Prevalência de déficits nutricionais em crianças menores de cinco anos em Angola

Ema Cândida Branco Fernandes Rosane Aparecida Monteiro Luciana Cisoto Ribeiro Daniela Saes Sartorelli Sobre os autores

Resumos

OBJETIVO

Estimar a prevalência de déficits nutricionais entre crianças angolanas.

MÉTODOS

Estudo transversal de base populacional. Para classificação do estado nutricional, foram empregados os critérios da Organização Mundial da Saúde (2006).

RESULTADOS

Observou-se elevada prevalência de déficits de estatura-para-idade, peso-para-estatura e peso-para-idade (22%, 13% e 7%, respectivamente) entre as crianças.

CONCLUSÕES

Déficits nutricionais de crianças representam sério problema de saúde pública em Bom Jesus, Angola.

Lactente; Criança; Deficiências Nutricionais, epidemiologia; Transtornos da Nutrição Infantil, epidemiologia; Inquéritos Nutricionais


INTRODUÇÃO

A prevalência dos déficits nutricionais em crianças menores de cinco anos diminui globalmente, embora com distinta magnitude entre os países, devido à exposição a condições socioambientais desfavoráveis em regiões menos desenvolvidas. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.

Estima-se que 115 milhões de crianças menores de cinco anos tinham déficit de peso para a idade (P/I) no mundo em 2010. Maiores prevalências foram encontradas na região centro-sul da Ásia (30%) e regiões Oriental, Ocidental e Central da África com 22%, 22% e 21%, respectivamente. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009. No mesmo ano, cerca de 178 milhões de crianças menores de cinco anos tinham déficit de estatura para a idade (E/I). Esse déficit pode comprometer o desenvolvimento e habilidade cognitiva quando afeta a criança antes dos dois anos, levando à menor produtividade e capital humano na idade adulta. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.

Crianças com déficits nutricionais são mais propensas a infecções graves e mortes por diarreia, sarampo, pneumonia e malária. As que sobrevivem podem ter o sistema imunológico debilitado e desenvolver um ciclo vicioso de infecções recorrentes e desnutrição. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009. Além disso, podem apresentar rendimento escolar deficiente e estão expostas ao maior risco de desenvolverem doenças crônicas na vida adulta. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.

Angola é um país em desenvolvimento situado na África ao sul do Sahara. A esperança de vida ao nascer é de 52 anos e 34,4% da população com 15 anos ou mais é analfabeta. As condições socioambientais são precárias: 78,5% da população urbana residia em habitações construídas com material não apropriado, sem acesso à eletricidade (59,8%), água de qualidade (58%) e ao saneamento apropriado (40,4%). aaInstituto Nacional de Estatística. Inquérito integrado sobre o bem estar da população 2008-09. Luanda; 2010. A prevalência do déficit de E/I foi de 29,2% em 2007, 12,2% de intensidade grave. Maior prevalência foi observada no oeste (34,3%), sul (33,7%) e centro sul (31,3%). A prevalência do déficit de peso para estatura (P/E) foi de 8,2% e o de P/I, de 15,6%. bbMinistério da Saúde. Relatório do inquérito sobre a nutrição em Angola. Luanda; 2007.

Bom Jesus é uma das comunas do município de Icolo e Bengo, província de Luanda, com características rurais, próxima à capital do país, de onde não se tem conhecimento da existência de estudos sobre a prevalência de déficits nutricionais em crianças menores de cinco anos.

O presente estudo teve por objetivo estimar a prevalência de déficits nutricionais entre crianças angolanas.

MÉTODOS

Estudo transversal de base populacional com 744 crianças menores de cinco anos na comuna de Bom Jesus, província de Luanda, em 2010.

A amostra foi selecionada por meio da técnica de amostragem sistemática, considerando o domicílio como unidade amostral. Foi feito o sorteio do primeiro e seleção dos demais a cada três domicílios, respeitando o sentido anti-horário e a direção leste de localização. Crianças residentes nos domicílios sorteados foram consideradas unidades de análise, excluindo-se as ausentes, as que tinham doença prolongada e aquelas que apresentaram dados discrepantes.

A coleta de dados ocorreu de maio a agosto de 2010, efetuada por alunos do último ano do curso de medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, sob a supervisão do pesquisador.

Os entrevistadores foram previamente treinados e os que obtiveram maior precisão na aferição ccWorld Health Organization. Training course on child growth assessment. Geneva; 2008 [citado 2009 set 20]. Disponível em: http://www.who.int/childgrowth/training/en/ de medidas antropométricas foram escalados para o trabalho de campo. Para o peso, utilizaram-se balanças portáteis tipo Salter, modelo CMS, com capacidade de 25 kg e precisão de 100 g calibradas diariamente com peso-padrão. O comprimento foi aferido com a criança deitada em menores de 24 meses e em posição supina naquelas com 24 meses ou mais, ccWorld Health Organization. Training course on child growth assessment. Geneva; 2008 [citado 2009 set 20]. Disponível em: http://www.who.int/childgrowth/training/en/ utilizando antropômetros portáteis, modelo AHRTAG, com precisão de 1 mm. Os dados foram coletados em duplicata, adotando-se a média como valor final sempre que a diferença entre as medições fosse < 100 g para o peso e 0,7 cm para a estatura. 2. World Health Organization. Multicentre Growth Reference Study Group. WHO child growth standards: length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Geneva; 2006.

As entrevistas foram realizadas preferencialmente com a mãe ou responsável pela criança. Foi aplicado questionário estruturado, previamente codificado, com informações relacionadas à criança: idade, sexo, data de nascimento, peso ao nascer, ordem de nascimento e morbidade nos últimos 15 dias.

O cálculo do estado nutricional das crianças, segundo os índices antropométricos E/I, P/E e P/I e expressos em escores Z (EZ), foi realizado com o programa WHO Anthro versão 3.1.0, que utiliza como padrão de referência as curvas de crescimento segundo a Organização Mundial da Saúde 2. World Health Organization. Multicentre Growth Reference Study Group. WHO child growth standards: length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Geneva; 2006. para crianças menores de cinco anos, considerando o ponto de corte de -2 EZ. Foram excluídas 34 crianças: 2,2% por estarem ausentes da comuna durante o período da coleta de dados, 0,9% por doença prolongada e 1,3% por apresentarem valores extremos de EZ, isto é, índice P/I < - 6 ou > 5; índice E/I < - 6 ou > 6; e índice P/E < - 5 ou > 5.

Utilizou-se o programa EpiInfo, versão 3.5.1, para comparação dos déficits segundo características das crianças. Empregou-se o teste de Qui-quadrado de Pearson para heterogeneidade, considerando o nível de significância de 0,05.

Pesquisa aprovada pela Direção Provincial de Saúde do Bengo, Angola (Processo nº 26/DPSB/2009); pelo Comitê de Ética Independente da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, Angola; e pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde-Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, (Processo nº 267/09/COORD. CEP/CSE-FMRP-USP).

Depois de esclarecidas as dúvidas, as mães ou responsáveis pelas crianças aceitaram participar do estudo e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As crianças que apresentaram desnutrição ou outra morbidade receberam orientações e foram encaminhadas ao serviço de saúde local para tratamento e acompanhamento.

RESULTADOS

Existiam 2.088 domicílios na comuna de Bom Jesus em 2010. Foram sorteados 696 (cerca de ⅓); em 23,3% residiam crianças menores de cinco anos. Nesses domicílios residiam 498 famílias e foram identificadas 778 crianças.

Das 744 crianças observadas, a prevalência dos déficits nutricionais foi elevada para os três índices: 22,0%, 6,6% e 13,3% para os déficits de E/I, P/E e P/I, respetivamente. Maior proporção de crianças com déficit de E/I foi observada na faixa etária de 24 a 35 meses, enquanto para os déficits de P/E e P/I maiores prevalências ocorreram nas faixas etárias de zero a cinco e 12 a 23 meses, respetivamente. Observou-se maior prevalência do déficit de E/I em crianças com diarreia com muco e sangue e expulsão de parasitas, enquanto a proporção de P/I foi maior naquelas que referiram expulsão de parasitas e prurido anal ( Tabela ).

Tabela
Prevalência dos déficits nutricionais segundo características das crianças menores de cinco anos. Bom Jesus, Angola, 2010.

DISCUSSÃO

Elevada prevalência de déficits nutricionais foi observada entre as crianças da comuna de Bom Jesus, configurando-se sério problema de saúde pública.

O déficit de E/I continua o de maior magnitude em todo o mundo, quando comparado aos déficits de P/E e P/I. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009. Apesar de Bom Jesus ter caraterísticas rurais, a prevalência de déficit de E/I (22%) foi inferior à verificada na área rural de Angola (33,0%) e na província do Bengo, bbMinistério da Saúde. Relatório do inquérito sobre a nutrição em Angola. Luanda; 2007. provavelmente devido à instalação de indústrias que podem ter aumentado a renda familiar. Maior prevalência de déficit de E/I foi observada a partir do segundo ano de vida, com proporção maior na faixa dos 24 a 47 meses. O déficit de E/I indica condição crônica, decorrente de processo contínuo de desnutrição em idades mais jovens. A desnutrição materna que pode provocar baixo peso ao nascer e a alimentação deficiente do latente e da criança pequena são algumas das causas da desnutrição em idade precoce. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.

A prevalência do déficit de P/I em Bom Jesus (13,3%), apesar de considerada elevada, é inferior à encontrada na área rural de Angola (18,0%). bbMinistério da Saúde. Relatório do inquérito sobre a nutrição em Angola. Luanda; 2007. Um terço das crianças de seis a 23 meses apresentou desnutrição aguda, que pode ser reflexo de desnutrição materna, aleitamento materno deficiente e precárias condições de alimentação, principalmente a introdução da alimentação complementar. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.

A associação entre o déficit de E/I e P/I com as parasitoses intestinais e a diarreia, causas imediatas da desnutrição infantil, podem ter como causa subjacente o analfabetismo, especialmente o materno, condições ambientais, sanitárias, sociais e econômicas precárias. 1. United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009. Elevada proporção de famílias residiam em domicílios construídos com material não apropriado, com apenas um cômodo e sem acesso a água tratada na comuna de Bom Jesus em 2010. Não havia vaso sanitário/esgoto e o lixo era descartado ao ar livre em mais de ⅔ dos domicílios. Aproximadamente ⅔ das mães eram analfabetas ou tinham entre um e quatro anos de escolaridade (dados não apresentados).

Apesar de os resultados não poderem ser extrapolados a todas as crianças angolanas, os achados mostraram elevada prevalência dos déficits nutricionais, principalmente de E/I. Outros estudos são necessários para a identificação dos determinantes da desnutrição infantil com vistas à implementação de medidas preventivas.

REFERÊNCIAS

  • 1
    United Nations Children´s Fund. Tracking progress on child and maternal nutrition: a survival and development priority. New York; 2009.
  • 2
    World Health Organization. Multicentre Growth Reference Study Group. WHO child growth standards: length/height-for-age, weight-for-age, weight-for-length, weight-for-height and body mass index-for-age: methods and development. Geneva; 2006.

  • a
    Instituto Nacional de Estatística. Inquérito integrado sobre o bem estar da população 2008-09. Luanda; 2010.
  • b
    Ministério da Saúde. Relatório do inquérito sobre a nutrição em Angola. Luanda; 2007.
  • c
    World Health Organization. Training course on child growth assessment. Geneva; 2008 [citado 2009 set 20]. Disponível em: http://www.who.int/childgrowth/training/en/
  • Estudo baseado na dissertação de mestrado de Fernandes E.C.B., apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Saúde na Comunidade da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo em 2011.
  • Apresentado no VIII Congresso Brasileiro de Epidemiologia em São Paulo, SP, em 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2012
  • Aceito
    15 Jan 2013
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