RESUMO:
Objetivo:
Barreiras à comunicação são principais dificultadores do acesso de pessoas com deficiência sensorial (visual e auditiva) aos serviços de saúde. Os objetivos do estudo foram analisar a prevalência e os fatores associados à presença de facilitadores à comunicação nas unidades básicas de saúde no Brasil.
Métodos:
Estudo transversal multinível sobre dados de 38.811 unidades de saúde de 5.543 municípios, entre 2012 e 2013, coletados no Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB). Desfecho criado agrupando facilitadores à comunicação (material em relevo/braille; recurso auditivo; comunicação visual; listagem acessível de ações do serviço; profissional para acolhimento de usuário com deficiência sensorial). As variáveis de exposição do nível I (contextuais) foram: macrorregião, porte populacional e produto interno bruto (PIB) per capita. No nível II, (serviço) foram: equipe ampliada; modelo de atenção; turnos de atendimento; sala de acolhimento; divulgação do horário de atendimento; presença de facilitadores ao acesso físico. Utilizou-se regressão de Poisson multinível com modelagem hierárquica em dois estágios.
Resultados:
A presença dos facilitadores à comunicação é pequena nas unidades de saúde (32,1%), sendo mais frequentes nas unidades localizadas nos municípios com maior PIB (razão de prevalência - RP = 1,02, intervalo de confiança de 95% - IC95% 0,92 - 1,12) e porte populacional (RP = 1,25, IC95% 1,02 - 1,52).
Conclusão:
Ter profissional para acolhimento é o principal facilitador ao acesso e deve ser foco de ações para melhorar a atenção à saúde das pessoas com deficiência. Faz-se necessário promover acesso universal, com adequação de serviços, remoção de barreiras à comunicação e estímulo ao acolhimento do usuário.
Palavras-chave:
Barreiras de comunicação; Atenção primária à saúde; Pessoas com deficiência; Acolhimento
INTRODUÇÃO
As deficiências físicas e sensoriais (auditivas e visuais) são as deficiências mais prevalentes tanto no Brasil quanto no mundo, e o envelhecimento populacional está diretamente relacionado com o aumento desses tipos de deficiência, visto que são majoritariamente adquiridas ao longo da vida11. Stevens GA, White RA, Flaxman SR, Price H, Jonas JB, Keeffe J, et al. Global Prevalence of Vision Impairment and Blindness: Magnitude and Temporal Trends, 1990-2010, Ophthalmology 2013; 120(12): 2377-84. https://doi.org/10.1016/j.ophtha.2013.05.025
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... ,22. Malta DC, Stopa SR, Canuto R, Gomes NL, Mendes VL, Goulart BN, et al. Prevalência autorreferida de deficiência no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Ciên Saúde Coletiva 2016; 21(10): 3253-64. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.17512016
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . A prevalência mundial de deficiências é de 15,3% da população e de deficiências graves, com grande comprometimento das habilidades diárias, de 2,9%. No entanto, entre indivíduos idosos (acima de 60 anos), 10,2% relatam deficiências graves, precisando de auxílio33. World Health Organization. Global data on visual impairments 2010. Genebra: World Health Organization; 2012.. No Brasil, a prevalência de deficiência autorreferida foi de 6,2% (cerca de 12,4 milhões de pessoas), aumentando para 18,2% nos idosos. A deficiência visual foi a mais frequente (3,6%), e a deficiência auditiva acomete 1,1% da população, ambas prevalências aumentam conforme a idade (11,5 e 5,2% aos 60 anos, respectivamente)22. Malta DC, Stopa SR, Canuto R, Gomes NL, Mendes VL, Goulart BN, et al. Prevalência autorreferida de deficiência no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Ciên Saúde Coletiva 2016; 21(10): 3253-64. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.17512016
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... . Essa distribuição das deficiências é semelhante aos valores apresentados em outros países, como a China44. Zheng X, Chen G, Song X, Liu J, Yan L, Du W, et al. Twenty-year trends in the prevalence of disability in China. Bull World Health Organ 2011; 89: 788-97. https://doi.org/10.2471/BLT.11.089730
https://doi.org/https://doi.org/10.2471/... e os Estados Unidos55. Schiller JS, Lucas JW, Peregoy JA. Summary health statistics for U.S. adults: National Health Interview Survey, 2011. Vital Health Stat 10 2012; (256): 1-218..
As pessoas com deficiência apresentam mais necessidades não atendidas de saúde66. Casey R. Disability and unmet health care needs in Canada: A longitudinal analysis. Disabil Health J 2015; 8(2): 173-81. https://doi.org/10.1016/j.dhjo.2014.09.010
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... ,77. Krahn GL, Walker DK, Correa-De-Araujo R. Persons with disabilities as an unrecognized health disparity population. Am J Public Health 2015; 105(S2): S198-S206. https://doi.org/10.2105/AJPH.2014.302182
https://doi.org/https://doi.org/10.2105/... , isto é, referem maior dificuldade em conseguir solucionar os problemas de saúde em comparação a pessoas sem deficiência. O acesso aos serviços de saúde também é mais difícil88. de Vries McClintock HF, Barg FK, Katz SP, Stineman MG, Krueger A, Colletti PM, et al. Health care experiences and perceptions among people with and without disabilities. Disabil Health J 2016; 9(1): 74-82. https://doi.org/10.1016/j.dhjo.2015.08.007
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... . As barreiras a esse acesso podem ser classificadas em três categorias: estrutural, financeira e pessoal/cultural99. Institute of Medicine. Access to health care in America. Washington, D.C.: National Academy Press; 1993.. Essas barreiras não comprometem o acesso exclusivamente das pessoas com deficiência, mas tendem a ser mais graves para essa parcela da população1010. Scheer J, Kroll T, Neri MT, Beatty P. Access barriers for persons with disabilities: the consumer’s perspective. J Disabil Policy Stud 2003; 13(4): 221-30. https://doi.org/10.1177/104420730301300404
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... ,1111. Drainoni ML, Lee-Hood E, Tobias C, Bachman SS, Andrew J, Maisels L. Cross-disability experiences of barriers to health-care access: consumer perspectives. J Disabil Policy Stud 2006; 17(2): 101-15. https://doi.org/10.1177/10442073060170020101
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... .
Pessoas com deficiência auditiva relatam as barreiras à comunicação como principal entrave à acessibilidade da saúde, tanto em relação à interação com o profissional de saúde quanto em relação às informações disponíveis no serviço1212. Alexander A, Ladd P, Powell S. Deafness might damage your health. Lancet 2012; 379(9820): 979-81. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(11)61670-X
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... . As principais queixas levantadas são: problemas de comunicação durante exame clínico e anamnese; dificuldade de entendimento sobre a prescrição, o que interfere na segurança medicamentosa; falta de informação sobre qual a melhor forma de comunicação não verbal para o paciente surdo; além de dificuldades na sala de espera e para agendamento das consultas1313. Iezzoni LI, O’Day BL, Killeen M, Harker H. Communicating about health care: observations from persons who are deaf or hard of hearing. Ann Intern Med 2004; 140 (5): 356-62. https://doi.org/10.7326/0003-4819-140-5-200403020-00011
https://doi.org/https://doi.org/10.7326/... .
Pessoas com deficiência visual também apresentam grande dificuldade no acesso aos serviços de saúde. Foram referidas por pessoas cegas ou com baixa visão barreiras a comunicação, acesso físico, informação (materiais escritos em formato inacessível) e barreiras atitudinais, como falta de respeito ou de preocupação em relação ao pensamento do médico de que o indivíduo não consegue cuidar de sua própria saúde1414. O’Day BL, Killen M, Iezzoni LI. Improving health care experiences of persons who are blind or have low vision: suggestions from focus group. Am J Med Qual 2004; 19(5): 193-200. https://doi.org/10.1177/106286060401900503
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... . Idosos com deficiência visual, quando comparados a idosos sem a deficiência, apresentaram mais comorbidades e condições secundárias a doenças (como diabetes, hipertensão arterial sistêmica e derrame), maior limitação de atividades da vida diária, como caminhar, preparar a refeição ou tomar medicações, além de maior restrição da vida social1515. Crews J, Campbell V. Health Conditions, Activity Limitations, and Participation Restrictions Among Older People with Visual Impairments. J Vis Impair Blind 2001; 95(8): 453-67. https://doi.org/10.1177/0145482X0109500802
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... .
Os profissionais de saúde também percebem que o acesso da população com deficiência sensorial é mais complexo, reportando maior dificuldade em atender pessoas com limitação de comunicação e deficiência visual do que usuários com mobilidade reduzida ou deficiência cognitiva1616. Bachman SS, Vedrani M, Drainoni ML, Tobias C, Maisels L. Provider perceptions of their capacity to offer accessible health care for people with disabilities. J Disability Policy Stud 2006; 17(3): 130-36. https://doi.org/10.1177/10442073060170030101
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... . Tanto usuários como profissionais relatam a necessidade de treinamento e educação permanente da equipe de saúde para reduzir as barreiras à comunicação1717. Morrison EH, George V, Mosqueda L. Primary care for adults with physical disabilities: perceptions from consumer and provider focus groups. Fam Med 2008; 40(9): 645-51., o aumento da conscientização e do conhecimento, o empoderamento dos usuários com deficiência e a criação de políticas públicas para a melhora dos cuidados em saúde1818. McClintock HF, Kurichi JE, Barg FK, Krueger A, Colletti PM, Wearing KA, et al. Health care access and quality for persons with disability: Patient and provider recommendations. Disabil Health J 2018; 11(3): 382-9. https://doi.org/10.1016/j.dhjo.2017.12.010
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... .
A literatura é bem consistente em relação às barreiras para deficiências físicas que dificultam o acesso às unidades de saúde1919. Mudrick NR, Breslin ML, Liang M, Yee S. Physical accessibility in primary health care settings: results from California on-site reviews. Disabil Health J 2012; 5(3): 159-67. https://doi.org/10.1016/j.dhjo.2012.02.002
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... ,2020. Siqueira FCV, Facchini LA, Silveira DS, Piccini RX, Thumé E, Tomasi E. Barreiras arquitetônicas a idosos e portadores de deficiência física: um estudo epidemiológico da estrutura física das unidades básicas de saúde em sete estados do Brasil. Ciên Saúde Coletiva 2009; 14(1): 39-44. https://doi.org/10.1590/S1413-81232009000100009
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,2121. Martins KP, Costa TF, Medeiros TM, Fernandes MGM, França ISX, Costa KNFM. Estrutura interna de Unidades de Saúde da Família: acesso para as pessoas com deficiência. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21(10): 3153-60. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.20052016
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... , no entanto não foi encontrado estudo de base populacional com foco nas barreiras à comunicação nos serviços de atenção primária à saúde, a qual é porta de entrada preferencial da rede de atenção à saúde. Pressupõe-se também que as variáveis contextuais, ligadas ao município onde unidades de saúde dos estudos referidos estão inseridas, podem influenciar na acessibilidade dos serviços, dado que os serviços de atenção primária são organizados e ofertados pelos sistemas municipais de saúde. Mediante o exposto, os objetivos deste trabalho foram descrever e analisar os facilitadores e as barreiras ao acesso para a utilização dos serviços de atenção básica pelas pessoas com deficiências sensoriais (auditivas e visuais).
MÉTODOS
DELINEAMENTO
Foi realizado estudo observacional transversal, com abordagem analítica multinível, com base em dados do Ciclo I do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) e dados contextuais dos municípios.
CENÁRIO
Em 2011, o Brasil implementou o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), cujo principais objetivos foram a ampliação do acesso e a melhoria da qualidade da atenção básica2222. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ): manual instrutivo. Brasília: Ministério da Saúde; 2012. 62 p.. A avaliação externa do PMAQ-AB foi conduzida de forma multicêntrica e integrada por Instituições de Ensino e Pesquisa independentes, com o acompanhamento direto do Ministério da Saúde. O Ciclo I do PMAQ-AB ocorreu entre 2011 e 2013 em todo o território brasileiro. O instrumento de avaliação externa do primeiro ciclo do PMAQ-AB foi organizado em três módulos:
Unidades Básicas de Saúde (UBS);
Equipes de Atenção Básica;
Usuários dos serviços de atenção básica.
Neste artigo, foram utilizadas informações do módulo I.
COLETA DE DADOS
Os dados foram coletados in loco em todas as UBS brasileiras, entre maio e dezembro de 2012, com instrumento padronizado e testado previamente, utilizando-se computadores portáteis do tipo tablet. O coordenador da equipe respondeu ao instrumento de coleta de dados, o qual foi conferido pelo avaliador externo. Os avaliadores externos, que coletaram os dados, passaram por treinamento com duração de uma semana baseado no manual de campo elaborado pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde2323. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Instrumento de Avaliação Externa do Saúde Mais Perto de Você - Acesso e Qualidade. Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Brasília: Ministério da Saúde ; 2013. 126 p..
VARIÁVEIS DE INTERESSE
Foram utilizadas as variáveis do bloco relacionado à acessibilidade a usuários com deficiência visual e/ou auditiva, diminuição da visão e/ou audição ou que não sabem ler. O desfecho foi criado utilizando-se as variáveis da pergunta do instrumento de avaliação externa do PMAQ: “A unidade de saúde garante acessibilidade a usuários que não sabem ler, com diminuição da visão e/ou audição ou com deficiência visual e/ou auditiva?” do instrumento de avaliação externa do PMAQ. Foram agrupadas as seguintes variáveis: presença de material com caracteres em relevo, braille ou figuras em relevo; recurso auditivo (sonoro); comunicação visual (sinalização por texto, desenhos e figuras) indicando ambientes ou serviços da UBS; listagem (escopo) de ações do serviço para que pessoas com deficiência tenham acesso; e existência de profissional para acolhimento de usuários com deficiência visual ou auditiva. Todas as questões tinham como opções de resposta categóricas “sim, não, não sabe/não respondeu”. Após a soma dos facilitadores, a variável foi dicotomizada em: não ter nenhum facilitador ou ter um ou mais facilitadores. A escolha pela análise conjunta das barreiras à comunicação auditiva e visual deu-se em função da pequena frequência dos facilitadores específicos para cada tipo de deficiência sensorial.
As variáveis de exposição do nível I relacionadas às características contextuais dos municípios foram macrorregião, porte populacional e produto interno bruto (PIB) per capita, as quais foram coletadas na base de dados secundários oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O ano base para as informações referentes à densidade demográfica, ao porte populacional do município e para o PIB per capita foi 2010.
No nível II, as variáveis relacionadas às UBS, selecionadas de maneira exploratória, foram: equipe profissional ampliada na Atenção Básica; modelo de atenção (tradicional e Estratégia de Saúde da Família (ESF)/parametrizada); turnos de atendimento; sala de acolhimento; divulgação do horário de atendimento e presença de facilitadores ao acesso físico (calçada em boas condições, piso antiderrapante, piso regular, rampa de acesso, corrimão e ausência de tapete). A equipe profissional mínima é composta de médico, enfermeiro e técnico em enfermagem, e a equipe ampliada pode contar com diversos outros profissionais, como psicólogo, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, entre outros. Para este estudo, foi considerada equipe ampliada as que contavam com psicólogo e/ou assistente social. Em relação ao modelo de atenção, dividiram-se os modelos em modelo tradicional (UBS, com maior população adstrita) e ESF/parametrizadas (unidades que contam com ESF ou são parametrizadas de forma a trabalhar nos moldes desse modelo de atenção). Todas as variáveis foram coletadas na avaliação externa do PMAQ-AB.
VIESES
Para evitar o viés de informação e aferição, foi utilizado o mesmo instrumento para coleta de dados por todos os avaliadores externos. Os avaliadores também contaram com a presença de um supervisor de campo.
ANÁLISE ESTATÍSTICA
Os dados foram analisados no software Stata 11 e no SPSS 20. Foram realizadas análises das frequências absolutas e relativas das variáveis estudadas. Regressão de Poisson Multinível2424. Bastos LS, Oliveira RVC, Velasque LS. Obtaining adjusted prevalence ratios from logistic regression models in cross-sectional studies. Cad Saúde Pública 2015; 31(3): 487-95. https://doi.org/10.1590/0102-311X00175413
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... ,2525. Spiegelman D, Hertzmark E. Easy SAS calculations for risk or prevalence ratios and differences. Am J Epidemiol 2005; 162(3): 199-200. https://doi.org/10.1093/aje/kwi188
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/... ,2626. Barros AJD, Hirakata VN. Alternatives for logistic regression in cross-sectional studies: an empirical comparison of models that directly estimate the prevalence ratio. BMC Med Res Methodol 2003; 3: 21. https://doi.org/10.1186/1471-2288-3-21
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/... (comando xtpoisson, com o subcomando re para os efeitos randômicos)2727. Rabe-Hesketh S, Skrondal A. Multilevel and Longitudinal Modeling Using Stata. 2ª ed. Stata Press; 2008. foi utilizada para obtenção das razões de prevalências brutas e ajustadas com respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) e nível de significância de 5%. A modelagem utilizada foi hierárquica2828. Fuchs SC, Victora CG, Fachel J. Modelo hierarquizado: uma proposta de modelagem aplicada à investigação de fatores de risco para diarreia grave. Rev Saúde Pública 1996; 30(2): 168-78. https://doi.org/10.1590/S0034-89101996000200009
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... em dois estágios: Modelo 1 (apenas as variáveis contextuais no ajuste dentro do próprio bloco) e Modelo 2 (as variáveis contextuais com p < 10% do modelo 1, mais as variáveis do nível UBS). Para análise de ajuste dos modelos foram utilizados os parâmetros deviance, Akaike information criterion (AIC) e Bayesian information criterion (BIC). O modelo teórico utilizado foi adaptado de Donabedian2929. Donabedian A. The quality of care. How can it be assessed? JAMA 1988; 260(12): 1743-8. https://doi.org/10.1001/jama.260.12.1743
https://doi.org/https://doi.org/10.1001/... (Figura 1).
ASPECTOS ÉTICOS
A pesquisa foi realizada em conformidade com os princípios da Declaração de Helsinque e as diretrizes e normas de pesquisa envolvendo seres humanos da Resolução nº 446/2011, do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Para a realização da coleta de dados referente à avaliação externa, o PMAQ foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sendo aprovado em 13 de março de 2012, número de registro de 21.904.
RESULTADOS
Foram avaliadas 38.811 UBS de 5.543 municípios, alcançando 99,6% dos municípios brasileiros. Os facilitadores à comunicação mais prevalentes foram: profissionais para acolhimento (21,1%), disponibilidade de lista de serviços acessíveis para pessoas com deficiência (10,8%) e desenho dos serviços de saúde (8,6%). Recursos auditivos e materiais disponíveis em braille foram encontrados em menos de 1% dos serviços. Mesmo agrupando os facilitadores para a criação do desfecho, apenas 32,1% das UBS contaram com um ou mais facilitadores à comunicação (Tabela 1).
As macrorregiões Sudeste e Sul tiveram melhores resultados (presença de pelo menos 1 facilitador em 39,0% e 36,3% das unidades, respectivamente), bem como os municípios com maior PIB e porte populacional (mais de 500 mil habitantes). Em relação às unidades de saúde, contar com sala de acolhimento, ter psicólogo e assistente social e divulgar os horários de atendimento também estiveram mais associados à presença de facilitadores à comunicação (Tabela 1).
Na análise multinível, as cidades da Região Sudeste (RP = 1,67, IC95% 1,48 - 1,89) e Sul (RP = 1,50, IC95% 1,31 - 1,71) tiveram maior prevalência de ao menos um facilitador ao acesso, assim como os municípios com maior porte populacional (RP = 1,32, IC95% 1,06 - 1,65) e com maior PIB (3º tercil) (RP = 1,12, IC95% 1,01 - 1,23), quando comparados às demais categorias (Tabela 2).
Em relação às unidades de saúde, aquelas que divulgavam seu horário de atendimento (RP = 1,56, IC95% 1,49 - 1,63) e as que faziam parte da ESF (RP = 1,50, IC95% 1,38 - 1,62) obtiveram melhores resultados. Contar com estrutura física adequada, com os cinco facilitadores ao acesso físico - calçada em boas condições, piso antiderrapante, piso regular, rampa de acesso, corrimão e ausência de tapete - (RP = 1,41, IC95% 1,19 - 1,68) e com sala para acolhimento (RP = 1,28, IC95% 1,22 - 1,35) também estiveram associados com a presença de facilitadores ao acesso à comunicação (Tabela 2).
Houve melhora nos parâmetros de ajuste dos modelos: modelo vazio (deviance = 51465.022 / AIC = 51469.02 / BIC = 51486.16), modelo 1 (deviance = 51270.934 / AIC = 51294.93 / BIC = 51397.73) e modelo 2 (deviance = 39918.484 / AIC = 39966.48 / BIC = 40167.09).
DISCUSSÃO
No Brasil, poucas UBS contaram com os facilitadores à comunicação. Entre as 38.811 unidades de saúde avaliadas pelo estudo, a presença de profissionais para o acolhimento foi importante facilitador à comunicação. Por outro lado, recursos auditivos e materiais estavam disponíveis em menos de 1% dos serviços de saúde. Destaca-se que os melhores resultados foram apresentados pelas regiões Sudeste e Sul, bem como pelos municípios de maior PIB e maior porte populacional. Para as unidades de saúde, a divulgação do horário de atendimento e o modelo de atenção da ESF mantiveram-se associadas à presença de facilitadores ao acesso à comunicação.
Em alguns países, sobretudo no Brasil, as diferenças macrorregionais em saúde referentes ao acesso, à utilização e ao desempenho dos serviços de saúde possuem evidência científica bem discriminada. Espera-se que sistemas de saúde bem estruturados e racionais tenham como porta de entrada atenção primária oferecida a toda a população, independentemente da situação econômica. No entanto, sabe-se que as iniquidades macrorregionais por condições socioeconômicas e as características ambientais relacionadas aos sistemas de saúde3030. Andersen RM. National health surveys and the behavioral model of health services use. Med Care 2008; 46(7): 647-53. https://doi.org/10.1097/MLR.0b013e31817a835d
https://doi.org/https://doi.org/10.1097/... também interferem na utilização dos serviços de saúde. As regiões Sudeste e Sul apresentaram resultados melhores no índice de desenvolvimento humano3131. Duarte CM, Pedroso MD, Bellido JG, Moreira RD, Viacava F. Regionalização e desenvolvimento humano: uma proposta de tipologia de Regiões de Saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2015; 31(6): 1163-74. https://doi.org/10.1590/0102-311X00097414
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... e maior utilização de serviços de saúde3232. Stopa SR, Malta DC, Monteiro CN, Szwarcwald CL, Goldbaum M, Cesar CL. Acesso e uso de serviços de saúde pela população brasileira, Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Rev Saúde Pública 2017; 51(Supl. 1). http://dx.doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051000074
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... . Em contrapartida, as regiões Norte e Nordeste que apresentam maiores percentuais de atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), tiveram piores resultados. Isto reforça a necessidade de adequação desses serviços às realidades loco-regionais com vistas à redução das iniquidades3333. Viacava F, Bellido JG. Condições de saúde, acesso a serviços e fontes de pagamento, segundo inquéritos domiciliares. Ciên Saúde Coletiva 2016; 21(2): 351-70. https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.19422015
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/... .
Existem diferenças entre as pessoas com mesmo tipo de deficiência sensorial, tanto por preferências individuais quanto por limitações e capacidades individuais. Nem todos surdos conseguirão comunicar-se por LIBRAS ou leitura labial3434. Torres EF, Mazzoni AA, Mello AG. Nem toda pessoa cega lê em braille nem toda pessoa surda se comunica em língua de sinais. Educ Pesqui 2007; 33(2): 369-86. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022007000200013
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159... , assim como nem todas pessoas cegas ou com baixa visão utilizarão o braille. Alguns facilitadores à comunicação, como o braille ou figuras em relevo, podem envolver custo e logística maiores para a produção de material, além de não alcançar grande parte da população com deficiência visual, visto que pessoas que perdem a visão ao longo da vida têm menos chance de utilizar esses métodos3535. Cawthra L. Older people’s health information needs. Health Libr Rev 1999; 16(2): 97-105. https://doi.org/10.1046/j.1365-2532.1999.00212.x
https://doi.org/https://doi.org/10.1046/... . Assim, ainda que as orientações em saúde fornecidas por meio de audiodescrição ou em braille aumentem a autonomia dos indivíduos em relação ao autocuidado em saúde, essa conduta não tem sido disponibilizada nos serviços de saúde. Em estudo realizado em Fortaleza (Brasil), apenas 1,5% das 204 pessoas com deficiência entrevistadas (n = 3) relatou ter recebido orientações em braille3636. Leal Rocha L, Saintrain MVL, Vieira-Meyer APGF. Access to dental public services by disabled persons. BMC Oral Health 2015; 15. https://doi.org/10.1186/s12903-015-0022-x
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/... .
O grau de disponibilidade de informação acerca dos serviços ofertados também influencia a utilização desses serviços e a equidade em saúde3737. Goddard M, Smith P. Equity of access to health care services: Theory and evidence from the UK. Soc Sci Med 2001; 53(9): 1149-62. https://doi.org/10.1016/S0277-9536(00)00415-9
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/... . Neste estudo é possível perceber que a divulgação de horários esteve associada com melhores resultados. Provavelmente equipes que se preocupam com a disponibilidade da informação também estejam mais conscientes da necessidade de facilitadores à comunicação, principalmente de profissionais para acolhimento.
A decisão de em qual lugar investir recursos públicos para alcançar melhor acesso à saúde deve considerar tanto as necessidades dos usuários quanto os meios que alcancem o maior número de indivíduos3838. Frieden TR. A Framework for Public Health Action: The Health Impact Pyramid. Am J Public Health 2010; 100(4): 590-95. https://doi.org/10.2105/AJPH.2009.185652
https://doi.org/https://doi.org/10.2105/... . Medidas simples, como a listagem de serviços divulgada de forma que pessoas com deficiência tenham acesso ou ainda placas ou desenhos indicando os serviços disponíveis na unidade devem ser estimuladas. O custo para a realização dessas melhorias é muito baixo quando comparado ao benefício que essas ações podem trazer às pessoas com deficiência auditiva.
A presença de profissionais para realizar o acolhimento dos usuários com deficiências sensoriais, que deveria estar presente em todas as unidades de saúde, é relatada em apenas 21% dos serviços. Essa presença, na opinião dos autores, é o principal facilitador ao acesso e deve ser o foco de ações para melhorar a atenção à saúde das pessoas com deficiência. Em estudo sobre barreiras ao acesso, pessoas com baixa visão ou cegas também apontaram técnicas de comunicação individualizadas e postura acolhedora como medidas efetivas para a qualidade do cuidado1414. O’Day BL, Killen M, Iezzoni LI. Improving health care experiences of persons who are blind or have low vision: suggestions from focus group. Am J Med Qual 2004; 19(5): 193-200. https://doi.org/10.1177/106286060401900503
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/... . Investir em capacitação profissional, habilitando o recurso humano já existente nos serviços trará grandes benefícios para o acesso e a qualidade do cuidado. Essa necessidade de treinamento e educação permanente da equipe de saúde para reduzir as barreiras à comunicação também é percebida pelos próprios profissionais1717. Morrison EH, George V, Mosqueda L. Primary care for adults with physical disabilities: perceptions from consumer and provider focus groups. Fam Med 2008; 40(9): 645-51..
Este estudo apresenta como limitações a impossibilidade de inferência causal, bem como falta de questões específicas para usuários com deficiência sobre facilitadores à comunicação. Além disso, no primeiro ciclo do PMAQ-AB, participaram as equipes de saúde que aderiram voluntariamente ao programa, o que pode indicar que essas equipes tinham melhor desempenho em relação ao desfecho aqui estudado. O PMAQ-AB também tem entre suas limitações inerentes, o fato de ser um instrumento de respostas mistas, no qual alguns itens foram autorrelatados e outros foram avaliados por meio de verificação in loco. A presença desse viés pode limitar a interpretação da prevalência, e o resultado pode ser superestimado. Portanto, levando em consideração essas limitações, a acessibilidade a usuários que não sabem ler, com diminuição da visão e/ou audição ou deficiência visual e/ou auditiva pode ser ainda menor.
Pela amplitude do estudo, de caráter nacional, vários entrevistadores realizaram a avaliação externa, e, embora eles tenham recebido treinamento, esse procedimento pode ter causado viés de informação no estudo. A presença do coordenador de campo conferiu dupla verificação e, portanto, qualidade aos dados coletados pelo PMAQ-AB. Além dessas limitações, não foram abordadas algumas variáveis explicativas importantes para a avaliação das barreiras e dos facilitadores à comunicação para o atendimento de pessoas com deficiência sensorial na atenção primária à saúde.
A ausência de pessoas com deficiência em estudos epidemiológicos é problema já relatado por outros autores3939. Alwadi MA, Baker SR, Owens J. The inclusion of children with disabilities in oral health research: A systematic review. Community Dent Oral Epidemiol. 2018; 46(3): 238-44. https://doi.org/10.1111/cdoe.12374
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/... e que deve ser contornado. A ausência de indicadores que avaliem a presença de facilitadores específicos, como profissionais habilitados em LIBRAS também é limitador do estudo. Por outro lado, esta é uma pesquisa de base nacional, que considerou também as questões contextuais e trouxe para a discussão as barreiras à comunicação, que normalmente são negligenciadas em favor das barreiras físicas. Essa discussão traz contribuições importantes para a melhoria das ações em saúde e para a garantia do acesso aos serviços de saúde por pessoas que dele necessitam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados encontrados nesta pesquisa evidenciaram que a maioria das UBS do Brasil não apresentam os facilitadores à comunicação necessários para garantir acessibilidade às pessoas com deficiência sensorial. Os serviços que contam com maior acessibilidade física são os que têm mais facilitadores à comunicação, possivelmente por serem unidades mais bem equipadas e que se preocupem com a acessibilidade de forma mais ampla.
É necessário promover o acesso universal, com adequação dos serviços, remoção das barreiras à comunicação e estímulo à realização do acolhimento pelos profissionais de saúde.
AGRADECIMENTOS
Juliana Balbinot Hilgert e Fernando Neves Hugo são bolsistas produtividade CNPq e recebem bolsa Pós-Doc Capes (fonte 001). PMAQ financiado pelo Ministério da Saúde.
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- Fonte de financiamento: nenhuma
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jul 2020 - Data do Fascículo
2020
Histórico
- Recebido
31 Jul 2019 - Revisado
19 Dez 2019 - Aceito
07 Jan 2020