Preâmbulo
Esta entrevista foi realizada remotamente por meio da plataforma Zoom, em 9 de agosto de 2021. Contou com a presença dos pesquisadores efetivos do grupo de pesquisa, de seus orientandos e público em geral com inscrição prévia dos Seminários Segundas do Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva - CASCA, da Universidade de Brasília (UnB). Daniela Knauth nos brindou com uma conversa sobre a pesquisa qualitativa em saúde. Trouxe à tona uma reflexão sobre a pesquisa social ou pesquisa em Ciências Sociais e Humanas em Saúde.
Esse tipo de investigação, cujo aporte teórico decorre das Ciências Sociais, tem sido muito utilizado nos campos de pesquisa e prática da Saúde Pública ou Saúde Coletiva, como é chamado no Brasil. Muitas são as indagações e leituras de sua condução dentro desses campos. Dessa maneira, para adensarmos a produção teórica sobre o campo, apresentamos a experiência dessa renomada antropóloga e professora brasileira, que junto do Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva, a CASCA, da Universidade de Brasília (UnB), nos falou sobre suas leituras, impressões e dilemas do campo da pesquisa qualitativa em saúde, tecendo comentários sobre teoria, experiências de ensino e pesquisa, tendo seu livro “A pesquisa qualitativa em saúde” como norteador das falas e reflexões apresentadas.
Daniela Knauth é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq nível 2. Graduada em Ciências Sociais e Mestre em Antropologia Social pela UFRGS. Tem Doutorado em Etnologia e Antropologia Social pela École des Hautes Études em Sciences Sociales, na França. Atualmente, é professora titular do Departamento de Medicina Social na UFRGS, docente e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da mesma Universidade. Coordenou o grupo de trabalho Gênero e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e tem experiência nas áreas de Antropologia do Corpo e de Saúde coletiva, atuando principalmente nos seguintes temas: sexualidade, saúde reprodutiva, Aids, gênero e juventude.
Partindo de sua experiência pessoal e profissional, enquanto antropóloga, docente e investigadora no campo da Saúde Coletiva, dada a riqueza do diálogo estabelecido, transformamos a entrevista em texto, almejando expandir seu alcance.
Por Daniela Knauth
Vida profissional: formação e caminhos
Gosto de dialogar com pessoas de diferentes experiências e formações. Isso marcou minha trajetória. Me incomoda falar apenas para os meus pares. É um desafio. Sou antropóloga de formação e cientista social, fazendo toda a minha trajetória nessa área. Sou professora no Departamento de Medicina Social numa Faculdade de Medicina. Vou explicar como é que eu cheguei, onde eu estou, os desafios que tenho enfrentado, e coisas que eu acho interessante, nessa perspectiva da questão metodológica.
Quando fui fazer o meu mestrado na área de Antropologia, no PPG de Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, eu e uma outra colega (Ceres Victora), não nos conhecíamos, mas tínhamos interesse em trabalhar com saúde. Me influenciou uma bolsa de iniciação científica que tive na graduação, quando trabalhei com um professor que atuava no campo médico, e a Ceres Victora11Professora titular do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS). Coordena o Núcleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS). Graduada em Ciências Sociais e mestrado em Antropologia Social pela UFRGS e doutorado em Antropologia na Brunel University. Foi pesquisadora na Johns Hopkins University (2011) e na Georgetown University (2020). Experiente na área de antropologia da saúde, nos temas: corpo, gênero, saúde, emoções, sofrimento social e ética na pesquisa. Disponível em: https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br/ceres-victora já trabalhava com Epidemiologia.
Com o retorno do doutorado da professora Ondina Fachel Leal22PhD em Antropologia, University of California, Berkeley (Leal, O. F. The Gauchos: Male Culture and Identity in the Pampas. PhD dissertation, Department of Anthropology, University of California, Berkeley, 1989) e Pós-Doutorado na área de Antropologia Médica, Havard Medical School, Harvard University (1997). Mestrado (MA) em Antropologia - University of California, Berkeley (1985); Mestrado em Antropologia Social PPGAS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1983); Bacharelado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1980). Professora Titular atualmente aposentada, Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Disponível em: www.lattes.cnpq.br, acesso em 10 de novembro de 2021. na área de Antropologia Médica, criamos o Núcleo de Pesquisa e Antropologia do Corpo e da Saúde, o NUPASC, da UFRGS. Foi um marco importante, pessoal e na antropologia da saúde no Brasil, pois foi um dos primeiros grupos de antropologia da saúde. Havia o grupo liderado pelo Luiz Fernando Dias Duarte,33Formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1972), obteve o mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) e o doutorado em Ciências Humanas pela mesma universidade (1985). Fez pós-doutorado na EHESS, Paris (1991). Atualmente é Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do;jsessionid=E90B34D4437FC835A49B0BD22F4E619E.buscatextual_66, acesso em 10 de novembro de 2021. no Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro), mas não era um núcleo de pesquisa. Ele trabalhava nessa linha, com questões relacionadas à saúde mental. Tinha outro núcleo, da Universidade Federal da Bahia, liderado pelo professor Caroso,44Antropólogo. Professor Titular no Departamento de Antropologia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia-PPGA da FFCH/UFBA. Obteve o Bacharelado em Ciências Sociais (1975) e Mestrado em Ciências Sociais (1980) pela UFBA. MA (1982) e PhD. (1988) em Antropologia pela University of California Los Angeles-UCLA, instituição na qual foi Visiting Associate Professor no Departament of Anthropology e Latin American Studies Center-LASC (9/2001 8/2002). Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do, acesso em 12 de novembro de 2021. na época. Isso no final da década de 80, início da década de 90.
Estávamos influenciadas por duas referências, o livro da Paula Monteiro (MONTEIRO, 1985MONTEIRO, P. Da doença à desordem: a cura mágica na Umbanda. São Paulo: Graal, 1985.), sobre cura religiosa, e o livro da Maria Andrea Loyola (LOYOLA, 1984LOYOLA, M. A. Médicos e curandeiros. Conflito Social e Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Difel, 1984.), do campo médico, intitulado “Médicos e Curandeiros. Conflito Social e Saúde”. Articulamos um grupo com esse interesse, na Sociologia, pois lá já tinha algo mais construído pensando nas políticas de saúde. Daí se articularam grupos de trabalho nas reuniões da ANPOCS e depois nas reuniões da ABA.
Esse foi o primeiro movimento importante, de aproximação entre a Antropologia e as Ciências Sociais com a área da saúde, de trazer a saúde para dentro da antropologia, sendo ela clássica com temáticas tradicionais como religião, política, cultura, mas ainda com frágeis interfaces com as questões de saúde. Trouxemos temas na perspectiva do adoecimento, dos doentes, não só com as políticas de saúde, que era o que estava sendo trabalhado na Sociologia. Foi um trabalho de construção da legitimidade dessa área temática dentro da Antropologia. Porque era uma temática considerada pouco relevante e sofria críticas em relação a essa aproximação com a Medicina e as Ciências Biológicas.
Ao concluir meu mestrado, faço doutorado em 1991, na França com Marc Augé.55Marc Augé é antropólogo. Africanista, realizou pesquisas, sobretudo, na Costa do Marfim e no Togo. Foi presidente da EHESS, no período de 1985 a 1995, onde, atualmente, coordena o Centro de Antropologia dos Mundos Contemporâneos. A partir dos anos 1980, diversificou seus estudos, realizando pesquisas na América Latina e voltando seu interesse para as realidades do mundo contemporâneo, com seus contextos múltiplos e imediatos. Desta preocupação recente, há uma bibliografia que se tornou referência nas ciências sociais - são mais de trinta livros publicados, versando sobre diversos temas tais como: o turismo, os desafios da antropologia, entre outros. In: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1560-2.pdf, acesso em 15 de novembro de 2021 Lá isso era uma questão muito incipiente, e no Brasil não existia essa possibilidade no doutorado. Eu estava em um curso de doutorado tradicional da Antropologia, com as disciplinas tradicionais, mas, com um grupo de alunos vinculados ao professor Marc Augé que tinham recém-terminado seus doutorados e começando a articular estudos nessa área, como Sylvie Fainzang.
Esse campo estava consolidado nos Estados Unidos como Antropologia Médica. Havia muitas críticas dentro da própria Antropologia médica norte-americana por estar ligada à Medicina com ideia de tradução. Quando estou quase terminando o meu doutorado, surge a possibilidade de um concurso nunca imaginado por mim, para o Departamento de Medicina Social, uma seleção, para a área de Ciências Sociais e Saúde.
Eu estava na França e vim fazer o concurso; me aproximei da área da saúde, na perspectiva das Ciências Sociais e da Antropologia. Mas, me deparei com a Saúde Coletiva, desconhecida por mim, mais conhecida por Saúde Pública. Precisei estudar o Movimento da Reforma Sanitária, a conhecer melhor esse campo, por não tê-lo visto na minha formação em Ciências Sociais.
Na Medicina Social: ensino
Aprovada nesse concurso, e chegada ao Departamento de Medicina Social, lido na prática com a saúde pública, conhecendo mais a literatura existente. No meu departamento, só eu e mais uma colega não somos médicas, ao mesmo tempo que sou professora e responsável, desde sempre, por uma disciplina que é obrigatória no curso de Medicina, que se chama Saúde e Sociedade. Começo a pensar nessa comunicação. Como mostrar aos meus colegas e alunos a importância dessa perspectiva de conhecimento antropológico, para a prática clínica?
Os alunos de Medicina são muito pragmáticos: eles querem saber para que serve. E nós antropólogos, nem sempre estamos preocupados com isso. Daí, desenhei uma disciplina com uma nova perspectiva - a de olhar a saúde doença enquanto fenômeno social com aplicação prática.
Todo esse processo de construção social da doença, do corpo, de percepção corporal, de representação sobre as doenças, e como é que aquilo fará diferença quando estiverem ouvindo o paciente e prescrevendo. Fui aprendendo e melhorando. Tinha que ir além da discussão, e ser mais prática. Foi bem legal, pois antes a disciplina era odiada. Fazia-se seleção para monitoria, sem candidaturas, hoje, temos seleção de monitoria com vários candidatos.
Da pesquisa
Vi a necessidade de dialogar com uma pesquisa que é mais hegemônica na saúde sobretudo na área médica, a epidemiológica. Meu departamento tem professores epidemiologistas consolidados, de referência nacional e internacional, e isolada não ia conseguir avançar. Lá, participei de várias pesquisas, com boa recepção, não desprezaram a metodologia qualitativa e sempre buscaram o diálogo. Aprendi muito epidemiologia. Hoje mexo com banco de dados e faço análises estatísticas, coisa que eu não sabia. Mas também trouxe a perspectiva qualitativa. Foi interessante porque ela se espalhou para além do meu departamento, ampliando para vários setores da Faculdade de Medicina.
Quando buscam conhecer a metodologia qualitativa para utilizá-la, me convidam para as equipes de pesquisa. No entanto, ainda é uma dicotomia, área da Antropologia é vista, na Saúde Coletiva, como algo qualitativo, em contraposição à metodologia quantitativa.
Podemos contribuir epistemologicamente na forma de pensar. Atualmente, sou professora do Programa de Pós-Graduação de Epidemiologia, coordenei esse programa de pós-graduação, que é um programa conceito 6.66Conceito 6, nota quase máxima atribuída pela CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Disponível em: https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=capes&ie=UTF-8&oe=UTF-8, acesso em 25 de novembro de 2021. Então, vocês vejam: uma antropóloga coordenando um Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, eu jamais imaginaria que isso iria acontecer. Lá ministro uma disciplina que é um seminário para alunos de doutorado, sobre teoria epidemiológica. Ajudo a pensar sobre a questão teórica. Eles têm um aprendizado da epidemiologia só em termos de técnica de análise de coleta de dados, e a questão teórica da epidemiologia vem das Ciências Humanas e Sociais.
Então, mesmo quando não faço uma pesquisa somente com dados etnográficos, contribuo com pesquisas quantitativas na forma de pensar uma discussão epistemológica. Por outro lado, gosto da pesquisa e acredito na metodologia de pesquisa etnográfica mais qualitativa, porque eu acho que tem coisas só se consegue compreender e aprender nessa perspectiva.
Dados qualitativos, sem referencial teórico, não fazem sentido: não consigo olhar e pensar sobre eles, ou identificá-los, resultando em pesquisas de baixa qualidade o que contribui para visão negativa dos estudos qualitativos.
Precisamos ter cuidado principalmente na formação de pessoas e profissionais que vêm de outras áreas. A gente não pode só ensinar a técnica – como é que se faz uma entrevista, como é que eu faço grupo focal, como é que eu faço uma observação – mas trabalhar as questões teóricas para que as pessoas possam ter, instrumental, para identificar as coisas, para saber o que buscar. Elas têm que ter conceitos, a qualidade da nossa pesquisa está relacionada a isso.
Dentro de alguns segmentos da Antropologia, se pensa que só antropólogos devem fazer pesquisa qualitativa. Tento desmistificar isso, ajudando as pessoas a fazerem outros tipos de pesquisa, a terem uma outra perspectiva. Este livro é o resultado do esforço de tornar mais acessível essa metodologia, porque às vezes ela era uma caixa preta (KNAUTH; VICTORA; HANSSEN, 2000KNAUTH, D.; VICTORA, C.; HANSSEN, M. N. A pesquisa qualitativa em saúde. Uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.). E esse foi um processo que eu e Ceres Victora vivemos: quem é que nos ensinou a fazer isso? Ninguém nos ensinou. Como é que a gente ensina isso? Tenho feito esse esforço de mostrar formas de fazer, que talvez não sejam as únicas, mas são as formas como eu faço. Mas como é que eu ponho esse referencial teórico e leio aqueles dados? Como é que eu faço isso? Ou como é que eu vejo que os dados estão me falando? Como é que eu identifico que se trata de uma representação social nesses dados?
É um processo importante, quando se trabalha metodologia, pensar sobre isso e sobre as formas de fazer. Como eu disse antes, são processos que a gente não aprende numa disciplina. Eu aprendi fazendo, aprendi tanto ao lado da minha orientadora de mestrado, que foi a Ondina Fachel Leal, trabalhando junto, vendo como é que ela fazia, ou, por exemplo, quando eu fui bolsista da professora Cláudia Fonseca.77Claudia Fonseca possui graduação em Letras - University of Kansas (1967), mestrado em Estudos Orientais - University of Kansas (1969), doutorado em Sociologia - École des Hautes Études en Sciences Sociales (1981) e doutorado em Ethnologie - Université de Nanterre (1993). Ou seja, é nesse processo de campo, de olhar dados, de discutir dados, de propor interpretações e de discutir interpretações que a gente vai aprendendo. Isso são processos que não precisam ficar limitados a essa possibilidade individual.
Tive o privilégio de ter a Ondina como orientadora e a Cláudia Fonseca como minha professora, pessoas extremamente generosas. Então, acho que a gente pode, e tenho tentado ajudar nessa perspectiva, tentar discutir e tentar – na prática – mostrar como pode ser feito. Então, eu gosto desses desafios. Falar para os pares sempre gera consenso. Eu gosto de trazer conceitos para as pessoas de outras áreas, que nunca pensaram sobre isso. Então metodologia qualitativa não é só o que um “pesquisador acha”, existe toda uma epistemologia, um referencial teórico por trás.
Eu me desafiei, aprendi a metodologia quantitativa e como dialogar. Eu trabalho bem com estatística. Isso desafia aqueles modelos de análises muito tradicionais – essa é a interface. A área da saúde precisa das diferentes visões. É fundamental entender as questões em termos de prevalência, de importância numérica e compreender como é que aquilo impacta nas trajetórias das questões de estigma e discriminação.
Diálogo com o público: perguntas e respostas
Pergunta 1: Comenta sobre a formação médica no Brasil. Dificuldades de ser professora da disciplina Saúde e Sociedade para essa categoria profissional e como você avalia a formação deles, comparado às necessidades em saúde da população.
Pergunta 2: Que mudanças percebeu nos estudantes quanto a pesquisar a partir da mirada das ciências médicas, do risco ou das populações chaves sobre vulnerabilidade. E se é possível misturar uma pesquisa de métodos quantitativos com uma proposta etnográfica.
Pergunta 3: Tenho dado aulas no Departamento de Saúde Coletiva da UnB desde 2013, e no Departamento do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva mais recentemente. Qual é a nossa relação enquanto pesquisadores das Ciências Humanas, e enquanto antropólogos, especificamente com as outras áreas? Tenho participado de pesquisas quantitativas e de pesquisas clínicas e sou chamado: “o cara do qualitativo”. Eu me pergunto: o que é a nossa especificidade dentro desse universo qualitativo?
Pergunta 4: Peço para exemplificar a didática, para não ficar só nas aulas teóricas. Como que a gente se apresenta como um bom profissional? O que seria qualidade para a gente ser bem aceito? Gostei quando dissestes que a antropologia acha que só antropólogo pode fazer antropologia, ou fazer pesquisa quali, de que a gente é muito fechado, e que a metodologia de pesquisa é uma caixa preta.
Daniela Knauth: Quanto à formação médica no Brasil, inclusive para as necessidades da população, tenho ideia um pouco enviesada porque estou na Faculdade de Medicina da UFRGS. É excelente faculdade, mas hospitalocêntrica, na perspectiva do médico profissional liberal, e em grande parte da formação os alunos passam dentro do hospital.
Com as mudanças curriculares e no corpo docente, mudou a visão dos professores e do hospital, os alunos têm uma perspectiva mais ampliada, com atividades disciplinares nas comunidades. Mudanças no conteúdo quanto em questão de gênero e de raça, que perpassa na formação. Durante muitos anos não tivemos alunos negros. Nos três últimos, as turmas são mais diversas, o que muda todo o grupo, as discussões em sala e as relações com os professores, incluindo questões de preconceito e discriminação.
Tudo isso torna o ensino médico mais adequado às essas necessidades, os alunos de classes sociais e cor de pele diversas trazem e impõem essa necessidade. A gente criou uma disciplina sobre Gênero e Sexualidade na faculdade. Ela ainda é optativa, mas foi uma demanda deles com grande procura e a mais recente que nós estamos começando esse semestre é uma disciplina sobre Relações Étnico Raciais e Saúde. Ainda não temos uma disciplina só sobre população indígena, mas já tem essa demanda. Então, nessa das Relações Étnico-Raciais, nós estamos incluindo essas questões de saúde da população indígena. Essas questões trazidas estão sendo colocadas pelo ingresso dos alunos cotistas.
Em termos da pesquisa e dos questionamentos sobre conceitos, em relação aos conceitos clássicos caros à epidemiologia como o conceito de risco, eu trabalho com alunos de doutorado, com a disciplina Teoria Epidemiológica ou Epistemologia da Epidemiologia. Ela desestabiliza os alunos porque eles nunca pensaram numa perspectiva teórica, o que que está por trás do conceito de risco. E sempre pensaram o risco numa perspectiva só operacional: “Como é que eu calculo o risco, inclusive risco relativo? Qual é o denominador?” Eles não pensam em termos teóricos, para as categorias, a perspectiva individualista que ela tem, as questões da vulnerabilidade, às questões que estão para além da mudança do comportamento individual, dos limites dessa mudança de comportamento individual.
Eu trabalho com o livro da Nancy Krieger, que se chama Epidemiology and the People’s Health: Theory and Context. Eu não digo “o risco é ruim”. Eu mostro como é o conceito, como ele foi construído, quais são as implicações dele, se ele é bom ou ruim cabe à pessoa julgar à medida que eu dou ferramentas para ela pensar sobre isso, eu acho que a gente tende a ter mais sucesso. Temos que cuidar do uso instrumental da metodologia qualitativa. Essa é uma questão importante.
Em termos de Saúde e Sociedade e como eu faço as coisas mais práticas, tem várias coisas. Desde uma observação, em uma situação não familiar, eu mando alguns alunos irem para campo que são as atividades que eles mais gostam e depois eu apresento o estudo. Eu faço várias coisas, trabalho com temáticas. Questões temáticas, assim, a questão do corpo. Mando entrevistarem pessoas obesas, para entender um pouco como é a experiência de viver com esse tipo de corpo, o tipo de preconceito que sente, ou peço para eles irem ao ambulatório de transexualidade, para conhecer, entender, saber, quais são as demandas. Eu sempre tenho alguma atividade prática.
Pergunta 5: Sou professora de Saúde Coletiva, num Departamento de Nutrição, que é bastante clássico biomédico, tentando atuar com enfoque de Antropologia, Ciências Sociais e eu trabalho com políticas públicas, então brinco que sou interdisciplinar e ocupo aí um não lugar. É difícil sensibilizar alunos da graduação para trabalhar com as ferramentas da pesquisa qualitativa, porque a narrativa, a linguagem, o repertório, o pensar quantitativo se reproduz o tempo inteiro.
Pergunta 6: Os graduandos têm um contato pontual ainda, a meu ver, com as Ciências Sociais em saúde. E quando chega no mestrado ou no doutorado eles vêm extremamente angustiados, porque vem a cobrança das disciplinas de metodologia e vem a história da análise do discurso. E é aí que, a gente empobrece a discussão. Há uma cobrança muito tecnicista das outras áreas do como a gente tem que fazer. Mas professora, eu vou olhar a partir de onde e a partir do que? De que maneira eu vou adensar o conhecimento para que eles tenham um óculo mais grosso, no sentido de olhar para aquilo e ir além da técnica, né?
Pergunta 7: Queria ouvir um pouco sobre quais as necessidades mais frequentes que você percebe vindo dos estudantes, das estudantes em sala de aula. Você acha que o diálogo entre áreas continua sendo uma questão levantada por eles também?
Daniela: Eu compartilho R., essa tua aflição, porque eu acho que é isso mesmo... a grande dificuldade que a gente tem, na formação de pessoas para trabalhar com a metodologia qualitativa, é a formação teórica, não é ensinar a fazer entrevista, ou grupo focal, é eles terem leitura suficiente para dar conta da análise, para conseguir olhar as questões. E nos cursos das áreas de saúde, é difícil a gente fazer, porque a gente só tem uma disciplina. Só eu, no curso inteiro. Sem o objetivo na graduação de formar os alunos na metodologia quali. É muito mais simplório, o objetivo é sensibilizar o olhar deles, não é colocar os óculos grosso, que tu falaste, é botar assim os oclinhos que eles consigam ver as questões de gênero, que eles consigam ver as questões étnicos raciais, que eles consigam dar conta do etnocentrismo. Que eles consigam ouvir o outro, então assim, meus objetivos, com a formação na área das Ciências Humanas na graduação é esse: é muito mais sensibilizar os alunos, para eles saírem daquele senso comum, sabe?
A minha experiência, e que tem funcionado bem, é a gente trabalhar num grupo de pesquisa. A gente não está sozinho e eu sou uma pessoa que sempre trabalha em grupo. Para a gente conseguir se legitimar e ter espaços onde a gente possa acolher aqueles alunos que vão se interessar. Então tenho tido uma experiência muito legal.
Outra estratégia é divulgar os dados, o que a gente está fazendo. Porque eu acho que essa é uma outra coisa bem importante e que a gente acaba esquecendo de fazer. A gente tem divulgado nos veículos internos da Universidade, são coisas simples, mas que dá uma visibilidade, que os alunos veem, conhecem, todo um processo que vai andando.
Converso com eles sobre trabalharem em equipes multiprofissionais - quando não aprendem a fazer isso. Há poucos espaços para essa inter-relação. E colocar os alunos na inter-relação funcionam muito bem para os outros cursos, com a Medicina não, são muito sobrecarregados, e sem tempo. A exemplo, temos o que se chamam Práticas Integradas em Saúde, e a ideia é que os alunos de vários cursos frequentem a mesma disciplina.
Às vezes trago estudantes de outras áreas para falar com meus alunos, eles ficam interessados criam relações de contato. Não é uma demanda espontânea, mas a gente criar estratégias para que isso se concretize.
- 1Professora titular do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS). Coordena o Núcleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Saúde (NUPACS/UFRGS). Graduada em Ciências Sociais e mestrado em Antropologia Social pela UFRGS e doutorado em Antropologia na Brunel University. Foi pesquisadora na Johns Hopkins University (2011) e na Georgetown University (2020). Experiente na área de antropologia da saúde, nos temas: corpo, gênero, saúde, emoções, sofrimento social e ética na pesquisa. Disponível em: https://www.ufrgs.br/redecovid19humanidades/index.php/br/ceres-victora
- 2PhD em Antropologia, University of California, Berkeley (Leal, O. F. The Gauchos: Male Culture and Identity in the Pampas. PhD dissertation, Department of Anthropology, University of California, Berkeley, 1989) e Pós-Doutorado na área de Antropologia Médica, Havard Medical School, Harvard University (1997). Mestrado (MA) em Antropologia - University of California, Berkeley (1985); Mestrado em Antropologia Social PPGAS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1983); Bacharelado em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1980). Professora Titular atualmente aposentada, Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Disponível em: www.lattes.cnpq.br, acesso em 10 de novembro de 2021.
- 3Formado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1972), obteve o mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978) e o doutorado em Ciências Humanas pela mesma universidade (1985). Fez pós-doutorado na EHESS, Paris (1991). Atualmente é Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do;jsessionid=E90B34D4437FC835A49B0BD22F4E619E.buscatextual_66, acesso em 10 de novembro de 2021.
- 4Antropólogo. Professor Titular no Departamento de Antropologia e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia-PPGA da FFCH/UFBA. Obteve o Bacharelado em Ciências Sociais (1975) e Mestrado em Ciências Sociais (1980) pela UFBA. MA (1982) e PhD. (1988) em Antropologia pela University of California Los Angeles-UCLA, instituição na qual foi Visiting Associate Professor no Departament of Anthropology e Latin American Studies Center-LASC (9/2001 8/2002). Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do, acesso em 12 de novembro de 2021.
- 5Marc Augé é antropólogo. Africanista, realizou pesquisas, sobretudo, na Costa do Marfim e no Togo. Foi presidente da EHESS, no período de 1985 a 1995, onde, atualmente, coordena o Centro de Antropologia dos Mundos Contemporâneos. A partir dos anos 1980, diversificou seus estudos, realizando pesquisas na América Latina e voltando seu interesse para as realidades do mundo contemporâneo, com seus contextos múltiplos e imediatos. Desta preocupação recente, há uma bibliografia que se tornou referência nas ciências sociais - são mais de trinta livros publicados, versando sobre diversos temas tais como: o turismo, os desafios da antropologia, entre outros. In: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1560-2.pdf, acesso em 15 de novembro de 2021
- 6Conceito 6, nota quase máxima atribuída pela CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Disponível em: https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=capes&ie=UTF-8&oe=UTF-8, acesso em 25 de novembro de 2021.
- 7Claudia Fonseca possui graduação em Letras - University of Kansas (1967), mestrado em Estudos Orientais - University of Kansas (1969), doutorado em Sociologia - École des Hautes Études en Sciences Sociales (1981) e doutorado em Ethnologie - Université de Nanterre (1993).
Referências
- KNAUTH, D.; VICTORA, C.; HANSSEN, M. N. A pesquisa qualitativa em saúde. Uma introdução ao tema. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.
- LOYOLA, M. A. Médicos e curandeiros. Conflito Social e Saúde. Rio de Janeiro: Ed. Difel, 1984.
- MONTEIRO, P. Da doença à desordem: a cura mágica na Umbanda. São Paulo: Graal, 1985.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
07 Mar 2023 - Aceito
02 Abr 2023 - Revisado
02 Abr 2023