Violência: questão de interface entre a saúde e a sociedade

Lilia Blima Schraiber

No Brasil e no mundo todo, a violência tem sido reconhecida como questão social e uma das principais questões de saúde (Krug e col., 2002KRUG, E. G. et al. WHO report on violence and health. Geneva: World Health Organization, 2002.). Sua expansão ocorre de modo paradoxal em relação à dos direitos humanos e sociais. A violência abrange muitos espaços atualmente: desde a violência do próprio Estado, tal como nos crimes de guerra ou em abusos no interior de suas instituições, aos diversos espaços públicos, estendendo-se até às relações de caráter afetivo, sexual ou familiar no mundo privado. Para seu controle não bastará, por isso, apelos aos indivíduos e a seus comportamentos pessoais, exaltando a responsabilidade individual no plano ético, social e político. Trata-se, antes, da própria reconstrução da vida em sociedade, moral e legalmente, reorientando relações interpessoais tanto quanto as do próprio Estado com a sociedade civil. De mesmo modo, será insuficiente tratar da saúde ou de sua promoção, em busca de melhor qualidade de vida, sem redefinirmos e explicitarmos essa qualidade enquanto sociabilidade, forma de ser e estar juntos em sociedade. A violência como questão, portanto, situa-se na própria interface da Saúde com a sociedade.

É bem plausível que, por essa razão, os comportamentos agressores, assim como as vitimizações, não se apresentem à primeira vista como atinentes à Saúde. Não parecem, de imediato, compor a mesma gama de questões para o adoecimento ou o sofrimento que o tabagismo, o sedentarismo, os hábitos alimentares ou até o alcoolismo e o uso abusivo de outras drogas. E se, como tem sido comum nos estudos acerca dos homicídios, para esse tipo de agressão tanto quanto para outras tantas vulnerabilidades em Saúde, a condição socioeconômica oferece uma tradicional referência causal nos adoecimentos e sofrimentos, a violência já não se enquadra, aí, do mesmo modo. Ao também constituir condição de vulnerabilidade sociocultural, nas desigualdades de gênero, étnico-raciais ou geracionais, além das desigualdades econômicas, a violência acaba trazendo um desafio adicional aos conhecimentos e às práticas profissionais em saúde, o que torna os indicadores das diferenças socioeconômicas insuficientes na explicitação das cadeias causais do evento, assim como em termos de suas repercussões nos danos e agravos à saúde.

Pode-se, assim, tomar a violência como um objeto muito peculiar dentro do campo da Saúde, cujas dificuldades de enquadramento teórico-metodológico e prático-operacional apontam-na com um importante diferencial de complexidade e de sensibilidade para seu estudo ou intervenção. Por tudo isso, é comum no senso profissional, mesmo com gradações entre os distintos ramos que se inserem no campo da Saúde, sua identificação como objeto primariamente fora do escopo da Saúde e pertencente a setores da produção social, tais como o Judiciário ou a segurança pública.

Não por acaso, desse modo, tanto a invisibilidade das violências nos serviços de saúde ou mesmo uma visibilidade estigmatizada e preconceituosa, tal como, por exemplo, sua associação à pobreza, como a integração entre as ações em Saúde e aquelas de outros setores de produção social, recomendando quer redes intersetoriais, quer a interdisciplinaridade, constituem os temas que se apresentam fortemente na produção do campo da Saúde. E, demonstrando a imensa repercussão que a violência produz na Saúde em relação às populações e aos indivíduos, os estudos têm apontado como seria importante inscrevê-la, em definitivo, como questão, incluindo-a seja nos estudos de abordagem quantitativa como nos de abordagem qualitativa, superando, assim, obstáculos que vão de uma recusa profissional ou técnica da violência nas práticas de Saúde às “cegueiras” quanto aos marcadores das diferenças sociais que constituem efetivamente seus determinantes.

De outro lado, muitas são as possibilidades de aproximação da violência como objeto na produção das ciências e para a intervenção social; muitos, também, são os recortes possíveis para seu estudo empírico, uma vez que a violência se expressa, efetivamente, em uma grande diversidade de situações concretas. Alguns estudos ou propostas de ação ressaltam seus diferentes atos: as agressões físicas, os abusos sexuais, as ofensas emocionais, os assédios ou as negligências. Outros buscam identificar seus agentes – se são indivíduos, grupos ou instituições, em clara evidenciação de que os atos representam, antes de tudo, comportamentos e modos de agir de sujeitos individuais ou institucionais que, enquanto tais, serão responsáveis pelos atos praticados. Outros, ainda, buscam examinar melhor seus contextos e os espaços em que esses atos ocorrem: se com características mais domésticas ou não. E muitos, principalmente no campo da Saúde, preocupam-se com o tipo de dano causado: se evento letal ou não letal; se crônico ou agudo; em qual recorte etário ou ciclo de vida se dão as ocorrências.

Os artigos que Saúde e Sociedade traz neste número, como um dossiê, dão conta de mostrar ao leitor essa diversidade. Foram agrupados em três blocos.

Um primeiro, com três artigos, é constituído por estudos que, por distintas aproximações, examinam questões da violência urbana e seus homicídios. Inicia-se pela apresentação e discussão do “caso” de um jovem sumariamente executado, que dirá respeito à violência do crime organizado nas grandes cidades e, também, àquela institucional praticada pela polícia, mostrando a grande vulnerabilidade juvenil. Iniciar pelo caso pareceu uma perspectiva bastante realista, posto que é o caso que chega até nós, aos serviços de saúde, também nas violências não letais; é o caso que compõe as grandes estatísticas de grupos populacionais; e é o caso que sempre é, simultaneamente, a articulação indivíduo-sociedade, marca do pluralismo das situações concretas e do contingencial na prática dos profissionais e, da mesma forma, parte do que acontece a todo um subgrupo populacional em contextos coletivos. Ainda nesse bloco, o segundo artigo apresenta um “território violento” e a construção de distintos referentes interpretativos, o que nos remete aos olhares diversos sobre a violência já comentados e até às “cegueiras” e aos “estigmas” nessas construções. Finaliza o bloco um pensar sobre a cidade que também aponta possíveis atuações relativas às vulnerabilidades dos jovens.

Um segundo bloco alocou o debate em torno das políticas públicas ou redes intersetoriais no enfrentamento das violências, trazendo a violência contra a mulher como o tipo abordado. Isso não apenas representa, diante dos homicídios, uma preocupação mais recente no campo da Saúde, mas também marca importantes diferenças com eles: a violência contra mulher é evento mais caracteristicamente doméstico e familiar, em contraste com os homicídios que ocorrem nos espaços públicos; e é atinente às relações afetivo-sexuais, nas quais o parceiro é o principal agressor, quando o homicídio tem se mostrado uma violência entre homens. Um último e peculiar texto encerra esse bloco. Trata-se de estudo muito diverso e inovador na Saúde, sendo aqui alocado por representar uma dupla transição de abordagem da violência: das políticas e redes para as práticas profissionais e das questões da Saúde para aquelas intersetoriais, mantendo como foco uma das mais tradicionais preocupações da própria Saúde: a violência sexual contra crianças e adolescentes. Apresentando e analisando discursos de juízes, o estudo nos situa diante do que é um dos grandes desafios da intersetorialidade, qual seja, a articulação entre ações de setores tão diversos como o sistema de saúde e o judicial e a interação de projetos de intervenção, em cenário no qual percebemos no agir profissional convergências e divergências de questões, escala de valores e linguagens. E, embora o texto aponte o importante papel esclarecedor da Saúde, creio que há, mutuamente, muito a aprender.

O último bloco de artigos adentra, por fim, as práticas profissionais. Dando voz quer às equipes da Estratégia Saúde da Família, quer às equipes de serviços de saúde mental, esses textos nos situam nas possibilidades e limites das intervenções no cotidiano dos serviços de saúde. Dimensão última na realização das políticas públicas de enfrentamento das diversas violências, bem como na realização dos propósitos organizacionais da produção e distribuição de serviços assistenciais na sociedade, o estudo das práticas profissionais possibilita a compreensão dos muitos descolamentos que a esfera técnico-científica de atuação opera em relação às pretensões das políticas e àquelas dos modelos assistenciais desenhados. Situa-nos, portanto, não só na distinção entre essas instâncias como práticas sociais quanto na necessidade da construção de mediações entre elas (Schraiber, 2012SCHRAIBER, L. B. Necessidades de saúde, políticas públicas e gênero: a perspectiva das práticas profissionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2635-2644, 2012.).

Diante desses artigos e, ainda mais, diante de tudo o que se considerou acerca da violência até aqui, seríamos, sem dúvida, levados a referi-la sempre no plural: violências e não apenas violência.

Entretanto, se a diversidade das experiências e situações deve ser considerada, também devemos indagar: o que nos permite pensar que estes artigos ora publicados formam um conjunto, constituem um “dossiê”? O que, afinal, permite-nos falar em violência no singular? O que é capaz de conferir unidade a situações tão diversas enquanto vida social e experiência dos sujeitos envolvidos?

Creio que a resposta encontra-se no fato de que todas essas distintas situações representam, para aqueles que as vivem e para a sociedade, a violação dos direitos; direitos humanos e direitos sociais. Trata-se, sim, da violação do direito à saúde e à cidadania nas violências institucionais nas quais aqueles que as sofrem perdem a possibilidade de colocar-se como sujeitos e como cidadãos. Encontram-se anulados em suas demandas e opiniões, em suas possibilidades de participar, julgar e decidir (Costa, 1986COSTA, J. F. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.; Foucault, 1995FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. L. Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995. p. 231-249.), quase sempre diante de antigas autoridades socialmente reconhecidas que, ao passar a se valer da violência para dominar ou controlar uma situação, perdem sua legitimidade (Arendt, 1994ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de janeiro: Relume Dumará, 1994.). Trata-se, sim, da violação da integridade física e mental nos atos de agressão e humilhações ou insultos; ou da violação da dignidade, nos estupros e em todas as formas de agressão ou abuso sexual. Trata-se, sim, da privação de cuidados, da liberdade de ir e vir ou do direito à vida nas negligências, nos cárceres privados ou nos controles excessivos da pessoa e nos homicídios.

Como violação dos direitos, as situações de violência constituem sempre, em suas distintas expressões concretas, um domínio sem autoridade por parte do perpetrador, assim como uma anulação da condição de sujeito para a vítima. E se viver tal condição muito diz, comunica, aos sujeitos envolvidos, assim como à sociedade, trata-se, sem dúvida, de uma relação que não busca o mútuo entendimento nem os consensos de negociação, para o que sempre se necessitará da linguagem comum, do diálogo e da interação entre os sujeitos (Arendt, 1994ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de janeiro: Relume Dumará, 1994.; Habermas, 1989HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. (Biblioteca Tempo Universitário n. 84).; Ricoeur, 1995RICOEUR, P. Em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995. (Leituras, 1).). É por essa condição de ruptura interativa que todas as situações violentas se unificam, no sentido comum de um agir que não será ético nem intersubjetivamente comunicativo.

Creio que o leitor poderá observar em cada um dos artigos deste “dossiê” essa qualificação mais genérica que os faz, em sua diversidade interna, um comum: na denúncia da perda, assim como no apelo ao resgate, de uma sociabilidade recoberta pelo ético e pelo político, com o que pode tornar-se, também, enquanto fruto da ação humana, uma construção humanizada.

Referências

  • ARENDT, H. Sobre a violência Rio de janeiro: Relume Dumará, 1994.
  • COSTA, J. F. Violência e psicanálise Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.
  • FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUS, H. L. Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1995. p. 231-249.
  • HABERMAS, J. Consciência moral e agir comunicativo Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. (Biblioteca Tempo Universitário n. 84).
  • KRUG, E. G. et al. WHO report on violence and health Geneva: World Health Organization, 2002.
  • RICOEUR, P. Em torno ao político São Paulo: Loyola, 1995. (Leituras, 1).
  • SCHRAIBER, L. B. Necessidades de saúde, políticas públicas e gênero: a perspectiva das práticas profissionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2635-2644, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br