Fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde no Brasil

Marianny Nayara Paiva Dantas Dyego Leandro Bezerra de Souza Ana Mayara Gomes de Souza Kezauyn Miranda Aiquoc Talita Araujo de Souza Isabelle Ribeiro Barbosa Sobre os autores

RESUMO:

Objetivo:

Analisar os fatores associados ao acesso precário aos serviços de saúde pela população brasileira de 19 anos ou mais.

Métodos:

Trata-se de estudo transversal, com base nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde, 2013, obtidos de uma amostragem complexa. O desfecho acesso precário foi definido como não ter conseguido atendimento na última vez que procurou e não ter tentado novo atendimento por falta de acessibilidade. Foi analisada a prevalência do acesso precário e sua associação com fatores socioeconômicos e de saúde, por meio do cálculo da razão de prevalências (RP) com intervalos de confiança de 95%. Aplicou-se, ainda, o modelo multivariado pela regressão de Poisson, com teste de Wald para estimação robusta.

Resultados:

Das 60.202 respostas válidas, 12.435 indivíduos enquadraram-se nos critérios do acesso precário. A prevalência do acesso precário foi de 18,1% (IC95% 16,8 - 19,4) e associou-se com os seguintes fatores: ter cor da pele preta/parda (RP = 1,2; IC95% 1,0 - 1,4); residir na região Norte (RP = 1,5; 1,3 - 1,9) e Nordeste (RP = 1,4; 1,2 - 1,6) em relação à região Sudeste; viver na zona rural (RP = 1,2; 1,1 - 1,4); ser fumante (RP = 1,2; 1,0 - 1,4); ter autoavaliação de saúde ruim/muito ruim (RP = 1,3; 1,1 - 1,6); não ter plano de saúde privado (RP = 2,3; 1,7 - 2,9).

Conclusão:

O acesso aos serviços de saúde ainda é precário para uma parcela considerável da população brasileira, com destaque para a população mais vulnerável.

Palavras-chave:
Acesso aos serviços de saúde; Disparidades nos níveis de saúde; Sistema Único de Saúde; Inquéritos epidemiológicos

INTRODUÇÃO

Acesso refere-se à oportunidade de utilizar os serviços de saúde quando necessário e expressa características de sua oferta e de circunstâncias as quais facilitam ou perturbam a capacidade das pessoas de efetivarem o uso11. Sanchez RM, Ciconelli RM. Conceitos de acesso à saúde. Rev Panam Salud Publica 2012; 31(3): 60-8.. O acesso está relacionado, simultaneamente, a quatro elementos: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade22. Botelho FC, França Junior I. Como a atenção primária à saúde pode fortalecer a alimentação adequada enquanto direito na América Latina? Rev Panam Salud Publica 2018; 42: e159. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.159
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.

Disponibilidade corresponde ao quantitativo dos serviços em relação ao atendimento da demanda e da sua necessidade33. Assis MMA, Jesus WLA. Acesso aos serviços de saúde: abordagens, conceitos, políticas e modelo de análise. Ciênc Saúde Coletiva 2012; 17(11); 2865-75. http://doi.org/10.1590/S1413-81232012001100002
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. A acessibilidade, por sua vez, é compreendida pela não diferenciação do acesso aos recursos e serviços de saúde entre os indivíduos, preconizando a acessibilidade física, principalmente para aqueles que moram em locais mais periféricos e distantes, garantindo a disposição mais próxima dos serviços e sem barreiras.

Aceitabilidade refere-se ainda à adequação das características individuais em relação aos produtos, aos serviços e às práticas dos trabalhadores pertencentes às instituições. Ela pode ser percebida, principalmente, durante o atendimento em que o usuário é respeitado enquanto sujeito e, durante a prestação do serviço, é observado empenho em assegurar qualidade, adaptando ao contexto44. Álvares J, Guerra Junior AA, Araújo VE, Almeida AM, Dias CZ, Ascef BO, et al. Acesso aos medicamentos pelos usuários da atenção primária no Sistema Único de Saúde. Rev Saúde Pública 2017; 51(Supl. 2): 20s. http://doi.org/10.11606/s1518-8787.2017051007139
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. O quarto elemento, qualidade do serviço, é caracterizado não só pela qualificação dos profissionais diante das particularidades da população adscrita, mas também pela qualidade dos produtos utilizados22. Botelho FC, França Junior I. Como a atenção primária à saúde pode fortalecer a alimentação adequada enquanto direito na América Latina? Rev Panam Salud Publica 2018; 42: e159. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.159
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Vários motivos são apontados como intervenientes do acesso a serviços de saúde, tais como: características do sistema, nível socioeconômico da população, escolaridade, aspectos culturais, características geográficas dos usuários e dos serviços, bem como pertencimento a grupos específicos. Quando esses fatores aumentam ou diminuem o acesso aos serviços de saúde, estamos diante da desigualdade nesse acesso55. Pavão LB, Coeli CM, Lopes CS, Faerstein E, Werneck GL, Chor D. Uso de serviços de saúde segundo posição socioeconômica em trabalhadores de uma universidade pública. Rev Saúde Pública 2012; 46(1): 98-103. https://doi.org/10.1590/S0034-89102012005000002
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,66. Albuquerque MV, Viana ALA, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva 2017; 22(4): 1055-64. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.26862016
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No Brasil, ainda são observados grandes traços de iniquidade, com evidentes desigualdades que levam a restrições aos serviços de saúde essenciais77. Gomes KDO, Reis EA, Guimarães MDC, Cherchiglia ML. Utilização de serviços de saúde por população quilombola do Sudoeste da Bahia, Brasil. Cad Saude Publica 2013; 29(9): 1829-42. https://doi.org/10.1590/0102-311X00151412
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,88. Macinko J, Dourado I, Guanais FC. Doenças Crônicas, Atenção Primária e Desempenho dos Sistemas de Saúde. Diagnósticos, instrumentos e intervenções. Nova York: Banco Interamericano de Desenvolvimento; 2011.. Apesar da robustez do arcabouço legal em saúde, com vistas ao acesso igualitário, a garantia da equidade à saúde ainda está aquém do desejado99. Cerqueira D, Ferreira H, Lima RS, Bueno S, Hanashiro O, Batista F, et al. Atlas da Violência 2016 [Internet]. IPEA: Brasília; 2016 [acessado em 1º mar. 2019]. Disponível em: Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6529/1/Nota_n17_Atlas_Violencia.pdf
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. Esse fato impacta, diretamente, os grupos em vulnerabilidade social, pois observa-se que essas desvantagens geram consequências no perfil de morbimortalidade quando comparado ao de outras populações1010. Arcaya MC, Arcaya AL, Subramanian SV. Inequalities in health: definitions, concepts, and theories. Glob Health Action 2015; 8(1): 27106. https://doi.org/10.3402/gha.v8.27106
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,1111. Faerstein E, Chor D, Werneck GL, Lopes CS, Kaplan G. Race and perceived racism, education, and hypertension among Brazilian civil servants: the Pró-Saúde Study. Rev Bras Epidemiol 2014; 17(Supl. 2): 81-7. https://doi.org/10.1590/1809-4503201400060007
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.

A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do Brasil, inquérito de base domiciliar de âmbito nacional, objetivou conhecer a situação de saúde, os estilos de vida, o acesso aos serviços de saúde da população e seu uso, segundo região de moradia, sexo, raça e cor, permitindo, inclusive, caracterizar o acesso aos serviços de saúde brasileiros1212. Souza-Júnior PRB, Freitas MPS, Antonaci GA, Szwarcwald CL. Desenho Epidemiologia e Serviços de Saúde, da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 207-16. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200003
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Apesar dos avanços observados, ainda permanecem muitos desafios no desenvolvimento de políticas efetivas que priorizem a equidade no acesso à saúde. Dessa forma, o estudo teve como objetivo avaliar o acesso precário aos serviços de saúde pela população brasileira de 19 anos ou mais e os fatores associados, com base nos dados da PNS 2013.

MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal, que utilizou dados da PNS de 2013, desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) junto ao Ministério da Saúde1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde 2013 - Percepção do estado de Saúde: estilos de vida e doenças crônicas [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2014 [acessado em 1º mar 2019]. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94074.pdf
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. Esta pesquisa é um inquérito de base domiciliar de âmbito nacional, a qual caracterizou a situação de saúde, os estilos de vida, a vigilância de doenças crônicas e fatores de risco, o acesso aos serviços de saúde da população brasileira e seu uso1212. Souza-Júnior PRB, Freitas MPS, Antonaci GA, Szwarcwald CL. Desenho Epidemiologia e Serviços de Saúde, da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 207-16. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200003
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Foi empregado o plano de amostragem por conglomerados em três estágios, com atribuição de pesos a cada unidade amostral. Os setores censitários, ou conjunto de setores (unidade territorial de coleta das operações censitárias, definida pelo IBGE), formam as unidades primárias de amostragem, os domicílios representam as unidades de segundo estágio, e os moradores adultos constituem as unidades de terceiro estágio. A população pesquisada na PNS compreendeu moradores de domicílios particulares do país em idade adulta (19 anos ou mais), exceto os localizados nos setores censitários especiais (quartéis, bases militares, alojamentos, acampamentos, embarcações, penitenciárias, colônias penais, presídios, cadeias, asilos, orfanatos, conventos e hospitais). Todas as etapas da seleção das subamostras foram feitas por amostragem aleatória simples1212. Souza-Júnior PRB, Freitas MPS, Antonaci GA, Szwarcwald CL. Desenho Epidemiologia e Serviços de Saúde, da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 207-16. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200003
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O tamanho definido para a amostra foi de 81.187 domicílios, sendo selecionado um indivíduo por domicílio para responder o questionário. Foram realizadas entrevistas em 60.202 domicílios com pessoas de 19 anos ou mais, em decorrência da taxa de resposta de 86%1414. Damacena G, Szwarcwald CL, Malta DC, Souza Júnior PRB, Vieira MLFP, Pereira CA, et al. O processo de desenvolvimento da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 197-206. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200002
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. Outras considerações sobre o plano amostral, as ponderações e os efeitos do delineamento da PNS estão descritos nos estudos de Damacena et al.1414. Damacena G, Szwarcwald CL, Malta DC, Souza Júnior PRB, Vieira MLFP, Pereira CA, et al. O processo de desenvolvimento da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 197-206. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200002
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e Souza-Júnior et al.1212. Souza-Júnior PRB, Freitas MPS, Antonaci GA, Szwarcwald CL. Desenho Epidemiologia e Serviços de Saúde, da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 207-16. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200003
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O questionário da PNS foi dividido em módulos, os quais contemplavam características do domicílio, de todos os moradores (escolaridade, renda, trabalho, pessoas com deficiências, cobertura de planos de saúde, utilização de serviços de saúde, saúde de crianças menores de 2 anos, saúde dos idosos) e do morador adulto selecionado (estilos de vida, percepção do estado de saúde, acidentes e violências, doenças crônicas, saúde da mulher, atendimento pré-natal, saúde bucal e atendimento médico)1313. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde 2013 - Percepção do estado de Saúde: estilos de vida e doenças crônicas [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2014 [acessado em 1º mar 2019]. Disponível em: Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94074.pdf
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Neste estudo analisamos o Módulo J do questionário da PNS, sobre questões referentes à utilização de serviços de saúde. O desfecho denominado acesso precário a serviços de saúde expressa a necessidade frustrada de atendimento em saúde, seja por não ter conseguido o atendimento quando procurou, seja por não ter procurado novamente o serviço em razão de algum problema de acessibilidade.

Para a elaboração da variável dependente, as questões que fundamentaram a composição dessa variável estão relacionadas à disponibilidade dos serviços de saúde e acessibilidade a eles. As questões foram: “J17. Nessa primeira vez que procurou atendimento de saúde, nas duas últimas semanas, o(a) sr(a). foi atendido(a)?”. Foram considerados os indivíduos que responderam não a essa questão. Além dessa, utilizamos a questão “J36. Nas duas últimas semanas, por que motivo o(a) sr(a). não procurou serviço de saúde?” e consideramos a resposta afirmativa para uma destas alternativas: “não tinha dinheiro”; “o local de atendimento era distante ou de difícil acesso”; “horário incompatível”; “o atendimento é muito demorado”; “o estabelecimento não possuía especialista compatível com suas necessidades”; “achou que não tinha direito”; “não gostava dos profissionais do estabelecimento”; “greve nos serviços de saúde”; “dificuldade de transporte”. O número de respostas válidas para essa pesquisa foi composto dos 60.202 indivíduos, e, para o desfecho acesso precário, 12.435 pessoas enquadraram-se nos critérios anteriormente descritos.

As variáveis independentes analisadas foram: região do país (Centro-Oeste; Sul; Sudeste; Norte; Nordeste), situação de domicílio (zona rural ou urbana), cor da pele (preta/parda; outras), sexo (masculino ou feminino), faixa etária (18-24; 25-39; 40-59; 60 ou mais), habitação com cônjuge (sim ou não), ocupação (ocupado ou desocupado), escolaridade (sem escolaridade; ensino fundamental; ensino médio; ensino superior ou mais), uso de tabaco e seus derivados (fumante - atualmente fuma algum produto do tabaco; ex-fumante - no passado fumou algum produto do tabaco; nunca fumou), uso de bebida alcoólica (uso excessivo - cinco ou mais doses diárias para homens e quatro ou mais doses diárias para mulheres em pelo menos uma única ocasião nos últimos 30 dias, considerando a dose padrão de 50 mL; uso moderado - uso habitual independentemente da dose consumida nos últimos 30 dias, porém inferior ao uso excessivo; nunca bebeu), presença de multimorbidade (sem multimorbidade: 0 ou 1 morbidade; 2 morbidades; 3 morbidades; 4 morbidades ou mais), autoavaliação de saúde (muito boa/boa; regular; ruim/muito ruim), uso de plano privado de saúde médico ou odontológico (sim ou não) e classificação econômica de acordo com a Associação Econômica de Empresas de Pesquisa (ABEP) (A-B, C, D-E).

A classificação da ABEP é um padrão de classificação socioeconômica utilizado no Brasil que considera nível educacional e acesso a bens e a serviços públicos essenciais para estimar a renda familiar. A população é classificada em seis grandes estratos socioeconômicos, de acordo com a renda média familiar estimada, denominados A, B1 e B2, C1 e C2, D-E, sendo o A o estrato de maior renda e o D-E o de menor renda1414. Damacena G, Szwarcwald CL, Malta DC, Souza Júnior PRB, Vieira MLFP, Pereira CA, et al. O processo de desenvolvimento da Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil 2013. Epidemiol Serv Saúde 2015; 24(2): 197-206. https://doi.org/10.5123/S1679-49742015000200002
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,1515. Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa (ABEP). Alterações na aplicação do Critério Brasil [Internet]. Brasil: ABEP; 2018 [acessado em 30 out. 2018]. Disponível em: Disponível em: http://www.abep.org/criterio-brasil
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Na análise estatística, foram calculadas as prevalências do acesso precário a serviços de saúde em relação às características socioeconômicas e condições de saúde da população estudada. Posteriormente, realizou-se a análise bivariada por meio do cálculo da razão de prevalências1616. Francisco PMSB, Donalisio MR, Barros MBDA, Cesar CLG, Carandina L, Goldbaum M. Medidas de associação em estudo transversal com delineamento complexo: razão de chances e razão de prevalência. Rev Bras Epidemiol 2008; 11(3): 347-55. https://doi.org/10.1590/S1415-790X2008000300002
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(RP) com respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) e valores p (p < 0,05). Para as variáveis significativas na análise bivariada (p < 0,20), foi realizada a análise multivariada por meio da regressão de Poisson1717. Coutinho LMS, Scazufca M, Menezes PR. Métodos para estimar razão de prevalência em estudos de corte transversal. Rev Saúde Pública 2008; 42(6): 992-8. https://doi.org/10.1590/S0034-89102008000600003
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, com teste de Wald para estimação robusta. Adotou-se o modelo hierárquico, e a entrada das variáveis no modelo multivariado foi feita de acordo com a ordem crescente do valor p. Nesta análise, foram considerados os pesos amostrais resultantes do delineamento da amostra complexa da PNS. Para análise estatística, foi utilizado o programa Stata, versão 14.

O projeto da PNS foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa no dia 8 de julho de 2013, sob o nº 10853812.7.0000.0008. O presente estudo utilizou dados secundários da PNS, disponíveis em sites oficiais do Ministério da Saúde do Brasil, sendo dispensado de apreciação em comitê de ética em pesquisa, em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS

A prevalência do acesso precário aos serviços de saúde da população brasileira foi de 18,1% (IC95% 16,8 - 19,4). Na análise descritiva, o acesso precário foi mais prevalente entre os indivíduos de cor de pele preta e parda (23,3%), sem escolaridade (30,4%) e com idade de 18-24 anos (19,8%) (Tabela 1).

Tabela 1.
Acesso precário aos serviços de saúde, de acordo com as variáveis socioeconômicas e de saúde entre a população adulta brasileira. Pesquisa Nacional de Saúde, 2013*.

Ainda foi possível identificar que a maioria dessa população com acesso precário era do sexo masculino (19,7%), que vivia com seu cônjuge (18,3%), possuía alguma ocupação (19,1%) e enquadrava-se em estratos socioeconômicos inferiores (D-E) (23,9%) (na Tabela 3 do Material Suplementar 1).

A Tabela 2 apresenta os resultados da análise bivariada e multivariada, da relação entre o acesso precário aos serviços de saúde e os fatores socioeconômicos e de saúde. Dentre as variáveis estatisticamente significativas na análise bivariada, destacam-se os residentes das regiões Norte e Nordeste, indivíduos de cor de pele preta e parda, fumantes, com avaliação de saúde ruim/muito ruim e que não possuíam plano de saúde médico ou odontológico.

Tabela 2.
Análise bivariada com a razão de prevalências bruta e o modelo multivariado com a razão de prevalências ajustada das variáveis associadas ao acesso precário aos serviços de saúde entre a população adulta brasileira. Pesquisa Nacional de Saúde, 2013*.

Na análise multivariada, permaneceram em associação significativa com o acesso precário aos serviços de saúde as seguintes variáveis: ter cor de pele preta e parda (RP = 1,2; IC95% 1,0 - 1,4), residir na região Norte (RP = 1,5; 1,3 - 1,9) e Nordeste (RP = 1,4; 1,2 - 1,6) em relação à região Sudeste (baseline), possuir autoavaliação de saúde ruim/muito ruim (RP = 1,3; 1,1 - 1,6), não possuir plano de saúde médico ou odontológico (RP = 2,3; 1,7 - 2,9). Por outro lado, possuir três morbidades (RP = 0,5; 0,4 - 0,6) e ter escolaridade de nível superior (RP = 0,3; 0,2 - 0,3) relacionaram-se à menor proporção do acesso precário aos serviços de saúde, no modelo final.

A Tabela 4, no Material Suplementar 2, expõe outros resultados da análise bivariada e multivariada, que apresentaram relação entre o acesso precário aos serviços de saúde e os fatores socioeconômicos e de saúde. Dentre as variáveis estatisticamente significativas na análise bivariada, destacam-se viver na zona rural (RP = 2,0; 1,7 - 2,3) e pertencer aos estratos socioeconômicos D-E (RP = 1,9; 1,6 - 2,4).

DISCUSSÃO

Os resultados apontam que a prevalência geral da dificuldade de acesso aos serviços de saúde no Brasil foi de 18,1% e com grandes disparidades entre os grupos populacionais. Tal resultado vai de encontro ao estudo realizado por Dilélio et al.1818. Dilélio AS, Tomasi E, Thumé E, Silveira DS, Siqueira FCV, Piccini RX, et al. Lack of access and continuity of adult health care: a national population-based survey. Rev Saúde Pública 2015; 49: 31. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2015049005503
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, no qual se identificou a prevalência de 3% da falta de acesso entre indivíduos que possuíam necessidade de hospitalização.

Entre as disparidades na utilização de serviços de saúde em diversos níveis de complexidade e especialidades ou na realização de procedimentos/exames, estudos apontam que a dificuldade no acesso é mais prevalente entre a população negra1919. Jones AL, Cochran SD, Leibowitz A, Wells KB, Kominski G, Mays VM. Racial, Ethnic, and Nativity Differences in Mental Health Visits to Primary Care and Specialty Mental Health Providers: Analysis of the Medical Expenditures Panel Survey, 2010-2015. Healthcare 2018; 6(2): 29. https://doi.org/10.3390/healthcare6020029
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,2020. Lopes CS, Hellwig N, Silva GA, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15: 154. https://doi.org/10.1186/s12939-016-0446-1
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Essa dificuldade de acesso aos serviços de saúde pela população negra pode estar fundada no racismo estrutural existente no Brasil, materializado nas instituições e organizações por meio de tratamento não equitativo, desvantagens no acesso a benefícios, negligência em não priorizar a construção de instituições de saúde próximas a essa população, o que configura no racismo ambiental, além da morosidade da implementação de ações e políticas voltadas a ela2121. Paradies Y, Truong M, Priest N. A Systematic Review of the Extentand Measurement of Health care Provider Racism. J Gen Intern Med 2014; 29: 364-87. https://doi.org/10.1007/s11606-013-2583-1
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,2222. Almeida S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento; 2018..

A avaliação entre o nível de escolaridade e o acesso precário (Tabela 2) demonstra que a população com menor nível de escolaridade, que, no Brasil, é composta majoritariamente da população negra, também é a que tem maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde2323. Saadi A, Himmelstein DU, Woolhandler S, Mejia NI. Racial disparities in neurologic health care access and utilization in the United States. Neurology 2017; 88(24): 2268-75. https://doi.org/10.1212/WNL.0000000000004025
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,2424. Towne Jr. SD. Socioeconomic, geospatial, and geopolitical disparities in Access to healthcare in the US 2011-2015. Int J Environ Res Public Health 2017; 14(6): 573. https://doi.org/10.3390/ijerph14060573
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,2525. Cabrera-Barona P, Blaschke T, Kienberger S. Explaining Accessibility and Satisfaction Related to Healthcare: A Mixed-Methods Approach. Soc Indic Res 2017; 133: 719-39. https://doi.org/10.1007/s11205-016-1371-9
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. Estudo realizado em Pelotas (RS) avaliou as desigualdades socioeconômicas no acesso aos serviços de saúde e na qualidade da atenção por meio de um inquérito domiciliar no município, sendo possível verificar que as desigualdades socioeconômicas e a escolaridade foram fatores que influenciaram no acesso aos serviços de saúde. Indivíduos que possuíam menor escolaridade também passaram mais tempo em filas de espera2626. Nunes BP, Thumé E, Tomasi E, Duro SMS, Facchini LA. Desigualdades socioeconômicas no acesso e qualidade da atenção nos serviços de saúde. Rev Saúde Pública 2014; 48(6); 968-76. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2014048005388
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Quando avaliado o acesso precário nas regiões do país, indivíduos residentes nas regiões Norte e Nordeste apresentaram maiores dificuldades quando comparados aos da região Sudeste. Sabe-se que a realidade da região Norte reflete-se diretamente nas condições de vida da população, como um dos mais reduzidos Índices de Desenvolvimento Humano do país, um dos maiores Índices de Gini e a segunda mais baixa densidade demográfica, justificada por sua dimensão territorial, longas distâncias entre as localidades e carências nos sistemas de transporte, o que pode gerar dificuldades para o desenvolvimento da região e, consequentemente, para o acesso aos serviços de saúde2727. Augusto AO, Lima VLA, Sena LX, Silva AF, Gomes VR, Santos ACB. Mapeamento dos casos de violência contra a mulher na região metropolitana de Belém narrados pela mídia impressa do estado do Pará. Rev Para Med 2015; 29(2): 23-32..

Nessa região, a concentração de profissionais de saúde é baixa, além de apresentar barreiras geográficas e a menor quantidade de especialistas em relação aos demais estados2020. Lopes CS, Hellwig N, Silva GA, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15: 154. https://doi.org/10.1186/s12939-016-0446-1
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. É importante destacar que, embora ao longo das últimas duas décadas tenham ocorrido melhoras na distribuição de renda e a redução da pobreza no Brasil, as discrepâncias sociais e na distribuição de serviços entre as regiões do país ainda são significativas2828. Albuquerque MV, Viana ALA, Lima LD, Ferreira MP, Fusaro ER, Iozzi FL. Desigualdades regionais na saúde: mudanças observadas no Brasil de 2000 a 2016. Ciênc Saúde Coletiva 2017; 22(4): 1055-64. https://doi.org/10.1590/1413-81232017224.26862016
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As regiões identificadas com maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde são as que mais concentram a população negra (77,3% das pessoas do Norte, 73,0% do Nordeste são negras)2929. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE ; 2016.. Além disso, esses indivíduos residem majoritariamente nas áreas rurais, constituindo 60% dessa população3030. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo demográfico 2010: Características da população e dos domicílios, resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE ; 2011., o que corrobora os achados do presente estudo.

Não possuir plano de saúde privado, médico ou odontológico foi outro fator associado ao pior acesso aos serviços de saúde encontrados no presente estudo. As pessoas dependentes exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) estão relacionadas a essa vulnerabilidade, sobretudo entre a população negra, de baixo status socioeconômico e que residem nas regiões Norte e Nordeste do Brasil3131. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª ed. Brasília: Ipea; 2011.. Dias et al.3232. Dias OV, Araújo FF, Oliveira RM de, Chagas RB, Costa S de M. Acesso às consultas médicas nos serviços públicos de saúde. Rev Bras Med Fam Comunidade 2016; 11(38): 1-13. https://doi.org/10.5712/rbmfc11(38)1185
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, ao avaliarem o acesso às consultas médicas em Minas Gerais, identificaram que quem apresentou mais dificuldades na marcação de consultas, enfrentou longas filas de espera e buscou mais os serviços da atenção básica (AB) para tratamento e reabilitação foram usuários do SUS e quem não possuía plano de saúde.

Apesar de não ser identificado, nas análises desta pesquisa, em que nível de complexidade dos serviços de saúde a dificuldade de acesso acontece, é importante destacar o panorama atual da AB no Brasil, por caracterizar-se como porta de entrada preferencial do SUS. Com exceção da região Nordeste, com 75% de cobertura desse serviço, as demais regiões brasileiras contam com cobertura pela AB entre 50 e 60%3333. Malta DC, Santos MAS, Stopa SR, Vieira JEB, Melo EA, Reis AC. A Cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, 2013. Ciên Saúde Coletiva 2016; 21(2): 327-38. https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.23602015
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Com isso, há um grande contingente populacional desassistido, o que pode elevar a dificuldade de acesso e a aquisição dos planos privados. Evidencia-se a necessidade de políticas públicas as quais ampliem a cobertura e o acesso e priorizem a AB como fonte potencializadora da melhoria de indicadores de saúde nos grupos populacionais, com vistas a diminuir as diferenças regionais.

As pessoas com avaliação de saúde ruim/muito ruim foram as que apresentaram maior prevalência do acesso precário aos serviços de saúde. Esse tipo de autoavaliação de saúde pode estar relacionado à presença de um elevado número de morbidades, fragilidade e outras condições de saúde, as quais determinam uma maior necessidade de utilização do serviço e elevada chance de deparar-se com barreiras no acesso3434. Medeiros SM, Silva LSR, Carneiro JA, Ramos GCF, Barbosa ATF, Caldeira AP. Fatores associados à autopercepção negativa da saúde entre idosos não institucionalizados de Montes Claros, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21(11): 3377-86. https://doi.org/10.1590/1413-812320152111.18752015
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,3535. Ho J, Kuluski K, Im J. “It’s a fight to get any thing you need” - Accessing care in the community from the perspectives of people with multimorbidity. Health Expect 2017; 20(6): 1311-9. https://doi.org/10.1111/hex.12571
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Embora existam evidências que estabelecem relação entre multimorbidade e dificuldade de acesso, os resultados encontrados neste estudo apontam que pessoas que não referem possuir multimorbidades são os indivíduos que mais identificam dificuldades no acesso aos serviços de saúde. Nesse caso, um maior número de morbidades poderia atuar como facilitador no acesso aos serviços de saúde, evidência já observada em outros estudos2020. Lopes CS, Hellwig N, Silva GA, Menezes PR. Inequities in access to depression treatment: results of the Brazilian National Health Survey - PNS. Int J Equity Health 2016; 15: 154. https://doi.org/10.1186/s12939-016-0446-1
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,3636. Viacava F, Bellido JG. Condições de saúde, acesso a serviços e fontes de pagamento, segundo inquéritos domiciliares. Ciênc Saúde Coletiva 2016; 21(2): 351-70. https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.19422015
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. Esse achado pode estar fundamentado na premissa de que os agravos à saúde são alvo de maior atenção pelos serviços, já que a maior parte destes se volta para a atenção à doença, e não para ações preventivas3737. Viacava F, Oliveira RAD, Carvalho CC, Laguardia J, Bellido JG. SUS: oferta, acesso e utilização de serviços de saúde nos últimos 30 anos. Ciênc Saúde Coletiva 2018; 23(6): 1751-62. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.06022018
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. Por outro lado, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde pode ser limitante do diagnóstico de multimorbidades e, assim, impedir que as pessoas que possuem múltiplos problemas de saúde declarem-se de tal modo por desconhecerem sua situação.

Observou-se que os fumantes possuem maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Com a consolidação das leis antitabagismo, criou-se um estigma social atrelado ao tabaco e ao fumante. Isso pode ter gerado marginalização, isolamento e não pertencimento desses sujeitos aos serviços de saúde, o que pode estar associado a menor procura pelos serviços de saúde3838. Stuber J, Galea S, Link BG. Smoking and the emergence of a stigmatized social status. Soc Sci Med 2008; 67(3): 420-30. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2008.03.010
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,3939. Spink MJP. Ser fumante em um mundo antitabaco: reflexões sobre riscos e exclusão social. Saúde Soc 2010; 19(3): 481-96. https://doi.org/10.1590/S0104-12902010000300002
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Outra característica marcante da dificuldade de acesso aos serviços de saúde está relacionada ao status trabalhista da população brasileira, pois aqueles que possuíam ocupação relataram maior dificuldade na utilização desses serviços. A incompatibilidade entre os horários de funcionamento da maior parte dos serviços de saúde e o horário de trabalho contribui para a manutenção das disparidades no acesso e do desconhecimento sobre sua saúde, o que pode resultar em autoavaliação negativa de sua saúde2626. Nunes BP, Thumé E, Tomasi E, Duro SMS, Facchini LA. Desigualdades socioeconômicas no acesso e qualidade da atenção nos serviços de saúde. Rev Saúde Pública 2014; 48(6); 968-76. https://doi.org/10.1590/S0034-8910.2014048005388
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,4040. Nguyen PH, Kim SS, Nguyen TT, Tran LM, Hajeebhoy N, Frongillo EA, et al. Supply- and Demand-Side Factors Influencing Utilization of Infant and Young Child Feeding Counselling Services in Viet Nam. PLoS One 2016; 11(3): e0151358. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0151358
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.

O estudo apresenta algumas limitações que devem ser ponderadas. Aponta-se o viés de informação, que pode interferir na estimação da prevalência do acesso precário e dos motivos de não haver busca pelos serviços em um segundo momento. Dados referentes a acesso podem estar sujeitos a viés de memória do morador respondente. Por outro lado, a busca inadequada de serviços de nível secundário e terciário de assistência à saúde por problemas pertinentes à atenção primaria também resultaria em relato de falta de acesso. Uma proporção importante da demanda dos serviços de emergência, por exemplo, poderia ser atendida na atenção primária, mas, por diferentes razões, a população busca, primeiramente, serviços considerados mais especializados, em vez de recorrer diretamente às UBS. Essas situações podem ter resultado em superestimação da prevalência da falta de acesso. Não obstante, esse possível viés no estudo é minimizado pela alta na proporção de busca de UBS entre os indivíduos que tiveram falta de acesso.

Entretanto, as informações referidas sobre acesso a uma gama de serviços de saúde são válidas e úteis, pois os resultados desse inquérito podem servir para comparação do panorama brasileiro com o de outros países, além do diferencial da representatividade em âmbito nacional, fornecendo informação valiosa para embasar a organização de políticas públicas voltadas à minimização do problema aqui apontado.

Os achados deste estudo indicam que o acesso precário aos serviços de saúde foi mais prevalente nas regiões Norte e Nordeste, entre pessoas que avaliam sua saúde como ruim ou muito ruim e que não possuem acesso a plano privado de saúde. Por outro lado, possuir multimorbidade e ter ensino superior mostraram-se fatores associados à menor prevalência do desfecho. Nossos resultados refletem a necessidade do aperfeiçoamento do sistema de saúde brasileiro, com vistas à correção das iniquidades apontadas, além da necessidade do acompanhamento desse quadro ao longo dos anos com novos inquéritos populacionais no Brasil.

Este estudo, de maneira geral, corrobora a compreensão multidimensional do acesso aos serviços de saúde e sua relação com as condições de saúde e vida da população. Para o acesso universal a esses serviços, alguns obstáculos precisarão ser superados; a ampliação da oferta de serviços e profissionais vinculados ao SUS, das possibilidades de acesso por fluxos de atendimentos organizados pelas demandas epidemiológica, sanitária e social e as mudanças nos padrões de utilização estão entre os principais elementos. Por outro lado, é importante destacar os desafios históricos, entre os quais estão a relação público-privado na prestação dos serviços de saúde, as marcantes desigualdades regionais e o subfinanciamento.

Contudo, a análise de acesso, oferta e uso de serviços de saúde necessita ser complementada com avaliações sobre a qualidade do cuidado ofertado, o que demanda a abordagem de outras dimensões do desempenho do sistema de saúde, como adequação, continuidade, aceitabilidade, efetividade, eficiência, segurança e respeito aos direitos do paciente.

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  • Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) [processo 88882.375266/2019-01].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2020
  • Revisado
    08 Ago 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
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