Educação permanente para farmacêuticos preceptores que atuam na atenção primária no Sistema Único de Saúde: um estudo qualitativo

Lifelong learning for pharmacist preceptors in primary healthcare in the Brazilian health system: a qualitative study

Larissa de Freitas Bonomo Igor Dias Silva Tamires da Silva Montanhas Alessandra Rezende Mesquita Djenane Ramalho de Oliveira Simone de Araújo Medina Mendonça Sobre os autores

Resumo

O bom exercício da preceptoria exige educação permanente dos profissionais de saúde. Nesse contexto, foi desenvolvido curso para preceptores farmacêuticos em um município do leste de Minas Gerais, visando promover o desenvolvimento de competências clínicas. O objetivo do estudo é descrever a experiência educacional desenvolvida e a perspectiva dos participantes sobre a mesma. Trata-se de estudo qualitativo, com coleta de dados por observação participante, entrevistas semiestruturadas e análise documental. Os dados transcritos foram submetidos a análise temática. O planejamento da atividade educacional, realizado a partir de diagnóstico com os farmacêuticos, resultou em satisfação por parte dos mesmos, que ressaltaram a relevância dos temas abordados para sua prática cotidiana. O curso teórico-prático com estudos de casos que objetivava desenvolver competências clínicas iniciais demonstrou-se satisfatório na perspectiva dos participantes. Problemas na gestão do sistema de saúde local dificultaram a realização da fase de apoio in loco, prevista inicialmente. Além disso, evidenciaram-se fatores que influenciam na possibilidade de aplicação de tais competências no cotidiano profissional. Os conhecimentos gerados podem ser subsidiar outras experiências de integração universidade-serviço de saúde para educação permanente de farmacêuticos, com aproveitamento dos aspectos positivos e desenvolvimento de estratégias de prevenção dos problemas identificados.

Palavras-Chave:
Educação permanente; Farmacêutico; Preceptoria; Pesquisa qualitativa

Abstract

A good preceptorship practice requires lifelong education. In this context, a course was developed for pharmacist preceptors aiming to promote the development of clinical skills. This study aims to describe the educational experience developed and the participants' perspective on it. This is a qualitative study, with data collection through participant observation, semi-structured interviews and document analysis. The transcribed data were submitted to thematic analysis. The planning of the educational activity, carried out based on a diagnosis with the pharmacists, resulted in satisfaction on the part of the pharmacists, who stressed the relevance of the topics addressed for their daily practice. The theoretical-practical course with case studies that aimed to develop initial clinical skills proved to be satisfactory from the perspective of the participants. Problems in the management of the local health system made it difficult to carry out the on-site support phase, initially planned. In addition, factors that influence the possibility of applying such competences in professional daily life were evidenced. The knowledge generated can be used to support other university-health service integration experiences for the lifelong education of pharmacists, taking advantage of the positive aspects and developing strategies to prevent the identified problems.

Keywords:
Lifelong education; Pharmacist; Preceptorship; Qualitative research

Introdução

O preceptor é o profissional que exerce prática pedagógica no ambiente de trabalho e de formação profissional em saúde, paralelamente à realização de sua prática assistencial. Este, sendo professor ou não, contribui com a formação profissional, ética e moral do estudante. Promove a construção de conhecimentos profissionais específicos e da saúde como um todo. Contribui para o desenvolvimento de habilidades clínicas e para a avaliação do desempenho do estudante, motivando-o a atuar no processo de cuidado, nos diferentes níveis de atenção, com responsabilidade social e compromisso com a cidadania (AUTONOMO ., 2015AUTONOMO, F. R. de O. M. et al. A Preceptoria na Formação Médica e Multiprofissional com Ênfase na Atenção Primária – Análise das Publicações Brasileiras. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 316-327, June 2015. http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n2e02602014.; BOTTI; REGO, 2008BOTTI, S. H. de O.; REGO, S. Preceptor, supervisor, tutor e mentor: quais são seus papéis? Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 363-373, set. 2008. https://doi.org/10.1590/S0100-55022008000300011.; 2011; GIROTTO ., 2019GIROTTO, L. C. et al. Preceptors’ perception of their role as educators and professionals in a health system. BMC Med Educ., v. 19, n. 203, p. 1-8, 2019.; MISSAKA; RIBEIRO, 2011).

Na prática da preceptoria, o profissional de saúde assume a mediação entre a teoria e a prática e exerce responsabilidades que englobam funções de orientador, tutor, supervisor e mentor. Destacam-se ações de direcionamento e planejamento das atividades realizadas pelos estudantes, estímulo ao raciocínio crítico e reflexivo, observação e acompanhamento, aconselhamento, oferecimento de espaços que favoreçam a ressignificação do conhecimento e da aprendizagem, além dos ensinamentos acerca dos procedimentos técnicos e coordenação da discussão de casos. O preceptor, na qualidade de “docente-clínico”, detém a competência técnica para a prática clínica e os aspectos educacionais relacionados a ela para que o cenário de trabalho se transforme em um ambiente propício à formação do estudante (BOTTI; REGO, 2011BOTTI, S. H. de O.; REGO, S. T. de A. Docente-clínico: o complexo papel do preceptor na residência médica. Physis. Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 65-85, 2011. https://doi.org/10.1590/S0103-73312011000100005.; MISSAKA; RIBEIRO, 2011).

As complexas funções atribuídas ao preceptor trazem à tona a importância de se pensar em estratégias governamentais focadas na formação em saúde que estabeleçam a integração entre as instituições de ensino e os serviços de saúde para planejarem a melhor maneira de educar os profissionais de saúde para preceptoria (AUTONOMO ., 2015AUTONOMO, F. R. de O. M. et al. A Preceptoria na Formação Médica e Multiprofissional com Ênfase na Atenção Primária – Análise das Publicações Brasileiras. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 316-327, June 2015. http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n2e02602014.). Na perspectiva da formação e desenvolvimento de profissionais para atuação no Sistema Único de Saúde (SUS), uma regulamentação relevante é a Política Nacional de Educação Permanente (PNEPS) (BRASIL, 2004BRASIL. Portaria GM/MS nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 14 fev. 2004., 2007BRASIL. Portaria GM/MS nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 20 ago. 2007.). Apesar da existência dessa regulamentação e outras relacionadas (BRASIL, 2012BRASIL. Resolução SES/CNRMS nº 2 de 13 de abril de 2012. Dispõe sobre Diretrizes Gerais para os Programas de Residência Multiprofissional e em Profissional de Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 16 abr. 2012.; 2013BRASIL. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 23 out. 2013.), o que se vê na prática é que ainda esses processos são insuficientes, embora considerados primordiais para que o preceptor exerça adequadamente suas atribuições.

Esse panorama torna-se ainda mais desafiador quando tratamos da educação permanente e continuada de preceptores farmacêuticos, os quais estão diante de um cenário de mudanças em seu processo de trabalho, com a recente regulamentação e valorização dos serviços clínicos (EVANGELISTA; MENDONÇA; RAMALHO DE OLIVEIRA, 2020EVANGELISTA, M. L.; MENDONÇA, S. A. M.; RAMALHO DE OLIVEIRA, D. O papel do preceptor na formação do estudante de Farmácia: uma revisão de literatura. J Applied of Pharm Science, v. 7, p. 144, 2020.). Esse fato evidencia que, além da necessidade de formação pedagógica, é inquestionável a importância de um processo de capacitação para sistematização da prática e para o desenvolvimento de competências clínicas por esses profissionais (CFF, 2017CONSELHO FEDERAL DE FARMÁCIA. Competências para a atuação clínica do farmacêutico: relatório do I Encontro Nacional de Educadores em Farmácia Clínica e Matriz de Competências para a Atuação Clínica. Brasília: Conselho Federal de Farmácia, 2017.; BRASIL, 2015BRASIL. Portaria Interministerial nº 1.127, de 04 de agosto de 2015. Institui as diretrizes para a celebração dos Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde, para o fortalecimento da integração entre ensino, serviços e comunidade no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 2015.).

Um processo não fragmentado de formação de preceptores que contribua para uma reflexão ampla do modelo de atenção à saúde requer apoio institucional, que pode ser encontrado na figura do docente/tutor. Mas, também necessita de uma estratégia de educação que permita a emancipação do profissional de saúde, embasada no olhar crítico e reflexivo sobre os processos de trabalho (MARON, 2018MARON, C. dos A. O ensinar e o cuidar na atenção primária: o farmacêutico preceptor articulando ensino e serviço na formação do residente farmacêutico. Dissertação. São Paulo: Faculdade de Odontologia, Universidade de São Paulo; 2018.; ROCHA; RIBEIRO, 2012ROCHA, H. C.; RIBEIRO, V. B. Curso de formação pedagógica para preceptores do internato médico. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, p. 343-350, set. 2012. https://doi.org/10.1590/S0100-55022012000500008.; MISSAKA; RIBEIRO, 2011).

É interesse das instituições de ensino superior (IES) que o estudante receba treinamento nas condições reais de atuação do SUS, uma vez que este é o maior empregador de profissionais de saúde no Brasil. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação da área da saúde recomendam a formação voltada para o SUS, especialmente à atenção primária (COSTA ., 2018COSTA, D. A. S. et al. Diretrizes curriculares nacionais das profissões da Saúde 2001-2004: análise à luz das teorias de desenvolvimento curricular. Interface (Botucatu), v. 22, n. 67, p. 1183-1195, Dec. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0376.). Portanto, o papel fundamental da IES deve ser reconhecer e capacitar o profissional interessado na preceptoria, para que este desempenhe adequadamente essa função. Porém, essa tarefa deve ser discutida no âmbito dos serviços de saúde e da IES, caracterizando um esforço conjunto das secretarias municipais de Saúde, dos docentes e discentes das IES e dos profissionais de saúde para que efetivamente haja mudanças nos processos de trabalho, melhorias na formação em saúde e, consequentemente, fortalecimento do SUS (ROCHA; RIBEIRO, 2012ROCHA, H. C.; RIBEIRO, V. B. Curso de formação pedagógica para preceptores do internato médico. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, p. 343-350, set. 2012. https://doi.org/10.1590/S0100-55022012000500008.; TRAJMAN ., 2009TRAJMAN, A. et al. A preceptoria na rede básica da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro: opinião dos profissionais de Saúde. Rev. bras. educ. med. Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p. 24-32, mar. 2009. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-55022009000100004.; AUTONOMO ., 2015AUTONOMO, F. R. de O. M. et al. A Preceptoria na Formação Médica e Multiprofissional com Ênfase na Atenção Primária – Análise das Publicações Brasileiras. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 316-327, June 2015. http://dx.doi.org/10.1590/1981-52712015v39n2e02602014.).

Esse compromisso das instituições envolvidas tem sua efetivação facilitada a partir da criação da portaria interministerial nº 1.127/2015. Tal portaria institui as diretrizes para a celebração dos Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde (COAPES), para o fortalecimento da integração entre ensino, serviços e comunidade no âmbito do SUS, por meio do apoio à articulação conjunta entre todos os atores responsáveis pela organização dos espaços de aprendizagem do seu território, tendo a Educação Permanente em Saúde como referencial ético e político (BRASIL, 2015BRASIL. Portaria Interministerial nº 1.127, de 04 de agosto de 2015. Institui as diretrizes para a celebração dos Contratos Organizativos de Ação Pública Ensino-Saúde, para o fortalecimento da integração entre ensino, serviços e comunidade no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 5 out. 2015.).

Nesse contexto, uma equipe do curso de Farmácia de instituição federal de ensino superior, com sede no leste de Minas Gerais, Brasil, ofertou um curso voltado para farmacêuticos do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB), potenciais preceptores dos estudantes da graduação. Considerando a realidade da profissão farmacêutica no Brasil e da atuação do farmacêutico na atenção primária, que, embora tenha tido avanços, ainda se mostra incipiente (ARAÚJO et al., 2017; BARROS; SILVA E LEITE, 2019BARROS, D. S. L.; SILVA, D. L. M.; LEITE, S. N. Serviços farmacêuticos clínicos na atenção primária à saúde do Brasil. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. e0024071, 2020. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00240.), tal curso visou promover o desenvolvimento de competências clínicas por esses profissionais. Assim, esperava-se contribuir para o aprimoramento de seus processos de trabalho, de forma a criar cenários de prática condizentes com o novo perfil esperado para o egresso da graduação em Farmácia (BRASIL, 2017BRASIL. Resolução nº 6 do CNE/CES, de 19 de outubro de 2017. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia. Brasília: Conselho Nacional de Educação. Diário Oficial da União. Brasília, out. 2017.). Este estudo teve como objetivo descrever o curso ofertado e apreender a experiência dos preceptores em relação ao aprendizado na ação de educação permanente.

Métodos

Estudo descritivo de natureza qualitativa (POPE; MAYS, 2009POPE, C.; MAYS, N. (orgs.) Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009.; LUDKE; ANDRÉ, 2013LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2013.). Trata-se de uma experiência educacional formalizada por COAPES entre Secretaria Municipal de Saúde e instituição federal de ensino superior, ambas localizadas no leste do estado de Minas Gerais.

Os participantes do estudo foram a totalidade de farmacêuticos (oito) atuantes no NASF-AB (à época do estudo, ainda Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF) da referida Secretaria de Saúde quando da realização da experiência educacional e a equipe da universidade responsável pelo planejamento, execução e avaliação de tal experiência (quatro docentes, sete estudantes, dois farmacêuticos técnicos administrativos em educação, todos vinculados ao departamento de Farmácia da instituição). Não houve desistências quanto à participação no estudo. A coleta de dados foi realizada no período dezembro de 2017 a junho de 2019, empregando os seguintes métodos:

  • Observação participante: Durante a experiência educacional, um dos membros da equipe de pesquisa manteve registros em diário de campo com notas descritivas e reflexivas sobre as situações vividas e observadas. Ao final da experiência educacional, foi conduzida uma reunião de avaliação da mesma com todos os envolvidos, na qual também foi realizada observação participante, além de gravação para posterior transcrição e análise (POPE; MAYS, 2009POPE, C.; MAYS, N. (orgs.) Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009.; LUDKE; ANDRÉ, 2013LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2013.).

  • Entrevistas semiestruturadas: os farmacêuticos foram entrevistados ao término das atividades educacionais propostas. O tópico guia para as entrevistas contemplava os seguintes aspectos: perspectivas sobre a vivência na experiência educacional; percepção sobre o desenvolvimento de competências e mudanças em sua prática a partir do aprendizado. Também foram realizadas entrevistas com os demais participantes (equipe da universidade), as quais foram norteadas por tópico guia que pretendia levar o participante a explorar sua percepção sobre o envolvimento e desenvolvimento dos farmacêuticos do NASF-AB ao longo da experiência educacional (POPE; MAYS, 2009POPE, C.; MAYS, N. (orgs.) Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009.; LUDKE; ANDRÉ, 2013LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2013.).

  • Análise documental: os documentos de planejamento, acompanhamento e avaliação do curso foram analisados pela equipe de pesquisadores a fim de possibilitar a descrição da estratégia educacional.

Todo o material coletado foi transcrito/digitado e inserido no software de análise de dados qualitativos NVivo. Essa ferramenta permitiu criar memorandos analíticos e interpretativos à medida que se procedia a leitura completa dos dados. Tais memorandos contribuíram para a elucidação das unidades temáticas e categorias que compõem a seção de resultados deste trabalho, as quais foram organizadas também com o auxílio do software (WELSH, 2002WELSH, E. Dealing with Data: Using NVivo in the Qualitative Data Analysis Process. Forum Qualitative Sozialforschung / Forum: Qualitative Social Research, [S.l.], v. 3, n. 2, May 2002. http://dx.doi.org/10.17169/fqs-3.2.865.; POPE, MAYS, 2009POPE, C.; MAYS, N. (orgs.) Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009.; LUDKE, ANDRÉ, 2013LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2013.).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAAE 68282117.4.0000.5147) e a equipe de pesquisadores seguiu todos os preceitos legais em vigor sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos.11Pesquisa financiada pelo Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS/MS/CNPq/FAPEMIG - 2017) e pela Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Resultados

Os resultados estão organizados segundo o modelo dos 3P (3P model), proposto por Biggs (1993BIGGS, J. From theory to practice: a cognitive systems approach. High Educ Res Dev., v. 12, p. 73-85, 1993. https://doi.org/10.1080/0729436930120107.) para estudos educacionais, em que são apresentados o contexto político-institucional e os participantes (Presage), a experiência educacional em si (Process) e os resultados alcançados (Products). Os resultados alcançados, por sua vez, foram organizados segundo o modelo adaptado de Kirkpatrick (BOET ., 2012BOET, S. et al. Review article: medical education research: an overview of methods. Can J Anaesth., v. 59, n 2, p. 159-170, 2012. https://doi.org/10.1007/s12630-011-9635-y.): a perspectiva dos participantes sobre a experiência educacional (nível 1); a modificação de atitudes e percepções (nível 2a); a aquisição de conhecimentos e habilidades (nível 2b) e a mudança de comportamento (nível 3).

Não foi objetivo deste estudo avaliar mudanças organizacionais (nível 4a) nem benefício para pacientes/usuários (nível 4b), dada a curta duração da experiência educacional e a limitação temporal da coleta de dados (durante e imediatamente após a experiência).

Contexto político-institucional e participantes

Contexto político-institucional

O curso de formação para preceptores farmacêuticos iniciou-se diante de um contexto de reformulação das DCN do curso de graduação em Farmácia, publicadas em 2017. As DCN anteriores, publicadas em 2002, focavam na definição de competências gerais e específicas que o profissional egresso deveria desenvolver em três áreas de atuação: fármacos e medicamentos; análises clínicas e toxicológicas; e controle, produção e análise de alimentos. Diferentemente, as DCN de 2017 trazem em seu escopo a estruturação da formação em três eixos: cuidado em saúde, tecnologia e inovação em saúde e gestão em saúde. O eixo cuidado em saúde, o qual deve corresponder a 50% do curso, deve proporcionar ao egresso a capacitação para atuar na prática clínica, reforçando a relação farmacêutico-paciente em um modelo de atenção centrado no usuário e não no medicamento (ALBUQUERQUE et al., 2008ALBUQUERQUE, V. S. et al. A integração ensino-serviço no contexto dos processos de mudança na formação superior dos profissionais da saúde. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, p. 356-362, set. 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-55022008000300010.). Outro ponto relevante das DCN são os estágios curriculares supervisionados, os quais deverão perfazer 20% da carga horária total do curso, assim distribuída: fármacos, cosméticos, medicamentos e assistência farmacêutica (60%), análises clínicas, genéticas e toxicológicas e alimentos (30%), e especificidades institucionais e regionais (10%).

As mudanças acima mencionadas reforçam a necessidade de formação do farmacêutico para a prática clínica, com destaque para o desenvolvimento de competências que possibilitem a capacitação dos graduandos para atuarem nessa área. Ademais, trazem uma importante contribuição para a construção da identidade do farmacêutico enquanto profissional de saúde capacitado para atuação clínica no SUS (CHAGAS ., 2019CHAGAS, M. O. et al. Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Farmácia: análise qualitativa comparativa 2002-2017. Atas - Investigação Qualitativa em Educação/Investigación Cualitativa en Educación. 2019; 1:1011-1016.).

Diante desse contexto, quando o estudo foi delineado, o Projeto Pedagógico do curso de graduação em Farmácia da universidade proponente do curso de capacitação de preceptoria encontrava-se em reformulação pelo Núcleo Docente Estruturante e pelos docentes do Curso para atender às novas DCN. A matriz curricular apresentava disciplinas com caráter teórico-prático com inserção dos estudantes nos cenários de prática do SUS, denominadas “atividades orientadas”, assim como estágios na área hospitalar e de análises clínicas que também utilizavam os cenários do sistema público de saúde do município como campos de prática.

Com intuito de organizar as atividades curriculares de ensino de graduação e também as ações de pesquisa e extensão que são desenvolvidas na rede pública de saúde, a Secretaria municipal de Saúde conta com a atuação de um núcleo de integração, constituído por representantes da gestão de saúde municipal, das IES, e da comunidade. Tal núcleo estabelece um fluxo descritivo para a solicitação dos campos de atuação, contendo dentre outros aspectos, a proposta, os objetivos, e as contrapartidas de todas as atividades disciplinares ou de estágio, que forem realizadas pelas IES na rede pública de saúde. Após aprovação da solicitação, a IES pode iniciar a entrada nos campos de prática de acordo com a proposta enviada e apreciada. Essa estratégia visa a permitir que diferentes regiões e microrregiões de saúde sejam contempladas, sem gerar sobrecarga de algumas unidades de saúde em detrimento de outras.

De fato, a integração ensino-serviço-comunidade no município é facilitada pela celebração do COAPES, firmado entre as instituições parceiras e o município desde março de 2016, com entrada da referida IES por meio de termo aditivo assinado em fevereiro de 2017. Tem-se então, o compromisso tanto da gestão municipal, quanto das IES de cumprirem os objetivos e responsabilidades pactuados e regulamentados pelo COAPES.

Assim, este estudo desenvolveu-se em meio a essa perspectiva colaborativa, considerando as necessidades de mudanças curriculares na graduação em Farmácia e diante de um cenário de integração ensino-serviço-comunidade que viabilizou o diagnóstico das necessidades de saúde da população e dos serviços de saúde oferecidos pelos farmacêuticos. Além disso, diante do fato de que a formação dos futuros profissionais para o cuidado em saúde no SUS deve caminhar concomitantemente à formação dos preceptores, a experiência educacional teve como objetivo de promover o desenvolvimento de competências clínicas pelos farmacêuticos, especialmente na atenção primária à saúde (APS).

Características dos participantes

Participaram do estudo oito farmacêuticos que atuavam no NASF, o qual foi implementado no município em agosto de 2008. No momento da realização do curso, o programa completava nove anos de incorporação nas políticas de saúde municipais.

As principais características dos farmacêuticos referem-se a um tempo de formação variando de três a 21 anos, e tempo de atuação no NASF de um a oito anos. Além disso, a maioria deles, com exceção de um dos profissionais, por ter mais de 10 anos de integralização do curso de Farmácia, já apresentava experiência de atuação na dispensação de medicamentos em drogarias e farmácias públicas e privadas, no gerenciamento de drogarias e farmácias, na manipulação de medicamentos e na farmácia hospitalar. Por outro lado, o tempo de formação revela que esses profissionais não tinham recebido, durante a graduação, formação direcionada ao cuidado em saúde, especificamente à prática clínica do farmacêutico, tampouco relataram ter feito algum curso de especialização ou pós-graduação na área.

Os farmacêuticos do NASF, participantes da pesquisa, relataram realizar as seguintes atividades na sua rotina de trabalho: apoio junto às equipes Estratégia Saúde da Família (ESF), organização de atividades educativas em salas de espera, grupos operativos, ações do Programa Saúde na Escola, visitas domiciliares, entrega de medicamentos em domicílio, práticas integrativas (auriculoterapia), atendimentos individuais e coletivos, busca ativa de pacientes, atividades administrativas, reuniões de equipe e de matriciamento e outras atividades solicitadas pelo gerente/gestor de saúde.

De acordo com a padronização das ações e processo de trabalho entre NASF e ESF definido pela coordenação municipal do NASF vigente na época, as atividades previstas para os farmacêuticos, no âmbito da assistência farmacêutica, incluíam “realizar e desenvolver procedimentos para a promoção, proteção e recuperação da saúde; assegurar que o medicamento seja administrado na dose, frequência, via de administração e horários corretos; verificar se a prescrição médica está de acordo com aspectos técnicos e legais; promover intervenções terapêuticas, quando necessárias; realizar consultas, anamnese e avaliação farmacêutica; verificar a adesão do paciente ao tratamento medicamentoso; identificar interações medicamentosas, dentre outras” (SMS GOVERNADOR VALADARES, 2019). Percebe-se assim, que muitas das atribuições definidas englobam aspectos da prática clínica do farmacêutico.

Nesse contexto, surgiu a perspectiva de parceria entre o município e a IES, a partir de uma demanda da coordenação do NASF de que a universidade realizasse a capacitação dos farmacêuticos para atuação clínica. Essa demanda também era percebida pela universidade, uma vez que muitos dos profissionais atuam como preceptores das disciplinas relacionadas ao eixo cuidado em saúde e, portanto, era necessário que os conceitos teóricos ensinados em sala de aula estivessem alinhados com a prática exercida pelos farmacêuticos no serviço de saúde.

A equipe da universidade envolveu quatro docentes que lecionavam e colaboravam em disciplinas relacionadas ao eixo cuidado em saúde e que pesquisam na área de educação farmacêutica e de profissionais de saúde; dois técnicos administrativos em educação responsáveis pela supervisão de estágios na área clínica e sete estudantes do curso de Farmácia, sendo três estudantes bolsistas de extensão, dois estudantes bolsistas de iniciação científica e duas estagiárias da farmácia universitária.

Experiência educacional

Os objetivos de ensino-aprendizagem foram definidos de maneira colaborativa durante a realização de um grupo focal com os farmacêuticos, previamente ao início das ações. Percebeu-se que os profissionais mantinham uma estreita relação farmacêutico-paciente em suas práticas assistenciais e interação interprofissional na elaboração dos planos de cuidado e discussão de casos nas reuniões de matriciamento, reforçando aspectos relacionados à habilidade de comunicação. Diante disso, essa demanda não foi apresentada como necessidade a ser explorada ao longo do curso. Por outro lado, relataram realizar a prática com foco no reforço à adesão medicamentosa, sem sistematização do processo de tomada de decisão baseado em raciocínio clínico e saúde baseada em evidências. Isso é resultado de lacunas dos currículos de graduação, ao longo tempo de formação e à falta de estratégias de qualificação profissional. Assim, o principal objetivo de ensino-aprendizagem definido foi desenvolver competências para o processo de cuidado e o processo racional de tomada de decisões em farmacoterapia (SILVA ., 2018aSILVA, D. Á. M. et al. A prática clínica do farmacêutico no Núcleo de Apoio à Saúde da família. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 659-682, ago. 2018a. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00108.).

As abordagens metodológicas desenvolvidas ao longo do curso incluíram estudos de caso com participação de toda a equipe, utilizando o laboratório de informática da instituição de ensino para facilitar a construção e a busca em fontes de evidências (ASSIS ., 2018ASSIS, L. N. et al. Integração Universidade - Serviço de Saúde - Comunidade: Formação em Atenção Farmacêutica para Preceptores do Curso de Farmácia da UFJF-GV. In: 13º. Congresso Internacional da Rede Unida, 2018, Manaus. Anais do 13º. Congresso Internacional da Rede Unida. Manaus: Rede Unida, 2018.; GALDEANO; ROSSI; ZAGO, 2003GALDEANO, L. E.; ROSSI, L. A.; ZAGO, M. M. F. Roteiro instrucional para a elaboração de um estudo de caso clínico. Rev. Latino-Am. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 11, n. 3, p. 371-375, jun. 2003. https://doi.org/10.1590/S0104-11692003000300016.). Os casos envolviam os problemas de saúde mais prevalentes na APS (hipotireoidismo, hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus e dislipidemia). Para propiciar o desenvolvimento de competências relacionadas à identificação das necessidades farmacoterapêuticas do paciente para a tomada de decisão em farmacoterapia utilizou-se o arcabouço teórico-metodológico da atenção farmacêutica, que embasa a oferta do serviço de gerenciamento da terapia medicamentosa (CIPOLLE; STRAND; MORLEY, 2012CIPOLLE, R. J; STRAND, L. M.; MORLEY, P. C. Pharmaceutical care practice: the patient-centered approach to Medication Management Services. 3rd ed. New York: McGraw-Hill; 2012. 697 p.). Nesse sentido, no curso eram utilizados casos clínicos com nível de complexidade menor do que os experienciados na prática para que os farmacêuticos pudessem desenvolver a compreensão das informações necessárias a serem obtidas na avaliação inicial do paciente. Foram contemplados: conhecimento do conceito de experiência subjetiva com o uso de medicamentos e de saúde baseada em evidências; manejo de fontes de informação em farmacoterapia; conexão de dados clínicos, subjetivos e evidências científicas para tomada de decisão; elaboração de planos de cuidado colaborativos entre o farmacêutico, o paciente e a equipe de saúde; definição de parâmetros de efetividade e segurança para monitoramento da farmacoterapia. Foi utilizado o modelo de documentação da prática da atenção farmacêutica proposto por Cipolle, Strand e Morley (2012) e disponível em português em Ramalho de Oliveira, 2011RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Atenção Farmacêutica: da filosofia ao gerenciamento da terapia medicamentosa, compreendendo o conceito, humanizando o cuidado e revolucionando a prática. 1st ed. São Paulo: RCN Editora; 2011.. Tal instrumento, além de permitir documentar a prática, possibilita ao iniciante guiar a coleta de dados clínicos necessários para a avaliação integral da farmacoterapia. Ainda, utilizou-se ambiente virtual de aprendizagem para envio de atividades, discussão em fóruns de debate, esclarecimentos de dúvidas e envio de material para leitura complementar.

O curso teórico-prático em atenção farmacêutica se desenvolveu em quatro encontros, sendo um encontro por mês com duração de 4h cada, caracterizados pela resolução e discussão de casos clínicos e da gestão da prática e apoiados por um ambiente virtual de aprendizagem para atividades entre os encontros. Em seguida, foi planejada uma fase de apoio técnico-pedagógico para sistematização da prática (apoio in loco), previsto para ser realizado com todos os farmacêuticos. Porém, devido a fatores relacionados à gestão do serviço de saúde e ao processo de trabalho dos farmacêuticos, abordados adiante, somente um farmacêutico foi acompanhado (ASSIS ., 2018ASSIS, L. N. et al. Integração Universidade - Serviço de Saúde - Comunidade: Formação em Atenção Farmacêutica para Preceptores do Curso de Farmácia da UFJF-GV. In: 13º. Congresso Internacional da Rede Unida, 2018, Manaus. Anais do 13º. Congresso Internacional da Rede Unida. Manaus: Rede Unida, 2018.).

Avaliação da experiência educacional

Esta seção discorrerá sobre a avaliação da experiência educacional. As falas que representam as categorias aqui descritas estão compiladas no Quadro 1.

Quadro 1
Falas que representam as categorias descritas

Os farmacêuticos que participaram da experiência educacional mostraram-se satisfeitos com a proposta. Reforçaram que, por ter sido construída de forma colaborativa, ela atendeu adequadamente suas demandas de aprendizado, que foram identificadas ao confrontar sua prática no NASF ao arcabouço teórico-metodológico da atenção farmacêutica. Ao longo do curso, participando ativamente dos encontros presenciais, manifestaram verbalmente sua satisfação e entusiasmo com as atividades. O método de estudo de casos foi percebido como adequado pelos participantes, que referiram que os casos contemplavam problemas de saúde e medicamentos de uso corrente em seu cenário de prática, despertando-lhes interesse.

Um aspecto negativo observado foi a baixa adesão dos participantes às atividades propostas em ambiente virtual de aprendizagem. A principal justificativa a este respeito referiu-se à falta de tempo para estudos na rotina de trabalho e à inviabilidade, por questões pessoais diversas, de realizar tal estudo fora do horário de trabalho.

Desenvolvimento de percepção e atitudes (nível 2a) e de conhecimentos e habilidades (nível 2b)

O emprego do método de estudo de casos no curso teórico-prático possibilitou que as competências pretendidas (conhecimentos, habilidades e atitudes) fossem desenvolvidas com base nos problemas de saúde mais comuns entre os pacientes assistidos na APS. Um ponto negativo ressaltado pelos participantes foi a baixa complexidade dos casos utilizados no curso em comparação com os casos dos pacientes que lhes são encaminhados, geralmente envolvendo muitos medicamentos e problemas biopsicossociais. Porém, houve concordância em continuar o curso com casos de menor complexidade, dado o contexto de aprendizagem inicial do raciocínio clínico e do manejo da literatura científica.

Ao longo dos encontros no curso teórico-prático, os farmacêuticos foram confrontados com casos clínicos e precisavam avaliar as informações disponíveis sobre o paciente para tomada de decisão em farmacoterapia. Utilizando o modelo de prontuário proposto na fase de estudo de caso, os profissionais desenvolveram conhecimento sobre as informações a serem coletadas na anamnese, no exame físico e em exames laboratoriais, além de habilidade para documentar a prática. Nas entrevistas, eles relataram a percepção da necessidade de aprimorar a obtenção de informações com o paciente até então realizada em seus cotidianos, visando a realizar uma anamnese mais completa. Levantaram ainda o questionamento sobre a aplicabilidade do modelo de prontuário proposto à realidade de suas rotinas de trabalho, fazendo apontamentos sobre as limitações de tempo para o completo preenchimento deste. O apoio in loco, que possibilitaria o desenvolvimento dessa habilidade, foi realizado apenas com um dos farmacêuticos e de forma pontual, tendo sido descontinuado. Assim, não foi possível avaliar o desenvolvimento dessa habilidade.

Os casos clínicos elaborados pela equipe da universidade exploravam aspectos do conceito de experiência subjetiva com o uso de medicamentos (REDMOND ., 2019REDMOND, S. et al. Development, Testing and Results of a Patient Medication Experience Documentation Tool for Use in Comprehensive Medication Management Services. Pharmacy, v. 7, p. 71, 2019. https://doi.org/10.3390/pharmacy7020071; SHOEMAKER ., 2011SHOEMAKER, S. et al. The Medication Experience: Preliminary Evidence of its Value for Patient Education and Counseling on Chronic Medications. Patient Education and Counseling, v. 83, p. 443-450, 2011. https://doi.org/10.1016/j.pec.2011.02.007.; SHOEMAKER; RAMALHO DE OLIVEIRA, 2007SHOEMAKER, S. J.; RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Understanding the meaning of medications for patients: The medication experience. Pharmacy World & Science, v. 30, p. 86-91, 2007. https://doi.org/10.1007/s11096-007-9148-5.). Conhecimentos, expectativas, medos e comportamentos dos pacientes frente ao uso de medicamentos foram incluídos nos casos. Além disso, houve sugestão de leituras sobre esse aspecto teórico para embasar a formação dos profissionais. Eles reconheceram várias características de pacientes reais, os quais acompanhavam, nos pacientes dos casos fictícios. Perceberam a necessidade de considerar a subjetividade do paciente no processo de tomada de decisão em farmacoterapia. Ao longo das discussões sobre este conceito, ficou evidente que o foco do trabalho dos farmacêuticos até então estava voltado para a adesão ao tratamento, sem considerar a experiência subjetiva com o uso de medicamentos. A este respeito, nas entrevistas, os farmacêuticos enfatizaram a necessidade de informar ao paciente sobre seu problema de saúde e sobre a farmacoterapia para que ele pudesse participar ativamente de seu tratamento, demonstrando compreensão de um dos aspectos importantes da experiência subjetiva: o conhecimento do paciente sobre sua farmacoterapia. Não foi observada a incorporação plena do conceito e sua aplicação na prática devido à não realização da fase de apoio in loco prevista.

No primeiro encontro para estudo de caso clínico, os farmacêuticos foram estimulados a relatar sobre as fontes de informação que utilizavam em sua prática clínica. A realidade revelada foi a baixa utilização de fontes confiáveis e atualizadas e a falta de conhecimentos sobre saúde baseada em evidências. Não estavam habituados a utilizar diretrizes propostas pelo Ministério da Saúde (como, por exemplo, os Cadernos de Atenção Básica). Também não tinham conhecimento sobre bases de dados para acesso a monografias atualizadas dos medicamentos (Micromedex®), como as que estavam disponíveis à época do curso por meio de parceria do Ministério da Saúde com os conselhos profissionais (Portal Saúde Baseada em Evidências). Assim, a cada caso estudado, os profissionais utilizaram o laboratório de informática da universidade para acessar, avaliar e empregar informações técnico-científicas na resolução dos casos. Tutoriais para uso de tais ferramentas foram disponibilizados no ambiente virtual de aprendizagem, possibilitando que os farmacêuticos pudessem realizar o acesso de computadores em seus locais de trabalho. Este aprendizado foi muito valorizado pelos participantes, aparecendo em diversos relatos dos diários de campo e nas entrevistas. Eles desenvolveram a percepção sobre a necessidade de manter estudos sobre farmacoterapia de forma permanente para o bom desempenho profissional. Apontaram os benefícios potenciais de novas parcerias com a universidade a esse respeito.

O acesso a esse novo universo de informações, tanto clínicas e subjetivas dos pacientes quanto evidências científicas, exigiu um esforço para racionalizar o tempo, acessar as informações essenciais e tomar decisões sobre a farmacoterapia dentro do período de realização do encontro. Para isso, os profissionais foram estimulados a consultar constantemente a classificação de problemas relacionados ao uso de medicamentos e suas possíveis causas (RAMALHO DE OLIVEIRA, 2011RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Atenção Farmacêutica: da filosofia ao gerenciamento da terapia medicamentosa, compreendendo o conceito, humanizando o cuidado e revolucionando a prática. 1st ed. São Paulo: RCN Editora; 2011.), acessando e conectando as informações necessárias para excluir, causa a causa, cada problema. Tal estratégia repetiu-se em todos os encontros para resolução de casos clínicos, tendo sido bem-sucedida, já que os profissionais conseguiam identificar e propor resoluções plausíveis para os problemas propostos nos casos. Porém, foi observado que os participantes não incorporaram integralmente tal raciocínio, pois mantinham em suas falas ênfase nas interações medicamentosas, nas reações adversas e nos problemas de adesão quando se referiam aos problemas enfrentados pelos seus pacientes. Acreditamos que o desenvolvimento desta competência e sua incorporação na prática profissional teriam sido bem-sucedidos se a fase de apoio in loco tivesse ocorrido. Os farmacêuticos empregariam tal raciocínio para pacientes reais, sob sua responsabilidade. Levariam os casos para discussão na universidade. Seriam expostos a casos de vários colegas nos encontros do grupo de estudos proposto inicialmente.

Seguindo a mesma lógica do aprendizado sobre o processo racional de tomada de decisões em farmacoterapia, os profissionais também foram bem-sucedidos na elaboração de planos de cuidado para os problemas de saúde dos pacientes dos casos fictícios. Pautaram-se no modelo de documentação da prática proposto, que detalha didaticamente cada elemento de um plano de cuidado (RAMALHO DE OLIVEIRA, 2011RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Atenção Farmacêutica: da filosofia ao gerenciamento da terapia medicamentosa, compreendendo o conceito, humanizando o cuidado e revolucionando a prática. 1st ed. São Paulo: RCN Editora; 2011.). A consulta às fontes de informações permitiu a proposição de intervenções adequadas, assim como de objetivos terapêuticos coerentes. Já quanto à definição de parâmetros de efetividade e de segurança para monitorar a farmacoterapia, houve dificuldade em detalhar sinais, sintomas e exames laboratoriais que seriam necessários para avaliar cada parâmetro. Restringiram-se a listar os parâmetros sem, contudo, apontar a forma como seriam clinicamente avaliados. Durante as correções dos casos clínicos, receberam retorno sobre essa limitação, porém, sem avançar muito no desenvolvimento dessa competência no decorrer do curso.

Mudança de comportamento (nível 3)

As principais barreiras enfrentadas nessa experiência dizem respeito à gestão do trabalho dos farmacêuticos, que sofreu influência de problemas na gestão do sistema municipal de saúde à época, com alta rotatividade de secretários de saúde e respectiva equipe gestora. No momento em que a experiência avançaria para o apoio in loco, como resultado de decisões de novos gestores, algumas farmacêuticas deixaram de atuar no NASF e passaram a ser responsáveis pela dispensação de medicamentos em uma unidade de saúde, outras passaram a compor novas equipes de NASF, tendo que construir novos vínculos com as equipes de saúde e pacientes, e outra assumiu cargo de gestão no hospital público da cidade. Outros dois planejavam desligar-se do vínculo de trabalho (contrato), buscando melhores oportunidades profissionais. Tudo isso inviabilizou que a iniciativa de parceria fosse concluída com sucesso, impactando negativamente nos resultados da experiência educacional – consequentemente, na formação de novos farmacêuticos – e pior, na assistência aos pacientes que deixaram de ser beneficiados tanto pelos atendimentos dos farmacêuticos quanto pela equipe da universidade e futuros estudantes estagiários.

Quanto à aplicabilidade das competências iniciais desenvolvidas em sua prática, os farmacêuticos apontaram dificuldades relacionadas ao tempo e à escassez de recursos. Afirmaram haver falta tempo em suas rotinas para realizar atendimentos com abordagem holística e integral e para a documentação dos mesmos. Referiram-se às demais atividades assistenciais e de saúde coletiva que realizavam, assim como às atividades inespecíficas que lhes são atribuídas frequentemente (que poderiam ser executadas por outros profissionais de saúde ou mesmo por pessoal com formação técnica de nível médio). Um dos farmacêuticos, em sua entrevista, defendeu a necessidade de “haver outro farmacêutico no NASF apenas para oferecer o serviço de gerenciamento da terapia medicamentosa” (farmacêutico em entrevista individual). Apontaram, ainda, a falta de infraestrutura, pois precisam dividir consultórios nas unidades de saúde com outros profissionais de saúde. Reconhecem a necessidade de reorganização de seus processos de trabalho e de apoio da gestão para que suas metas pudessem ser revistas.

Discussão

O cenário de mudanças no sistema de saúde, na prática profissional e na educação farmacêutica, embora desafiador, propiciou a aproximação dos atores envolvidos na gestão e na assistência à saúde e no ensino em Farmácia (SILVA ., 2020SILVA, H. G. N.; OLIVEIRA, B. C. de; SANTOS, L. E. S. dos; CLARO, M. de L. O papel social da Universidade mediante integração ensino-serviço-comunidade no Brasil: revisão sistemática e metassíntese. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 26, p. 1-19, 2020. https://doi.org/10.26512/lc.v26.2020.31262; RAMALHO DE OLIVEIRA, 2011RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Atenção Farmacêutica: da filosofia ao gerenciamento da terapia medicamentosa, compreendendo o conceito, humanizando o cuidado e revolucionando a prática. 1st ed. São Paulo: RCN Editora; 2011.; BRASIL, 2017BRASIL. Resolução nº 6 do CNE/CES, de 19 de outubro de 2017. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia. Brasília: Conselho Nacional de Educação. Diário Oficial da União. Brasília, out. 2017.). Tal aproximação, mesmo tendo apresentado pontos de fragilidade, é promissora na consolidação do SUS, da atuação do farmacêutico no cuidado em saúde e da nova formação em Farmácia. O contexto político-pedagógico foi favorável ao desenvolvimento da ação de educação permanente descrita neste estudo, tendo sido possível, em primeiro lugar, pela instalação de um campus da universidade no interior do estado, decorrente da política de interiorização das universidades federais (CAMARGO; ARAÚJO, 2018CAMARGO, A. M. M. de; ARAÚJO, I. M. Expansão e interiorização das universidades federais no período de 2003 a 2014: perspectivas governamentais em debate. Acta Scientiarum. Education, v. 40, n. 1, p. e37659, 2 fev. 2018. https://doi.org/10.4025/actascieduc.v40i1.37659) e também pelos instrumentos que formalizam a integração ensino-serviço-comunidade na formação de profissionais de saúde, como o COAPES, decorrente das políticas indutoras da formação em saúde integrada ao SUS (GONÇALVES ., 2019GONÇALVES, C. B. et al. A retomada do processo de implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde no Brasil. Saúde Debate, v. 43, n. 1, p. 12-23, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/0103-11042019s101). Ressalta-se que tais políticas foram fomentadas no Brasil nos anos anteriores ao início desta experiência educacional, estando nos últimos anos sendo fragilizadas pela redução nos investimentos federais em saúde e educação (ROSSI; DEWECK, 2016ROSSI, P.; DWECK, E. Impactos do Novo Regime Fiscal na saúde e educação. Cad Saude Publica, v. 32, n. 2, p. 1-5, 2016. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00194316).

Os dados obtidos neste estudo apontam para a existência de falhas nos currículos de graduação em Farmácia em que os profissionais foram formados. Os participantes do estudo revelaram que não sabiam, por exemplo, acessar, avaliar e empregar conhecimentos técnico-científicos atualizados sobre a farmacoterapia dos problemas de saúde mais prevalentes na APS, as quais são competências básicas para a prática clínica farmacêutica. Falhas como essas são passíveis de superação graças às mudanças na educação farmacêutica impulsionadas pelas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Farmácia (BRASIL, 2017BRASIL. Resolução nº 6 do CNE/CES, de 19 de outubro de 2017. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia. Brasília: Conselho Nacional de Educação. Diário Oficial da União. Brasília, out. 2017.). Porém, é preciso garantir o aprimoramento profissional de farmacêuticos formados nos currículos anteriores à implementação de tais diretrizes, que representam um enorme contingente de profissionais. Assim, a oferta de programas de educação permanente para esse público é relevante e necessária, possibilitando melhorias no exercício profissional e, consequentemente, na segurança dos pacientes beneficiários da prática farmacêutica.

Dada a defasagem na formação para a prática clínica, a experiência educacional investigada neste estudo abriu novos caminhos para os farmacêuticos, promovendo o desenvolvimento inicial das competências clínicas pretendidas. O método de estudo de caso mostrou-se efetivo na perspectiva dos participantes. Eles destacaram que o curso resultou em mudanças na percepção sobre a própria prática. Como dito por Ceccim (2005, p. 111), a ação de educação permanente possibilitou “construir espaços coletivos para a reflexão e avaliação de sentido dos atos produzidos no cotidiano”. Além disso, as mudanças nas atitudes, nos conhecimentos e nas habilidades necessárias para a prática clínica numa perspectiva integral e centrada no paciente apontam a potência da educação permanente em saúde desenvolvida. Construir a ação a partir da realidade dos profissionais e engajá-los no processo educativo de forma ativa foram fatores que levaram à motivação dos farmacêuticos para participação na ação educativa. O emprego de referenciais pedagógicos inovadores é recomendado pela PNEPS e enfatizado por Gigante e Campos (2016GIGANTE, R. L.; CAMPOS, G. W. de S. Política de formação e educação permanente em saúde no Brasil: bases legais e referências teóricas. Trab Educ Saude, v. 14, n. 3, p. 747-63, 2016. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00124, p. 759), com destaque para “a aprendizagem significativa, o processo de aprender a aprender e a eleição dos problemas do cotidiano como fonte de aprendizagem”. Os métodos pedagógicos tradicionais não são capazes de promover as mudanças necessárias na formação em saúde, em especial no campo da educação permanente dos trabalhadores (CARVALHO; MERHY; SOUSA, 2019CARVALHO, M. S. de; MERHY, E. E.; SOUSA, M. F. de. Repensando as políticas de Saúde no Brasil: Educação Permanente em Saúde centrada no encontro e no saber da experiência. Interface: comunic, saúde, educ., v. 23, p. 1-12, 2019. https://doi.org/10.1590/Interface.190211). Ademais, a ruptura de muros viabilizando a presença dos farmacêuticos nos espaços da universidade favoreceu que o aparelho formador pudesse desempenhar seu papel previsto na PNEPS, de apoiador da ativação de mudança na prática profissional, para que esta seja integral e resolutiva (BRASIL, 2004BRASIL. Portaria GM/MS nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 14 fev. 2004.).

A falta da fase de apoio in loco, inicialmente prevista, prejudicou o aprimoramento das competências pretendidas e reduziu o potencial de mudanças na prática dos profissionais. Segundo a teoria da aprendizagem experiencial, a construção do conhecimento se dá a partir da experiência, perpassando a reflexão e a teorização, com retorno à prática para experimentação ativa de conceitos e hipóteses elaborados (KOLB, 2015KOLB, D. A. Experiential learning: experience as the source of learning and development. New Jersey: Pearson Education, 2015.; MENDONÇA; FREITAS; RAMALHO DE OLIVEIRA, 2017MENDONÇA, S. de A. M.; FREITAS, E. L. de; RAMALHO DE OLIVEIRA, D. Competencies for the provision of comprehensive medication management services in an experiential learning project. PLoS One, v. 12, p. e0185415, 2017. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0185415.). Carvalho, Merhy e Sousa (2019), em análise sobre iniciativa governamental de formação em educação permanente em saúde, destacam a importância dos afetos produzidos nos territórios, propondo que se vá além dos processos educativos formais, buscando “explorar a potência dos encontros no mundo do trabalho a partir da EPS que acontece em si e no cotidiano dos serviços de saúde” (CARVALHO; MERHY; SOUSA, 2019, p.5).

Para Ceccim (2005), a percepção “(d)os desconfortos experimentados no cotidiano do trabalho” é indispensável para a mudança na prática dos profissionais de saúde. Para o referido autor, “esse desconforto ou percepção de abertura (incerteza) tem de ser intensamente admitido, vivido, percebido. Não se contata o desconforto mediante aproximações discursivas externas” (CECCIM, 2005CECCIM, R. B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface: comunic, saúde, educ., v. 9, n. 16, p. 161-77, set.2004/fev.2005. https://www.scielosp.org/article/icse/2005.v9n16/161-168/pt/, p.165). Nesse sentido, é compreensível que a falta da fase de apoio in loco tenha prejudicado que os aprendizados desenvolvidos no curso teórico-prático pudessem se refletir em mudanças nos processos de trabalho dos profissionais. Experiências bem-sucedidas de desenvolvimento de competências para a prática clínica por farmacêuticos da APS empregaram a prática reflexiva (SILVA ., 2017SILVA, D. Á. M. et al. Autoethnography as an Instrument for Professional (Trans)Formation in Pharmaceutical Care Practice. The Qualitative Report (on-line), v. 22, p. 2926-2942, 2017. https://nsuworks.nova.edu/tqr/vol22/iss11/6.; 2018b) e modelos que interconectam teoria e prática tutoreada no serviço de saúde (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Capacitação para implantação dos serviços de clínica farmacêutica. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 308 p.), como era pretendido pela equipe da experiência sob investigação.

Dificuldades para a plena realização da experiência educacional foram resultantes de problemas na gestão do trabalho dos farmacêuticos num contexto mais amplo de problemas na gestão em saúde do município. Houve sobrecarga de trabalho, com excesso de atividades e, ao mesmo tempo, subutilização do potencial de atuação do farmacêutico no cuidado em saúde. Nas palavras de Carvalho, Merhy e Sousa (2019, p. 7), “o excesso de trabalho, o mecanicismo e a visão capitalista de saúde na lógica de consumista de produtos e serviços de saúde fazem com que o trabalho em saúde venha se afastando desse lugar de experimentar a potência dos encontros e assim produzir conhecimentos”. Desta forma, reforça-se que é preciso respaldo institucional, com garantia de tempo protegido para as ações de educação permanente, como previsto na PNEPS (BRASIL, 2004BRASIL. Portaria GM/MS nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 14 fev. 2004.; 2007BRASIL. Portaria GM/MS nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Diário Oficial da União. Brasília, 20 ago. 2007.).

Essa realidade evidencia a necessidade de articulações que envolvam não só a universidade, os trabalhadores em saúde e os gestores, como ocorreu nessa experiência, mas também, e de forma efetiva, a comunidade. Não nos referimos à comunidade exclusivamente como beneficiária das ações de saúde e de educação, mas como participante do planejamento e acompanhamento das ações, por meio do controle social (SILVA; PASSADOR, 2018SILVA, E. A.; PASSADOR, C. S. Gestão da saúde pública em Minas Gerais sob a ótica dos conselhos gestores municipais. REAd. Rev. eletrôn. adm., Porto Alegre, v. 24, n. 2, p. 50-82, ago. 2018b. https://doi.org/10.1590/1413-2311.207.83020.). A fragilidade dos sistemas municipais de saúde, os quais sofrem influência dos interesses de grupos que exercem o poder político local, pode ser superada pelo engajamento da comunidade na gestão tanto do sistema de saúde e quanto das parcerias entre universidade e serviço de saúde (CECCIM; FEUERWERKER, 2004CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, Jun. 2004. https://doi.org/10.1590/S0103-73312004000100004.; ELLERY; BOSI; LOIOLA, 2013ELLERY, A. E. L.; BOSI, M. L. M.; LOIOLA, F. A. Integração ensino, pesquisa e serviços em saúde: antecedentes, estratégias e iniciativas. Saude soc., São Paulo, v. 22, n. 1, p. 187-196, mar. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000100017.). A efetiva articulação entre universidade, trabalhadores e gestores da saúde e comunidade representa grande potencial para a materialização da PNEPS e para o sucesso de futuras iniciativas de formação de preceptores (CECCIM; FEUERWERKER, 2004CECCIM, R. B.; FEUERWERKER, L. C. M. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 41-65, Jun. 2004. https://doi.org/10.1590/S0103-73312004000100004.).

Outro aspecto relevante percebido é a precarização dos vínculos de trabalho revelando-se como dificultador para o sucesso de parcerias educacionais que pretendem promover mudanças na prática. Os farmacêuticos do estudo tinham vínculo precário com o sistema de saúde, o que levou à rotatividade de profissionais ao longo dos poucos meses de oferta do curso. Assim, os esforços empreendidos não foram revertidos em benefícios para o sistema de saúde, a universidade e a comunidade em questão (EBERHARDT; CARVALHO; MUROFUSE, 2015EBERHARDT, L. D.; CARVALHO, M. de; MUROFUSE, N. T. Vínculos de trabalho no setor saúde: o cenário da precarização na macrorregião Oeste do Paraná. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 18-29, mar. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/0103-110420151040432.; DAMASCENA; VALE, 2020DAMASCENA, D. M.; VALE, P. R. L. F. do. Tipologias da precarização do trabalho na atenção básica: um estudo netnográfico. Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00273104., 2020. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00273.). Desta forma, ressalta-se que a formação profissional não é suficiente para garantir mudanças na prática, havendo necessidade do fomento de diretrizes institucionais e políticas públicas que subsidiem e respaldem as inovações pretendidas (BRASIL, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Capacitação para implantação dos serviços de clínica farmacêutica. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 308 p.; ARAÚJO, 2016ARAÚJO, P. S. Política de Assistência Farmacêutica: a questão da atenção farmacêutica no SUS. Tese de doutorado. Universidade Federal da Bahia, 2016.; ARAÚJO et al., 2017), evitando assim a subutilização do farmacêutico como profissional de nível superior no serviço de saúde, como relatado pelos participantes neste estudo.

Por se tratar de um estudo qualitativo, que pretende revelar em profundidade um fenômeno situado e local, não é possível a generalização dos dados, mas sim sua transferabilidade para cenários semelhantes. Adicionalmente, a curta duração da pesquisa, cujos dados foram coletados durante e logo após o término da ação de educação permanente sob investigação, inviabilizou que pudessem ser avaliadas mudanças organizacionais ou benefício para pacientes/usuários (níveis 4a e 4b do modelo adaptado de Kirkpatrick) decorrentes da experiência educacional.

Conclusões

A ação de educação permanente investigada demonstrou-se satisfatória tanto na perspectiva dos farmacêuticos quanto da equipe da universidade. Salienta-se que a integração universidade – serviço de saúde criou cenário político-pedagógico positivo, influenciando o acesso aos profissionais e a realização da ação. Foi notória a motivação dos farmacêuticos na ação de educação permanente pela metodologia utilizada e por sua participação ativa no planejamento da mesma.

Ressalta-se que, embora os participantes tenham se engajado no processo de formação e desenvolvido competências iniciais para o cuidado ao paciente, foram identificados desafios para a aplicação de tais competências em suas rotinas na atenção primária. Esses desafios podem estar relacionados, além de outros fatores, à mudança recorrente na gestão em saúde do município, à alta rotatividade de farmacêuticos com vínculos de trabalho precários, sobrecarga de trabalho dos mesmos e falta de tempo protegido para ações de educação permanente na rotina dos profissionais. Neste sentido, recomenda-se que a realização de novas parcerias entre universidade e serviço de saúde envolvam ativamente a comunidade por meio do controle social, de forma resguardar os pressupostos da PNEPS.

Apesar desses aspectos negativos, ainda assim foram observados efeitos positivos do curso como desenvolvimento de raciocínio clínico, uso de fontes de informação sobre medicamentos confiáveis, desenvolvimento de habilidade de tomada de decisões em farmacoterapia e cuidado centrado na pessoa. Tais achados apontam para a potência da ação de educação permanente realizada.

  • 1
    Pesquisa financiada pelo Programa Pesquisa para o SUS (PPSUS/MS/CNPq/FAPEMIG - 2017) e pela Pró-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2020
  • Aceito
    16 Mar 2023
  • Revisado
    07 Jan 2022
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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