Características das empresas de saneamento associadas à fluoretação da água dos sistemas de abastecimento de municípios do Brasil, 2008**Artigo derivado de tese de doutorado intitulada Características contextuais associadas à fluoretação da água de abastecimento público no Brasil em 2008, apresentada por Franklin Barbosa da Silva ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 2019.

Franklin Barbosa da Silva Paulo Frazão Sobre os autores

RESUMO:

Introdução:

Avaliou-se o efeito ajustado das características das empresas de saneamento na provisão da fluoretação da água de abastecimento público nos municípios brasileiros.

Métodos:

Estudo ecológico transversal com base no Censo Demográfico 2010, Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008 e Atlas de Desenvolvimento Humano 2010. As variáveis independentes foram as características das empresas e dos municípios e o desfecho foi a falta de provisão da fluoretação. Estimou-se a razão de prevalência por meio de regressão de Poisson com variância robusta.

Resultados:

Incluíram-se 5.565 municípios brasileiros. Na análise ajustada, o desfecho foi independente e positivamente associado com municípios das macrorregiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, que tinham taxas de cobertura de serviços de água e esgoto abaixo do valor mediano, menos de 10 mil habitantes e índice médio e baixo/muito baixo de desenvolvimento humano. Quanto ao efeito independente das características das empresas, tiveram maior probabilidade de não ofertar fluoretação todas as empresas classificadas como de administração indireta do poder público, ou sociedade de economia mista, ou economia mista de caráter público; as municipais e intermunicipais (razão de prevalência - RP = 1,21; intervalo de confiança de 95% - IC95% 1,19 - 1,23); e a prefeitura, quando única executora (RP = 1,22; IC95% 1,20 - 1,25).

Conclusão:

A falta de provisão da fluoretação da água foi maior quando o serviço era prestado preponderantemente por administrações municipais e empresas privadas, associadas ou não a entidades públicas, independentemente das características dos municípios.

Palavras-chave:
Fluoretação; Empresas de saneamento básico; Análise multivariada; Estudos ecológicos; Saúde ambiental

INTRODUÇÃO

O acesso aos fluoretos por meio da água de abastecimento público e do creme dental tem sido considerado importante determinante para explicar o declínio da cárie dentária a partir dos anos 1970 em diferentes países desenvolvidos11. Bratthall D, Hänsel-Petersson G, Sundberg H. Reasons for the caries decline: what do the experts believe? Eur J Oral Sci 1996; 104(4 Pt 2): 416-22. https://doi.org/10.1111/j.1600-0722.1996.tb00104.x
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
.

Dados de 2012 indicavam que a fluoretação da água estava presente em 25 países no mundo, com mais de 377 milhões de pessoas atingidas22. British Fluoridation Society. One in a million - the facts about water fluoridation [Internet]. Manchester: British Fluoridation Society; 2012 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.bfsweb.org/one-in-a-million
https://www.bfsweb.org/one-in-a-million...
. Estados Unidos da América, Brasil e Austrália constituem repúblicas federativas em que a cobertura da medida, embora elevada, não é homogênea entre os estados33. Centers for Disease Control and Prevention. Fluoridation Statistics: 2014 [Internet]. U.S. Department of Health & Human Services, National Water Fluoridation Statistics; 2016 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.cdc.gov/fluoridation/statistics/2014stats.htm
https://www.cdc.gov/fluoridation/statist...
,44. Frazão P, Narvai PC. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Rev Saúde Pública 2017; 51(47). https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051006372
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,55. Australian Health Policy Collaboration, Australian Dental Association. Australia’s Oral Health Tracker Technical Paper [Internet]. 2018 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://www.vu.edu.au/sites/default/files/australias-oral-health-tracker-technical-paper.pdf
https://www.vu.edu.au/sites/default/file...
. Pode-se supor que essas diferenças entre regiões de um mesmo país estejam ligadas à complexidade político-administrativa que a autonomia relativa das subunidades nacionais traz para a oferta dos serviços de saneamento. Características dos municípios, como índice de desenvolvimento humano, localização geográfica entre as macrorregiões e porte populacional parecem estar ligadas ao benefício44. Frazão P, Narvai PC. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Rev Saúde Pública 2017; 51(47). https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051006372
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,66. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil - the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med 2004; 58(6): 1181-9. https://doi.org/10.1016/s0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
,77. Gabardo MC, da Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health 2008; 8: 9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
, entretanto não se dispõe de informação científica sobre o efeito independente de outras variáveis, como as características das empresas de saneamento na provisão da tecnologia de saúde pública.

As condições ambientais para captação e tratamento da água e as características da prestação dos serviços de abastecimento de água enquanto bem semipúblico, entre outros aspectos, tornam bastante complexa a atividade88. Abbott M, Cohen B. Productivity and efficiency in the water industry. Util Policy 2009; 17(3-4): 233-44. https://doi.org/10.1016/j.jup.2009.05.001
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
,99. Barbosa A, De Lima SC, Brusca I. Governance and efficiency in the Brazilian water utilities: A dynamic analysis in the process of universal access. Util Policy 2016; 43(Part A): 82-96. https://doi.org/10.1016/j.jup.2016.06.013
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
. Em decorrência da forte pressão do mercado, assistiu-se, a partir da década de 19801010. Beveridge R, Hüesker F, Naumann M. From post-politics to a politics of possibility? Unravelling the privatization of the Berlin Water Company. Geoforum 2014; 51: 66-74. https://doi.org/10.1016/j.geoforum.2013.09.021
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
,1111. Swyngedouw E. Privatising H2O Turning Local Water Into Global Money. JEP 2003; 19(4): 10-33. https://doi.org/10.20446/JEP-2414-3197-19-4-10
https://doi.org/https://doi.org/10.20446...
, à gradativa abertura de investimento do setor privado na atividade de saneamento, em diversos países do mundo, com base na promessa de aumentar a capacidade de investimento e a eficiência do setor1212. Ouda OKM, Al-Waked RF, Alshehri AA. Privatization of water-supply services in Saudi Arabia: A unique experience. Util Policy 2014; 31: 107-13. https://doi.org/10.1016/j.jup.2014.10.003
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
.

No Brasil, o setor saneamento atravessou várias mudanças ao longo de sua história, sendo definida recentemente a titularidade na prestação dos serviços para o nível municipal, que pode estabelecer parcerias com entidades públicas e privadas, relações estas em que se pode delegar a responsabilidade1313. Brasil. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; e dá outras providências. Diário Oficial da União 2007.. As características de gestão podem ser distintas e específicas para cada local do país, com possiblidade de implicação direta na oferta de serviços. Embora, no Brasil, a Lei nº 6.050, aprovada pelo Congresso Nacional em 1974, tenha tornado obrigatória a fluoretação onde houvesse estação de tratamento da água, criando condições para universalizar o acesso aos fluoretos, estudos têm mostrado que a provisão da fluoretação da água é extremamente desigual, tanto entre as macrorregiões1414. Antunes JLF, Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saúde Pública 2010; 44(2): 360-5. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000002
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quanto entre os municípios do país1515. Silva FB, Frazão P. Sanitation utilities and fluoridation of water supply systems: an ecological study in Brazilian municipalities, 2008-2010. Epidemiol Serv Saúde 2018; 27(4). https://doi.org/10.5123/s1679-49742018000400003
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. Entretanto, o significado do efeito de variáveis específicas ligadas à concessionária sobre a provisão da política pública na presença de características ligadas aos municípios, incluindo a macrorregião brasileira à qual pertence, não foi investigado com maior profundidade.

Levando em conta os aspectos mencionados, o objetivo da presente pesquisa foi avaliar o efeito ajustado das características das empresas de saneamento na provisão da fluoretação da água de abastecimento público nos municípios brasileiros.

MÉTODOS

DESENHO DE ESTUDO

Trata-se de estudo ecológico transversal, envolvendo todos os municípios brasileiros.

FONTE DOS DADOS

Tomou-se como base o Censo Demográfico de 2010, a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) de 2008 e o Atlas de Desenvolvimento Humano 2010.

O Censo Demográfico é uma operação estatística que constitui fonte de informação sobre a situação de vida da população nos municípios1616. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/
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. A PNSB fornece dados sobre as condições de saneamento básico de todos os municípios brasileiros, por meio da atuação de órgãos públicos e empresas privadas1717. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional de Saneamento Básico: 2008 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE ; 2010 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pnsb/pnsb-2008
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. O Atlas de Desenvolvimento Humano é uma iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que oferece indicadores de desenvolvimento humano dos municípios e estados brasileiros1818. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Atlas de Desenvolvimento Humano [Internet]. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento; 2013 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: http://atlasbrasil.org.br/2013/
http://atlasbrasil.org.br/2013/...
.

VARIÁVEIS DO ESTUDO

Extraiu-se da PNSB 2008 a situação da fluoretação de todos os municípios do país, ou seja, a existência ou não do serviço na água destinada ao abastecimento público, independentemente da cobertura. O desfecho foi definido pela taxa de municípios desprovidos do benefício. As variáveis independentes principais foram características ligadas às empresas de saneamento, como natureza jurídica das empresas prestadoras de serviço de abastecimento de água, a esfera administrativa e forma de execução do serviço1616. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/
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. A variável natureza jurídica estava discriminada em seis categorias: administração direta do poder público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista, consórcio público, empresa privada, fundação e associação. Como 1.848 municípios possuíam duas, três e até quatro classificações, e para evitar categorias com baixa frequência, organizaram-se os dados em seis categorias:

  • • administração indireta do poder público exclusiva (autarquia, empresa pública e consórcio público); apenas sociedade de economia mista; sociedade de economia mista de caráter público (combinação entre duas categorias, sendo uma delas sociedade de economia mista e a outra administração pública direta, empresa pública, autarquia ou consórcio público);

  • sociedade de economia mista de caráter privado (combinação entre duas categorias, sendo uma delas sociedade de economia mista e a outra fundação, empresa privada ou associação);

  • administração direta do poder público exclusiva;

  • administração direta do poder público combinada com qualquer tipo de administração indireta do poder público (somando duas ou três categorias); administração direta do poder público combinada com administração privada (somando duas ou três categorias);

  • sociedade de economia mista combinada com administração direta ou indireta do poder público e administração privada (somando três ou quatro categorias);

  • apenas administração privada (empresa privada, fundação e associação).

A variável esfera administrativa, classificada originalmente como federal, estadual, municipal, privada, interfederativa e intermunicipal, também foi recategorizada em cinco categorias:

  • soma entre classificação exclusiva estadual ou federal;

  • soma entre classificação exclusiva municipal ou intermunicipal;

  • somente privado;

  • associações entre entidades públicas (duas ou três categorias combinadas, entre federal, estadual, municipal ou intermunicipal);

  • associações entre entidades públicas e privadas (duas, três ou quatro categorias combinadas, entre entes privados e esfera federal, estadual, municipal, intermunicipal ou interfederativa).

A variável forma de execução aponta quem efetivamente atua na prestação do serviço, mantendo-se a classificação original:

  • a prefeitura é a única executora;

  • outras entidades são as executoras do serviço;

  • prefeitura e outras entidades são as executoras do serviço.

Incluíram-se as seguintes características ligadas aos municípios, oriundas do censo: macrorregião; porte demográfico; coberturas da rede geral de distribuição de água; cobertura da rede geral de distribuição esgoto/pluvial. Também se utilizou o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), presente no Atlas de Desenvolvimento Humano 2010.

A macrorregião diz respeito a uma divisão política que já foi usada como variável relevante em estudo relacionado à prestação dos serviços de saneamento1919. Rezende S, Wajnman S, De Carvalho JAM, Heller L. Integrando oferta e demanda de serviços de saneamento: análise hierárquica do panorama urbano brasileiro no ano 2000. Eng Sanit Ambient 2007; 12(1): 90-101.. Ela foi categorizada conforme divisão do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):

  • Sul;

  • Sudeste;

  • Centro-oeste;

  • Nordeste;

  • Norte1616. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acessado em 1º fev. 2019]. Disponível em: Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/
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    .

O porte demográfico refere-se ao total de residentes no município na data da pesquisa do Censo. Para descrevê-lo, separaram-se as estimativas populacionais de 2010 em:

  • municípios com até 10 mil habitantes;

  • mais de 10 mil habitantes, até 50 mil;

  • mais de 50 mil habitantes, conforme critério utilizado em outro estudo44. Frazão P, Narvai PC. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Rev Saúde Pública 2017; 51(47). https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051006372
    https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
    .

Incluíram-se como variáveis as coberturas tanto da rede geral de distribuição de água como da rede geral de distribuição esgoto/pluvial por expressarem com a fluoretação a qualidade do serviço de saneamento. Calcularam-se ambas por meio da proporção entre o número de domicílios particulares permanentes abastecidos por rede geral distribuição e o número total de domicílios particulares permanentes do município. Para fins analíticos, fez-se a classificação conforme mediana dos valores percentuais de cobertura. Inseriu-se como variável no estudo o IDHM, que é uma medida composta de três dimensões, longevidade, educação e renda, a fim de caracterizar o grau de desenvolvimento dos municípios que não ofertavam fluoretação. Separaram-se os dados relativos ao ano de 2010 em três categorias: muito baixo e baixo (entre 0 e 0,499 e entre 0,500 e 0,599); médio (entre 0,600 e 0,699); e alto e muito alto (entre 0,700 e 0,799 e entre 0,800 e 1).

ANÁLISE DOS DADOS

Estimaram-se os valores das razões de prevalência (RP) e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) entre o desfecho e as variáveis independentes por meio de análise de regressão de Poisson, com variância robusta. A hipótese do estudo que orientou a análise múltipla foi verificar se as características das empresas de saneamento (natureza jurídica, esfera administrativa e forma de execução) se mantinham ou não associadas ao desfecho, independentemente das características relacionadas aos municípios (cobertura da rede geral de distribuição de água, cobertura da rede geral de distribuição esgoto/pluvial, porte demográfico, macrorregião e IDHM 2010). Para isso, construíram-se quatro modelos múltiplos. No modelo 1, incluíram-se apenas variáveis relacionadas aos municípios. No modelo 2, além das relacionadas aos municípios, incorporou-se na análise a variável natureza jurídica. No modelo 3, substituiu-se a variável natureza jurídica pela esfera administrativa e, no modelo 4, pela forma de execução. Elas foram incluídas no modelo separadamente porque algumas categorias das variáveis relacionadas às características das empresas estavam associadas entre si e ao desfecho. Usou-se o software estatístico Stata 122020. StataCorp. Stata Statistical Software: Release 12. College Station: StataCorp LP; 2011..

Em razão de a pesquisa utilizar apenas informações censitárias, de acesso público, não houve obrigatoriedade de avaliação pelo sistema de Comitês de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, consoante a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 510, de 7 de abril de 2016.

RESULTADOS

Entre os 5.565 municípios incluídos no estudo, houve dados ausentes para as seguintes variáveis: rede geral de distribuição de água (n = 5), rede geral de distribuição de esgoto/pluvial (n = 111) e natureza jurídica, esfera administrativa e forma de execução (n = 34). Na Tabela 1, apresenta-se a distribuição dos municípios segundo as características investigadas. Entre eles, 60,2% tinham serviço de fluoretação, e aqueles pertencentes às macrorregiões Sul e Sudeste possuíam maior provisão do serviço. A presença da fluoretação foi maior nas medianas superiores das variáveis cobertura da rede geral de distribuição de água e cobertura de esgotamento sanitário. Também foi mais elevada em municípios com população acima de 50 mil habitantes e naqueles com IDHM muito alto/alto. ­Notou-se protagonismo do setor público na provisão do benefício. As companhias estaduais, representadas em grande parte na categoria que incluiu as entidades caracterizadas como de administração indireta do poder público/sociedade de economia mista/economia mista de caráter público, e que operam por meio da associação entre entidades públicas de diferentes esferas e empresas de economia mista, eram responsáveis pela prestação de serviços de abastecimento de água para mais de 60% dos municípios e apresentaram taxas mais elevadas de oferta do serviço: 74,9 contra 27,8%, quando a concessionária era empresa privada. As entidades estaduais, quando somadas às federais na administração do serviço, também proporcionalmente tiveram melhor desempenho. Em contrapartida, quando a prefeitura era a única executora, notou-se a pior performance.

Tabela 1.
Frequência total de municípios brasileiros e intervalo de 95% de confiança (IC95%) das razões de prevalência (RP) bruta e ajustada dos modelos de regressão de Poisson para municípios desprovidos de água fluoretada segundo as características investigadas.

Na Tabela 1 também são mostrados os valores dos efeitos bruto e ajustado das variáveis independentes sobre a taxa de municípios desprovidos do benefício. Os valores da análise simples indicam que todas as categorias das variáveis mostraram associação com o desfecho, excetuando-se a categoria Sudeste da variável macrorregião (RP = 1,02; IC95% 0,99 - 1,04). No primeiro modelo de análise múltipla, em que se incluíram apenas variáveis relacionadas aos municípios, as associações mantiveram-se presentes em todas as categorias, destacando-se municípios pertencentes à macrorregião Norte, com elevada probabilidade de ausência da política pública (RP = 1,62; IC95% 1,58 - 1,67). Municípios da macrorregião Sudeste, na presença das demais variáveis, passaram a se associar significativamente com o desfecho (RP = 1,06; IC95% 1,04 - 1,09). No Modelo 2, em que além das características dos municípios acrescentou-se a variável natureza jurídica, todas as categorias estiveram associadas ao desfecho, com exceção de “entre 10 e 50 mil habitantes” da variável porte demográfico (RP = 1,01; IC95% 0,98 - 1,04), que não apresentou diferenças quanto à categoria de referência. As empresas classificadas como de “administração direta do poder público” tiveram maior probabilidade de não ofertar fluoretação (RP = 1,25; IC95% 1,22 - 1,28), seguidas pelas privadas (RP = 1,16; IC95% 1,11 - 1,20). No modelo seguinte, três categorias de esfera administrativa mostraram associações significativas ao desfecho na presença das covariáveis ligadas aos municípios. Apenas a categoria que combinava entidades públicas não apresentou diferenças em relação à categoria de referência (RP = 1; IC95% 0,98 - 1,02). Comparando-se o modelo simples e os modelos 2 e 3, observou-se que o efeito líquido correspondente ao caráter privado da natureza jurídica e da esfera administrativa, embora significativo, perdeu sua magnitude. No último modelo, que incluiu a variável forma de execução, a categoria “prefeitura era a única executora” apresentou elevada probabilidade de não ofertar a fluoretação (RP = 1,22; IC95% 1,20 - 1,25). De modo análogo ao Modelo 2, a categoria “entre 10 e 50 mil habitantes” perdeu significância estatística. Observando-se os dados de todos os modelos ajustados, as variáveis relacionadas às empresas de saneamento e a variável macrorregião exibiram as probabilidades mais altas de não ofertar fluoretação em comparação com as categorias de referência.

DISCUSSÃO

Este é o primeiro estudo em república federativa de três níveis político-administrativos, que avaliou o efeito líquido decorrente de variáveis específicas ligadas à concessionária responsável pelo abastecimento da água sobre a falta de provisão da política pública de fluoretação, na presença de características ligadas aos municípios, incluindo a macrorregião à qual pertencem. Confirmou-se a hipótese do estudo, isto é, as características das empresas de saneamento mantiveram-se positivamente associadas à oferta de fluoretação, independentemente daquelas relacionadas aos municípios.

O processo de modelagem múltipla das variáveis permitiu verificar que, na comparação com os municípios brasileiros da macrorregião Sul, todos aqueles pertencentes às demais apresentaram probabilidade significativa de não assegurar o acesso da população ao benefício, com magnitudes variando entre 2 e 9% para a macrorregião Sudeste, 21 e 32% para a Centro-Oeste, 42 e 53% para a Nordeste e 46 e 67% para a Norte, indicando padrões notadamente distintos de implementação da política pública.

Estudos anteriores indicaram essas diferenças inter-regionais77. Gabardo MC, da Silva WJ, Olandoski M, Moysés ST, Moysés SJ. Inequalities in public water supply fluoridation in Brazil: an ecological study. BMC Oral Health 2008; 8: 9. https://doi.org/10.1186/1472-6831-8-9
https://doi.org/https://doi.org/10.1186/...
,1414. Antunes JLF, Narvai PC. Políticas de saúde bucal no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Rev Saúde Pública 2010; 44(2): 360-5. https://doi.org/10.1590/S0034-89102010005000002
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
. A contribuição da presente investigação foi mostrar a força da macrorregião na presença de outras variáveis ligadas aos municípios e às concessionárias. A desigualdade regional da política pública de fluoretação parece seguir a história de implementação dos serviços públicos essenciais na república federativa brasileira, como o acesso à rede geral de água e à rede de energia elétrica. Esse acesso foi marcado por um processo de expansão com clara desigualdade territorial, em que as macrorregiões Norte e Nordeste somente foram alcançadas por cobertura expressiva a partir da década de 20002121. Arretche M. Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos. São Paulo: Editora Unesp; 2015.. Essa expansão desigual parece estar ligada primordialmente à concentração do crescimento econômico nas regiões Sul e Sudeste, o que se refletiu em maior arrecadação dos governos locais e capacidade de investimento. O desenvolvimento do país foi marcado pela desigualdade na distribuição da riqueza e teve a construção dos direitos à cidadania desigualmente distribuídos de acordo com a inserção no mercado formal de trabalho, com os benefícios sociais vinculados às contribuições e aos rendimentos dos trabalhadores. As desigualdades relatadas só encontraram definição política para sua diminuição com a formulação da Constituição do Brasil de 1988 e da estrutura fiscal dela decorrente, fato que, do ponto de vista da universalização dos serviços públicos de saneamento, pode ser considerado recente2222. Arretche M. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? Dados 2010; 53(3): 587-620. https://doi.org/10.1590/S0011-52582010000300003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
.

Fatores como cobertura de serviços de água e de esgoto permaneceram significativamente associados, mostrando que a falta de acesso ao benefício estava ligada a taxas de cobertura desses serviços inferiores ao valor mediano, entretanto, a magnitude da associação não ultrapassou a probabilidade de 10% em nenhum dos modelos. Como o custo econômico para manter a fluoretação da água nas estações de tratamento não afetaria a eficiência do fornecimento dos serviços de saneamento pelas empresas2323. Sabbioni G. Efficiency in the Brazilian sanitation sector. Util Policy 2008; 16(1): 11-20. https://doi.org/10.1016/j.jup.2007.06.003
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
, é lícito considerar a manutenção de padrões de concentração ótima para prevenção da cárie dentária como indicativo da qualidade dos serviços de tratamento e distribuição da água sob responsabilidade das empresas2424. Frazão P, Peres MA, Cury JA. Qualidade da água para consumo humano e concentração de fluoreto. Rev Saúde Pública 2011; 45(5): 964-73. https://doi.org/10.1590/S0034-89102011005000046
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
,2525. Batabyal AK, Chakraborty S. Hydrogeochemistry and water quality index in the assessment of groundwater quality for drinking uses. WER 2015; 87(7): 607-17. https://doi.org/10.2175/106143015X14212658613956
https://doi.org/https://doi.org/10.2175/...
.

Mesmo na presença de variáveis ligadas aos municípios e às empresas de saneamento, índices médio e baixo/muito baixo de desenvolvimento humano permaneceram positivamente associados ao desfecho. Em relação ao porte demográfico, os municípios muito pequenos, definidos como aqueles de menos de 10 mil habitantes, apresentaram probabilidade significativa de não contar com a provisão do serviço de fluoretação. Estudo ecológico que investigou a associação entre indicadores sociais e econômicos no nível municipal e a presença de fluoretação da água em 252 municípios do estado de Santa Catarina, Brasil, no ano 2000, mostrou que os municípios que não ofertavam fluoretação tinham menor número de habitantes e índice de desenvolvimento infantil mais baixo66. Peres MA, Fernandes LS, Peres KG. Inequality of water fluoridation in Southern Brazil - the inverse equity hypothesis revisited. Soc Sci Med 2004; 58(6): 1181-9. https://doi.org/10.1016/s0277-9536(03)00289-2
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
.

Pesquisa envolvendo 5.558 municípios brasileiros apontou que as taxas de provisão da fluoretação eram inferiores nos municípios com menos de 10 mil habitantes e com IDHM baixo/muito baixo44. Frazão P, Narvai PC. Water fluoridation in Brazilian cities at the first decade of the 21st century. Rev Saúde Pública 2017; 51(47). https://doi.org/10.1590/s1518-8787.2017051006372
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. O presente trabalho corrobora os dados da literatura, reforçando que a política de expansão do serviço deveria contemplar as especificidades dos pequenos municípios e daqueles com médio e baixo/muito baixo IDHM.

Considerando as mudanças recentes no marco regulatório do setor no Brasil2626. Scriptore JS, Toneto Júnior R. A estrutura de provisão dos serviços de saneamento básico no Brasil: uma análise comparativa do desempenho dos provedores públicos e privados. Rev Adm Pública 2012; 46(6): 1479-504. https://doi.org/10.1590/S0034-76122012000600004
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, que ampliam as possibilidades de participação das empresas privadas e atribuem aos municípios a titularidade pela prestação dos serviços, os resultados parecem sugerir um ambiente complexo para a expansão da fluoretação no país. No presente estudo, os municípios que possuíam os melhores resultados na oferta de fluoretação tinham o abastecimento de água provido por companhias estaduais que concentravam maior capacidade de investimento e experiência histórica no setor, enquanto a falta de acesso esteve associada à administração direta municipal e à administração privada combinada ou não com entidades públicas. Acresce que o retorno econômico que a prestação do serviço pode trazer para empresas privadas pode tornar pequenos municípios e de baixa renda pouco atrativos para investimentos privados2727. Bakker K. Neoliberal versus postneoliberal water: geographies of privatization and resistance. Ann Am Assoc Geogr 2013; 103(2): 253-60. https://doi.org/10.1080/00045608.2013.756246
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,2828. Greiner PT. Social drivers of water utility privatization in the United States: An examination of the presence of variegated neoliberal strategies in the water utility sector. Rur Sociol 2016; 81(3): 387-406. https://doi.org/10.1111/ruso.12099
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. Assim, do mesmo modo que a universalização dos serviços de água e esgoto dependerá, em boa medida, do desempenho satisfatório da autoridade regulatória2929. Carvalho AEC, Sampaio LMB. Paths to universalize water and sewage services in Brazil: The role of regulatory authorities in promoting efficient service. Util Policy 2015; 34: 1-10. https://doi.org/10.1016/j.jup.2015.03.001
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, diante dos resultados apresentados, pode-se considerar que a universalização do acesso aos fluoretos por meio da água de abastecimento dependerá da presença desse tema na agenda política das atividades de regulação do setor. Para isso, será imprescindível estabelecer linhas de coordenação horizontal e vertical da política pública da fluoretação dos sistemas de abastecimento de água.

Os dados para a presente pesquisa datam de 2008 e 2010, no entanto, as informações tratam de um setor de atividade (saneamento) cujas mudanças ocorrem em médio e longo prazo. Obteve-se a situação da fluoretação por meio de questionário aplicado pelo IBGE nas entidades prestadoras dos serviços de saneamento. Essa informação não dispõe de outra fonte de dados que permita confrontar sua validade. Existem dados ausentes de algumas variáveis em número muito pequeno de municípios, o que não implica alterações das associações observadas. Independentemente das limitações presentes, o estudo destaca-se por contemplar praticamente a totalidade dos municípios do Brasil, e por inserir na análise características importantes das empresas de saneamento nunca antes investigadas.

CONCLUSÃO

A falta de provisão da fluoretação foi independente e positivamente associada com municípios das macrorregiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste com taxas de cobertura de serviços de água e esgoto abaixo do valor mediano, com menos de 10 mil habitantes e nível médio e baixo/muito baixo de desenvolvimento humano. Ela foi maior quando o serviço era prestado preponderantemente por administrações municipais e empresas privadas, associadas ou não a entidades públicas, independentemente das características dos municípios.

REFERÊNCIAS

  • *
    Artigo derivado de tese de doutorado intitulada Características contextuais associadas à fluoretação da água de abastecimento público no Brasil em 2008, apresentada por Franklin Barbosa da Silva ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 2019.

  • Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM), processo no 062.03159.2014, e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo no 303681/2016-0. O último autor é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 305132 / 2019-9).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2019
  • Revisado
    26 Jul 2019
  • Aceito
    09 Ago 2019
Associação Brasileira de Pós -Graduação em Saúde Coletiva São Paulo - SP - Brazil
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