Resumos
Este artigo é produto parcial de uma pesquisa realizada na região metropolitana de Belo Horizonte com o objetivo de compreender os mecanismos sociais e simbólicos envolvidos na relação entre o tráfico do crack e a disseminação da violência, o uso compulsivo dessa substância, os tratamentos e os serviços de atenção ao usuário. Foram utilizados métodos quantitativos e qualitativos, com análise dos inquéritos policiais, entrevistas com policiais, traficantes, profissionais, pacientes e gestores das instituições que prestam atendimento ao usuário de crack. Pretende-se discutir a construção social do problema das drogas; as imagens negativas construídas socialmente sobre o crack e sobre os usuários da substância; as respostas institucionais que, baseadas nos modelos biomédicos, religiosos e jurídicos propõem, gerenciam e legitimam protocolos burocráticos homogêneos para diferentes tipos de usuários. As representações construídas socialmente interferem diretamente no insucesso do processo terapêutico, na descrença e nas frustrações da equipe de profissionais e nas frequentes recaídas e reinternações dos pacientes, particularmente dos usuários de crack . Além de reproduzir uma política proibicionista obsoleta, reforçar preconceitos, provocar medidas coercitivas e discriminatórias, preterindo os direitos de cidadania.
Problema social; Construção social do crack ; Craqueiro; Respostas institucionais
Introdução
O consumo das substâncias psicoativas é conhecido em todas as sociedades e culturas, diferindo apenas na maneira como são manipuladas, usadas, produzidas e tratadas ( Escohotado, 1998ESCOHOTADO, A. Historia de las drogas . Barcelona: Alianza, 1998. ). No mundo ocidental, a partir da metade do século XIX, é notável a intensificação dos usos de drogas, a variedade das substâncias, as diferentes formas de utilização e a diversidade dos grupos e classes sociais usuárias. Com efeito, o assunto passa a ser de interesse generalizado, e é considerado um problema social que deve merecer atenção particular no âmbito penal, médico e sociocultural. Um problema social é uma construção que implica a visão de mundo e de valores sociais e, portanto, deve ser analisado com base nas representações sociais e no contexto histórico-cultural ( Lenoir, 1998LENOIR, R. Objeto sociológico e problema social. In: CHAMPAGNE, P. et al. Iniciação à prática sociológica . Petrópolis: Vozes, 1998. p. 59-106. ).
A sociedade contemporânea, marcada pelo crescimento dos centros urbanos industriais capitalistas, tem como características a racionalidade, a tecnologia e a supervalorização do consumo, que, além de outros fatores, constituem importantes mecanismos de informação, intervenção e de controle de determinadas realidades sociais. Esses mecanismos são apoiados em indicadores estatísticos – mortalidade e morbidade, entre outros –, que são manipulados intencionalmente para direcionar a atenção da sociedade para certos fenômenos sociais, e não para outros, atendendo a interesses ideológicos, políticos, econômicos e sociais. Na leitura de Baratta (1988)BARATTA, A. La criminalización del consumo y tráfico de drogas, desde de la Criminología: aspectos económicos y políticos. In: CONGRESO DE DROGODEPENDENCIAS DEL PAÍS VASCO, 2., 1987, Vitoria-Gasteiz. Anais… Vitoria-Gasteiz: Ed. Servicio Central de Publicaciones del Gobierno Vasco, 1988. Sem paginação. , essas estratégias têm o intuito de ofuscar os conflitos sociais reais, potenciais ou supostos. No caso específico das drogas que, na atualidade, é considerado um “problema”, se comparado às questões como pobreza, acidentes de trânsito, guerras, mortes cruéis recorrentes nos grandes centros urbanos, comorbidade, entre tantos outros, tem relevância reduzida, embora, como foi construído, tenha uma função importante de driblar os problemas estruturais, o que acaba por se transformar, paradoxalmente, em fator essencial na ordenação social.
O problema social das drogas torna central e ganha destaque institucional nos Estados Unidos sob a argumentação baseada nos preceitos cristãos, no puritanismo norte-americano, na preocupação da elite com os “comportamentos” e os “excessos” provocados pela alteração do estado de consciência do indivíduo de determinadas classes e de certos grupos sociais –considerados perigosos –, além do estímulo ao uso de psicoativos farmacológicos. Esses fatores têm ressonância e subsídio nos princípios morais hegemônicos e destacam o consumo de psicoativos como um problema sanitário digno de controle. Assim, o “problema das drogas” desestabiliza e ameaça a ordem moral, a saúde e a segurança pública.
Em decorrência disso, para o seu enfrentamento, foram instituídos modelos burocráticos institucionais e legislações específicas e rigorosas para o controle da produção, do comércio e do uso de determinadas substâncias. Essas medidas foram corroboradas pelo sistema médico que, por meio de estudos científicos, evidenciaram as consequências provocadas para a saúde do indivíduo, principalmente nos casos de dependências, e dos perigos para a sociedade. Essa combinação contribui para a construção do “problema das drogas” e para o desafio de seu controle no campo da criminalização (penalização), dispositivo para a proteção da sociedade que considera o uso de determinadas drogas como desvio e/ou transgressão da norma, e, no campo da medicalização (prescrição), com a atenção ao indivíduo usuário, considerado portador de uma enfermidade do quadro das doenças mentais. De toda forma, tanto o modelo penal como o modelo médico têm uma tendência a enfocar o usuário como o indivíduo desviante dos padrões de normalidade, e não o sistema social, rotulando-o como delinquente ou como enfermo. A estratégia de “criar” o desviante é intencional e implica necessariamente aspectos políticos. Becker, ao estudar a categoria outsiders , explica que
os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e ao aplicar tais regras a certas pessoas em particular, qualificam-nas de outsiders . Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, mas uma consequência da aplicação que outros fazem ( Becker, 1971BECKER, H. Los extraños : sociología de la desviación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1971. , p. 19).
Portanto, o desvio não é uma característica específica de certas categorias de pessoas, mas de uma variedade de contingências sociais influenciadas por aqueles que detêm o poder de conferir ao outro esse atributo.
A partir dos anos 1930 e 1940, estudos antropológicos sobre sociedades primitivas evidenciam o uso de drogas em rituais xamânicos ( Lévi-Strauss, 1979LÉVI-STRAUSS, C. Los hongos em la cultura : antropologia estructural. Madrid: Siglo XXI, 1979. ; Harner, 1976HARNER, M. (Org.). Alucinógenos y chamanismo . Madrid: Guadarrama, 1976. ; Furst, 1980FURST, P. Alucinógenos y cultura . Ciudad de México, DF: ECE, 1980. ), fazendo surgir novas formas de interpretação dos usos das drogas. No final dos anos 1940, inspirada na Escola de Chicago, iniciam-se as investigações socioantropológicas e etnográficas sobre o chamado mundo das drogas no espaço urbano industrial, deixando de ser exclusividade das sociedades primitivas ( Waldorf, 1980WALDORF, D. A brief history of illicit-drugs ethnographies. In: AKINS, C.; BESCHNER, G. (Ed.). Ethnography : a research tool for policy makers in the drug and alcohol fields. Rockville: Nida, 1980. p. 80-946. ).
Na atualidade, as drogas e, em especial, o crack são um tema de inquietação universal, que, talvez, pelo seu caráter paradoxal, enigmático, complexo e multidimensional, é capaz de mobilizar interesses de ordem intelectual, conceitual científica, econômica, política, estética, religiosa, médica, psicológica, legal, moral, ideológica e simbólica. De toda forma, ainda que esses interesses, de maneira geral, sejam tratados de modo esfacelado e desconjuntado, a linha divisória ente eles é tênue, o que traduz uma interface entre os diferentes discursos sobre as substâncias. Segundo Becker (1971BECKER, H. Los extraños : sociología de la desviación. Buenos Aires: Tiempo Contemporáneo, 1971. , p. 182), “na medida em que as drogas têm tantos efeitos, esses podem ser interpretados de várias maneiras e assim refletem influências contextuais extremamente sutis”.
A metalinguagem em torno da questão, além de apropriações correspondentes aos interesses, serve para ampliar o campo de debate sobre a sociedade, os modos de vida, o poder, os saberes e as formas de intervenção social. Trata-se de um debate plural, dinâmico e polêmico que põe em questão os modelos tradicionais e as certezas absolutas.
Assim, como ressaltado por Lévi-Strauss (1993LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. , p. 238), “os alucinógenos não contêm uma mensagem natural, cuja noção mesma seria contraditória; são detonadores e amplificadores de um discurso latente que cada cultura conserva, e cuja elaboração as drogas permitem ou facilitam”. Melhor dito, os discursos articulados sobre determinadas substâncias psicoativas refletem, de alguma forma, as experiências, as formas de classificação, os diferentes interesses, a eficácia simbólica e as interpretações dos variados cenários sociais.
O crack no contexto contemporâneo
O crack , na atualidade, é um tema central veiculado nos sistemas de comunicação de massa, nos organismos de pesquisa, de tratamento, no campo jurídico e religioso, e, de maneira geral, com conotação sensacionalista, moralista, jurídica ou biomédica. Da forma como é apresentado, o crack tem o poderio e a destreza para mobilizar qualidades químico-farmacológicas, com o poder de atuar sobre o indivíduo, e este sobre a sociedade, que passaria à vítima dessa poderosa droga. É comum os noticiários conferirem ao crack o poder de um personagem dotado de vida própria, credenciado e habilitado para desmoronar de forma estrondosa a sociedade, especialmente por sua capacidade destruidora. Assim interpretado, ele atua sobre a pessoa e ela, tomada por uma satânica capacidade mágica, age sobre a sociedade de forma devastadora. Trazem os noticiários também pessoas “possuídas” pelo crack vivendo em periferias decadentes, sujas e repugnantes, chamadas “territórios urbanos das drogas” ( Fernandes, 2000FERNANDES, L. Los territorios urbanos de las drogas: un concepto operativo. In: ______. Contextos, sujetos y drogas : un manual sobre drogodependencia. Barcelona: Ayuntament de Barcelona: Fad, 2000. p. 53-60. , p. 57). Simultaneamente, articulam narrativas que apresentam casos individualizados, realçando figuras impressionantes, especialmente mães desesperadas que relatam experiências traumáticas, centradas em tragédias familiares e episódios violentos. Essas narrativas entrelaçam, de maneira quase automática, os crimes e os atos cruéis de transgressão e delinquência aos usuários de drogas e, de maneira especial, aos usuários de crack , justificando e silenciando as discussões mais ampliadas sobre a dimensão socioeconômica, política, jurídica, clínica e cultural nas quais o crack e outras drogas estão implicados. Não que isso não seja parcialmente verdade, mas a intenção das informações articuladas dessa maneira parece ser a de estabelecer e legitimar a demonização da substância e a culpabilização do indivíduo, reforçando estereótipos e concentrando, assim, a atenção da sociedade nesse “problema social” e, ao mesmo tempo, desviando-a de leitura estrutural que implica os processos do uso da droga (em diversos sentidos); a natureza do consumo, as características dos consumidores, os contextos social e histórico em que surgem determinadas drogas e a magnitude do consumo, do comércio e de suas consequências.
Imagens sociais do craqueiro
O crack é resultante de cocaína mesclada com diferentes tipos de solventes em um processo simples de mistura e sem a exigência de mão de obra especializada. Isso possibilita sua comercialização a baixo custo e de forma dispersa, podendo ser, inclusive, produzido pelo próprio consumidor. Essa característica é determinante para dar acesso ao consumo, além de outras classes sociais, à população de baixo poder aquisitivo, que vive na periferia das cidades, em zonas marginalizadas, que dificilmente teriam acesso à cocaína. Por essa razão, no discurso popular, as imagens criadas sobre o crack e sobre seu usuário são imediatamente associadas à parte perigosa ou marginal da cidade, onde vivem os grupos que devem ser evitados por seu caráter provocador das balbúrdias urbanas. A demarcação desses “territórios das drogas” promove o reforço dos valores sociais opostos, a intolerância, a discriminação, a suspeita e o medo. Esses fatores são expressos em uma sucessão de rituais cotidianos de identificação e humilhação e são apresentados de forma descomunal pelos veículos de comunicação de massa, provocando impactos eficazes nas imagens estereotipadas e nas representações negativas apresentadas à população em geral. Em decorrência disso, as medidas de intervenção, as respostas institucionais nos campos jurídico, médico, religioso e as reações da sociedade são articuladas de maneira coerente com essas representações sociais.
É certo que o crack , devido a suas características, assim como a cachaça e o tíner (cola de sapateiro), é uma substância que dá à pobreza acesso ao sonhado consumo contemporâneo e, principalmente, permite a essa categoria experimentar o prazer e escapar, ainda que temporariamente, da rotina e das mazelas do cotidiano.
Apesar dessas características, não é só a classe miserável que tem interesse e faz uso do crack , talvez pela própria natureza marginal e pela possibilidade de transgressão (apresentadas pela mídia e que pode provocar efeito inverso). Pode-se afirmar que é difícil perfilar o grupo usuário de crack . Na pesquisa realizada em Belo Horizonte, no período de 2008 a 2010 ( Sapori e Medeiros, 2011SAPORI, L. F.; MEDEIROS, R. Crack : o desafio social. Belo Horizonte: PUC Minas, 2011. ), foi identificada, além da classe baixa, negra, do sexo masculino, jovem, com baixa escolaridade e que vive na periferia, comumente apresentada pela mídia, uma população na faixa etária de 50 a 85 anos, branca, de classe média e alta, com escolaridade superior, de ambos os sexos, procedente da zona sul e de outras regiões diferentes das periféricas.22O crack foi usado, inicialmente, não somente no Brasil, como em outras sociedades, pelos grupos marginais. Na atualidade, esse cenário foi modificado, seja pela condição financeira da população, pelo prazer imediato provocado pela substância, para evitar visibilidade, para disfarçar o uso de drogas pelo cheiro, seja por escolhas individuais. As fronteiras simbólicas forjadas pelo sistema de comunicação de massa, embora sejam eficazes para delimitar os espaços e as classes sociais, não correspondem, em sua totalidade, à realidade. Cabe ressaltar que escolhas e não escolhas pelo uso de determinadas substâncias são condicionadas pelos próprios desejos e limites com que as pessoas se defrontam em seu cotidiano ou em determinados períodos da vida. Assim, independentemente da classe social e de outros elementos de classificação e hierarquização social, outros fatores e situações de vulnerabilidade podem ser nitidamente observados entre os usuários de crack .
Dado o caráter proibicionista, o comércio de drogas ilícitas está geralmente localizado nas zonas periféricas, e, para a aquisição da substância, principalmente os indivíduos pertencentes às classes sociais privilegiadas, têm que romper com barreiras e territórios sociais para fazer negociações, para o reconhecimento das regras e das normas, para compreender as formas de comunicação, o comércio, a distribuição da droga e as punições previstas quando ocorre transgressão de qualquer um desses fatores garantidores da ordem do “negócio”. Embora esse cenário seja assim delineado, a imagem negativa construída sobre o craqueiro e o crack é privilegiada, o que pode ser aproveitada pelos usuários para um ganho secundário, situação socialmente típica dos grupos marginais. Melhor dito, conhecedor dos parâmetros atribuídos aos usuários, determinados indivíduos manipulam situações que acabam por retroalimentar essa imagem. Por exemplo, é comum, nos serviços de atenção aos usuários de crack , algum indivíduo simular um quadro de agressão, fissura ou abstinência para forçar a internação ou a admissão no serviço de tratamento.
Para dar respostas à problemática do crack , as instituições se estruturam individualmente, utilizando estratégias particulares e saberes incondicionais e obsoletos, contribuindo para as recorrentes internações, fracasso terapêutico, reprodução e reforço das imagens negativas sobre determinadas drogas e certos grupos sociais.
Parâmetros institucionais e a assistência ao usuário de drogas
No Brasil as instituições que prestam assistência aos usuários de drogas são, principalmente, as unidades de saúde mental (Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas – CAPS AD e hospitais) e as comunidades terapêuticas. Em geral, utilizam os parâmetros terapêuticos baseados nos seguintes modelos: modelo médico, que trabalha com a lógica da centralidade no estudo de caso e na medicalização, por meio de internamento para desintoxicação, da permanência dia e ambulatorial; o modelo religioso, que defende o afastamento do usuário de seu cotidiano, geralmente pelo prazo de nove meses, e prioriza a religiosidade e o trabalho; e o modelo jurídico, que atua com a lógica do delito e da penalização. Todos esses modelos enfocam o indivíduo e a substância utilizada por ele e desconsidera seu contexto social, seu estilo de vida, a significação e a ritualização do uso da droga.
As instituições de saúde
O tratamento das toxicomanias nas unidades de saúde é de responsabilidade de uma equipe de profissionais, geralmente com formação no campo das ciências biomédicas e, em poucos casos, raros técnicos da área das ciências sociais. As propostas terapêuticas obedecem a protocolos burocráticos e formais baseados nos critérios de abstinência.
Nos casos específicos dos pacientes de crack , as instituições baseadas nas imagens negativas sobre o craqueiro se estruturam para lidar com o indivíduo descuidado, descontrolado, perigoso, imoral e irresponsável. Mediante esse “outro” imprevisível e desconhecido, os profissionais são destituídos do poder pelo saber que, de antemão, têm sobre o outro, especialmente pela condição na qual esse outro se apresenta – endemoniado – e pelo que demanda: controle.
Ademais, a organização do sistema de saúde é apoiada nos paradigmas ideológicos imbuídos de interesse político que subsidiam planejamento e ações, visando méritos próprios, embora nos discursos políticos enfoquem o tratamento das drogas como prioridade. No caso dos centros de atenção ao usuário de drogas, a própria estrutura física revela o pouco caso com que se lida com essa população. Em sua maioria, as instituições são “ajeitadas” em prédios inacabados, descorados, decadentes, sucateados, abrochados nos corredores, com amontoado de papéis e de maquinário danificado e parcos recursos materiais e humanos. Adicionados os esquemas ideológicos e a estrutura física, os estabelecimentos de tratamento das toxicomanias esperam que a equipe técnica incorpore os propósitos engessados em protocolos e metas definidas com antecipação e sem brechas para procedimentos autônomos e criativos. Ao contrário, suas ações são dominadas e controladas por meio de estratégias camufladas que definem trajetórias profissionais, reforçando o exercício dicotomizado e mecânico, criando assim verdadeiros guetos internos.
Além disso, a equipe é desfalcada e não recebe formação e/ou atualização qualificada para atender à complexidade da clínica das toxicomanias. Isso contribui significativamente para o desencanto com o trabalho, com o preconceito em relação ao tormentoso paciente usuário de drogas, em especial o crack , e o desprezo com a condição que apresenta esse sujeito. Como alternativa, alguns profissionais tomam iniciativas individuais e onerosas para buscar supervisão ou cursos de atualização; outros lançam mão de um saber espontâneo e de intuição; enquanto outros se acomodam e se limitam a tarefas automatizadas e irrefletidas. Isso resulta na imprecisão de conceitos, de diagnóstico, de prognóstico, nos equivocados encaminhamentos e no enfrentamento de situações delicadas e súbitas que ocorrem no cotidiano dessas instituições e, sem dúvida, na eficácia terapêutica. Esses fatores interferem diretamente nas frustrantes tentativas dos técnicos e no exercício do profissional, que, em seu cotidiano, tem que suportar a dureza da jornada de trabalho e lidar com a angústia, padecimento e desvario diante dos usuários.
Nesse contexto, é possível arriscar a afirmação de que a equipe técnica reproduz a estrutura social organizada sob a égide ordenadora e sustentada pela lógica discursiva da hegemonia e subordinação e, simultaneamente, deve ajuizar o paciente que perdeu o controle de sua vida com o uso desmedido de drogas. Nessa estrutura perversa, a instituição neutraliza a mobilização social, o protagonismo, a autonomia, a participação política e o exercício da cidadania e reproduz a dinâmica do explorador/dominado.
Em decorrência disso, os profissionais se fecham em suas próprias identidades, dificultando a troca, a abertura para outros campos de saber, para o contato com outras instituições, para outras possibilidades de atenção ao usuário e para a visualização da realidade fora do âmbito dos muros institucionais. Assim, nesse contexto, o trabalho em redes, absolutamente necessário para a abordagem da tríade sujeito, substância e contexto social, fica comprometido, enquanto as práticas particulares submetidas aos macrossistemas políticos, à mecanização das ações profissionais e aos resultados terapêuticos indesejados se tornam rotina. A equipe, desencantada profissionalmente e diante da complexidade da situação criada pelos pacientes que fazem uso abusivo do crack e tudo o que ele representa, trata de cumprir seu papel, limitando-se a repetir procedimentos terapêuticos empacotados, sob o discurso de “cada caso”, e se desinteressa pelos mecanismos utilizados pelos pacientes para sua sobrevivência, para estabelecer laços e para construir sistemas de representações sociais em sua trajetória, ou seja, pelo universo social em que os usuários estão inseridos, retroalimentando a recaída e a busca incessante por uma poção mágica para solucionar o seu problema ( Medeiros, 2008MEDEIROS, R. (Org.). Redes sociais : reflexões sobre as redes informais dos usuários de álcool e de crack. Belo Horizonte: Sigma, 2008. ). Em contrapartida, apoiados nos índices de insucesso terapêutico, os modelos moralistas e as estruturas físicas obsoletas, os discursos políticos e ideológicos responsáveis por fazer circular as imagens estereotipadas do paciente ganham espaço e projetam a intensificação do medo do crack e do craqueiro.
De acordo com o modelo biomédico, a estratégia ideológica de identificar o usuário de drogas/ crack como doente explica a proposta hegemônica de tratamento, que, segundo Menéndez (1990)MENÉNDEZ, E. L. Morir de alcohol : saber y hegemonía médica. México, DF: Alianza-Fonca, 1990. , é
un conjunto de prácticas, saberes y teorías generadas por el desarrollo de lo que se conoce como medicina científica, el cual, desde finales del siglo XVIII, ha ido logrando dejar como subalternos al conjunto de prácticas, saberes y ideologías que dominaban en los conjuntos sociales, hasta lograr identificarse como la única forma de atender la enfermedad, legitimada tanto por criterios científicos como por el Estado (p. 83).
Nessa perspectiva, a doença é considerada um desvio das normas e preceitos de normalidade, seja pela vontade, seja pela decisão irresponsável do sujeito ou por sua incapacidade de lidar, respeitar ou obedecer às normativas sociais. Ele deve, portanto, ser corrigido. Para isso, é utilizado um projeto terapêutico baseado na prática curativa que vislumbre a medicalização e a normalização de suas ações pré-escritas por expertises , com o objetivo de reordenar sua trajetória, seus desejos e seu comportamento, tornando-o mais obediente e útil aos mecanismos sociais ( Foucault, 1994FOUCAULT, M. Vigiar e punir . Vozes: Petrópolis, 1994. ), o que configura uma relação médico/paciente de subordinação social à técnica científica.
No caso dos pacientes de crack , a estratégia de disciplina não é eficaz, pois eles abandonam o tratamento, renunciam às prescrições da equipe terapêutica e retornam aos serviços quando necessário, e novamente são atendidos. Dessa forma, cria-se um círculo vicioso: a busca compulsiva pela substância, por tratamentos nas unidades de saúde, o abandono do tratamento, as recidivas e os fracassos terapêuticos.
Por outro lado, o lugar instituído de doente pode ser convertido em um recurso útil para os usuários de drogas e, particularmente, de crack , que fazem uso dele como meio para a obtenção de algum benefício, da clemência por parte da Justiça ou para se safar de situações embaraçosas com traficantes, polícia, etc. Assim, como qualquer ser humano, os usuários se utilizam de uma multiplicidade de jogos e truques sociais em seu mundo simbólico, na tentativa de sobrepujar seu destino grotesco. A doença pode, ainda, ser uma espécie de talismã para a argumentação dos advogados nos processos jurídicos, visando evitar a condenação de seu cliente. Para os familiares, ela pode justificar o comportamento transgressor de um dos seus membros, a fim de ocultar as formas de organização das relações familiares ou para se situar no lugar de vítima do comportamento do “drogado” ou para reforçar e delinear as diferenças entre o normal e o patológico. Ainda que esse processo se reproduza com todas as suas mazelas, são notórias as resistências por parte das instituições de tratamento em reconhecer o insucesso do modelo biomédico e a dificuldade de rever e reinventar formas de lidar com a problemática das drogas e tudo o que ela implica na sociedade contemporânea.
As comunidades terapêuticas
Os paradigmas que orientam o tratamento nas comunidades terapêuticas são fundamentados na religiosidade e no trabalho e estão relacionados à enfermidade da alma, da moral e do corpo, provocada pelo excesso ou transgressão das normas sociais. Para seu restabelecimento, o indivíduo deve passar por um processo de responsabilização e de reparação do mal e experimentar a culpa, considerada castigo merecido. Nesse caso, a doença seria a maldição decorrente da desobediência, e, para tratá-la, seria imprescindível aprender a obedecer e a aceitar as ordens sociais humildemente. O método é o culto religioso conduzido por uma autoridade, um profissional da equipe ou por pacientes antigos “convertidos”. Esse ritual pode implicar a leitura de um texto bíblico ou dos 12 passos para a recuperação, ou pode ser o testemunho oral, que faz emergir a energia espiritual e a fé daqueles que vivenciaram a recuperação, traduzida na abstinência.
Os testemunhos dos recuperados servem de modelo para aqueles que estão em processo de construção da fé. A experiência particular dos ex-dependentes e convertidos e o esclarecimento sobre as mudanças em sua forma de vida manifestado por eles próprios têm o efeito de despertar a aceitação dos preceitos de Deus e, assim, curar. A combinação das palavras de Deus com a sabedoria sobre os atos humanos e a crença podem levar à decisão e, especialmente, à submissão ao tratamento. No conteúdo dessas mensagens são proferidos preceitos bíblicos que incidem sobre o comportamento e as atitudes dos internos. Os significados dos textos são transformados e ressignificados em códigos culturais que servem para educar, orientar e exemplificar comportamentos corretos. As palavras são dispositivos importantes para afastar o mal “espiritual”, para implementar as normas de comportamento e para motivar a dedicação ao trabalho como justificativa para a existência humana. Porém, o sujeito só pode apreender o sentido dado aos textos se reconhecer seu próprio erro (desobediência ou desvio), refletir e arrepender-se de suas atitudes. Por isso, especialmente os desvios e os pecados são reforçados e remarcados com normas evangélicas. A constatação da condição do sujeito para iniciar seu processo de recuperação é um ritual de passagem que implica, necessariamente, a culpabilidade e a vitimização.
O indivíduo deve atingir “o fundo do poço”. Esse momento é simbólico para a equipe de atendimento tanto das comunidades terapêuticas, como dos centros de saúde. Nessa condição de total vulnerabilidade e humilhação, o sujeito, diante da inevitabilidade, abaixa a guarda e ergue a mão em busca de ajuda, outorgando ao outro um tipo de procuração para zelar por sua saúde, controlar seu comportamento, definir e prescrever uma “gramática” a ser seguida no cotidiano para sua “salvação”. Nesse momento, a equipe está autorizada a intervir e tem o poder de atuar sobre o outro e apoderar-se da verdade. Nesse ritual, a fragilidade emocional do sujeito é condição para a absorção das mensagens articuladas pelas autoridades e pela equipe de profissionais, e qualquer decisão, desobediência ou erro, assim como a infração, tem caráter individual, cabendo ao sujeito – e somente a ele – a responsabilidade por seus atos e esforços diários para recobrar sua normalidade. A normalização é traduzida em princípios morais, por meio de critério de bom comportamento, fé, religiosidade, trabalho e abstinência total. Isso significa a cura, limitada ao cumprimento das normas estabelecidas pela conversão religiosa e pela revisão moral do estilo de vida. Nesse contexto, os profissionais têm a tendência de atribuir a etiologia dos processos mórbidos à forma da casualidade metafórica, simbólica, ou a uma transgressão moral. De qualquer modo, a “doença” se configura como ruptura brusca das normas sociais, e, para a recuperação, é necessário um tempo relativamente longo de afastamento do indivíduo de seu contexto social e das relações afetivas, sexuais, familiares e sociais, para não sofrer “tentação”. É uma luta entre o bem e o mal, representado pelo poder demoníaco que tem a droga sobre o indivíduo.
Os desafios da clínica das toxicomanias e do crack
O problema da clínica das toxicomanias, e, em particular, do crack, quer em instituições de saúde, quer em comunidades terapêuticas, é a saída dos pacientes autorizada pelo profissional sob o registro “alta” do tratamento. Poucos são aqueles que completam o projeto terapêutico, alguns abandonam o tratamento, outros fogem e outros forçam a família a se responsabilizar por sua saída. Isso se deve ao alto índice de reincidência, independentemente do tipo da instituição. Esse quadro é ainda mais grave quando a substância escolhida para uso é o crack . Pode-se afirmar que raramente um paciente usuário dessa droga consegue concluir seu ciclo terapêutico. Essa situação é assunto de reuniões clínicas e tema de debate em eventos científicos e é motivadora do sentimento de fracasso na clínica das toxicomanias. Se a questão for tomada pela ótica da alta por cura (baseada no critério de abstinência), é possível assegurar que não há cura ou que é provável que a abstinência seja um engodo.
Em geral, a motivação para tratamento ocorre quando o uso de drogas é considerado um problema para o próprio paciente, para seus familiares ou para profissionais que acompanham sua trajetória, como, por exemplo, nos locais de trabalho, nas instituições de saúde, nos organismos religiosos e nas instituições legais. Em geral, a busca pelo tratamento se dá quando o caso é considerado grave, seja pelos efeitos e danos sociais, afetivos, laborais, emocionais, seja pelos físicos (que é o mais recorrente). Essa situação, longe de ser confortável, provoca sofrimento, ameaça, baixa autoestima e tormento – tanto para o dependente, como para aqueles que compõem o seu entorno – e se transforma em motivador basilar para a busca de ajuda; ou seja, o sujeito espera suporte, para “livrar-se” dos sintomas que o incomodam na relação com a droga.
Ao longo da história, o inexplicável sobre as aflições, a dor, o sofrimento e a inquietação diante do mal-estar foi fundamental para a criação de estratégias de explicações técnicas médicas que, na perspectiva de quem sofre ou das pessoas que fazem parte de sua realidade, não são elucidáveis. Assim, as respostas formuladas para esses incômodos se dão na ordem do significado, que está relacionada à ordenação do mundo e à ordem social ( Herzlich e Pierret, 1986HERZLICH, C.; PIERRET, J. Iliness: from cause to meaning . In: CURRER, C.; STACEY, M. Concepts of health, illness and disease: a comparative perspective. Oxford: Berg, 1986. p. 73-96. ). A concepção sobre a doença e a sua compreensão só são possíveis por meio de imagens construídas socialmente, quando relacionadas ao corpo ou a parte dele e à intensidade do sofrimento. Então, o tratamento e seu sucesso são, também, uma construção social. Assim, a motivação para a demanda de tratamento e as modalidades para respondê-la é resultado da percepção sobre a doença. A combinação do padecimento – algo inexplicável – e o seu combate pelas técnicas biomédicas resultam em um misto de espiritualidade e racionalidade. Estudos antropológicos têm demonstrado a grande aproximação entre as crenças religiosas, a concepção de doença e os tratamentos, feita por meio do uso de determinadas ervas em rituais religiosos ( Laplantine, 1991LAPLANTINE, F. Antropologia da doença . São Paulo: Martim Fonseca, 1991. ).
A maioria das doenças é, ainda, explicada em termos de conduta religiosa, “é a vontade Deus”, especialmente pelos grupos que têm acesso limitado ao conhecimento científico, construído para a explicação sobre as enfermidades. No caso das toxicomanias, a explicação mais convincente e, às vezes, alentadora é estruturada dentro de um marco simbólico religioso – “porque Deus quer” –, e a resposta formulada é “entregar a Deus”, expressão muito utilizada tanto pelos pacientes, quanto por seus familiares nos centros de atenção à saúde. Porém, existe desafino entre a forma de construir e de tipificar a doença, considerando-se os paradigmas socioculturais, os processos sociais e a perspectiva elaborada pelos profissionais. Estes, com base em padrões técnicos racionais, além do diagnóstico, definem e controlam a prescrição de comportamento, de medicamentos, proíbem e recomendam condutas “saudáveis” para um estado considerado patológico. Melhor dito, o incômodo físico, o sofrimento, a dor e a angústia são registrados na ordem dos significados e tratados na ordem dos sintomas. Esse descompasso resulta em desconfiança e insegurança por parte do paciente em relação aos serviços terapêuticos e em relação aos profissionais e na sua autoculpabilização por recaídas e pelos retornos constantes.
Os discursos articulados frequentemente pelos profissionais de saúde sobre as enfermidades têm conotações éticas e políticas que acabam por nomear e legitimar determinadas instituições, profissionais seletos, familiares, juristas, religiosos e políticos para fazer o controle da dor, do corpo do outro, do prazer e para demarcar as fronteiras entre o normal e o patológico. Nesse processo, o paciente que padece é excluído, ou seja, é deslocado do lugar do sujeito para o lugar do paciente – que tem paciência – que espera passivamente a decisão do expert . Ao contrário, na medicina popular tradicional, que tem a figura do xamã ou curandeiro como personagem do poder espiritual da cura, os rituais são organizados com a inclusão do sujeito que sofre e das pessoas que compõem seu contexto. Esse mecanismo é condição para alívio do sofrimento, para a estimulação e a troca de energia espiritual e coletiva canalizada para o incômodo apresentado, a fim de favorecer o regresso do doente à vida cotidiana, em coletividade. Nesse caso, a pessoa que sofre é personagem principal no processo de cura que se dá em seu próprio contexto, envolvendo outros atores sociais.
A assistência à saúde foi, ao longo da história, pauta de discussão e tema de estudo, especialmente nos campos de conhecimento da medicina e das ciências sociais. Segundo o médico e antropólogo catalão Comelles (1998)COMELLES, J. M. Los procesos asistenciales. Revista Antropología de la Medicina , Tarragona, v. 29, p. 135-150, marzo 1998. , a assistência à saúde é um ritual organizado por meio de técnicas em um complexo processo, às vezes ambivalente, de mobilização de uma série de dispositivos de normatização, de procedimentos éticos, morais e de crenças sobre as enfermidades e sobre estratégias políticas para seu enfrentamento, baseadas nas relações de poder, nos papéis e nos lugares sociais.
O motivador principal para a busca de assistência, no caso das toxicomanias e no caso específico do crack , é a perda dos laços sociais, os problemas clínicos decorrentes da inalação da cocaína mesclada com solventes, na carência alimentar e de sono e nos problemas relacionados com a justiça e com os traficantes. Então, para o paciente, a cura está associada à extinção desses incômodos sintomas que perpassam por sua relação fiel e prazerosa com as drogas. Assim, o paciente quer se ver livre do sintoma, e não da droga. Ao contrário, a cura dessa “enfermidade”, na perspectiva dos profissionais, está associada à abstinência, ainda que provisoriamente, ou seja, na capacidade de o paciente abdicar do uso da substância que lhe dá prazer ( Mota, 2009MOTA, L. Dependência química e representações sociais : pecado, crime ou doença? Curitiba: Juruá, 2009. ). Essa expectativa profissional é apoiada no modelo biomédico de abstinência que, embora seja comprovadamente controverso, ganha força nos planos jurídico, médico e religioso e neutraliza a criação e a apropriação de novas formas de atenção –diferente dos protocolos terapêuticos pré-definidos – durante o tratamento e pós-alta. Por outra parte, a forma como o indivíduo usuário significa o uso de drogas e seu efeito influencia a sua percepção sobre as instituições e sobre a demanda de tratamento. Ora, se o uso, compulsivo ou não, é prazeroso, o usuário não quer abrir mão do deleite proporcionado pela droga. Assim, deparando-se com o alívio inicial do mal-estar e sentindo-se livre desses percalços, o usuário se considera em condições de retornar ao seu cotidiano, interrompendo o processo terapêutico idealizado pelo profissional de saúde. Essa decisão é individual e dispensa a opinião especialmente daquele que acredita poder controlar o prazer do outro. Nessa perspectiva, o paciente não recusa o tratamento, como acreditam os profissionais e gestores das instituições de tratamento das toxicomanias, ele já se sente curado do que lhe incomodava, ocorrendo um descompasso entre os dois personagens envolvidos no processo terapêutico, o profissional e o paciente.
Pacientes e craqueiros: classificação necessária
É possível certificar, com muita segurança, que é equívoco quase imperdoável determinar um perfil único e absoluto para o paciente de crack; igualmente é possível garantir que a figura do craqueiro apresentado e construído pela mídia não procede em sua totalidade. Convém, portanto, relativizar para não reforçar o estigma em relação a determinados indivíduos e grupos sociais.
Na pesquisa realizada em Belo Horizonte ( Sapori e Medeiros, 2011SAPORI, L. F.; MEDEIROS, R. Crack : o desafio social. Belo Horizonte: PUC Minas, 2011. ), foram identificados quatro tipos de usuários de crack em tratamento nas instituições analisadas:
a) O psicótico: trata-se do usuário que apresenta quadro psiquiátrico de psicose e faz uso de crack. Nesse caso, o crack pode alterar e/ou agravar seu quadro, levando a alucinações e paranoias. Esse paciente, em momentos de crise, necessita de internação em hospital psiquiátrico e uso de medicação adequada para estabilizar seu quadro. A continuidade pós-alta hospitalar pode ser feita em unidades de saúde mental, em nível ambulatorial, com acompanhamento médico e de outros profissionais de saúde. Em alguns momentos, e dependendo do delírio do paciente, a droga, principalmente o crack, com seu efeito de “noia”, pode agravar um quadro preexistente e colocar o paciente ou as pessoas que compõem seu universo em risco. Para essa situação, para esse quadro particular e somente quando existe risco de auto ou heteroagressão, está prevista a internação compulsória. Considerando-se que a internação em hospitais públicos é feita no período de, aproximadamente, 15 dias; após a alta, o seguimento dos casos pode ser feito nos serviços substitutivos, como os CAPS AD, os CAPS I, II e em ambulatórios. Em qualquer situação, é fundamental manter a estabilidade do quadro psicótico para possibilitar a abordagem relacionada ao uso da substância. A atenção tem que ser redobrada, devido à vulnerabilidade do portador de sofrimento mental, que pode ser mais facilmente influenciado e/ou “usado” por traficantes e por outros tipos de usuários de drogas. Portanto, analisar seu universo e sua rede formal e informal de relações é essencial.
b) “O marginal travestido de paciente”: trata-se do indivíduo que faz uso do rótulo de “craqueiro” e simula um quadro de fissura e/ou abstinência para buscar/exigir a internação ou o tratamento nas instituições especializadas. Esse é um mecanismo manipulado para escapar de situações embaraçosas, como, por exemplo, fugir de traficantes ou da polícia, demandar auxílio-doença, benefício previdenciário ou para se esquivar das pressões familiares. Esses pacientes não aderem ao tratamento, roubam roupas ou objetos de uso pessoal dos outros pacientes, agridem e ameaçam as pessoas que atuam nesses locais e os outros pacientes, além de roubar objetos que encontram “descuidados” nas dependências das unidades de atendimento. É possível que esses “usuários” facilitem a entrada de drogas nessas instituições ou se aproveitem de sua “estadia” para comercializar o produto entre os pacientes em tratamento. Esses casos, na maioria das vezes, contam com a conivência da família, que pode ser o transportador da mercadoria ou de outros elementos do círculo do “negócio”, que fazem a intermediação entre o contexto interno e externo. Em geral, esse paciente se utiliza de diferentes dispositivos para manipular impressões (simpatia, participação, liderança) ou para marcar seu lugar de autoridade naquele espaço (ameaças, indisciplina, violência). Em geral, não tem aderência ao tratamento, pois seu interesse é ter um “certificado” de doente para se afastar de situações críticas decorrentes do uso de drogas. Porém, representa risco para os funcionários, com suas constantes ameaças, e para as demais pessoas que se encontram em tratamento.
Nesses casos, o uso de medicação e o acompanhamento terapêutico não são recomendados e não produzem efeito eficaz. Portanto, não se trata de sujeito que deva ser encaminhado ou atendido em instituições de saúde, pois a equipe assistencial, de hospitais, centros de tratamento especializado, ambulatório ou comunidades terapêuticas, não dispõe de mecanismos adequados para tratar o “marginal travestido de paciente”. Pode-se afirmar que, invariavelmente, esses são casos de transtorno de personalidade, perversão e psicopatia que não demandam nem querem tratamento; querem “usar” as estruturas de atenção para conseguir auferir ganhos diretos ou indiretos.
c) O compulsivo, o neurótico: trata-se de usuário compulsivo, que pode fazer uso descontrolado de crack e apresenta quadro de fissura. Mostra lucidez e angústia e tem capacidade de analisar o contexto em que está inserido, suas redes, e de reconhecer o afrouxamento ou as perdas dos laços sociais, familiares e afetivos. A dificuldade de controlar seu desejo, associada à perceptibilidade da situação, aumenta a ansiedade, a fissura e o uso desmedido. Em geral, o paciente busca a ajuda de familiares e amigos para o alívio do sofrimento ou recorre espontaneamente aos serviços de saúde. Nesses casos, o importante é a abordagem precisa e consistente de médicos e outros profissionais, seja da equipe dos centros de saúde, seja das comunidades terapêuticas. Evidências internacionais apontam que, para esses casos, a combinação da abordagem terapêutica, o acolhimento e o tratamento medicamentoso, especialmente para minimizar o quadro de ansiedade, trazem benefícios individuais e institucionais. Essa abordagem pode ser variada, construindo momentos de afastamento do convívio social, como forma de tentar quebrar a certeza da impossibilidade de se controlar, o seguimento do tratamento em dispositivos abertos, como os CAPS e os ambulatórios, ou a admissão em programas de redução de danos para os momentos em que, apesar do uso continuado, o paciente possa modificar seu estilo de vida, sua relação com a droga, compreender os riscos e danos e resguardar a própria vida.
d) O judiciário: trata-se dos usuários que cometeram delito mais ou menos grave relacionado com drogas, estão cumprindo pena em instituição judiciária e são encaminhados pelo juiz para o tratamento da toxicomania. Esse procedimento passou a ser mais frequente a partir de 2006, com a publicação da Lei no 11.343, especialmente a compreensão de seu artigo 26: “O usuário e o dependente de drogas que, em razão da prática de infração penal, estiverem cumprindo pena privativa de liberdade ou submetidos à medida de segurança, têm garantidos os serviços de atenção a sua saúde, definidos pelo respectivo sistema penitenciário”; o artigo 28: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas”; e do § 7o: “O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado”.
Com base nessas prerrogativas, o membro do Poder Judiciário entende que tem legitimidade para encaminhar os indivíduos para tratamento, tanto em hospitais como em ambulatórios, a partir de sua compreensão do caso, e, inclusive, definir o tempo de tratamento necessário para o réu. Na maioria dos casos, o “diagnóstico” clínico feito pelo juiz não corresponde à concepção do caso pelos especialistas nos tratamentos das toxicomanias. Porém, trata-se de determinação judicial, e não de discussão do caso. Assim, a equipe de saúde é coagida a tratar e a considerar o caso encaminhado como problema de saúde pública e, como tal, prestar assistência durante o tempo deliberado pelo juiz, ainda que não seja necessário. Esse procedimento desautoriza a equipe de saúde, que, além da privação da prerrogativa clínica, deve se submeter às normas jurídicas que transferem a responsabilidade de um caso judicial às instituições de saúde, caracterizando a jurisdição do tratamento das drogas.
Os réus encaminhados podem corresponder ao perfil do usuário psicótico (o que é raro), do usuário neurótico compulsivo ou do marginal travestido de paciente (mais recorrente) e cada caso merece atenção particular.
Os usuários encaminhados para internação, especialmente aqueles que cometeram delitos graves, têm o acompanhamento de um segurança, que permanece na porta das enfermarias para prestar vigilância. A presença do vigilante provoca um clima de mal-estar nas pessoas que transitam pelo hospital e, de maneira especial, na equipe que atua diretamente nesses casos. Além disso, exatamente por serem mais comuns os casos de “marginais travestidos de paciente”, o réu provoca inúmeros tipos de transtornos, não só para a instituição, como também para os profissionais e os outros pacientes ali internados.
A motivação para os encaminhamentos feitos pelos juízes pode ser influenciada pelo réu, que sabe interpretar a lei e domina o saber sobre os sintomas – ansiedade, insônia, fissura. O tratamento em instituições de saúde, ainda que temporariamente, possibilita escapar da prisão. Conhecedor dessa possibilidade, que representa importantes ganhos secundários, como mais liberdade, aspecto menos grave ou mais suave para o seu delito e mais oportunidade de atuar (especialmente o traficante), dissimula e articula um discurso produzido com narrativas convincentes sobre sintomas de toxicomanias. Afinal, estar sob a égide da saúde lhes garante mais privilégios do que a prisão.
Embora identificados os quatro tipos de pacientes em todas as unidades pesquisadas, o tratamento dispensado a eles é idêntico. Não existe, nas instituições de tratamento das toxicomanias, a preocupação de reorganizar as práticas terapêuticas com o objetivo de combinar saberes que possibilite uma leitura interdisciplinar das particularidades, motivações, interpretações e significados simbólicos do uso de drogas e do contexto sociocultural em que os usuários estão inseridos. Assim, os saberes produzidos cientificamente ficam arquivados ou congelados nas precárias bibliotecas das instituições que pouco são utilizadas, até mesmo pelos próprios responsáveis pelo tratamento. Parte desses estudos, especialmente quantitativos, é aproveitada para atender aos interesses políticos e para retroalimentar as imagens negativas dos usuários de drogas e, na atualidade, dos usuários de crack , reproduzindo os modelos sociais hegemônicos.
Para concluir
É possível afirmar que as instituições de tratamento das toxicomanias podem funcionar como uma espécie de segurança pública, receber uma série de funções, ocultar outras tantas, reproduzir uma política proibicionista obsoleta e descompromissada, robustecer os preconceitos em relação ao usuário de drogas e provocar medidas coercitivas e discriminatórias, preterindo os direitos de cidadania. Essa forma de gestão inviabiliza o debate público que envolve não somente os estabelecimentos de tratamento e seus profissionais, mas também outras instituições e a sociedade civil, que deve ter acesso a informações corretas e de qualidade para fazer escolhas conscientes e responsáveis, tomar medidas preventivas e de redução de danos à saúde e à vida.
É certo que o crack , como outras substâncias psicoativas, pode levar ao consumo abusivo e, em consequência, seu usuário está sujeito a intervenções simultaneamente jurídicas, políticas, normativas e morais, clínicas, religiosas, sociais e econômicas. Ainda que exista esse enredamento em torno da substância, é inegável que seu uso não pode ser compreendido fora da conjuntura sociocultural em que o sujeito que a utiliza está inserido, pois é nesse contexto que ele organiza os elementos simbólicos e os processos de singularização que servem para orientação de sua vida, para construir e desconstruir identidades, edificar rede simbólica de proteção, de pertencimento, de solidariedade, para criar e reforçar laços culturais, experimentar e interpretar suas próprias vivências, estabelecer regras e normas e para cuidar de sua própria sobrevivência.
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- 1Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
- 2O crack foi usado, inicialmente, não somente no Brasil, como em outras sociedades, pelos grupos marginais. Na atualidade, esse cenário foi modificado, seja pela condição financeira da população, pelo prazer imediato provocado pela substância, para evitar visibilidade, para disfarçar o uso de drogas pelo cheiro, seja por escolhas individuais.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2014
Histórico
- Recebido
30 Jul 2012 - Aceito
18 Abr 2013