A questão da causalidade em Epidemiologia

The issue of causality in Epidemiology

Rita Barradas Barata Sobre o autor

Resumo

Este ensaio trata da questão da causalidade em epidemiologia a partir da década de 1970, cujo marco inicial aqui adotado foi a publicação de The causal thinking in health sciences, por M. Susser, até os dias de hoje, buscando elencar os vários movimentos filosóficos, teóricos e metodológicos que ao longo destes 50 anos buscaram refletir sobre o problema da causalidade na disciplina, tendo em vista o predomínio das pesquisas observacionais no campo. Partindo da contribuição seminal de Susser, foram discutidos vários movimentos, bem como as críticas a eles, tais como a proposta da adoção de lógica popperiana na década de 1980, a crítica aos modelos multicausais e a teoria ecossocial proposta por N. Krieger na década de 1990, as críticas à epidemiologia social também da década de 1990, a influência de J. Pearl e a adoção dos gráficos acíclicos direcionados como nova metodologia na questão da causalidade. A chamada revolução metodológica no início deste século e as críticas de filósofos e epidemiologistas a esta abordagem reducionista também foram revisadas, bem como as alternativas propostas nos últimos 10 anos, incluindo a perspectiva inferencialista, a triangulação de métodos e a defesa da epidemiologia social e de seus modelos de determinação.

Palavras-Chave:
Epistemologia; Causalidade; Gráficos acíclicos direcionados; Triangulação; Epidemiologia social

Abstract

This essay deals with the issue of causality in epidemiology from the 1970s onwards, whose starting point adopted here was the publication of The Causal Thinking in Health Sciences by M. Susser, up to the present day, seeking to list the various philosophical, theoretical and methods that throughout these 50 years have sought to reflect on the problem of causality in the discipline, in view of the predominance of observational research in the field. Starting from Susser’s seminal contribution, several movements were discussed as well as their criticisms, such as the proposal to adopt Popperian logic on the 1980s, the criticism of multicausal models and the ecosocial theory proposed by N. Krieger in the 1990s, criticism of social epidemiology also in the 1990s, the influence of J.Pearl and the adoption of directed acyclic graphs as a new tool in the issue of causality. The so-called methodological revolution at the beginning of this century and the criticism of philosophers and epidemiologists to this reductionist approach were also reviewed, as well as the alternatives proposed in the last 10 years, including the inferentialist perspective, the triangulation of methods and the defense of social epidemiology and their determination models.

Keywords:
Epistemology; Causality; Directed acyclic graphs; Triangulation; Social epidemiology

Introdução

A questão da causalidade tem sido desde a década de 1970 uma questão bastante presente na pesquisa epidemiológica, e sempre marcada pelas críticas e dúvidas epistemológicas quanto à validade das proposições causais geradas a partir de estudos observacionais. Não são poucos os autores que questionam a legitimidade das pretensões de cientificidade aliadas a estudos observacionais, defendendo a exclusividade dos desenhos experimentais randomizados, controlados e cegados na identificação de relações causais verdadeiras.

Por outro lado, nas diferentes correntes da epidemiologia social, há uma clara tendência em substituir as questões causais pelo conceito de determinação e determinantes, que possuem maior conteúdo heurístico para a compreensão dos processos de produção e distribuição dos eventos de saúde e doença nas populações humanas.

De todo modo, a preocupação com o desenvolvimento de metodologias e técnicas de análise, cada vez mais refinadas, tem acompanhado o desenvolvimento da disciplina nos últimos 50 ou 70 anos, se considerarmos os critérios de causalidade propostos por Bradford Hill e Richard Doll como princípios lógicos para sustentar a alegação da relação causal entre tabagismo e câncer de pulmão, como a primeira sistematização reflexiva sobre os requisitos lógicos para sustentar proposições de caráter causal.

Mervin Susser e o pensamento causal

Um dos primeiros trabalhos, teórico e metodológico, sobre a questão da causalidade em Epidemiologia foi o livro seminal de Mervin Susser, The causal thinking in health sciences, publicado em 1973 (SUSSER, 1973SUSSER, M. The causal think in health sciences. Oxford: Oxford University Press,1973). O autor, após apresentar sua concepção acerca dos modelos causais, da lógica das causas múltiplas e da abordagem sistêmica para a compreensão dos processos de saúde e doença, se dedica a discutir os procedimentos necessários para o estabelecimento de relações causais, discutindo vários tipos de associação entre variáveis, os procedimentos de inferência lógica para a formulação de hipóteses e as estratégias para lidar com a variabilidade dos fenômenos de modo a poder construir proposições causais.

Os primeiros aspectos explorados pelo autor foram tipos de associações entre variáveis e os requisitos para que uma associação possa reivindicar uma relação causal. Do ponto de vista epistemológico uma determinação causal é unidirecional, isto é, a causa produz um efeito mas não pode ser produzida por ele; e, apresenta um vínculo genético entre a causa e o efeito, ou seja, a pretensa causa deve ser responsável pela produção do efeito e não manter com ele apenas uma conexão casual, acidental ou de coincidência. Portanto, qualquer associação estatística que a priori é neutra em relação à estas duas características, não pode ser considerada suficiente para embasar uma alegação de causalidade.

Susser identifica três tipos de associações entre variáveis independentes e dependentes: relações assimétricas, relações simétricas, e relações recíprocas. As relações assimétricas são aquelas que poderiam ser consideradas na investigação de uma possível causalidade, visto que atendem ao requisito de unidirecionalidade, ou sequência temporal lógica. As relações recíprocas são próprias dos modelos sistêmicos, respondendo por mecanismos de feedback ou autorregulação entre os diferentes níveis e elementos. As relações simétricas podem indicar diferentes relações entre as variáveis sendo a mais comum a relação espúria ou fortuita explicada pelo acaso ou pela coincidência. Mas, elas também podem corresponder a situações de dependência funcional como aquela que se estabelece entre prevalência, incidência e duração dos eventos da saúde; associação entre variáveis que pertencem ao mesmo complexo causal; variáveis diferentes que são marcadoras dos mesmos eventos ou ainda, variáveis que compartilham uma causa comum (SUSSER, 1973SUSSER, M. The causal think in health sciences. Oxford: Oxford University Press,1973).

Portanto, a existência de associação estatística em si só não garante nada e é necessário explorar os possíveis tipos de associação que poderiam estar envolvidos em cada situação. Além disso, é preciso lidar com a variabilidade inerente aos fenômenos de saúde. Para isso, os pesquisadores podem recorrer a diferentes estratégias que vão desde a simplificação das condições de observação, passando pelas técnicas de comparação entre grupos (randomização, pareamento, padronização), até a análise de fatores estranhos ou irrelevantes ao modelo causal, as chamadas variáveis de confusão, chegando finalmente aos critérios lógicos de julgamento.

Talvez o aspecto mais marcante da obra seja justamente o esforço realizado pelo autor em diferenciar dentre as variáveis independentes aquela que pode ser escolhida como hipotética causal (assimétrica em relação ao desfecho), as variáveis de controle usadas para garantir comparabilidade entre os grupos observados, as variáveis não controladas por não estarem associadas à variável hipotética causal, e as variáveis de confusão que devem estar necessariamente associadas à variável hipotética causal e ao desfecho podendo desempenhar diferentes papéis no modelo causal. Estes papéis podem ser de variável antecedente simples ou explanatória em relação à variável hipotética causal; interveniente ou moderadora da relação entre causa e efeito; ou variável componente (nem necessária nem suficiente) em um complexo causal.

A tentativa feita por Susser, de conferir racionalidade aos modelos causais em epidemiologia levando a reflexão para além da simples exploração das associações estatísticas e das propostas eminentemente pragmáticas como a rede de causalidade (KRIEGER,1994), chamava a atenção para a necessidade de o pesquisador elaborar previamente um modelo teórico e operacional das relações previstas entre as variáveis para posterior verificação lógica e estatística, controlando assim, a tentação de irrefletidamente analisar todas as possíveis associações estatísticas entre variáveis sem uma hipótese claramente formulada. Se este já era um problema no início da década de 1970, a computação eletrônica só fez aprofundar e multiplicar a possibilidade deste tipo de exploração sem direção ou sentido, na qual tudo pode estar relacionado com tudo, sem que o sentido dessas associações ganhe significado teórico.

A crítica de Susser à lógica popperiana

Cerca de uma década após o lançamento do livro sobre pensamento causal, Susser entrou na disputa teórica entre o positivismo lógico da escola de Viena e a caráter indutivo da pesquisa epidemiológica (SUSSER,1986) A tentativa de superar as críticas filosóficas à fragilidade do indutivismo e do verificacionismo para a formulação de proposições verdadeiras sobre fenômenos observáveis levou alguns epidemiologistas a buscarem na teoria dedutivista e corroborativa de Karl Popper, a sustentação para os conhecimentos epidemiológicos (BUCKER, 1975BUCKER, C. Popper’s philosophy for epidemiologists. International Journal of Epidemiology, Oxford, v. 4, n. 3, p. 159-168, 1975.; POPPER, 1989POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix e EDUSP, 1989.)

Segundo a lógica popperiana, a ciência só pode avançar através de procedimentos dedutivos. A indução não é um processo lógico na medida em que é impossível conhecer todos os fatos empíricos que poderiam garantir validade às generalizações científicas. As teorias científicas precisam gerar hipóteses explicativas passíveis de serem submetidas a testes (lógicos, estatísticos ou experimentais) de tal modo que algumas possam ser rejeitadas ou falsificadas pelo confronto com os dados empíricos, enquanto outras podem ser corroboradas ou sobreviver, ao menos temporiamente ao teste. Teorias nunca podem ser comprovadas, mas podem ter suas hipóteses corroboradas enquanto não surgirem fatos capazes de derrubá-las ou falsificá-las (POPPER, 1989POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix e EDUSP, 1989.).

As críticas formuladas por Susser repousam em dois argumentos principais: embora a falsificação de hipóteses seja um elemento crítico para o avanço científico, os processos dedutivos, tanto quanto os indutivos não são isentos de erro, e tanto a verificação quanto a corroboração são eminentemente transitórias; além disso, descartar os procedimentos indutivos seria abandonar muitos dos recursos cotidianos de muitas ciências cujos métodos são predominantemente empíricos (SUSSER, 1986SUSSER, M. The logic of Sir Karl Popper and the practice of epidemiology. American Journal of Epidemiology. New York, v. 124, n. 5, p. 711-718, 1986.). O autor ressalta o fato de os cientistas serem sujeitos pragmáticos que lançam mão tanto de procedimentos dedutivos quanto indutivos. Ele propõe usar alguns critérios lógicos para a rejeição definitiva de hipóteses epidemiológicas como são a sequência temporal reversa, inconsistência dos achados empíricos entre diferentes pesquisas e incoerência dos resultados. Do mesmo modo, os critérios para a verificação de hipóteses propostos são a força da associação, a consistência entre diferentes estudos, a relação dose-resposta entre exposição e desfecho e a performance preditiva da relação causal hipotetizada.

Em termos causais, a polêmica entre procedimento dedutivo versus indutivo, manteve as coisas praticamente no mesmo lugar, não acrescentando nem novos conceitos e teorias, nem novas metodologias para os estudos epidemiológicos, ademais de insistir extemporaneamente em uma falsa dicotomia que os filósofos tentavam superar desde o século XIX.

A crítica aos modelos multicausais e a teoria ecossocial

Nanci Krieger, na década de 1990, critica a noção de rede de causalidade e a própria teoria da multicausalidade implícita nesta noção. Segundo ela, a origem da teoria da multicausalidade estava na substituição da teoria do germe pela tríade ecológica e a interdição ao enfoque na determinação social do processo saúde-doença durante o macarthismo, além do abandono da perspectiva populacional própria dos estudos epidemiológicos pela perspectiva biomédica de cunho individual, centrada nos fatores de risco para compreender a causalidade nas doenças crônicas (KRIEGER,1994; KRIEGER,2000).

A metáfora da rede convida a considerar múltiplas intersecções e diferentes caminhos causais que permitiriam diversas rotas de prevenção para a atuação dos programas de saúde pública. O modelo omite a discussão das origens e dos determinantes, tratando os elementos da chamada tríade ecológica como elementos não hierárquicos, linearmente articulados, neutros do ponto de vista social e político e igualmente passíveis de intervenção. O modelo favorece os fatores proximais, aqueles mais próximos ao desfecho, identificando nas causas biológicas e no estilo de vida individual os focos das intervenções médicas e sanitárias (KRIEGER, 1994KRIEGER, N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Social Science & Medicine. UK, v. 39, n. 7, p. 887-903, 1994.; KRIEGER, 2000KRIEGER, N. Epidemiology and Social Sciences: towards a critical reengagement in the 21st century. Epidemiologic Reviews. New York, v. 22, n. 1, p. 155-163, 2000.; AROUCA, 2003AROUCA, S. O dilema preventivista. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora UNESP e Editora Fiocruz, 2003.).

Krieger elabora a teoria ecossocial como alternativa à teoria multicausal enfatizando a necessidade de retomar a perspectiva populacional, superar a epidemiologia dos fatores de risco e compreender que os seres humanos incorporam, literalmente, o mundo que os rodeia, como uma espécie a mais a compartilhar a vida no planeta, mas também como espécie que através do trabalho e da produção cultural é capaz de modificar este mundo e ser produtor e produto da história. Assim, os padrões de distribuição dos eventos de saúde e seus determinantes são o reflexo do processo de produção, distribuição, circulação, consumo e posse de bens materiais e imateriais, do poder e dos privilégios (KRIEGER, 2001KRIEGER, N. Theories for social epidemiology in the 21st century: an ecosocial perspective. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 30, n. 4, p. 668-677, 2001.; 2005).

A teoria ecossocial vai além da proposta sistêmica de Susser, articulando a dimensão histórica, a ecológica e a societária afirmando a indissociabilidade entre elas na produção da saúde e da doença, ecoando aspectos do movimento da medicina social latino-americana da década de 1980. Do mesmo modo que a medicina social latino-americana, o movimento da epidemiologia social pretendia substituir o conceito de causalidade pelo conceito de determinação, bem como os fatores de risco por determinantes sociais, mudanças consideradas necessárias para a melhor compreensão do processo saúde-doença como produto social, da desigualdade e da iniquidade social em saúde e dos vínculos entre saúde e direitos humanos (BRAVERMAN; GRUSKIN, 2003BRAVEMAN, P.; GRUSKIN, S. Poverty, equity, human rights, and health. Bulletin of the World Health Organization. Geneve, v. 8, n. 7, p. 539-545, 2003.).

A crítica às explicações causais da epidemiologia social e o modelo contrafactual

Kaufman e Cooper, já no final da década de 1990, publicam uma crítica à epidemiologia social centrada na impossibilidade, segundo eles, de identificar mecanismos causais convincentes nos estudos dessa corrente, principalmente naqueles devotados à discussão das desigualdades sociais em saúde (KAUFMAN; COOPER, 1999KAUFMAN, J. S.; COOPER, R. S. Seeking causal explanations in social epidemiology. American Journal of Epidemiology. New York, v. 150, n. 2, p. 113-120, 1999.).

Os autores iniciam seu artigo reconhecendo a importância inquestionável dos fatores socioeconômicos na causação das doenças, porém consideram que a epidemiologia social falha na explicação dos mecanismos causais, não permitindo que suas proposições possam estar sujeitas aos processos de refutação. Além disso, ao eleger classe social, etnia e gênero como os principais eixos estruturantes das desigualdades em saúde, não permitiriam a adoção da lógica contrafactual e logo, não poderiam gerar proposições verificáveis.

Atributos como etnia, gênero, coortes de nascimento tornam impossível a aplicação de modelos baseados na lógica contrafactual uma vez que não seria possível, nem teria sentido lógico considerar esses atributos como intercambiáveis entre exposição e não exposição, já que esses atributos, segundo os autores, são inerentes ao indivíduo e, assim, não haveria como imaginar a mudança de gênero, etnia ou coorte de nascimento. Consequentemente não há como submeter à prova as associações entre eles e os desfechos em saúde.

Quanto a classe social e outras medidas do nível socioeconômico a objeção surge do lado da impossibilidade de manipulação em cenários hipoteticamente experimentais, sendo difícil garantir exposições idênticas entre indivíduos ou a independência dos desfechos dada a complexidade e os processos de interação entre diferentes fenômenos sociais.

Portanto, a alternativa apresentada pelos autores aos epidemiologistas sociais seria o abandono da pretensão às explicações causais dedicando-se exclusivamente a analisar intervenções bem definidas, desfechos claramente isoláveis e identificáveis, modelando apenas o que pudesse efetivamente ser observado e mensurado. Os autores só esqueceram de acrescentar que o produto desse tipo de investigação já não seria epidemiologia social!

A crítica de Kaufman e Cooper (1999) reflete uma outra tentativa de fortalecimento dos estudos empíricos observacionais que antecedeu a abordagem popperiana, não mais contrapondo indutivismo e dedutivismo, mas focando nas características consideradas fortes dos estudos experimentais que poderiam ser mimetizados pelos estudos observacionais por meio da aplicação da lógica contrafactual. A proposta apresentada por Rubin conhecida como o modelo das respostas potenciais, propõem um conjunto de princípios que poderiam tornar os estudos observacionais tão rigorosos na investigação causal quanto os estudos experimentais ou os estudos clínicos randomizados (RUBIN, 1974RUBIN, D. B. Estimating causal effects of treatments in randomized and non-randomized studies. Journal of Educational Psychology. Washington DC, v. 66, n. 5, p. 688-701, 1974.; RUBIN, 2007RUBIN, D. B. The design versus the analysis of observational studies for causal effects: parallels with the design of randomized trials. Statistics in Medicine. London, v. 26, p. 20-36, 2007.).

Resumidamente, a proposta dos efeitos causais na perspectiva das respostas possíveis defende a necessidade de uma elaboração teórica detalhada dos elementos necessários para análise dos efeitos antes de conhecer ou iniciar a análise dos resultados, utilizando a abordagem contrafactual de modo a simular a possibilidade da intercambialidade entre os grupos de estudo, construídos com base em covariáveis contextuais não associadas ao tratamento, que os tornariam tão semelhantes quanto possível, mimetizando assim o processo de randomização. Outras premissas do modelo são e a estabilidade das unidades de análise no tempo e a definição precisa dos tratamentos/exposições que obrigatoriamente deveriam ser manipuláveis, no sentido de poder ser introduzidas e interrompidas para permitir a verificação do efeito delas sobre os resultados ou respostas. Do mesmo modo, as respostas devem ser definidas como variáveis que poderiam sofrer os efeitos dos tratamentos ou exposição.

Sob os pressupostos do modelo das respostas potenciais e recorrendo à teoria contrafactual seria possível comparar expostos e não expostos, em estudos observacionais, como se fossem grupos randomizados não enviesados, para permitir a análise dos resultados de forma válida (GLASS et al., 2013). As diferenças com os procedimentos habitualmente adotados nos estudos observacionais residiria no processo de constituição dos grupos de estudo de modo a que os mesmos fossem comparáveis com relação a todas as possíveis covariáveis, previamente, à iniciação do tratamento ou identificação da exposição; e, na análise hipotética dos resultados possíveis para cada unidade de análise condicionada à exposição ou tratamento (dados observáveis) vis a vis a não exposição ou tratamento controle (contrafactual).

Gráficos acíclicos direcionados e a “revolução metodológica”

Os gráficos acíclicos direcionados, DAG em inglês, são ferramentas lógicas úteis para a elaboração de modelos de inferência causal, auxiliando o pesquisador a explicitar graficamente as hipóteses acerca das relações entre as diferentes variáveis que potencialmente constituem a estrutura causal. Os gráficos são direcionados para representar a unidirecionalidade que define uma relação causal e são acíclicos na medida em que não admitem a representação de associações recíprocas, sendo reservados apenas para associações simétricas ou assimétricas (GREENLAND et al., 1999; PEARL, 2000PEARL, J. Causality. Models, reasoning, and inference. New York: Cambridge University Press,2000.; SILVA, 2021SILVA, A. A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).

Os gráficos acíclicos direcionados foram propostos como a materialização de modelos de análises qualitativas capazes de tornar mais claras as suposições do pesquisador sobre as associações e relações que podem se estabelecer entre o conjunto de variáveis analisadas na investigação. Além disso, as regras de construção dos gráficos ou diagramas facilitam a exploração e identificação das variáveis de confusão, das variáveis associadas simetricamente e das variáveis intervenientes (GREENLANDGREENLAND, S.; PEARL, J.; ROBINS, J. M. Causal diagrams for epidemiologic research. Epidemiology. Philadelphia, v. 1, n. 10, p. 37-48, 1999.et al., 1999; PEARL, 2000PEARL, J. Causality. Models, reasoning, and inference. New York: Cambridge University Press,2000.; SILVA, 2021SILVA, A. A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.).

Embora a proposta dos DAGs seja independente da teoria contrafactual e do modelo das respostas possíveis, no início deste século, alguns autores, reuniram todas estas abordagens construindo um modelo para a inferência causal em epidemiologia e para a saúde pública em geral, proposta que foi apresentada como uma revolução metodológica para as pesquisas observacionais (GLASSGLASS, T. A.; GOODMAN, S. N.; HERNAN, M. A.; SAMET, J. M. Causal inference in public health. Annual Review of Public Health. San Mateo, v. 34, p. 61-75, 2013.et al., 2013).

O cardápio da autointitulada “revolução metodológica” inclui considerar como causas de interesse para a ciência epidemiológica e o campo da saúde pública, apenas variáveis que possam ser consideradas “tratamentos” em experimentos idealizados no contexto da teoria contrafactual, no sentido de serem passíveis de modificação e manipulação pelo pesquisadores; dentre as muitas vertentes das teorias contrafactuais, o modelo das respostas possíveis proposto por Rubin, foi o escolhido como o que melhor se ajustaria aos “experimentos” observacionais realizados pela epidemiologia; uma restrição de perguntas e questões de pesquisas apenas àquelas em cuja investigação esses pressupostos pudessem ser atendidos, excluindo todas aquelas que pudessem ser consideradas como “intervenções vagamente definidas”; os estudos observacionais em sua estrutura deveriam emular os experimentos ou ensaios controlados e randomizados garantindo a comparabilidade e a permutabilidade potencial dos grupos de observação através de técnicas de pareamento, estratificação, padronização, variáveis instrumentais e escores de propensão, dentre outras; uso dos gráficos acíclicos direcionados como ferramentas lógicas para exploração dos modelos causais (GLASS et al., 2013; HERNAM; ROBINS, 2019HERNAN, M. A.; ROBINS, J. M. Causal Inference: what if. Disponível em: https://www.hsph.harvard.edu/miguel-hernan/causal-inference-book. Acesso em: 10 nov. 2019.
https://www.hsph.harvard.edu/miguel-hern...
).

A principal inversão na lógica habitual da pesquisa em causalidade, proposta pelos autores, foi o abandono da tentativa de identificar causas através dos procedimentos exploratórios e especulativos das ciências empíricas e o foco na identificação de efeitos bem delimitados e mensuráveis de intervenções, deslocando assim, o interesse nos processos de determinação e nos chamados fatores de risco, para a efetividade das intervenções.

A consequência imediata dessa proposição é a exclusão do âmbito da pesquisa epidemiológica dos atributos pessoais inerentes aos indivíduos como são a idade, o gênero, a etnia, a classe social, por exemplo, que não podem ser consideradas causas já que não atendem aos requisitos lógicos pretendidos; além de fatores como obesidade e hipertensão que embora pudessem ser transladados a cenários de intervenções hipotéticas, não podem ser tratados como causas porque diante da possibilidades de múltiplas respostas a essas intervenções potencias, não seria possível avaliar adequadamente os efeitos (HERNAM; ROBINS, 2019; BROADBENT, 2019)

As críticas de filósofos e epidemiologistas à “revolução metodológica”

Russo e colaboradores (2011)RUSSO, F.; WUNSCH, G.; MOUCHART, M. Inferring causality through counterfactuals in observational studies – some epistemological issues. Bulletin de Méthodologie Sociologique. New York, v. 111, n. 1, p. 43-64, 2011. lembram que, do ponto de vista filosófico, o contrafactual é definido como uma proposição subjuntiva condicional estabelecendo uma situação contrária aos fatos, não impondo nenhuma das restrições introduzidas por Rubin quanto à possibilidade de manipulação nem quanto à intercambialidade dos grupos. Do ponto de vista epistemológico os autores lembram que os contra fatos são apenas hipotéticos portanto, não observáveis, não oferecendo nenhuma base empírica para as proposições científicas. Do mesmo modo, a inversão proposta entre causas e efeitos considerando como relevante os efeitos das causas e não as causas dos efeitos, modifica completamente os pressupostos epistemológicos da atribuição de causa.

A exclusão dos atributos pessoais não se justifica em um contexto de realização de experimentos ideais, nos quais qualquer atributo poderia ser considerado manipulável, visto que não se trata realmente de experimentos concretos. No plano ideal, nada impede que o investigador pudesse analisar os efeitos de uma sociedade onde não houvesse o racismo ou na qual a igualdade de gêneros fosse uma realidade e assim, analisar os efeitos que teriam sobre a saúde da população. O pressuposto de estabilidade por unidade de tratamento não pode jamais ser verificado na prática tendo em vista as situações relacionadas ao efeito placebo, as perdas de seguimento e a não adesão. Finalmente, se as restrições apresentadas fossem seguidas literalmente, qualquer mecanismo complexo e multicausal estaria excluído da possibilidade de análise, o que é uma limitação inaceitável no âmbito das ciências da vida (RUSSO et al., 2011)

Alex Broadbent (2011) divide sua intervenção no debate em dois momentos: inicialmente ele analisa do ponto de vista filosófico a heurística normalmente utilizada pela epidemiologia para fazer suas predições e, em um segundo momento, apresenta sua crítica às teses da “revolução metodológica”. Ele começa perguntando qual o papel da explicação em epidemiologia, afirmando que quanto melhor uma explicação for, maior a probabilidade de que ela seja verdadeira. A explicação em epidemiologia assume uma forma bastante particular derivada dos aspectos fundamentais da própria disciplina que se sustenta em contagens e comparações entre grupos populacionais, o que implica uma forma particular de explicação dos contrastes (BROADBENT, 2011BROADBENT, A. What could possible go wrong? A heuristic for predicting population health outcomes of interventions. Preventive Medicine; Amsterdam, v.53, p. 256-259, 2011.).

Por ser uma ciência eminentemente prática a epidemiologia baseia suas explicações e suas expectativas dos resultados das intervenções na possibilidade de realizar predições robustas. A razão epistemológica para isto baseia-se na ideia de que se o melhor conhecimento que podemos obter sobre uma relação for acurada, então a predição será provavelmente verdadeira justificando assim as intervenções propostas já que estariam baseadas no melhor conhecimento a nossa disposição (BROADBENT, 2011BROADBENT, A. What could possible go wrong? A heuristic for predicting population health outcomes of interventions. Preventive Medicine; Amsterdam, v.53, p. 256-259, 2011.). O julgamento, portanto, estará assentado em probabilidades e na análise de diferentes cenários para os quais as probabilidades de sucesso podem ser analisadas.

Quanto à revolução metodológica, o autor começa questionando se há de fato uma revolução em curso no campo da epidemiologia. Ele reconhece a presença de novos métodos acompanhados por uma retórica persuasiva, mas considera que boa parte dessa retórica inclui um desafio aos modos de pensar da epidemiologia (BROADBENT, 2015BROADBENT, A. Causation and prediction in epidemiology: A guide to the “methodological revolution”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 54, p. 72-80, 2015.).

A crítica ao pretenso movimento revolucionário será apresentada a partir da análise e refutação de quatro teses que segundo o filósofo estão presentes na retórica dos revolucionários. A tese semântica afirma que o único princípio válido para analisar causalidade é a utilidade ou os efeitos que a causa pode provocar na situação de saúde. O slogan “questões causais são bem definidas quando intervenções são bem definidas” leva os autores a recusarem o papel de atributos pessoais não manipuláveis como causas aceitáveis, no entanto, algo deve estar errado com o argumento quando analisamos a vasta produção de epidemiologia onde fica claramente demonstrada a influência desses atributos na distribuição dos perfis populacionais de saúde e doença, ainda que intervenções para corrigir esses processos não sejam nem simples nem unívocas (BROADBENT, 2015BROADBENT, A. Causation and prediction in epidemiology: A guide to the “methodological revolution”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 54, p. 72-80, 2015.).

A tese metafísica afirma que na ausência ou na presença das causas os efeitos podem ou não ocorrer, já que muitas causas não são nem necessárias nem suficientes e seriam apenas marcadoras de diferenças. Ao restringir as causas a variáveis manipuláveis, o escopo da pesquisa epidemiológica ficaria bastante estreitado, descartando os fenômenos complexos e multicausais na explicação epidemiológica (BROADBENT, 2015BROADBENT, A. Causation and prediction in epidemiology: A guide to the “methodological revolution”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 54, p. 72-80, 2015.).

A tese pragmática reafirma a ideia de que os únicos marcadores de diferença ou causas com as quais a epidemiologia deveria se preocupar são os eventos manipuláveis bem especificados e que poderiam ser modificados pelas intervenções em saúde pública. A questão aqui é quem decide o que é manipulável e em que escala (BROADBENT, 2015BROADBENT, A. Causation and prediction in epidemiology: A guide to the “methodological revolution”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 54, p. 72-80, 2015.). A consequência é o total abandono do compromisso com as mudanças sociais uma vez que elas não poderiam ser manipuladas no âmbito da disciplina.

A tese epistêmica afirma que o conhecimento causal pode gerar predições sobre cenários hipotéticos indo além das extrapolações habituais. Segundo o filósofo essa tese é claramente falsa porque não há nenhuma garantia do ponto de vista prescritivo uma vez que não há como garantir que as predições sejam corretas ainda que as relações causais tenham sido bem estabelecidas e, há muitos exemplos de predições genéricas que podem ser úteis na prática, já que as dimensões teóricas e pragmáticas são regidas por regras muito distintas, sem considerar a artificialidade possível na teoria e a complexidade inerente à prática (BROADBENT, 2011BROADBENT, A. What could possible go wrong? A heuristic for predicting population health outcomes of interventions. Preventive Medicine; Amsterdam, v.53, p. 256-259, 2011.).

Do ponto de vista dos epidemiologistas, pelo menos daqueles mais comprometidos com a saúde populacional, a discussão e as críticas à autodenominada revolução metodológica fazem apelo ao bom senso e a posições menos radicais, preservando as contribuições sem lançar fora a maioria dos conhecimentos e contribuições da epidemiologia.

Porta e colaboradores (2015)PORTA, M.; VINEIS, P.; BOLUMAR, F. The current deconstruction of paradoxes: one sign of the ongoing methodological “revolution”. European Journal of Epidemiology. Amsterdam, v. 30, p. 1079-1087, 2015. assinalam que, como qualquer modelo, os diagramas causais são tão bons quanto as suposições nas quais se baseiam. Os gráficos acíclicos direcionados são os componentes mais visíveis e instrumentais dos novos métodos, e representam a formalização das suposições dos pesquisadores sobre a estrutura qualitativa das relações causais estudadas. Eles são instrumentos muito úteis para tornar explícitas as hipóteses, as incertezas e os cenários plausíveis na investigação causal.

Embora esse novo instrumental heurístico tenha possibilitado a solução de vários paradoxos e controvérsias na epidemiologia, a causalidade é um processo que envolve a combinação complexa de muitas circunstâncias e determinantes ou fatores envolvendo diversos mecanismos. Nesse processo complexo surgem inúmeras possibilidades para variáveis de confusão enviesarem os resultados. Assim, contar com novos instrumentos de análise é muito auspicioso, sem que, no entanto, possam substituir as teorias de explicação do processo saúde-doença principalmente na dimensão populacional.

Pearce e Lawlor (2016)LAWLOR, D. A.; TILLING, K.; DAVEY-SMITH, G. Triangulation in aetiological epidemiology. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1866-1886, 2016. lembram que a abordagem contrafactual e sua associação com a teoria das probabilidades proposta por Judea Pearl significou uma contribuição importante para a pesquisa epidemiológica. Há três aspectos centrais para diferenciar a posição do autor daquelas apresentadas pelos proponentes do modelo das respostas possíveis. Primeiro, o autor insiste em que a causalidade não é meramente uma questão probabilística. Só compreendendo como e porque as causas produzem efeitos é possível compreender por que em diferentes contextos as mesmas causas produzem efeitos distintos. Portanto, apegar-se a aos efeitos das causas e não à compreensão dos mecanismos causais não parece resolver o problema.

O segundo aspecto divergente diz respeito à noção de intervenção ou manipulação como critério de definição das variáveis que poderiam reivindicar o caráter causal, restrição que não está presente no conceito de causalidade de Pearl (2000) Assim todos os tipos de causas poderiam ser representados nos gráficos acíclicos direcionados e ser tratados como causas: atributos, estados, fatores de risco etc. (PEARL, 2000PEARL, J. Causality. Models, reasoning, and inference. New York: Cambridge University Press,2000.; SILVA, 2021SILVA, A. A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.; PEARCE; LAWLOR, 2016PEARCE, N.; LAWLOR, D. A. Causal inference - so much more than statistics. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1895-1903, 2016.; PEARL, 2018PEARL, J, MACKENZIE, D. The book of why. New York: Basic Books, 2018.).

Finalmente, os gráficos acíclicos direcionados são instrumentos úteis para a formalização das hipóteses causais e para orientar as análises, mas não são nem necessários nem suficientes para realizar inferências causais. Uma das grandes contribuições dos DAGs é a possibilidade de identificar variáveis que não devem ser ajustadas nos modelos estatísticos (GREENLAND et al., 1999; PEARL, 2000PEARL, J. Causality. Models, reasoning, and inference. New York: Cambridge University Press,2000.; SILVA, 2021SILVA, A. A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.; PEARCE; LAWLOR, 2016PEARCE, N.; LAWLOR, D. A. Causal inference - so much more than statistics. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1895-1903, 2016.; PEARL, 2018PEARL, J, MACKENZIE, D. The book of why. New York: Basic Books, 2018.).

Pearce e Lawlor (2016) afirmam que estudos observacionais bem desenhados também são capazes de analisar relações causais sem efeito de confusão mesmo sem o recurso aos DAGs, além de não terem a limitação de analisar apenas relações de tipo assimétrico podendo considerar também as relações cíclicas ou recíprocas, tão importantes nas abordagens sistêmicas. Além disso, os autores reafirmam que a causalidade vai além das análises estatísticas das relações entre variáveis, dependendo fundamentalmente de julgamento qualitativo alicerçado em teorias sobre a saúde e a doença, aliás como Pearl insiste em sublinhar (PEARCE; LAWLOR, 2016PEARCE, N.; LAWLOR, D. A. Causal inference - so much more than statistics. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1895-1903, 2016.; PEARL, 2018PEARL, J, MACKENZIE, D. The book of why. New York: Basic Books, 2018.).

O modelo das respostas possíveis, um dos pilares da “revolução” é equivocado em muitos aspectos porque há causas que não podem ser manipuláveis mas seguem sendo causas; restringir causa apenas a intervenções bem definidas deixa muita coisa de fora, não podendo explicar uma parte considerável dos fenômenos de interesse; ignorar a importância do contexto para as manifestações de saúde e doença naturalizando a questão e ignorando a historicidade dos processos; não considerar hipóteses alternativas àquelas que estão sendo testadas restringindo o escopo da indagação causal; negar a utilidade de usar diferentes tipos de evidências para chegar ao julgamento final; desconsiderar as contribuições da triangulação de evidências provenientes de diferentes estudos em diferentes cenários e do uso de métodos complementares e contribuições de diversas disciplinas para a questão da causalidade (VANDENBROUCKEVANDENBROUCKE, J.; BROADBENT, A.; PEARCE, N. Causality and causal inference in epidemiology: the need for a pluralistic approach. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1776-1786, 2016.et al., 2016)

Inferencialismo como alternativa para narrativas causais

O inferencialismo é uma teoria semântica, baseada na lógica de Wittgenstein, que procura o significado das proposições como o resultado de suas conexões inferenciais. Assim, no âmbito da causalidade, o significado de uma proposição causal resulta das relações inferenciais entre ela e outras proposições relativas às evidências, explicações, predições, intervenções e responsabilidades a ela associadas (REISS, 2012REISS, J. Causation in the sciences: An inferentialist account. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 43, p. 769-777, 2012.).

O sistema inferencial é a base fornecida pelo conjunto de evidências científicas e pelos efeitos práticos da proposição causal. As inferências autorizadas, ou seja, com veracidade no interior do sistema, dependem da natureza mesma da proposição, da titularidade dos formuladores e das características da comunidade científica na qual são produzidas (REISS, 2012REISS, J. Causation in the sciences: An inferentialist account. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 43, p. 769-777, 2012.).

As inferências podem ser formais ou materiais, respectivamente dedutivas ou indutivas, com natureza determinística, probabilística ou possível. Elas podem buscar sua justificativa epistêmica em recursos externos mais ou menos absolutos, na particularidade descritiva ou no contexto que sofre modificações no tempo, nos domínios ou nas problemáticas (REISS, 2012REISS, J. Causation in the sciences: An inferentialist account. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 43, p. 769-777, 2012.).

As narrativas causais podem ser testadas seja no domínio da verificação (abordagem indutiva) seja no domínio da falsificação (abordagem dedutiva) havendo múltiplos e variados modos de testagem e vários tipos de evidências deles derivadas, que vão constituir a base inferencial de uma afirmação causal. As afirmações causais são objetiváveis e objetivas uma vez que suas consequências práticas podem ser mensuradas ou contabilizadas permitindo aquilatar a efetividade ou veracidade provisória das proposições (REISS, 2012REISS, J. Causation in the sciences: An inferentialist account. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 43, p. 769-777, 2012.).

Triangulação e causalidade

No âmbito da causalidade a triangulação é entendida como um recurso para a integração de evidências provenientes de estudos realizados sob diferentes abordagens epidemiológicas, com fontes potenciais de vieses diferentes e não relacionadas entre si, propiciando assim maior solidez às inferências causais (LAWLOR et al., 2016).

Os estudos cujos resultados podem ser incluídos no mesmo sistema inferencial passível de triangulação devem todos tratar da mesma questão causal, mas idealmente devem incluir diferentes abordagens teóricas e metodológicas para permitir a análise das diversas fontes e formas de vieses que poderiam interferir na análise da relação causal, de tal modo que a avaliação qualitativa dos resultados permita contrabalançar os efeitos (LAWLOR et al., 2016; LESKOLESKO, C. R.; KEIL. A. P.; EDWARDS, J. K. The epidemiologic toolbox: identifying, honing, and using the right tools for the job. American Journal of Epidemiology. New York, v. 189, n. 6, p. 511-517, 2020.et al., 2020).

O objetivo da triangulação é distinto da meta-análise, uma vez que não se pretende chegar ao cálculo de medidas resumo que pudessem agregar os resultados dos diversos estudos. O objetivo é construir uma revisão integrativa das evidências disponíveis, analisando cuidadosamente a qualidade de cada estudo e identificando meticulosamente as fontes e as direções dos vieses em cada um deles de modo a poder balanceá-los no julgamento da proposição causal em análise (LAWLOR et.al, 2016)

Ao invés de excluir potenciais causas, e recusar vários tipos de desenhos epidemiológicos, reduzindo o escopo da disciplina, a triangulação e o inferencialismo propõem o uso amplo de abordagens, desenhos e técnicas para construir inferências causais significativas.

Ampliando o escopo da inferência causal e da explicação em Epidemiologia

Krieger e Davey-Smith (2016)KRIEGER, N. Embodiment: a conceptual glossary for epidemiology. Journal of Epidemiology and Community Health. London, v. 59, p. 350-355, 2005. expressando muito do sentimento da comunidade de epidemiologistas, principalmente daqueles comprometidos com o campo da saúde coletiva e daqueles, dentre estes, que abraçam as teorias e abordagens da epidemiologia social, em artigo incluído no número dedicado às discussões sobre causalidade do International Journal of Epidemiology, destacam aspectos fundamentais para a disciplina, que têm sido deixados de lado pelos advogados da “revolução metodológica”.

Ambos apontam como principais malefícios o fato de os novos métodos pretenderem definir estritamente o que pode ou não ser considerado como causa, levando ao estreitamento do escopo da disciplina; e, como os novos métodos podem levar a inferências espúrias especialmente diante de concepções bastante empobrecidas de questões biológicas e sociais importantes (KRIEGER; DAVEY-SMITH, 2016KRIEGER, N.; DAVEY-SMIH, G. The tale wagged by the DAG: broadening the scope of causal inference and explanation for epidemiology. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1787-1808, 2016.).

Nenhuma abordagem causal deveria decidir que perguntas podem ou não ser consideradas válidas e que atributos, características ou circunstâncias poderiam ser a priori consideradas no estudo das relações causais, uma vez que as precondições lógicas de direcionalidade e vínculo genético pudessem ser hipotetizadas (KRIEGER; DAVEY-SMITH, 2016).

As inferências causais mais robustas sempre dependem de narrativas complexas construídas a partir de diferentes perspectivas, combinando diferentes tipos de evidências produzidas em estudos os mais variados do ponto de vista metodológico, conforme postulado pela triangulação. A epidemiologia tem se valido ao longo do tempo de estratégias flexíveis, multifacetadas e historicamente informadas, não havendo nenhum motivo para, em nome de um pretenso formalismo, abandonar essa estratégia que possibilitou enormes contribuições para a melhoria da saúde populacional (KRIEGER; DAVEY-SMITH, 2016).

A escolha entre hipóteses competitivas deve ser guiada pela melhor hipótese e não necessariamente pela mais provável. Por melhor hipótese, se considera aquela com maior conteúdo explicativo, face às múltiplas manifestações dos fenômenos de saúde-doença, a dependência dos contextos e das distribuições populacionais de exposições e desfechos. Assim, na escolha da melhor hipótese deve-se ter em conta o escopo ou amplitude dos fatos explicados, a precisão, a plausibilidade dos mecanismos envolvidos, a unificação de explicações parciais sob uma mesma compreensão e a simplicidade, todos estes requisitos presentes das teorias do conhecimento desde o surgimento das ciências empíricas, no início da idade moderna (KRIEGER; DAVEY-SMITH, 2016).

Mas, como bem apontam Krieger e Davey-Smith (2016), para além de todos os aspectos anteriormente comentados e das várias nuances apontadas por diferentes críticos, a questão de base ou o problema de fundo com a alegada “revolução” é o abandono da perspectiva populacional e o predomínio inconteste da abordagem clínica como a única considerada suficientemente científica para o estudo da saúde e da doença.

Comentários finais

Este sobrevoo sobre diferentes dilemas, teorias e metodologias, que desde os últimos anos do século XX estiveram e continuam estando presentes no campo das disputas teóricas e políticas da epidemiologia, permite, ainda que de forma abreviada situar a questão da causalidade e seus múltiplos desdobramentos.

Como vários autores aqui referenciados apontam, embora esta seja uma questão mais ou menos permanente desde o nascimento da disciplina, sua importância para o conjunto dos epidemiologistas foi, o mais das vezes, pouco considerada ou valorizada, sendo geralmente associada a preocupações de cunho metafísico mais do que propriamente científico. No entanto, na medida em que a disciplina foi superando o limiar de cientificidade, buscando a formalização de seus conceitos e procedimentos, na perspectiva do que é exigido das ciências em geral, a questão da causalidade acabou por se impor como um dos desafios ainda pendentes, indiretamente decorrente da oposição entre pesquisa observacional e pesquisa experimental.

Para além dos aspectos exclusivamente teóricos e conceituais, a questão da causalidade também se coloca sempre que se pretende embasar políticas, programas e ações de saúde coletiva em conhecimentos epidemiológicos, invocando-se a necessidade de conhecer os mecanismos de causação para melhor direcionar as ações, obtendo maior efetividade e impactos observáveis na saúde populacional.

Este ensaio não apresenta uma resposta cabal aos questionamentos e divergências que atravessam a questão da causalidade, abdicando de uma posição mais ou menos sectária nos diferentes campos, propondo uma análise crítica mais desapaixonada – aliás, como outros autores aqui referenciados. Como salientado por Susser, o compromisso pragmático da disciplina permite posturas mais abrangentes e menos comprometidas com uma abordagem única.1

  • 1
    A pesquisa não recebeu nenhum tipo de financiamento, tendo sido realizada como parte da preparação para o concurso de livre-docência da autora. A autora declara não ter nenhum conflito de interesse intelectual ou financeiro relativos ao conteúdo do ensaio. Por se tratar de um ensaio teórico, não houve submissão a comitê de ética em pesquisa.

Referências

  • AROUCA, S. O dilema preventivista. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora UNESP e Editora Fiocruz, 2003.
  • BRAVEMAN, P.; GRUSKIN, S. Poverty, equity, human rights, and health. Bulletin of the World Health Organization. Geneve, v. 8, n. 7, p. 539-545, 2003.
  • BROADBENT, A. Causation and prediction in epidemiology: A guide to the “methodological revolution”. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 54, p. 72-80, 2015.
  • BROADBENT, A. What could possible go wrong? A heuristic for predicting population health outcomes of interventions. Preventive Medicine; Amsterdam, v.53, p. 256-259, 2011.
  • BUCKER, C. Popper’s philosophy for epidemiologists. International Journal of Epidemiology, Oxford, v. 4, n. 3, p. 159-168, 1975.
  • GLASS, T. A.; GOODMAN, S. N.; HERNAN, M. A.; SAMET, J. M. Causal inference in public health. Annual Review of Public Health. San Mateo, v. 34, p. 61-75, 2013.
  • GREENLAND, S.; PEARL, J.; ROBINS, J. M. Causal diagrams for epidemiologic research. Epidemiology. Philadelphia, v. 1, n. 10, p. 37-48, 1999.
  • HERNAN, M. A.; ROBINS, J. M. Causal Inference: what if. Disponível em: https://www.hsph.harvard.edu/miguel-hernan/causal-inference-book. Acesso em: 10 nov. 2019.
    » https://www.hsph.harvard.edu/miguel-hernan/causal-inference-book.
  • KAUFMAN, J. S.; COOPER, R. S. Seeking causal explanations in social epidemiology. American Journal of Epidemiology. New York, v. 150, n. 2, p. 113-120, 1999.
  • KRIEGER, N.; DAVEY-SMIH, G. The tale wagged by the DAG: broadening the scope of causal inference and explanation for epidemiology. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1787-1808, 2016.
  • KRIEGER, N. Embodiment: a conceptual glossary for epidemiology. Journal of Epidemiology and Community Health. London, v. 59, p. 350-355, 2005.
  • KRIEGER, N. Epidemiology and Social Sciences: towards a critical reengagement in the 21st century. Epidemiologic Reviews. New York, v. 22, n. 1, p. 155-163, 2000.
  • KRIEGER, N. Epidemiology and the web of causation: has anyone seen the spider? Social Science & Medicine. UK, v. 39, n. 7, p. 887-903, 1994.
  • KRIEGER, N. Theories for social epidemiology in the 21st century: an ecosocial perspective. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 30, n. 4, p. 668-677, 2001.
  • LAWLOR, D. A.; TILLING, K.; DAVEY-SMITH, G. Triangulation in aetiological epidemiology. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1866-1886, 2016.
  • LESKO, C. R.; KEIL. A. P.; EDWARDS, J. K. The epidemiologic toolbox: identifying, honing, and using the right tools for the job. American Journal of Epidemiology. New York, v. 189, n. 6, p. 511-517, 2020.
  • PEARCE, N.; LAWLOR, D. A. Causal inference - so much more than statistics. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1895-1903, 2016.
  • PEARL, J, MACKENZIE, D. The book of why. New York: Basic Books, 2018.
  • PEARL, J. Causality. Models, reasoning, and inference. New York: Cambridge University Press,2000.
  • POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix e EDUSP, 1989.
  • PORTA, M.; VINEIS, P.; BOLUMAR, F. The current deconstruction of paradoxes: one sign of the ongoing methodological “revolution”. European Journal of Epidemiology. Amsterdam, v. 30, p. 1079-1087, 2015.
  • REISS, J. Causation in the sciences: An inferentialist account. Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences. Amsterdam, v. 43, p. 769-777, 2012.
  • RUBIN, D. B. Estimating causal effects of treatments in randomized and non-randomized studies. Journal of Educational Psychology. Washington DC, v. 66, n. 5, p. 688-701, 1974.
  • RUBIN, D. B. The design versus the analysis of observational studies for causal effects: parallels with the design of randomized trials. Statistics in Medicine. London, v. 26, p. 20-36, 2007.
  • RUSSO, F.; WUNSCH, G.; MOUCHART, M. Inferring causality through counterfactuals in observational studies – some epistemological issues. Bulletin de Méthodologie Sociologique. New York, v. 111, n. 1, p. 43-64, 2011.
  • SILVA, A. A. M. Introdução à inferência causal em epidemiologia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.
  • SUSSER, M. The causal think in health sciences. Oxford: Oxford University Press,1973
  • SUSSER, M. The logic of Sir Karl Popper and the practice of epidemiology. American Journal of Epidemiology. New York, v. 124, n. 5, p. 711-718, 1986.
  • VANDENBROUCKE, J.; BROADBENT, A.; PEARCE, N. Causality and causal inference in epidemiology: the need for a pluralistic approach. International Journal of Epidemiology. Oxford, v. 45, n. 6, p. 1776-1786, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2023
  • Aceito
    06 Jul 2023
  • Revisado
    06 Abr 2023
PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: publicacoes@ims.uerj.br