Tendência da prática de automedicação entre idosos brasileiros entre 2006 e 2010: Estudo SABE

Silvia Regina Secoli Erika Aparecida Marquesini Sandra de Carvalho Fabretti Ligiana Pires Corona Nicolina Silvana Romano-Lieber Sobre os autores

RESUMO:

Introdução:

Automedicação retrata o princípio do próprio indivíduo buscar espontaneamente por algum medicamento que considere adequado para resolver um problema de saúde. Essa prática é ainda pouco explorada entre idosos de acordo com outros estudos baseados em dados populacionais. Objetivo: Examinar as tendências da prática de automedicação dos idosos do Estudo SABE entre 2006 e 2010.

Método:

Estudode base populacional cujos dados foram obtidos do Estudo Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento (SABE). Aamostra de 2006 foi constituída de 1.258 idosos e a de 2010, de 865 idosos que utilizaram medicamentos.

Resultados:

Observou-se redução da automedicação de 42,3% em 2006 para 18,2% em 2010. Em ambos os períodos, as classes terapêuticas predominantes foram as dos medicamentos com ação no sistema nervoso (27,9% em 2006 e 29,6% em 2010) e trato alimentar e metabolismo (25,5% em 2006 e 35,9% em 2010). Entreos medicamentos mais usados nos anos de 2006 e 2010 estão os analgésicos/anti-inflamatórios e vitaminas. Houve tendência a declínio da utilização de medicamentos potencialmente inapropriados entre 2006 (26,4%) e 2010 (18,1%). Oidoso foi o principal responsável pela indicação da automedicação em 2006 (65,2%) e 2010 (66,5%).

Conclusão:

A extensão da prática de automedicação nos idosos do SABE apresentou redução entre 2006 e 2010, porém o emprego de medicamentos que oferecem risco à saúde ainda foi relatado. Desse modo, os achados reforçam a importância de monitorar, avaliar e educar continuamente os idosos acerca dos riscos e benefícios do consumo de medicamentos, sobretudo daqueles isentos de prescrição.

Palavras-chave:
Automedicação; Idoso; Uso de Medicamentos; Prescrição Inadequada; Farmacoepidemiologia; Estudos de coortes

INTRODUÇÃO

Em âmbito global, os países vivenciam um crescimento expressivo da população de idosos. Esse aspecto demográfico tem sido acompanhado pela larga utilização de medicamentos e pelos efeitos deletérios associados ao mau uso desses insumos11. Rozenfeld S. Prevalência, fatores associados e mau uso de medicamentos entre os idosos: uma revisão. Cad. Saúde Públ 2003; 19(3): 717-24.. O consumo de medicamentos nesse grupo etário constitui um problema de saúde pública cuja ocorrência apresenta, como pano de fundo, o aumento da prevalência de doenças crônicas e das sequelas que acompanham o envelhecimento; a medicalização presente na formação dos profissionais da saúde; a falta de continuidade na assistência ao idoso; a solução rápida para os problemas de saúde; o grande arsenal de medicamentos disponíveis no mercado, incluindo os isentos de prescrição; e a prática da automedicação22. Secoli, SR. Polifarmácia: interações e reações adversas no uso de medicamentos por idosos. Rev Bras Enferm 2010; 63(1): 136-40..

O termo “automedicação” é definido como a iniciativa do indivíduo ou de seu responsável de obter ou usar um produto que trará benefícios no tratamento de doenças ou alívio de sintomas sem a indicação de um prescritor, que pode ser o médico ou odontólogo33. Paulo GL, Zanini AC. Automedicação no Brasil. Rev Ass Med Brasil. 1988; 34(2): 69-75.. A prática da automedicação pode ser decorrente do compartilhamento dos medicamentos com familiares, vizinhos ou amigos, da utilização das sobras de medicamentos provenientes de outras prescrições, da reutilização de antigas receitas, do prolongamento do tratamento medicamentoso indicado na receita, além da aquisição do produto sem prescrição médica44. Vilarino JF, Soares IC, Silveira CM, Rodel APP, Bortoli R, Lemos RR. Perfil da automedicação em município do sul do Brasil. Rev Saúde Públ 1998; 32(1): 43-9.,55. Brasil. Portaria n.º 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998. Política Nacional de Medicamentos. Aprova Politica Nacional de Medicamentos. Diário Oficial da União; 1998 Nov..

Apesar do consumo de medicamento não criterioso aparentemente apresentar mais risco ao idoso, o fenômeno da automedicação nesse grupo etário ainda é pouco explorado. Pesquisas conduzidas com idosos exibem dados diversificados no que tange à prevalência, que varia de 17,7 a 31,2% nos países desenvolvidos e de 8,9 a 80,5% naqueles em desenvolvimento44. Vilarino JF, Soares IC, Silveira CM, Rodel APP, Bortoli R, Lemos RR. Perfil da automedicação em município do sul do Brasil. Rev Saúde Públ 1998; 32(1): 43-9.,66. Carrasco-Garrido P, Jiménez-García R, Barrera VH, Gil de Miguel A. Predictive factors of self-medicated drug use among the Spanish adult population. Pharmacoepidemiol Drug Saf 2008; 17(2): 193-9.,77. Martins AP, Miranda AC, Mendes Z, Soares MA, Ferreira P, Nogueira A. Self-medication in a Portuguese urban population: a prevalence study. Pharmacoepidemiol Drug Saf 2002; 11(5): 409-14.,88. Nunes de Melo M, Madureira B, Ferreira APN, Mendes Z, Miranda AC, Martins AP. Prevalence of self-medication in rural areas of Portugal. Pharm World Sci 2006; 28(1): 19-25.,99. De Bolle L, Mehuys E, Adriaens E, Remon JP, Van Bortel L, Christiaens T. Home medication cabinets and self-medication: a source of potential health threats? Ann Pharmacother 2008; 42(4): 572-9.,1010. Albarrán KF, Zapata LV. Analysis and quantification of self-medication patterns of customers in community pharmacies in southern Chile. Pharm World Sci. 2008; 30(6): 863-8.,1111. Oliveira MA, Francisco PMSB, Costa KS, Barros MBA. Automedicação em idosos residentes em Campinas, São Paulo, Brasil: prevalência e fatores associados. Cad Saúde Públ 2012; 28(2): 335-45.,1212. Cascaes EA, Falchetti ML, Galato D. Perfil da automedicação em idosos participantes de grupos da terceira idade de uma cidade do sul do Brasil. ACM Arq Catarin Med 2008; 37(1): 63-9.. Essas diferenças parecem estar mais relacionadas ao método (amostra, local do estudo, avaliação da automedicação, tipo de análise) do que ao evento da automedicação.

Tendo em vista que nenhum medicamento é 100% eficaz e totalmente seguro, a automedicação pode ser considerada uma prática potencialmente nociva à saúde e um problema associado aos medicamentos, sobretudo nos idosos. Desse modo, o uso indevido de medicação sem avaliação criteriosa do profissional habilitado pode ocasionar reações adversas, aparecimento de sintomas inespecíficos e piora da condição de saúde.

Nos países latino-americanos, o investimento em estratégias de monitoramento de práticas relativas ao uso de medicamentos tem sido limitado ao âmbito hospital1313. Tellez YAS, Teeuwisse AKM, Dreser A, Leufkens HG, Wirtz VJ. Impact of over-the-counter restrictions on antibiotic consumption in Brazil and Mexico. PLoS One 2013 16; 8(10): e75550.,1414. Castro MS, Pilger D, Ferreira MBC, Kopittkea L. Tendências na utilização de antimicrobianos em um hospital universitário, 1990-1996. Rev Saúde Públ 2002; 36(5): 553-8., havendo ainda pouca ênfase na situação da automedicação em idosos da comunidade.

Nesse contexto, o objetivo do presente estudo foi examinar as tendências da prática de automedicação dos idosos do Estudo Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento (SABE) entre 2006 e 2010.

MÉTODO

AMOSTRA E DESENHO DO ESTUDO

Esta investigação é parte do Estudo SABE1515. Lebrão ML, Duarte YAO. SABE - Saúde, Bem Estar e Envelhecimento - O projeto SABE no município de São Paulo: uma abordagem inicial [Internet]. Brasília: Athalaia Bureau; 2003 [cited 2006 Feb 20]. Available from: http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/l_saber.pdf.
http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/...
. A metodologia completa encontra-se no primeiro artigo deste suplemento. Nesta pesquisa, utilizaram-se as amostras de 2006 e 2010. Nestaúltima não foram considerados os idosos incluídos de 60 a 64 anos (coorte C), a fim de permitir comparações das mesmas populações participantes nos dois momentos, ou seja, os 1.413 idosos de 2006 e os 990 idosos do ano de 2010. Para a análise, levaram-se em conta, nos dois períodos, somente os idosos que usaram medicamentos. A Figura 1 ilustra o fluxograma da amostra.

Figura 1.
Fluxograma da amostra. Estudo SABE, São Paulo (2006 e 2010).

EXTRAÇÃO DOS DADOS

Os dados foram obtidos por meio de entrevistas domiciliares realizadas por entrevistadoras previamente treinadas1515. Lebrão ML, Duarte YAO. SABE - Saúde, Bem Estar e Envelhecimento - O projeto SABE no município de São Paulo: uma abordagem inicial [Internet]. Brasília: Athalaia Bureau; 2003 [cited 2006 Feb 20]. Available from: http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/l_saber.pdf.
http://www.opas.org.br/sistema/arquivos/...
. Aplicou-se um questionário constituído de seções relativas às condições de vida e ao estado de saúde da pessoa idosa. As seguintes perguntas foram feitas para a obtenção de informações sobre a utilização de medicamentos:

  1. O(a) Sr.(a) poderia me mostrar os remédios que atualmente está usando ou tomando?;

  2. O(a) Sr.(a) poderia me dizer o nome dos remédios que está usando ou tomando?;

  3. Quem os receitou?

A variável dependente foi a prática de automedicação, considerada como o uso referido de, pelo menos, um medicamento sem prescrição do médico ou dentista, indicado pelo farmacêutico/balconista da farmácia, enfermeiro, pelo próprio idoso ou por outros.

Os medicamentos identificados nos questionários foram classificados segundo o Anatomical Therapeutic Chemical (ATC) Classification System, adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

As variáveis independentes foram sociodemográficas: sexo; idade; escolaridade (em anos de estudo completos); renda per capita, considerada em salários-mínimos; e arranjo familiar; além das variáveis de estado de saúde: autopercepção da saúde (categorizada como muito boa/boa, regular e ruim/muito ruim), presença de doenças crônicas autorreferidas (hipertensão, diabetes, doença cardiovascular, doença cerebrovascular, osteoporose e doença osteoarticular, bem como o número total de doenças crônicas referidas) e sinais e sintomas autorreferidos; de medicamentos: quantidade e nome dos medicamentos; e de variáveis de uso e acesso a serviços: tipo de seguro-saúde e consulta médica nos últimos 12 meses.

O Estudo SABE foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não há conflito de interesses.

ANÁLISE ESTATÍSTICA

As características dos idosos foram avaliadas segundo a prática de automedicação nos anos de 2006 e 2010. As diferenças entre os grupos foram estimadas pelos testes de Wald, da igualdade média, e de Rao-Scott, que consideram pesos amostrais para as estimativas de população com ponderações populacionais.

Realizaram-se as análises por intermédio do Stata® versão 11 (módulo ST), levando-se em conta os pesos amostrais e as inferências considerando o efeito de desenho.

RESULTADOS

Na tendência relativa à prática de automedicação, evidencia-se redução marcante entre 2006 e 2010. No ano de 2006, estimou-se a prevalência de 42,3% (n = 525), e, em 2010, de 18,2% (n = 172) de idosos que utilizaram pelo menos um medicamento sem prescrição.

O perfil dos idosos que praticaram automedicação encontra-se na Tabela 1. Em 2006, houve diferenças significativas em relação aos idosos que não utilizaram automedicação nas variáveis sexo, idade, escolaridade, plano de saúde, polifarmácia e doença pulmonar. Em 2010, observou-se diferença significativa no tocante ao grupo que usou somente medicamentos prescritos nas variáveis idade, polifarmácia, realização de consulta médica no último ano e sintomas de saúde (falta de ar, fadiga, vertigem, náuseas e vômitos persistentes), apesar das doenças crônicas não terem sido significativas para a prática de automedicação (Tabela 1). A média de medicamentos consumidos na modalidade de automedicação apresentou tendência à elevação: 4,2 no ano de 2006 e 6,1 em 2010.

Tabela 1.
Distribuição proporcional dos idosos que praticaram automedicação segundo ano, variáveis sociodemográficas e condições de saúde. Estudo SABE, São Paulo (2006 e 2010).

Entre os idosos que relataram automedicação em 2006, 17,3% (n = 61) continuaram a relatar a prática em 2010. Do grupo que usava exclusivamente medicamentos prescritos, 83% (n = 381) dos participantes mantiveram-se consumindo apenas medicamentos prescritos em 2010 e 17% (n = 84) passaram a consumir pelo menos um medicamento não prescrito.

Nos anos de 2006 e 2010, foram identificados respectivamente 333 e 287 medicamentos distintos que pertenciam a 12 grupos da ATC. O Gráfico 1 ilustra esses medicamentos, segundo o sistema orgânico alvo (ATC - nível 1). O padrão relativo ao consumo destacado de medicamentos dos grupos de ação no trato alimentar e metabólico (Grupo A) e sistema nervoso (Grupo N) foi mantido nos anos analisados. Observa-se tendência de aumento de uso de tais medicamentos, incluindo também, os agentes que atuam nos sistemas geniturinário e dermatológico. Na maioria dos grupos da ATC (58,4%), verificou-se tendência de redução de consumo.

Gráfico 1.
Distribuição dos medicamentos de acordo com grupos terapêuticos e o período. EstudoSABE, São Paulo (2006 e 2010).

A Tabela 2 exibe que, nos anos de 2006 e de 2010, o padrão de uso dos medicamentos (nível 1) foi muito semelhante, destacando-se dipirona, polivitamínicos, diclofenaco e ácido acetilsalicílico (AAS). Na análise dos medicamentos, identificaram-se medicamentos potencialmente inapropriados (MPI), observando-se tendência de redução entre 2006 (26,4%) e 2010 (18,1%). Os MPI presentes nos dois períodos foram dexclorfeniramina, bisacodil, escopolamina, carisoprodol, diazepam, naproxeno, sulfato ferroso e piroxicam. Em 2006, outros MPI, como orfenadrina, ticlopidina, óleo mineral, difenidramina, cimetidina e estrogênios, foram usados na automedicação. No ano de 2010, o grupo de MPI foi menor e incluiu amitriptilina e clorpropamida. Entre os 20 medicamentos prevalentes nos períodos averiguados, verificou-se tendência de aumento entre os polivitamínicos, bisacodil, paracetamol e carisoprodol (Gráfico 2).

Tabela 2.
Distribuição dos 20 medicamentos (Nível 5) mais consumidos no grupo da automedicação. Estudo SABE, São Paulo (2006 e 2010).

Gráfico 2.
Distribuição dos dez medicamentos mais consumidos em ambos os períodos analisados. Estudo SABE, São Paulo (2006 e 2010).

O próprio idoso foi o principal responsável pela escolha do medicamento usado na automedicação nos anos de 2006 (65,2%) e 2010 (66,5%). A categoria outros, que incluiu vizinhos, amigos e parentes, ocupou o segundo lugar: 24,2% (2006) e 20,2% (2010).

DISCUSSÃO

O presente estudo mostra tendência de declínio da prática de automedicação entre idosos do SABE, nos anos de 2006 e 2010. As classes terapêuticas envolvidas nessa prática foram, predominantemente, os agentes de ação no trato alimentar e metabólico e sistema nervoso, destacando-se os polivitamínicos e analgésicos como dipirona e diclofenaco.

A automedicação, verificada em 42,3% dos idosos em 2006, foi muito próxima à encontrada em outros estudos, independentemente do país. Na Espanha e nos Estados Unidos, observou-se que a automedicação ocorreu em 46 e 50% dos idosos residentes em área urbana, nessa ordem1616. Neafsey PJ, Jarrín O, Luciano S, Coffman MJ. Self-medication practices of Spanish-speaking older adults in Hartford, Connecticut. Hisp Health Care Int 2007; 5(4): 169-79.,1717. Cobos F. Estudio de autoprescriptión en las residencias geriátricas de Granada. Rev Esp Geriatr Gerontol 1994; 29: 225-8.. No México, verificou-se a prevalência de 53,5% em idosos1818. Balbuena FR, Aranda AB, Figueras A. Self-medication in older urban Mexicans. Drugs & Aging 2009; 26(1): 51-60..

O consumo de medicamentos isentos de prescrição (MIP), especialmente nos grandes centros, pode ser motivado por valores que predominam na sociedade moderna. Soluções imediatas para problemas de saúde, facilidade de acesso aos produtos de venda livre, propaganda irrestrita nos meios de comunicação e ausência de legislação brasileira, em 2006, que limitasse a aquisição de medicamentos podem ter contribuído, em parte, para essa prática1919. Nascimento MC. Medicamentos apoio ou apoio à saúde? Rio de Janeiro: Vieira e Lent; 2003.,2020. Figueiras A, Camaño F, Gestal-Otero JJ. Sociodemographics factors related to self-medication in Spain. Eur J Epidemiol 2002; 16(1): 19-26..

Nesta investigação, uma possível explanação para a redução no padrão de automedicação, no ano de 2010, pode ter sido a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n.º 44/2009, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que proibiu a exposição de medicamentos em prateleiras de livre acesso em drogarias e farmácias. Desse modo, analgésicos como dipirona e paracetamol, que estiveram entre os dez mais consumidos, não ficavam tão próximos do consumidor, devendo permanecer do lado de dentro do balcão, fato que pode ter, de certa maneira, ajudado na diminuição da automedicação.

Nos períodos analisados, o padrão dessa prática variou de acordo com a idade. Em 2006, os idosos de 60 a 74 anos foram os principais praticantes da automedicação, em contraste com o ano de 2010, em que foram as pessoas com 75 anos ou mais.

A literatura é bastante divergente quanto à influência da idade na automedicação2121. Fillenbaun GG, Horner RD, Hanlon JT, Landerman LR, Dawson DV, Cohen HJ. Factors predicting changer in prescription and nonprescription drug use in a communith-residing Black and White elderly population. J Clin Epidemiol 1996; 49: 587-93.,2222. Fillenbaun GG, Hanlon JT, Corder EH, Ziqubu-Page T, Wall Jr. WE, Brock D. Prescription and nonprescription drug use among Black and White community-residing elderly. Am J Public Health 1993; 83: 1577-82., todavia esse achado, combinado ao fato de o próprio idoso ser o principal responsável pela indicação da automedicação, é sugestivo da busca pelo autocuidado a fim de estabelecer e manter a própria saúde. Um dos aspectos que favorece a automedicação é o fato de o idoso morar sozinho. Muitas vezes, ele é o único responsável pelo seu cuidado e, por vezes, se considera apto a selecionar o medicamento adequado para a solução dos problemas de saúde tidos como pequenos.

Nesses indivíduos, a busca por tratamento, principalmente de sintomas frequentes como dores, cansaço e má digestão, pode ser influenciada por experiências passadas, levando à utilização de receitas antigas, e pelos meios de comunicação. As propagandas constituem um estímulo à automedicação, pois as informações acerca dos medicamentos são incompletas, explorando o desconhecimento dos consumidores acerca das reações adversas dos medicamentos1916. Neafsey PJ, Jarrín O, Luciano S, Coffman MJ. Self-medication practices of Spanish-speaking older adults in Hartford, Connecticut. Hisp Health Care Int 2007; 5(4): 169-79..

Nesse contexto, o risco de problemas relativos à automedicação pode derivar de dois aspectos. Em primeiro lugar, por não ser acompanhado formalmente, o idoso desconhece sua condição clínica e a existência de alguma doença (potencial ou real). Sendo assim, seleciona o medicamento que julga apropriado. Em segundo, pode haver redução da acuidade visual, fazendo com que o idoso não compreenda a informação contida no rótulo do produto e apresente dificuldade na leitura da bula, podendo tomar o medicamento de modo equivocado. Estudo mostrou que 19% dos idosos que praticam automedicação com MIP têm dificuldade de entender a informação do rótulo e 12% não podem lê-lo1616. Neafsey PJ, Jarrín O, Luciano S, Coffman MJ. Self-medication practices of Spanish-speaking older adults in Hartford, Connecticut. Hisp Health Care Int 2007; 5(4): 169-79..

Aos moldes de estudos prévios 44. Vilarino JF, Soares IC, Silveira CM, Rodel APP, Bortoli R, Lemos RR. Perfil da automedicação em município do sul do Brasil. Rev Saúde Públ 1998; 32(1): 43-9.,1212. Cascaes EA, Falchetti ML, Galato D. Perfil da automedicação em idosos participantes de grupos da terceira idade de uma cidade do sul do Brasil. ACM Arq Catarin Med 2008; 37(1): 63-9.,2323. Coelho Filho JM, Marcopito LF, Castelo A. Perfil de utilização de medicamentos por idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saúde Públ 2004; 38(4): 557-64., entre os responsáveis pela indicação da automedicação, destacou-se o item outros, que pode incluir familiares/amigos/vizinhos. Os fatores que parecem favorecer a participação de terceiros na decisão do indivíduo são convívio social, troca de experiências vividas e grau de dependência do idoso. Independentemente do envolvido na indicação da automedicação, o uso de medicamentos sem a devida avaliação clínica é um risco.

No ano de 2006, a prática da automedicação ocorreu em pessoas idosas com baixa escolaridade (nenhuma e um a três anos), achado condizente com outras pesquisas brasileiras1212. Cascaes EA, Falchetti ML, Galato D. Perfil da automedicação em idosos participantes de grupos da terceira idade de uma cidade do sul do Brasil. ACM Arq Catarin Med 2008; 37(1): 63-9.,2323. Coelho Filho JM, Marcopito LF, Castelo A. Perfil de utilização de medicamentos por idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saúde Públ 2004; 38(4): 557-64.,2424. Bortolon PC, Medeiros EFF, Naves JOS, Karnikowski M, Planton J, Edlund BJ. Strategies for reducing polypharmacy in older adults. J Gerontol Nurs 2010; 36(1): 8-12. e no México1818. Balbuena FR, Aranda AB, Figueras A. Self-medication in older urban Mexicans. Drugs & Aging 2009; 26(1): 51-60.. Idosos com baixa escolaridade podem ter subjacentes elementos como menor poder aquisitivo e menos acesso aos serviços de saúde, havendo dependência exclusiva do serviço público. A precariedade dos serviços públicos e o baixo poder aquisitivo dos idosos contrastam com a facilidade de obtenção de medicamentos, sem pagamento de consulta e sem prescrição médica. No SABE, semelhante ao Bambuí2525. Bortolon PC, Medeiros EFF, Naves JOS, Karnikowski MGO, Nóbrega OT. Análise do perfil de automedicação em mulheres idosas brasileiras. Ciênc Saúde Coletiva 2008; 13(4): 219-26., a busca pela automedicação pareceu substituir a atenção médica nos indivíduos de baixa escolaridade.

Nos anos de 2006 e 2010, a polifarmácia mostrou diferença significativa em relação ao grupo que usou somente medicamentos prescritos. Entre pessoas idosas, polifarmácia e automedicação são fenômenos que tendem a coexistir. O atendimento do idoso por vários prescritores, o tratamento inadequado gerado pela falta de seguimento sistematizado e a facilidade de acesso às farmácias são elementos que podem contribuir para o maior consumo de medicamentos. Na resolução de problemas frequentes como, dores articulares, má digestão e constipação, muitas vezes é mais cômodo recorrer à caixinha de remédios caseira e utilizar medicamentos disponíveis do que procurar por atendimento médico, sobretudo quando há dependência da ajuda de terceiros ou baixo poder aquisitivo. É frequente o idoso apresentar de duas a seis receitas médicas e automedicar-se com dois ou mais medicamentos2626. Loyola-Filho AL, Uchoa E, Guerra HL, Firmo JOA, Lima-Costa MF. Prevalência e fatores associados à automedicação: resultados do projeto Bambuí. Rev Saúde Públ 2002; 36(1): 55-62..

Na atualidade, polifarmácia e automedicação inapropriada são reconhecidas como problemas relacionados a medicamentos capazes de ocasionar desfechos negativos, como reações adversas, interações medicamentosas perigosas, erros de medicação e aumento da morbimortalidade do idoso22. Secoli, SR. Polifarmácia: interações e reações adversas no uso de medicamentos por idosos. Rev Bras Enferm 2010; 63(1): 136-40.,2727. Prybys KM, Melville K, Hanna J, Gee A, Chyka P. Polypharmacy in the elderly: clinical challenges in emergency practice: part 1. Overview, etiology, and drug interactions. Emerg Med Rep 2002; 23(1): 145-53.,2828. Secoli SR, Figueras A, Lebrão ML, Lima FD, Santos JL. Risk of potential drug-drug interactions among Brazilian elderly. Drugs & Aging 2010: 27(9): 759-70.. Estudo demonstrou que, em casas de repouso, para cada dólar americano (US$) gasto com medicamentos, foi necessário US$ 1,33 para tratar os eventos adversos a medicamentos2929. Bootman JL, Harrison DL, Cox E. The health care cost of drug-related morbidity and mortality in nursing facilities. Arch Intern Med 1997; 157: 2089-96.. A automedicação, particularmente, pode mascarar sintomas ou doenças e atrasar o diagnóstico de enfermidades graves22. Secoli, SR. Polifarmácia: interações e reações adversas no uso de medicamentos por idosos. Rev Bras Enferm 2010; 63(1): 136-40.,1616. Neafsey PJ, Jarrín O, Luciano S, Coffman MJ. Self-medication practices of Spanish-speaking older adults in Hartford, Connecticut. Hisp Health Care Int 2007; 5(4): 169-79.,2121. Fillenbaun GG, Horner RD, Hanlon JT, Landerman LR, Dawson DV, Cohen HJ. Factors predicting changer in prescription and nonprescription drug use in a communith-residing Black and White elderly population. J Clin Epidemiol 1996; 49: 587-93..

Nos períodos analisados, as classes terapêuticas predominantes na automedicação foram as dos medicamentos com ação no sistema nervoso (Grupo N) e no trato alimentar e metabolismo (Grupo A), achado que se assemelha a outros estudos66. Carrasco-Garrido P, Jiménez-García R, Barrera VH, Gil de Miguel A. Predictive factors of self-medicated drug use among the Spanish adult population. Pharmacoepidemiol Drug Saf 2008; 17(2): 193-9.,2626. Loyola-Filho AL, Uchoa E, Guerra HL, Firmo JOA, Lima-Costa MF. Prevalência e fatores associados à automedicação: resultados do projeto Bambuí. Rev Saúde Públ 2002; 36(1): 55-62., muitos deles pertencentes a classes terapêuticas que integram o rol dos MIP.

A alta prevalência de medicamentos do grupo N deve-se principalmente ao fato de os analgésicos como dipirona, AAS e paracetamol serem incluídos nesse grupo, segundo a classificação ATC. Esses agentes, por apresentarem ações farmacológicas abrangentes (redução da febre, alívio da dor e diminuição da inflamação), são úteis no tratamento de condições agudas e crônicas encontradas nos idosos3030. Goh LY, Vitry AI, Semple SJ, Esterman A, Luszcz MA. Self-medication with over-the-counter drugs and complementary medications in South Australia's elderly population. BMC Complement Altern Med 2009; 9: 42. doi: 10.1186/1472-6882-9-42.
https://doi.org/10.1186/1472-6882-9-42...
. De modo similar ao SABE, esses medicamentos foram os mais consumidos por idosos de áreas urbanas de diferentes países 88. Nunes de Melo M, Madureira B, Ferreira APN, Mendes Z, Miranda AC, Martins AP. Prevalence of self-medication in rural areas of Portugal. Pharm World Sci 2006; 28(1): 19-25.,1010. Albarrán KF, Zapata LV. Analysis and quantification of self-medication patterns of customers in community pharmacies in southern Chile. Pharm World Sci. 2008; 30(6): 863-8.,1818. Balbuena FR, Aranda AB, Figueras A. Self-medication in older urban Mexicans. Drugs & Aging 2009; 26(1): 51-60.,2020. Figueiras A, Camaño F, Gestal-Otero JJ. Sociodemographics factors related to self-medication in Spain. Eur J Epidemiol 2002; 16(1): 19-26.,2323. Coelho Filho JM, Marcopito LF, Castelo A. Perfil de utilização de medicamentos por idosos em área urbana do Nordeste do Brasil. Rev Saúde Públ 2004; 38(4): 557-64.,3030. Goh LY, Vitry AI, Semple SJ, Esterman A, Luszcz MA. Self-medication with over-the-counter drugs and complementary medications in South Australia's elderly population. BMC Complement Altern Med 2009; 9: 42. doi: 10.1186/1472-6882-9-42.
https://doi.org/10.1186/1472-6882-9-42...
.

Em consonância com investigações conduzidas em diversos países, as vitaminas foram os medicamentos com ação no trato alimentar e metabolismo mais usados 2020. Figueiras A, Camaño F, Gestal-Otero JJ. Sociodemographics factors related to self-medication in Spain. Eur J Epidemiol 2002; 16(1): 19-26.,2222. Fillenbaun GG, Hanlon JT, Corder EH, Ziqubu-Page T, Wall Jr. WE, Brock D. Prescription and nonprescription drug use among Black and White community-residing elderly. Am J Public Health 1993; 83: 1577-82.,2626. Loyola-Filho AL, Uchoa E, Guerra HL, Firmo JOA, Lima-Costa MF. Prevalência e fatores associados à automedicação: resultados do projeto Bambuí. Rev Saúde Públ 2002; 36(1): 55-62.,3030. Goh LY, Vitry AI, Semple SJ, Esterman A, Luszcz MA. Self-medication with over-the-counter drugs and complementary medications in South Australia's elderly population. BMC Complement Altern Med 2009; 9: 42. doi: 10.1186/1472-6882-9-42.
https://doi.org/10.1186/1472-6882-9-42...
. No mundo todo, o consumo de vitaminas foi crescente, sobretudo nos anos 1970, com a crença popular de que esses produtos seriam capazes de proporcionar vida longa e saudável. Por isso, entre os idosos, o consumo de vitaminas, ainda hoje, é maior do que em outros estratos etários. Esse comportamento parece ser reforçado pela mídia e pelos próprios familiares. Todavia, como no tocante a qualquer outro medicamento, os efeitos não são inócuos à saúde, podendo seu uso indiscriminado acarretar intoxicação. Além disso, muitos idosos utilizam complexos vitamínicos que são formulados com dose fixa de princípio ativo. Issopode ser um problema, na medida em que as necessidades individuais de um determinado componente podem variar de acordo com a condição física de cada indivíduo. Assim, o uso desses complexos pode levar ao consumo de vitaminas desnecessárias e à ingestão insuficiente daquelas que são, de fato, essenciais.

A tendência da automedicação no que tange às classes terapêuticas mais consumidas foi muito semelhante nos anos de 2006 e 2010. No entanto, numa análise mais detalhada, verificou-se que houve tendência ao declínio do uso de MPI, conforme Fick etal.3131. Fick DM, Cooper JW, Wade WE, Waller JL, Maclean JR, Beers MH. Updating the beers criteria for potentially inappropriate medication use in older adults. Arch Inter Med 2003; 163(22): 2716-25.. No ano de 2006, um em cada quatro medicamentos (26,4%) era inapropriado. Em 2010, o percentual foi de 18,1%. Apesar dessa redução, MPI como dexclorfeniramina, bisacodil, escopolamina, carisoprodol, diazepam, naproxeno, sulfato ferroso e piroxicam mantiveram-se presentes nos dois períodos. Uma possível explanação para esse padrão é a de que esses MPI tenham sido prescritos no passado, sobretudo aqueles que são controlados e dos quais tenha havido sobras.

Nesse tópico, particularmente, é importante ressaltar que aspectos mais técnicos relacionados aos medicamentos podem influenciar o consumo inapropriado. A comercialização de produtos em quantidades maiores do que as estabelecidas na prescrição médica faz com que, ao término do tratamento, haja sobra de medicamentos. Esse fato pode induzir à reutilização dos medicamentos em situações nas quais os sintomas parecem ser iguais, como é o caso de quadros alérgicos, constipação intestinal e cólicas abdominais.

CONCLUSÃO

No âmbito da farmacoepidemiologia geriátrica, este estudo traz importantes contribuições. Trata-se da primeira investigação que demonstra, por meio de uma investigação de base populacional, a redução da prática de automedicação no período de quatro anos, apesar da manutenção do consumo de classes terapêuticas que atuam no sistema nervoso e no trato alimentar e digestivo. Foram averiguadas duas coortes de idosos, e o instrumento empregado para avaliar a variável dependente foi o mesmo. A pergunta relativa à automedicação foi particularizada a cada medicamento referido pelo idoso, possibilitando identificar, no conjunto dos medicamentos informados, o que havia sido usado, de fato, na modalidade de interesse. Na análise dos medicamentos, identificaram-se também os MPI, segundo os critérios de Fick etal.3131. Fick DM, Cooper JW, Wade WE, Waller JL, Maclean JR, Beers MH. Updating the beers criteria for potentially inappropriate medication use in older adults. Arch Inter Med 2003; 163(22): 2716-25., aspecto que demonstra que é fundamental, por parte dos profissionais da saúde, a reavaliação periódica dos benefícios e riscos de todos os medicamentos utilizados pelo idoso.

O estudo apresenta limitações que devem ser consideradas quanto às implicações dos achados. Na automedicação, não foram analisadas as plantas medicinais ainda que sejam reconhecidos os problemas relacionados a elas. A coleta de dados não permitiu identificar o motivo que levou o idoso a se automedicar, a dose nem o tempo de uso do medicamento. Assim, medicamentos como a aspirina não puderam ser examinados quanto à indicação do uso (dependente da dose). No tocante ao responsável pela indicação do medicamento, a categoria outros não possibilitou identificar quem foi o responsável, limitando a comparação do SABE com outros estudos.

Por fim, apesar da tendência ao declínio da prática de automedicação entre idosos do SABE, entre os anos 2006 e 2010, os achados reforçam a importância de monitorar, avaliar e educar continuamente os idosos acerca dos riscos e benefícios do consumo de medicamentos, sobretudo daqueles isentos de prescrição.

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  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos n.º 2005/54947-2 e n.º 2009/53778-3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 2019

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2014
  • Revisado
    20 Ago 2014
  • Aceito
    15 Out 2014
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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