento autolesivo das jovens (E3 e E4). A exceção foi a educadora de E2, que conseguiu enxergar a mudança no humor da adolescente e, de modo empático, lhe dedicar escuta.

Em razão da tendência de crescimento da ANS, inclusive dentro das escolas, a capacitação de educadores e demais funcionários é fundamental para o reconhecimento precoce de sinais de autolesão e encaminhamento aos serviços de saúde, bem como para ações preventivas.

A promoção de bem-estar, autoaceitação, resiliência, empatia e respeito às diferenças deve ser continuadamente desenvolvida em todas as escolas, públicas e privadas. Bem melhor será a incorporação de disciplinas que promovam o bem-estar e as habilidades socioemocionais desde os primeiros anos de estudo do jovem.

Apesar do suporte profissional encontrado pelas participantes desta pesquisa, é importante ressaltar que a maior parcela dos jovens que se machucam deliberadamente está oculta na comunidade, conforme exprimem Hawton, Saunders e O’Connor (2012). Uma política de promoção de saúde mental e prevenção de ANS deve ser estabelecida considerando esse dado.

Um relatório da OMS aponta um uso intenso de mídias sociais por jovens, especialmente entre mulheres (INCHLEY ., 2020INCHLEY, J. et al. ed.). Spotlight on adolescent health and well-being: findings from the 2017/2018 Health Behaviour in School-aged Children (HBSC) survey in Europe and Canada: international report. Copenhagen: World Health Organization, 2020. (Key findings, v.1).). Há evidências de que as redes sociais constituem uma fonte de suporte informal buscado pelos adolescentes autolesivos (DYSON ., 2016DYSON, M. P. et al. A systematic review of social media use to discuss and view deliberate self-harm acts. PLoS ONE, San Francisco, v. 11, n. 5, e0155813, 2016.), assim como ocorreu com E2, E4 e E5.

Haja vista as comprovações de busca de ajuda na internet pelos adolescentes que se machucam deliberadamente, deve ser levada a efeito a inclusão de meios em tais plataformas para facilitar o contato desses jovens com fontes de ajuda profissional.

Considerações finais

O entendimento sobre as características de cada uma das entrevistadas e dos contextos em que suas interações sociais se deram, com amparo no perfil biopsicossocial e cultural, facilitou a percepção dos significados que elas atribuem a si. São mulheres de baixa renda, educadas pelas mães, estudantes de escolas públicas e submetidas a algum tipo de violência (sexual, física ou emocional) desde a infância. Com os relatos das partícipes do estudo, foram identificados os principais sentimentos envolvidos na prática da ANS, na qual ocorre a substituição da dor emocional pela física, num ciclo de dor pela dor. Geralmente, esse ciclo inicia-se com algum sentimento negativo e insuportável, que leva as entrevistadas à ANS, seguindo-se a culpa por haverem realizado ato autolesivo.

Os achados do estudo evidenciam a presença desproporcional entre os fatores motivadores e os protetores da ANS no cotidiano das jovens. Os fatores protetores se mostraram frágeis, escassos e descontinuados, tanto no ambiente familiar como no escolar.

Ressaltamos a necessidade emergente de capacitação de pais, educadores, amigos e profissionais de saúde de todos os níveis de atenção para uma abordagem de intervenção eficaz aos jovens que se machucam de modo deliberado. Habilidades socioemocionais, no âmbito interacionista desta pesquisa, são passíveis de ser aprendidas e modificadas à medida que o processo interpretativo da pessoa também se altera. Nesse sentido, a incorporação de disciplinas de bem-estar e de aprendizagem socioemocional nas escolas, sejam elas particulares ou públicas, deve ser considerada como um robusto instrumento, não apenas de prevenção da ANS, mas também de formação de um ser mais efetivo perante as adversidades de hoje e as que hão de vir. A constituição de planos e políticas de prevenção, todavia, deve ser concebida envolvendo a família, a escola, a comunidade, os profissionais e os gestores da saúde, educação, cultura e lazer.

Apesar das limitações do estudo relacionadas à inviabilidade da coleta de dados de outras mulheres com ANS ocasionada pelo fechamento de serviços de saúde e de escolas durante período crítico da pandemia de Covid-19 no Brasil, acreditamos que os resultados se mostraram robustos e contribuirão para sensibilizar profissionais da saúde e da educação para escuta atenta de adolescentes com ANS. Novos estudos com amostra mais significativa e que considerem a ANS no contexto da atual pandemia são recomendados.

O desconhecimento da severidade do problema ou a possibilidade de, em alguns casos, a ANS ser subestimada pelas rasuras superficiais da pele representa sérios riscos de morte entre os jovens e a persistência de um sofrimento psíquico intenso, com marcas bem mais profundas do que as vistas sobre o corpo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2021
  • Revisado
    11 Jan 2022
  • Aceito
    03 Jun 2022
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