Confluências e divergências conceituais em educação em saúde

Conceptual convergences and divergences in health education

Ana Feio Clara Costa Oliveira Sobre os autores

Resumos

A educação em saúde conheceu, no último século, profundas mudanças, tanto no plano conceitual como no das práticas dele decorrentes, fruto das transformações por que passou a humanidade em termos políticos, económicos e sociais. O conceito de educação desviou-se da perspectiva instruidora e escolarizadora de crianças e jovens, centrada na transmissão-assimilação de conhecimentos, para uma perspectiva mais abrangente e integradora, centrada na criação de condições que permitem aos indivíduos desenvolverem-se holisticamente na sua multidimensionalidade, em permanente interação com os outros. Por sua vez, o conceito de saúde perdeu o seu pendor negativo de ausência de doença, passando a ser entendido positivamente como um estado de completo bem-estar físico, mental, social e espiritual, em constante mutação ao longo da vida. Nesse sentido, a educação em saúde deixou também de ser vista como a transmissão de informação de caráter higienista-sanitário, orientada para a prevenção ou o tratamento da doença, efetuada em contextos formais, para passar a ser entendida como a capacitação dos indivíduos para controlarem os seus próprios determinantes de saúde, através da criação ou do desenvolvimento de competências de ação. A educação e a saúde passam, pois, a apresentar-se como duas faces de um mesmo processo. Neste trabalho pretendemos, pois, analisar a evolução conceptual em torno da saúde e da educação no século XX, tentando perceber até que ponto essas mudanças conceptuais se têm refletido ao nível das práticas.

Educação em Saúde; Promoção da Saúde; Educação da População


Health education underwent, in the last century, profound changes both in its concepts and in the practices that derived from them. These changes are a result of the political, economic and social transformations that have been affecting humanity. The concept of education has shifted from a merely instructive perspective, which focused on the transmission-assimilation of information, to a more comprehensive and integrative perspective, centered on the creation of conditions that enable individuals to develop themselves holistically in their multidimensionality, in constant interaction with others. In turn, the concept of health has lost its negative connotation of absence of disease to be positively understood as a state of complete physical, mental, social and spiritual well-being, constantly changing throughout life. In this sense, health education has also ceased to be seen as the transmission of hygiene-sanitation information oriented to the prevention or treatment of diseases, conducted in formal contexts, and has started to be understood as the qualification of individuals to control their own health determinants through the creation or development of action skills. Therefore, education and health now present themselves as two sides of the same process. In this study, we intend to examine the conceptual evolution concerning health and education in the 20th century in order to understand to what extent these conceptual changes have had a reflection on the practices.

Health Education; Health Promotion; Population Education


Introdução

As transformações políticas, económicas e sociais ocorridas ao longo do século XX conduziram a profundas alterações na forma de encarar e perspectivar o mundo. Entre as várias alterações produzidas, importa refletir sobre as alterações (teóricas) sofridas pelos conceitos de educação e de saúde, nomeadamente ao nível dos documentos norteadores da Unesco (United Nations Educacional Scientific and Cultural Organization) e da OMS (Organização Mundial de Saúde), respectivamente. Não obstante, muitas vezes as práticas provam não conseguir acompanhar tais mudanças, o que tem provocado uma desvirtuação dos próprios conceitos.

Evolução do conceito Educação no século XX

Se atendermos ao conceito de educação, podemos verificar que, de uma perspectiva escolarizadora e instruidora, centrada numa transmissão-assimilação de conhecimentos, que (Freire 1976FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.) tão bem caracterizou na sua educação bancária, passamos para uma perspectiva mais abrangente e integradora, criadora de condições que permitam às pessoas desenvolverem-se holisticamente na sua multidimensionalidade. O passo, embora de gigante, foi gradual e a mudança paradigmática emergiu sobretudo no cenário pós-guerra. O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, senta à mesma mesa dos Estados-membros da recém-criada Organização das Nações Unidas (ONU) para assinar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que consagra a dignidade humana como um valor inerente à própria humanidade, fundamento de todos os direitos e liberdades fundamentais, alcançáveis pelo ensino e educação, e se afirma o direito à educação com vista à plena expansão da personalidade individual (ONU, 1948ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos do homem. Nova Iorque, 1948. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html>. Acesso em: 12 abr. 2013.
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).

A mudança paradigmática também fica traduzida nos vários documentos produzidos na sequência das diversas Conferências Internacionais de Educação de Adultos, promovidas pela Unesco, de Elseneur, em 1949, até Belém do Pará, em 2009.

No cenário pós-guerra a proclamação de uma cultura de paz, após anos de totalitarismo, leva à necessidade de preparar os adultos para a vida em sociedades democráticas. Por outro lado, o enorme desejo de reedificar a Europa, associado a um avanço tecnológico extraordinário que impunha novas exigências no mercado de trabalho, implicou formar os adultos para a sua reciclagem profissional. Dessa forma, em 1949, a Unesco promoveu a Primeira Conferência Internacional de Educação de Adultos, em Elseneur, da qual emergiu o subsistema de educação de adultos, ainda que numa perspectiva de reconversão profissional, isto é, numa perspectiva utilitarista de desenvolvimento económico. Se Elseneur (UNESCO, 1949UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Summary report of the international conference on adult education. Elseneur, 1949.) faz emergir a educação de adultos como complemento da formação (escolar) inicial, em Montreal (UNESCO, 1960UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. World conference on adult education. Montreal, 1960.), e sob o tema A educação de adultos num mundo em transformação, ela passou a ser encarada como parte integrante do sistema educativo, responsabilizando-se as entidades governamentais pela criação de oportunidades educativas. Já num contexto de prosperidade económica e bem-estar social, começou a se assumir uma evidente relação entre educação e desenvolvimento. Nesse sentido, a pobreza dos países periféricos face aos centrais fez reconhecer a alfabetização como uma prioridade da educação de adultos e destacar a preocupação com os conhecimentos profissionais face às mudanças tecnológicas. Todavia, em 1965, no Congresso Mundial dos Ministros da Educação sobre a Eliminação do Analfabetismo, realizado em Teerão, reconheceu-se que, face aos fracos resultados obtidos com os programas de alfabetização (por estarem mais voltados para a satisfação das necessidades mínimas literárias dos adultos, isto é, para a promoção escolar, do que para a sua utilidade social), esta devia passar a ser considerada não como um fim mas como uma forma de preparar o Homem para a sua inserção na vida profissional, contribuindo para o aumento da produtividade (alfabetização funcional) (UNESCO, 1965UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Congrès mondial des ministres de l'éducation sur l'élimination de l'analphabétisme: rapport final. Téhéran, 1965.).

Em Tóquio (UNESCO, 1972UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Troisième conférence internacionale sur l'éducation des adultes: rapport final. Tokyo, 1972.), e sob o mote de A educação de adultos no contexto da educação ao longo da vida, se reconheceu que a sobrevalorização da alfabetização em função do desenvolvimento económico tinha sido feita em detrimento das outras dimensões do indivíduo, além de a educação não poder ser encarada como uma preparação para a vida, mas como uma dimensão da própria vida. Dessa forma, rompendo com o modelo escolarizador, defendeu-se que a educação deveria assumir o desenvolvimento integral do Homem, potenciando as suas capacidades e a sua participação no desenvolvimento da própria comunidade.

A consciencialização de que cada indivíduo é fruto da sua própria história de vida faz encarar a educação como um processo que visa criar condições de desenvolvimento de todas as capacidades dos indivíduos. Nesse sentido, e na sequência dessa conferência, foram emanadas as Recomendações sobre o desenvolvimento da educação de adultos, vulgo Declaração de Nairobi (UNESCO, 1976UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Recommendation on the development of adult education. Nairobi, 1976.), de onde emergiu a noção de life-long education and learning e de uma educação que não se assenta em meros processos de ensino-aprendizagem, mas que visa criar condições para que as pessoas se autonomizem e se emancipem.

Em Paris (UNESCO, 1985UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Quatrième conférence internacionale sur l'éducation des adultes: rapport final. Paris, 1985.), e sob o título O desenvolvimento da educação de adultos: aspectos e tendências, se salientou a responsabilidade governamental e a (na) necessidade da educação (escolar e não escolar) ser assegurada a todos, além de enfatizar o seu papel na manutenção da paz e na empregabilidade num mundo cada vez mais tecnológico, com enfoque nas mulheres, nos jovens e nas pessoas desfavorecidas dos meios rurais ou das periferias (degradadas) das grandes urbes. O cenário de crise económica e de contenção da despesa pública voltou a atribuir pertinência social e económica à educação (permanente), à semelhança do que se fizera nas três primeiras conferências, não obstante a defesa da formação integral dos indivíduos e a sua articulação com a formação profissional. Mas a educação como direito universal que contribui para o desenvolvimento de competências necessárias à melhoria das condições de vida, sendo que a construção destas competências se faz em interação com os outros (processo comunitário), foi novamente consagrada na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien (UNESCO, 1990UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. World declaration on education for all. Jomtien, 1990.).

Em Hamburgo (UNESCO, 1997UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Cinquième conférence internacionale sur l'éducation des adultes: la declaration d'Hambourg l'ágende pour l'avenir. Hambourg, 1997.), de onde emergiu a Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro, foi reforçada a ideia de que a educação é a chave para o século XXI, se assumindo a importância de uma responsabilidade nacional e internacional partilhada. Nesse sentido, a educação deveria desenvolver a noção de responsabilidade individual e comunitária e capacitar os indivíduos para lidar com as transformações sociais que o século XXI acarretaria. Para isso, era fundamental que toda a sociedade fosse envolvida nesse processo, descentrando-o mas não o destituindo da responsabilidade governativa. Nessa conferência, defendeu-se a necessidade de um desenvolvimento centrado no ser humano e de uma sociedade participativa, fundada no respeito pelos direitos humanos como forma de alcançar um desenvolvimento equitativo e (ecologicamente) sustentável. Se destacou também que a sobrevivência da humanidade dependia de indivíduos com verdadeiro poder interventivo nas diferentes esferas da vida humana, fundamental para a construção de um mundo de paz e diálogo. Se salientou ainda o papel da educação de adultos na equidade de acesso à saúde, o que significou que investir em educação era investir em saúde, bem como nas ações de educação e sensibilização ambiental.

Na sexta Conferência de Educação de Adultos, decorrida em 2009, em Belém do Pará (UNESCO, 2010UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Sexta conferência internacional de adultos: marco de acção de Belém. Brasília, DF, 2010.), destacou-se a importância da alfabetização como base para a aprendizagem ao longo da vida e para o enfrentamento dos desafios culturais, económicos e sociais do mundo contemporâneo, aproveitando o poder e o potencial da aprendizagem e da educação de adultos para a construção de um futuro viável para todos. Se salientou ainda que a "[...] educação é um conceito e uma prática holística, multidimensional e que exige atenção constante e contínuo desenvolvimento" (UNESCO, 2010UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Sexta conferência internacional de adultos: marco de acção de Belém. Brasília, DF, 2010., p. 12).

Das várias alterações introduzidas, destacamos a acepção da educação como um processo permanente (life-long education and learning) e comunitário, que visa criar condições para que cada indivíduo desenvolva de forma integral e harmoniosa todas as capacidades e adquira competências no sentido de melhorar as suas condições de vida e, consequentemente, as da comunidade. Assim, a educação deixa de ser vista como meramente escolar (a escola passa a ser entendida como um subsistema do processo educativo), como um processo formal (passa também a integrar as dimensões não formal e informal) ou como uma preparação para a vida, passando a ser entendida como uma dimensão da vida (Dias, 2009DIAS, J. Educação, o caminho da nova humanidade: das coisas às pessoas e aos valores. Porto: Papiro, 2009.) em que viver é aprender e aprender é viver (Maturana; Varela, 2003MATURANA, H.; VARELA, F.A árvore do conhecimento. São Paulo: Palas Athena, 2003.). Não queremos dizer com isso que educação e aprendizagem são sinónimos, mas antes que os processos educativos conduzem a aprendizagens. Todavia, sabemos que, muitas vezes, "[...] não é possível fazer coincidir a educação com a efetiva aprendizagem das pessoas" (Oliveira, 2008OLIVEIRA, C. Educação: pesquisa, complexidade e contemporaneidade. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 16, n. 2, p. 19-37, 2008., p. 25), pelo fato de que todo o processo de formação é um processo de autoformação, já que é fruto da história de vida de quem a vive: "[...] homens e mulheres são os agentes da sua própria educação" (UNESCO, 1976UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Recommendation on the development of adult education. Nairobi, 1976., p. 2).

Os gloriosos trinta anos que sucederam o final da Segunda Grande Guerra acarretaram mudanças em nível político, económico, social e cultural: a expansão da democracia, o crescimento económico e do emprego, o aumento dos padrões de consumo e das proteções sociais, a criação do Estado-providência e o desenvolvimento de uma população mais participativa (Marchioni, 2001MARCHIONI, M. Comunidad, participación y desarrollo. Madrid: Editorial Popular, 2001.). Nesse sentido, embora a educação tivesse em vista um desenvolvimento da comunidade (encarada numa perspectiva mutilada do que é realmente o desenvolvimento comunitário), ela avançou por imposições económicas e não por mérito próprio, isto é, não centrada no desenvolvimento integral do indivíduo enquanto pessoa, como ficou traduzido na declaração resultante da Conferência de Elseneur (UNESCO, 1949UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Summary report of the international conference on adult education. Elseneur, 1949.). Esse desenvolvimento visava dar resposta à hegemonia da globalização que se instalava então na Europa e que apregoava uma equidade que nunca chegou (nem pode chegar, por via dos valores capitalistas em que assenta) a se concretizar.

Hoje, a educação é entendida como um "[...] processo global e sequencial de desenvolvimento da pessoa humana ao longo da sua existência e através das respetivas fases de educação de infância, de educação escolar ou de jovens e educação de adultos" (Dias, 1993DIAS, J. Filosofia da educação: pressupostos, funções, método, estatuto. Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, v. 49, n. 1/2, p. 3-28, 1993., p. 6) dentro das comunidades de que faz parte. Nesse processo de educação permanente e comunitária todos somos educandos e educadores, pelo que todos somos responsáveis pelo nosso crescimento, mas também por ajudar os outros a crescer, por procurar ter e dar as melhores condições de desenvolvimento (Dias, 2009DIAS, J. Educação, o caminho da nova humanidade: das coisas às pessoas e aos valores. Porto: Papiro, 2009.). Como também (e tão bem) nos recorda (Freire 1976FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., p. 155) "[...] ninguém educa ninguém nem ninguém se educa a si próprio, todos nos educamos em comunhão." Nesse sentido, ao criar condições para que os outros se realizem cada indivíduo contribui para a sua própria realização, o que implica, por sua vez, que se o indivíduo não cria condições aos outros, se se fecha em si mesmo, então não contribui para o seu próprio processo de crescimento. (Dias 2009DIAS, J. Educação, o caminho da nova humanidade: das coisas às pessoas e aos valores. Porto: Papiro, 2009., p. 261) refere ainda, em relação a este ponto, que "[...] a ninguém de nós apenas são criadas condições pelos outros, nem a ninguém de nós só compete apenas criar aos outros condições, mas que todos podemos, devemos e de fato (...) andamos a criar condições para que todos cresçamos." Convém salientar que nos vários documentos resultantes das referidas conferências se reforça também a responsabilidade dos governos na criação de políticas educativas coniventes com as novas concepções preconizadas. Por outro lado, como reforça (Antunes 2001ANTUNES, M. Teoria e prática pedagógica. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.), apesar das mudanças na forma de encarar a educação, ela é sempre vista como indispensável à resolução de problemas, se constituindo como meio inevitável a uma vivência com dignidade.

Evolução do conceito Saúde no século XX

Todavia não só o conceito de educação sofreu alterações; o mesmo aconteceu com o conceito de saúde. Encarada inicialmente como ausência de doença, esta noção surgia numa íntima relação com o modelo biomédico (no qual a relação médico-doente está tão próxima de uma visão bancária da educação), numa visão de homem-máquina em que a própria doença era perspectivada numa causalidade linear unicamente biológica (Machado, 2006MACHADO, J. Perspectiva antropológica do ensino da medicina. Acção Médica, Lisboa, v. LXX, n. 1, p. 16-22, 2006.). Embora o conhecido Relatório Lalonde, publicado em 1974, tenha chamado a atenção para a importância do ambiente externo e das decisões individuais (comportamentos ou estilos de vida) na saúde (Sakellarides, 2005SAKELLARIDES, C. De alma a Harry: crónica da democratização da saúde. Coimbra: Almedina, 2005.; Tura, 2009TURA, L. Paradigmas da promoção e prevenção em saúde. In:; LOPES, M.; MENDES, F. MOREIRA, A. (Coord.). Saúde, educação e representações sociais: exercícios de diálogo e convergência. Coimbra: Formasau, 2009. p. 151-161.), a mudança paradigmática no conceito de saúde surge apenas com a Conferência Internacional sobre Cuidados Básicos de Saúde, promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1978, em Alma-Ata, sob a égide Saúde para todos no ano 2000. A saúde, reafirmada como direito fundamental, passou a ser tida como um estado de "[...] completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade" (OMS, 1978OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Alma-Ata: primeira conferência internacional sobre cuidados primários de saúde. Genebra, 1978., p. 1). Embora esse conceito não negue a (existência de) doença, ele define um estado positivo, que se descentrou dela, e dinâmico, já que vai sofrendo alterações ao longo da vida dos indivíduos, e que, por isso, não se possui como condição definida mas que se vai conquistando individualmente (Serrão, 2010SERRÃO, D. Procurar a sabedoria, partilhar o conhecimento. Porto: Cofanor, 2010.). Por isso mesmo, como afirma esse autor (p. 106), "[...] parecendo concreta esta definição é abstrata, porque se refere a um estado íntimo, ou de autopercepção." Nessa conferência se reprovou a chocante assimetria em saúde que se vive dentro dos países centrais e entre estes e os periféricos, e que se reflete em termos económicos, responsabilizando-se os governos pela saúde das suas populações.

A evolução do conceito de saúde ficou também provada nos vários documentos produzidos na sequência das diversas Conferências Internacionais sobre Promoção da Saúde de Ottawa (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.) até Nairobi (WHO, 2009WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The Nairobi call to action for closing the implementation gap in health promotion. Geneva, 2009.). A primeira dessas conferências surgiu com as crescentes expectativas em saúde, face às melhorias significativas que se registraram na saúde das populações, sobretudo dos países centrais que implementaram as recomendações defendidas em Alma-Ata. Realizada em Ottawa, sob o título Promoção da saúde nos países industrializados (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.), essa conferência fez surgir, pela primeira vez, a noção de promoção da saúde enquanto processo que capacita os indivíduos para agir e controlar os seus determinantes de saúde. A saúde, tida como um recurso para a vida e não como um fim na (e da) vida, se centra, assim, na pessoa e na comunidade que devem ser capazes de identificar necessidades, definir prioridades e planear e implementar estratégias conducentes à saúde. Dessa forma, os profissionais de saúde perdem protagonismo, daí que se considere prioritário o desenvolvimento de competências individuais e o reforço da ação comunitária, embora ainda se fale em intervenção na comunidade. Em Ottawa se salientou também a relevância da questão ambiental (ecológica) como determinante de saúde, refletindo-se, pela primeira vez, sobre a importância de assegurar a sustentabilidade dos recursos e um ecossistema estável, numa perspectiva de responsabilidade global, como requisito para a saúde, falando-se em abordagem socioecológica em saúde. Nesse sentido, se refere à importância de avaliar sistematicamente o impacto que o ambiente, em rápida mutação, exerce sobre a saúde. Pela primeira vez, referiu-se, também, à importância e à necessidade da educação em saúde como requisito para a própria promoção da saúde. Nessa conferência não foi também esquecida a necessidade de introduzir alterações na formação dos profissionais de saúde, no sentido de, no desempenho das suas funções, compreenderem a pessoa na sua globalidade.

Face às discrepâncias, em termos de saúde, verificadas entre países centrais e periféricos, na conferência de Adelaide, intitulada Promoção da saúde e políticas públicas saudáveis (OMS, 1988OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Adelaide sobre políticas públicas saudáveis: segunda conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1988.), se alertou para a premência de atender às minorias e a grupos particulares mais atingidos e à necessidade das políticas dos países centrais terem um impacto positivo na saúde dos países periféricos, estando, por isso, assentes numa ética de cuidado e responsabilidade para com toda a humanidade, para com toda a Família Humana (ONU, 1948ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração universal dos direitos do homem. Nova Iorque, 1948. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html>. Acesso em: 12 abr. 2013.
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). Para isso, é fundamental que os governos sejam proativos e encontrem soluções para os problemas transnacionais, como aqueles que têm sido criados pelo próprio desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido, se destacaram não só as assimetrias geradas pela própria tecnologia (incluindo nos cuidados de saúde) como também a importância de se fazer uma distribuição equitativa dos limitados recursos naturais. Se destacou, assim, a importância dos movimentos ecologistas e da própria OMS no suporte ao conceito de desenvolvimento sustentável, tido como fundamental para a promoção da saúde.

Em Sundsvall, sob o tema da Promoção da saúde e ambientes favoráveis à saúde (OMS, 1991OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Sundsvall sobre ambientes favoráveis à saúde: terceira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1991.), se salientou a importância da responsabilidade individual e coletiva das organizações governamentais e não governamentais na criação de ambientes saudáveis e na obtenção de justiça em saúde, que pode, inclusivamente, pôr em causa as futuras gerações. Mais uma vez, se alertou para a necessidade de uma gestão sustentável dos recursos (sublinhando-se o impacto do rápido crescimento populacional verificado) e do impacto ambiental na saúde, criticando-se o planeamento de curto prazo e a prioridade nos ganhos económicos que os governos têm vindo a adotar, mesmo depois de, nas conferências anteriores, se terem comprometido a contrariá-las. Nesse sentido, se reconheceu o esgotamento da estratégia de desenvolvimento económico vigente, que, além de ser altamente exploradora para os indivíduos, o era também para o ambiente. Se, por um lado, se vive num mundo progressivamente degradado e, se por outro, as pessoas são parte integrante do ecossistema mundial, estando a sua saúde interligada com o ambiente global, resolver essa situação exigia que a solução estivesse além dos sistemas de saúde tradicionais. Se reconhecia, pois, que ultrapassar esses problemas implicava uma ação coletiva em prol da saúde, só conseguida pela capacitação individual e comunitária. Nesse sentido, a educação, tida como um direito humano básico que deve ser assegurado por toda a vida, podia contribuir para essa capacitação.

A efetividade da promoção da saúde, o desenvolvimento da educação em saúde, a baixa participação comunitária, as desigualdades e a falta de equidade em saúde foram as preocupações levadas, em 1997, à quarta Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Jacarta, sob o mote Promoção da saúde no século XXI (OMS, 1997OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Jacarta sobre promoção da saúde no século XXI: quarta conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1997.). Aqui, se avaliaram as estratégias implementadas até à data da sua realização, se redefiniram os determinantes da saúde (com especial destaque para o envelhecimento populacional, as doenças crónicas e o aparecimento de novas doenças), se destacou a promoção da saúde como elemento indispensável para o seu desenvolvimento, dando resposta aos novos determinantes identificados, e se refletiu ainda sobre a importância do setor privado na promoção da saúde. Se acrescentou ainda a dimensão espiritual ao conceito de saúde e se reforçou a relevância da ação comunitária, salientando-se a importância da promoção da saúde ser feita por e com as pessoas e não para elas ou sobre elas. Essa posição ficou, aliás, em consonância com a própria Declaração de Hamburgo (UNESCO, 1997UNESCO - UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION. Cinquième conférence internacionale sur l'éducation des adultes: la declaration d'Hambourg l'ágende pour l'avenir. Hambourg, 1997.), que chamou a atenção para o fato do processo educativo dever se basear no património cultural e nos valores e experiência de vida dos indivíduos. Em Jacarta (OMS, 1997OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Jacarta sobre promoção da saúde no século XXI: quarta conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1997.), se alertou ainda para a importância da globalização na mudança de valores, modos e condições de vida, interferindo com a própria saúde.

No México, sob a égide da Promoção da saúde rumo a uma maior equidade (OMS, 2000OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração do México sobre promoção da saúde rumo a maior equidade: quinta conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 2000.), se debateu a inter-relação entre saúde e equidade e se reforçou a importância da emergência de novas doenças como ameaça ao progresso em saúde. Se salientou também a importância da participação coletiva na promoção da saúde sobretudo no que se referia ao determinante ambiental.

Em Banguecoque, sob o mote Promoção da saúde num mundo globalizado (OMS, 2005OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Banguecoque sobre promoção da saúde num mundo globalizado: sexta conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 2005. ), se discutiu o papel da globalização no aumento das desigualdades entre e dentro dos países, nas rápidas mudanças socioeconómicas e nas alterações ambientais. Embora se tenha reconhecido o seu papel na partilha de experiências e processos governativos, através da otimização das tecnologias de informação e comunicação, também se reconheceu o seu papel no aumento da vulnerabilidade das crianças e na exclusão daqueles que, por algum motivo, não se consegue integrar nesse novo mundo. Se salientou, também, a saúde como um direito humano fundamental alicerçado na solidariedade, isto é, na cooperação de todos, e, por isso, se reforçou a importância da participação ativa da sociedade civil. Nessa sequência surgiu o conceito de saúde global, se referindo "[...] aos impactes transnacionais da globalização sobre os determinantes e os problemas de saúde que estão para além do controlo de cada nação" (Smith; Tang; Nutbeam, 2006SMITH, B.; TANG, K.; NUTBEAM, D. WHO health promotion glossary: new terms. Health Promotion International, Oxford, v. 21, n. 4, p. 340-345, 2006., p. 342).

Na chamada para a ação em Nairobi, com o título Promover a saúde e o desenvolvimento: quebrar as lacunas de implementação (WHO, 2009WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The Nairobi call to action for closing the implementation gap in health promotion. Geneva, 2009.), se reiterou a importância da capacitação individual e comunitária, o fortalecimento do trabalho intersetorial e a necessidade de inscrever a promoção da saúde nas agendas políticas, bem como o seu papel no desenvolvimento integrado das nações.

Evolução do conceito Educação em Saúde no século XX

A educação em saúde, tida desde a Declaração de Ottawa (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.) como imprescindível à promoção da saúde, constitui-se como um campo heterogéneo e que, por isso, tem sofrido influência de áreas como a antropologia, a biologia, a comunicação, a enfermagem, a epidemiologia, a estatística, a história, o marketing, a medicina, a pedagogia, a psicologia ou a sociologia (Rochon, 1996ROCHON, A. Educación para la salud: un guia práctico para realizar un proyecto. Barcelona: Masson, 1996.; Russel, 1996RUSSEL, N. Manual de educação em saúde. Lisboa: Direcção-Geral da Saúde, 1996.). No entanto, para (Greene e Simons-Morton 1988GREENE, W.; SIMONS-MORTON, B. Educación para la salud. México: Interamericana, 1988.), é precisamente essa valência multidisciplinar que tem contribuído para o seu sucesso.

Ottawa (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.) destaca a necessidade de uma educação em saúde centrada nas necessidades globais e ao mesmo tempo individuais, e para a necessidade de capacitar os indivíduos para uma aprendizagem ao longo da vida, no sentido de controlarem e agirem sobre os seus próprios determinantes de saúde. Essa perspectiva desloca a educação em saúde de uma tendência curativa ou preventiva, inclinando-a para uma tendência promocional (Martínez; Carreras; Haro, 2000MARTÍNEZ, A.; CARRERAS, J.; HARO, A. Educación para la salud: la apuesta por la calidad de vida. Madrid: Arán Ediciones, 2000.), o que pressupõe, tal como preconizado desde Alma-Ata (OMS, 1978OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Alma-Ata: primeira conferência internacional sobre cuidados primários de saúde. Genebra, 1978.), uma visão positiva da saúde.

As mudanças socioeconómicas que a sociedade tem atravessado, a evolução dos fatores de risco e da própria nosologia, têm imprimido alterações no conceito de saúde e, naturalmente, na própria forma de educar para a saúde, o que, segundo (Moreno, García e Campos 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), pode ser traduzido em três grandes gerações de modelos de educação em saúde.

A primeira geração, considerada por aqueles autores como educação em saúde informativa, informativo-comunicacional (Moreira, 2001MOREIRA, P. Para uma prevenção que previna. Coimbra: Quarteto, 2001.) ou de foco divulgativo (Santos, 2000SANTOS, V. Marco conceptual de educación para la salud. In: OSUNA, A. Salud pública y educación para la salud. Barcelona: Masson, 2000. p. 341-352.), corresponde a uma visão negativa da saúde, já que esta é tida como ausência de doença. Nessa abordagem, a educação em saúde é feita apenas em contextos formais (o hospital, o centro de saúde e a escola), onde o profissional de saúde, detentor de um saber técnico-científico com estatuto de verdade, assume um caráter paternalista e um discurso higienista-sanitário orientado para a prevenção ou o tratamento da doença, que resulta de comportamentos (de risco) adotados pelos indivíduos em virtude da sua falta de informação. Nesse sentido, a educação em saúde, feita numa relação assimétrica entre técnico, detentor "[...] de todo o saber necessário para se ter uma vida saudável" (Silva et al., 2010SILVA, C. et al. Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2539-2550, 2010., p. 2546), e indivíduo, assenta na transmissão verticalizada de conhecimentos e informações de forma expositiva, prescritiva e unidirecional, e na sua passiva assimilação, muito na linhagem da referida educação bancária (Freire, 1976FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.). É nessa geração que, segundo (Moreno, García e Campos 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), se integra o modelo biomédico.

Embora esse tipo de educação em saúde, com objetivos facilmente mensuráveis (Loureiro; Miranda, 2010LOUREIRO, I.; MIRANDA, N. Promover a saúde: dos fundamentos à acção. Coimbra: Almedina, 2010.), tenha conseguido controlar grandes epidemias, através, por exemplo, da adesão das populações a campanhas de vacinação, os seus objetivos ficaram aquém das expetativas, em virtude de vários fatores. Ao ser um trabalho feito sobre as pessoas e não com as pessoas, esses modelos ignoram (ou desprezam) que nem todos os indivíduos têm capacidade de compreender a informação transmitida, ou a valorizam da mesma forma (Turábian; Franco, 2001TURÁBIAN, J.; FRANCO, B. Actividades comunitarias en medicina de familia y atención primaria. Madrid: Diaz de Santos, 2001.), além de que os indivíduos são também portadores de um saber (analógico, intuitivo) que, por ser diferente do saber técnico-científico, não é legitimado como válido. Como lembra (Oliveira 2004OLIVEIRA, C. Auto-organização, educação e saúde. Coimbra: Ariadne, 2004.), uma educação em saúde paternalista redunda numa clivagem profunda entre o desenvolvimento desejado e o desenvolvimento conseguido. Também, nesse sentido, (Silva et al. 2010SILVA, C. et al. Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2539-2550, 2010., p. 2546) defendem que nesse tipo de educação em saúde "[...] não se busca a autonomia mas, ao contrário, se enfraquece a população." Por outro lado, esses modelos não têm em consideração os determinantes psicossociais e culturais dos indivíduos, isto é, os recursos individuais para implementar as recomendações dadas. (Kemm 1991, apud Navarro, 2000NAVARRO, M. Educar para a saúde ou para a vida?: conceitos e fundamentos para novas práticas. In: PRECIOSO, J. et al. (Coord.). Educação em saúde. Braga: Universidade do Minho, 2000. p. 13-27., p. 16) afirma que, na "[...] realidade está perfeitamente demonstrado que a informação, por si só, não é geradora de atitudes e que os comportamentos relacionados com a saúde dependem de um grande conjunto de atitudes de variada ordem". Para além disso, a elevada morbilidade de origem cardiovascular e oncológica, associada a estilos de vida não saudáveis (Moreno; García; Campos, 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), fez aumentar a preocupação em torno dos comportamentos dos indivíduos e a sua repercussão na saúde (Valadez; Villaseñor; Alfaro, 2004VALADEZ, I.; VILLASEÑOR, M.; ALFARO, N. Educación para la salud: la importância del concepto. Revista de Educación y Desarrollo, Guadalajara, v. 1, p. 43-48, enero 2004.), situação para a qual o Relatório Lalonde já havia alertado em 1974.

A segunda geração, apesar de reconhecer a importância da informação, diz respeito a uma educação em saúde centrada no comportamento (Moreno; García; Campo 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), de foco comportamental (Santos, 2000SANTOS, V. Marco conceptual de educación para la salud. In: OSUNA, A. Salud pública y educación para la salud. Barcelona: Masson, 2000. p. 341-352.) ou etológico. Nesse sentido, a saúde desloca-se "[...] do âmbito do direito social para o de uma escolha individual" (Silva et al., 2010SILVA, C. et al. Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2539-2550, 2010., p. 2546); a informação perde o protagonismo e passa a ser tida como um meio para a adoção de comportamentos saudáveis. Nessa perspectiva, a saúde passa a ser produto do comportamento do indivíduo em resposta aos estímulos do(s) meio(s) no(s) qual(ais) se insere e movimenta, pelo que a educação em saúde é de abordagem preventiva, individual e adaptativa, não se pretendendo a implicação do indivíduo na modificação desse(s) meio(s), mas antes a sua adaptação a ele(s). Para isso, utiliza-se uma comunicação do tipo persuasivo, com o objetivo de criar culpabilidade na vítima. A este propósito (Bensen et al. 2007BENSEN, C. et al. A estratégia saúde da família como objeto em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 57-68, 2007., p. 59) afirmam que

[...] no modelo culpabilizante de educação, geralmente o profissional acredita estar socialmente investido de autoridade sanitária. Ele pensa possuir, sob monopólio, o conhecimento verdadeiro e absoluto dos temas que envolvem saúde e doença; dessa forma, impõe, em nome de interesses maiores da coletividade, o tipo de comportamento que os indivíduos devem assumir.

Para (Moreno, García e Campos 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), se integra nessa geração, entre outros, o modelo de crenças da saúde (health belief model). Várias críticas foram apontadas a esse tipo de educação em saúde, nomeadamente o fato de continuar a encarar o processo de saúde(-doença) como um fenómeno individual, de se manter implícita uma educação vertical e do indivíduo continuar a ter um papel passivo, já que não promove a modificação do(s) meio(s), mas apenas se adapta a ele(s). Por outro lado, ao se centrar no comportamento, esse tipo de educação em saúde negligencia as outras dimensões humanas, como a emotiva, a afetiva, a ética ou a espiritual, tão importantes para o alcance da saúde (Santos, 2000SANTOS, V. Marco conceptual de educación para la salud. In: OSUNA, A. Salud pública y educación para la salud. Barcelona: Masson, 2000. p. 341-352.; Valadez, Villaseñor, Alfaro, 2004VALADEZ, I.; VILLASEÑOR, M.; ALFARO, N. Educación para la salud: la importância del concepto. Revista de Educación y Desarrollo, Guadalajara, v. 1, p. 43-48, enero 2004.). Para além disso, para (Valla 1998VALLA, V. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 7-18, 1998.), esse tipo de educação em saúde procura esconder o mau funcionamento dos serviços públicos e descomprometer os governos e as suas instâncias. Nesse sentido, o centro da responsabilidade passa a ser o próprio indivíduo, "[...] que é visto como o último responsável (senão o único) por seu estado de saúde. Esse foco sobre o indivíduo e seu comportamento tem sua origem na tradição, na intervenção clínica e no paradigma biomédico" (Bensen et al., 2007BENSEN, C. et al. A estratégia saúde da família como objeto em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 57-68, 2007., p. 59).

A terceira geração de modelos de educação em saúde, a educação em saúde crítica (Moreno; García; Campos 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.) ou de foco integral (Santos, 2000SANTOS, V. Marco conceptual de educación para la salud. In: OSUNA, A. Salud pública y educación para la salud. Barcelona: Masson, 2000. p. 341-352.), influenciada pelas correntes humanistas, pela psicologia de grupo e pelo modelo dialógico de Freire, emerge das lacunas apresentadas pelos modelos das gerações anteriores contando com uma visão individual e exclusivamente biológica da saúde. De cariz mais promocional da saúde, essa perspectiva, preocupada com os processos de interação entre o indivíduo e o meio, procurou relacionar a morbimortalidade com as condições socioeconómicas, propondo mudanças sociais que promovessem a igualdade e a equidade e potenciassem o desenvolvimento individual e a participação comunitária (Moreno, García, Campos, 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.; Santos, 2000SANTOS, V. Marco conceptual de educación para la salud. In: OSUNA, A. Salud pública y educación para la salud. Barcelona: Masson, 2000. p. 341-352.), responsabilizando também o próprio poder político pelas referidas mudanças sociais. Nesse sentido, a educação em saúde deve ir além da modificação comportamental, capacitando as pessoas para agirem sobre o meio, implicando-as no processo de transformação de fatores pessoais, sociais, económicos ou ambientais que incidem sobre a sua saúde. Assim, longe de se centrar na transmissão de informação ou nas tomadas de decisão comportamentais, esse tipo de educação para a saúde procura motivar e capacitar os indivíduos a empreenderem ações que melhorem a sua saúde. É, por isso, uma educação em saúde crítica, participativa e emancipadora que se descentra dos conhecimentos e dos seus efeitos comportamentais para focalizar-se na interação entre as pessoas e o meio e no desenvolvimento de uma consciência coletiva (Valadez; Villaseñor; Alfaro , 2004VALADEZ, I.; VILLASEÑOR, M.; ALFARO, N. Educación para la salud: la importância del concepto. Revista de Educación y Desarrollo, Guadalajara, v. 1, p. 43-48, enero 2004.). Nessa perspectiva, a saúde não é um fim, mas, tal como preconizado em Ottawa (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.), um recurso vital, fruto de uma construção coletiva. Nesse sentido, como defendem (Bensen et al. 2007BENSEN, C. et al. A estratégia saúde da família como objeto em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 57-68, 2007., p. 59), nesse tipo de educação para a saúde

[...] os profissionais devem estabelecer vínculos e criar laços de co-responsabilidade com os usuários que irão decidir o que é bom para si, de acordo com suas próprias crenças, valores, expectativas e necessidades. [...] A pessoa autônoma necessita de liberdade para manifestar sua própria vontade além de capacidade de decidir de forma racional, optando entre as alternativas que lhe são apresentadas, bem como compreender as consequências de suas escolhas.

Assim, esse tipo de educação em saúde é feito com as pessoas e não sobre elas (Labonte, 1993LABONTE, R. Health promotion and empowerment: practice frameworks. Toronto: University of Toronto, 1993.), desvanecendo-se, deste modo, o caráter paternalista e hierarquizado das abordagens de tipo top-down. Nesse sentido, os modelos dessa terceira geração têm em consideração os mundos de significação dos indivíduos, estruturais na vida de quem os vive e de quem os sente, e a partir dos quais constroem a sua própria identidade, no que (Maturana e Varela 2002MATURANA, H.; VARELA, F. De máquinas e seres vivos. Porto Alegre: Artmed, 2002.) definiram como unidade composta autopoiética. Esses mundos de significação, fruto das próprias histórias de vida das pessoas, podem ter origem diversa, como a religiosa, a espiritual, a académica, a comunitária, ou estarem ligados a qualquer outra vertente da dimensão humana. Nesses modelos, o educador (que pode não ser necessariamente um profissional de saúde) valoriza os mundos de significação dos indivíduos com os quais obrigatoriamente terá de trabalhar.

Tal implica adotar e adaptar a linguagem, de forma a que esta seja facilmente compreendida no contexto comunicacional dos indivíduos, e inclui uma relação entre estes e o educador, assumindo-se uma postura de dádiva, partilha, empatia, generosidade, autenticidade e humildade que permite alcançar a confiança, base de qualquer relação humana (Oliveira, 2004OLIVEIRA, C. Auto-organização, educação e saúde. Coimbra: Ariadne, 2004.; 2008OLIVEIRA, C. Educação: pesquisa, complexidade e contemporaneidade. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 16, n. 2, p. 19-37, 2008.). Significa que o educador não é um mero transmissor de informação e ordens, um instrutor paternalista da verdade (Oliveira; Fonte, 2009OLIVEIRA, C.; FONTE, R. Parar para pensar... que significa educar para a saúde? In: BONITO, J. (Coord.). Educação em saúde no século XXI: teoria, modelos e práticas. Évora: CIEP-UE, 2009. p. 583-588.), como nos modelos da primeira geração, nem um culpabilizador comportamental, como nos modelos de segunda geração. É, antes, um perturbador facilitador (Antunes, 2008ANTUNES, M. Teoria e prática pedagógica. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.; Bové, 2006BOVÉ, N. Acción comunitária para la salud. In: ÚCAR, X.; BERÑE, A. Miradas y diálogos en torno a la acción comunitária. Barcelona: Graó, 2006. p. 89-109.), um mediador (Silva et al., 2010SILVA, C. et al. Educação em saúde: uma reflexão histórica de suas práticas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2539-2550, 2010.), um "[...] catalisador de processos de reflexão crítica" (Loureiro; Miranda, 2010LOUREIRO, I.; MIRANDA, N. Promover a saúde: dos fundamentos à acção. Coimbra: Almedina, 2010., p. 50), que promove a flexibilização dos padrões auto-organizativos dos indivíduos, capacitando-os individualmente e à comunidade no sentido de assumirem um maior controlo sobre a sua saúde, deixando de ser espectadores da sua própria realidade, assumindo-se como atores sociais, com direitos e deveres (Cotta et al., 2007COTTA, R. et al. Pobreza, injustiça e desigualdade social: repensando a formação de profissionais de saúde. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 31, n. 278, p. 278-286, 2007.).

Nessa geração de educação em saúde o educador não outorga soluções, mas ajuda e orienta na procura de soluções. Isso implica necessariamente uma relação baseada no diálogo e não em dois monólogos proferidos pelo indivíduo e pelo educador. Dialogar pressupõe a predisposição para ouvir (silenciosamente), para aceitar, eventualmente refutar, e reconhecer que podemos estar errados; pressupõe uma boa dose de humildade por parte de quem, habitualmente, se sentiria superior.

Segundo (Moreno, García e Campos 2000MORENO, A.; GARCÍA, E.; CAMPOS, P. Conceptos de educación para la salud. In: MORENO, A.Enfermería comunitária. Madrid: McGraw-Hill, 2000. p. 155-168.), se inscrevem nessa geração os modelos de investigação-ação-participativa e de empowerment individual e comunitário, descentrados, mas não excluídos, de contextos formais de educação.

Educar em saúde - conclusão

Embora a definição de Alma-Ata (OMS, 1978OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Alma-Ata: primeira conferência internacional sobre cuidados primários de saúde. Genebra, 1978.) tenha sido o mote para fazer emergir o modelo biopsicossocial, que George Engel propusera na década de 50 do século passado (Marco, 2003MARCO, M. A face humana da medicina: do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.) e que se encontra muito mais próximo da concepção que hoje temos dos indivíduos, ele ainda está longe de ser verdadeiramente holista. Nesse sentido, ao longo das várias conferências, novas dimensões do indivíduo têm sido acrescentadas, como contribuidoras de um completo bem-estar, de que é por exemplo a dimensão espiritual. A tendência tem sido de descentração de uma visão do homem entendido como máquina, num modelo cartesiano, numa visão do todo como soma das partes, para passar a encará-lo como uma entidade multidimensional. Nessa acepção, a saúde não mais pode ser vista como uma situação estática, mas antes como um processo em permanente mudança ao longo da vida do próprio indivíduo. Por outro lado, fica também claro, desde a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, em Ottawa (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Carta de Ottawa para a promoção da saúde: primeira conferência internacional sobre promoção da saúde. Genebra, 1986.), que a saúde deixa de se confinar aos profissionais de saúde, tal como preconizado em Alma-Ata (OMS, 1978OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração de Alma-Ata: primeira conferência internacional sobre cuidados primários de saúde. Genebra, 1978.), para passar a envolver toda a comunidade de forma participativa e responsável. Não obstante a responsabilidade individual e da comunidade, também nesse contexto se reforça a responsabilidade dos governos, na criação de políticas públicas saudáveis.

Como lembra (Mendes 2009MENDES, F. As vulnerabilidades da educação em saúde. In: LOPES, M.;; MENDES, F. MOREIRA, A. (Coord.). Saúde, educação e representações sociais: exercícios de diálogo e convergência. Coimbra: Formasau, 2009. p. 163-172.), o movimento de promoção da saúde surge num contexto de racionalidade política que tem vigorado nas sociedades ocidentais contemporâneas, em que se exerce pressão para a contenção das despesas e para a crescente responsabilização individual em saúde, num exercício de autonomia que persegue o ideal de autogoverno e que, baseado na ideia de que a informação gera conhecimento e de que o conhecimento conduz necessariamente a uma mudança comportamental, pode culminar numa responsabilização dos indivíduos. Por isso, na mesma conferência que inicia o movimento de promoção da saúde, se esclarece que a educação em saúde, fundamental nesse processo, deve ser entendida como a aquisição de capacidades pelos indivíduos e comunidades para controlarem os seus determinantes de saúde. É aqui que a educação, como um motor de capacitação, se constitui como a chave para que a saúde seja um bem acessível a todos.

Educação e saúde são, portanto, duas faces do mesmo processo, interdependentes e co-construtivas. Esses conceitos estão de tal forma imbricados que podemos, à semelhança de (Oliveira 2004OLIVEIRA, C. Auto-organização, educação e saúde. Coimbra: Ariadne, 2004.), falar em redundância da expressão "educação em saúde" já que, de fato, ambos os conceitos pressupõem um desenvolvimento do indivíduo em todas as suas dimensões, como a fisiológica, a emotiva, a afetiva, a volitiva, a racional, a ética, a espiritual, a social, a ecológica ou a comunitária (Feio; Oliveira, 2010FEIO, A.; OLIVEIRA, C. O modelo das crenças da saúde (health belief model) e a teoria da autopoiesis. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 18, n. 1, p. 215-243, 2010. ).

Se, como afirma Oliveira (2004), o conceito de educação (e de saúde) começa e termina na comunidade, então o processo de educação em saúde tem de ser obrigatoriamente um processo permanente e comunitário e não um processo que se confina às paredes de uma escola, de um hospital ou de um centro de saúde, numa visão exclusivamente formal de educação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Set 2013
  • Revisado
    08 Maio 2014
  • Aceito
    03 Jun 2014
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