Resumo
Diante das crescentes dificuldades apresentadas pela responsabilidade civil para lidar com a má -prática médica e com a compensação aos pacien tes, muitos advogam a implementação do sistema no-fault , isto é, um mecanismo no qual o paciente é compensado por via de um fundo económico de socialização do risco, independentemente da de monstração de negligência por parte do médico. Neste estudo comparámos as principais notas do modelo no-fault com o clássico modelo fundado na culpa, com vista a determinar qual o mais adequa do em termos de justiça, melhoria dos cuidados de saúde e segurança do paciente. Concluímos que, apesar de o modelo no-fault trazer muitas vantagens, também envolve sérias difi culdades, riscos e fragilidades. Nomeadamente, é duvidoso que promova a diligência na prestação de cuidados médicos, dado que em regra não se verifica qualquer sanção para o profissional de saúde. Além disso, só pode operar com sucesso em condições mui to concretas, que não se encontram na maior parte das ordens jurídicas. Por conseguinte, não cremos que seja a solução mais adequada, pelo menos quan do implementada como um mecanismo geral para lidar com danos causados por tratamentos médicos.
Palavras-chave:
Má-prática Médica; Negligência; No-fault; Compensação; Responsabilização
Enquadramento do problema: do que estamos a falar?
Quando o paciente sofre um dano no contexto de um acto médico, o lesado e a sua família manifes tam várias preocupações, diante das quais cumpre ao direito, directa ou indirectamente, providenciar uma satisfação: (a) arrecadar uma compensação que cubra os seus danos, patrimoniais e não pa trimoniais; (b) sancionar o autor, eventualmente impedindo-o de continuar a exercer medicina; (c) obter uma explicação do sucedido; (d) receber um pedido de desculpas ou, ao menos, um gesto de empatia; (e) garantir a consciencialização do com portamento, de forma que o autor do dano o corrija e evite a sua repetição no futuro.
Contudo, o actual modelo jurídico de lidar com o erro médico - seja este culposo ou não, isto é, re presente uma autêntica falta médica ou apenas um erro honesto (Raposo, 2013RAPOSO, V. L. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013., p. 13-16) - parece só con seguir realizar aquelas duas primeiras aspirações e apenas de forma imperfeita, o que deixa pacientes, profissionais de saúde, instituições de saúde e a comunidade em geral frustrados com os resultados que o mundo jurídico lhes oferece.
Em razão das muitas limitações apresentadas pelo modelo fundado na negligência do agente tem-se sugerido a transição para um modelo que abdique da culpa do profissional de saúde - o cha mado no-fault model - já hoje em prática em alguns quadrantes geográficos, como a Nova Zelândia e os países nórdicos, e também noutras ordens jurídicas de forma mais limitada, tal como em alguns estados norte-americanos, em França e na Bélgica.
Esta sugestão parte do reconhecimento do fra casso do modelo tradicional, assente nos cânones clássicos da responsabilidade civil apreciada em tribunal por juízes leigos em questões médicas, que procura encontrar uma culpa (a responsabi lidade em cuidados de saúde só em casos muitos contados será objectiva, como sucede quanto aos ensaios clínicos em várias ordens jurídicas) e um culpado a quem imputar todos os danos. Em seu lugar pretende-se instaurar um outro modelo, mais preocupado em compensar o paciente lesado do que em apontar o dedo e identificar culpas (embora, como veremos, a culpa nunca desapareça verdadei ramente), até porque se entende que a origem da maioria dos danos está no sistema - no serviço, no hospital ou mesmo no sistema geral de saúde - e não no indivíduo. Por conseguinte, o paciente será compensado independentemente de haver ou não alguma culpa (isto é, falta médica), cuja existência nem sequer é averiguada.
No entanto, e como trataremos de demonstrar neste estudo, a proposta de generalização do modelo no-fault falha devido a dois grandes obstáculos: primeiro, este modelo não é necessariamente mais adequado em termos de segurança e compensação do paciente, os principais objectivos a que qualquer sistema que se implemente deve aspirar; segundo, ainda que este seja de facto o melhor modelo, certo é que a sua implementação exige determinados requisitos contextuais (nem só jurídicos, mas econó micos e sociológicos) que porventura só existem em geografias muito específicas (The Canadian Medical Protection Association, 2006THE CANADIAN MEDICAL PROTECTIVE ASSOCIATION. International medical liability systems: a comparative overview. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://www.cmpa-acpm.ca/documents/10179/24937/com_medical_liability_a_second_physician_primer-e.pdf >. Acesso em: 25 nov. 2014.
https://www.cmpa-acpm.ca/documents/10179... ).
Breve caracterização do modelo no-fault
Aparte algumas notas genéricas, não é fácil apontar traços identificativos deste modelo porque, na realidade, o sistema existente na Nova Zelândia é bastante diferente do nórdico, e qualquer deles se distingue também dos demais. Por exemplo, o meca nismo nórdico é coberto pelo dinheiro angariado por via dos seguros pagos pelos prestadores de saúde, ao passo que o modelo neozelandês é custeado pelo contribuinte mediante impostos; por outro lado, enquanto no caso nórdico o conceito de "evitabili dade" delimita o leque de danos indemnizáveis, o que o torna um dos elementos basilares de toda a estrutura compensatória, a solução neozelandesa desconsidera o carácter evitável do dano; por outro lado ainda, entre os nórdicos (excepto na Dinamar ca) o lesado mantém em regra a opção de reagir judicialmente, enquanto na Nova Zelândia essa possibilidade está excluída no que diz respeito aos danos cobertos pelo fundo no-fault .
Tendo presente as diferenças existentes, iremos de seguida descrever em traços largos as principais concretizações deste sistema, que ainda hoje servem como case study para os demais.
O modelo escandinavo
O modelo escandinavo refere-se aos países nórdicos, embora sua versão paradigmática seja a sueca, até porque as demais foram nela inspiradas, pelo que utilizaremos essencialmente a Suécia como exemplo desta breve exposição.
O programa sueco de compensação ao pacien te, o Landstingens Ömsesidiga Försäkringsbolag (LÖF), começou em meados de 1970, com a criação de um regime de segurança social global, destinado a cobrir os resultados negativos decorrentes de um tratamento médico.
Neste modelo (Johansson, 2010JOHANSSON, H. The Swedish system for compensation of patient injuries. Upsala Journal of Medical Sciences, Upsala, v. 115, n. 2, p. 88-90, 2010.; Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ; Ulfbeck; Hartlev; Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.; World Bank, 2004WORLD BANK. Medical malpractice systems around the globe: examples from the US tort liability system and the Sweden no fault system. Washington, DC: World Bank, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://194.84.38.65/files/esw_files/malpractice_systems_eng.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2014.
http://194.84.38.65/files/esw_files/malp... ) o custo da compensação é coberto por um seguro pago pelos próprios profissionais de saúde. Inicial mente a participação era voluntária, mas tornou-se obrigatória por força do Patientskadelagen, um diplo ma de 1996. Actualmente cobre actos praticados por médicos actuando em hospitais públicos, mas também actos daqueles que, embora dedicando-se à medicina privada, celebraram um acordo com o Estado.
Este fundo cobre danos resultantes do tratamento e do diagnóstico, desde que evitáveis. Cobre ainda lesões causadas por equipamento médico ou por próteses, quer resultem de uma utilização defeituosa ou de defeito do produto, ainda que nesta segunda hipótese se preveja um regime especial de respon sabilidade objectiva. Lesões não relacionadas com a assistência médica (quedas, incêndios) são também compensáveis se decorrentes dos riscos especiais em que o paciente incorre durante os cuidados médicos. Tratando-se de danos relacionados com infecções, estes são compensados em termos de no-fault , caso o agente infeccioso tenha sido transmitido a partir de uma fonte externa e os seus efeitos superem os da doença subjacente do paciente. Já se vê que nem todos os danos encontram aqui cobertura. Mesmo no que respeita aos danos que caem no seu âmbito de apli cação funciona como um mecanismo subsidiário do sistema de segurança nacional, o qual, em bom rigor, custeia a maior parte das compensações.
Quanto ao procedimento, vejamos também o caso sueco: as queixas dos pacientes são processa das pelo Personskadereglering AB (PSR), composto por especialistas com formação médica ou legal, que têm poderes para investigar uma reclamação (por exemplo, entrevistando o paciente ou reque rendo registos médicos). Aquele que não fique satisfeito com a compensação atribuída pode pedir uma revisão da decisão a um painel, optar pela arbitragem ou recorrer a um tribunal judicial. O paciente pode passar directamente para o tribunal, porém, em regra só opta pela via judicial directa quando o dano não é coberto pelo fundo de com pensação, o qual se revela uma via mais expedida e simples, dado que o paciente está dispensado de fazer prova dos requisitos da responsabilidade civil (excepto quanto à causalidade, cuja demons tração a cargo do paciente se mantém (Ulfbeck, Hartlev, Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.). Neste ponto a Dinamarca apresenta uma particularidade, pois aí o paciente não pode recorrer à via judicial sempre que o dano em causa esteja coberto pelo esquema no-fault (Ul fbeck, Hartlev, Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.), de modo que nesse caso a opção pelo mecanismo de actuação não resulta de uma decisão voluntária do paciente, o que suscita alguns problemas constitucionais em sede de direito de acesso aos tribunais.
Uma característica comum aos modelos nórdi cos é que os organismos que analisam os pedidos de compensação dos pacientes não lidam com questões disciplinares, nem tampouco a informa ção por eles recolhida é comunicada aos órgãos disciplinares. Ou seja, existe uma firewall absoluta entre o processo de compensação e o processo san cionatório (Mello et al., 2006MELLO, M. M. et al. 'Health courts' and accountability for patient safety. Milbank Quarterly, Malden, v. 84, n. 3, p. 459-492, 2006.), o que, por sua vez, também suscita alguns problemas em sede de res ponsabilização do prestador de cuidados de saúde.
O modelo da Nova Zelândia
O modelo actualmente existente na Nova Zelân dia (Bismark et al., 2006BISMARK, M. et al. Accountability sought by patients following adverse events from medical care: the New Zealand experience. Canadian Medical Association Journal, Ottawa, v. 175, n. 8, p. 889-894, 2006.; Bismark; Paterson, 2006BISMARK, M.; PATERSON, R. No-fault compensation in New Zealand: harmonizing injury compensation, provider accountability, and patient safety. Health Affairs, Bethesda, v. 25, n. 1, p. 278-283, 2006.; Malcolm; Barnett, 2007MALCOLM, L.; BARNETT, P. Disclosure of treatment injury in New Zealand's no-fault compensation system. Australian Health Review, Clayton South, v. 31, n.1, p. 116-122, 2007.) teve a sua origem numa alteração legal ocorrida em 1974, quando se imple mentou um regime de compensação independente da culpa, o Accident Compensation Corporation (ACC). Tal como no caso nórdico, também esse for mato radica num fundo monetário de socialização do risco, mas custeado pelos contribuintes.
Note-se que nem todos os danos sofridos pelos pa cientes são compensáveis no contexto desse modelo, mas tão-só aqueles que podem ser qualificados como treatment injury (lesão resultante do tratamento). Este conceito é definido em sentido lato, para incluir danos resultantes do diagnóstico, do tratamento proprio sensu , da ausência de tratamento, da falha de um instrumento ou máquina, da omissão de consentimento informado e de infecções (Farrell, Devaney, Dar, 2010FARRELL, A-M.; DEVANEY, S.; DAR, A. No-fault compensation schemes for medical injury: an overview. Edinburgh: Scottish Government Social Research, 2010.; Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ; Quick, 2012QUICK, O. L. Patient safety and the problem and potential of law. Journal of Professional Negligence, West Sussex, v. 28, n. 2, p. 78-99, 2012.). Assim, para fins de compensação, o dano in demnizável será aquele sofrido por uma pessoa que recebe o tratamento de saúde de um profissional de saúde devidamente licenciado, desde que tenha sido causado pelo tratamento (causalidade jurídica); mas sem que se trate de uma consequência necessária do dito tratamento (por conseguinte, não inclui a perda de cabelo durante a quimioterapia, por exemplo). To dos os pacientes que sofrem uma lesão deste tipo são elegíveis para compensação (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ).
Este conceito de "dano resultante do tratamento" não fazia originariamente parte do modelo de com pensação, só tendo surgido em 2005, quando o regime instituído foi alvo de uma alteração legal relevante, por força da qual desapareceram da avaliação do dano os conceitos de medical error (erro médico) e de medical mishap (acidente médico). De facto, até 2005 o sistema funcionou tendo como base os referidos conceitos: o erro médico pretendia traduzir a violação do dever de cuidado que deve ser exigido ao médico (coincidindo, basicamente, com a negligência típica da responsabilidade civil); ao passo que o acidente médico visava eventos raros (cuja percentagem de ocorrência fosse inferior a 1%) e graves (que causassem deficiência ou hospitalização prolongada) resultantes do tratamento, por conseguinte, incluindo danos não negligentes (Davis et al., 2002DAVIS, P. et al. Compensation for medical injury in New Zeeland: does 'no-fault' increase the level of claims making and reduce social and clinical selectivity. Journal of Health Politics, Policy and Law, Durham, v. 27, n. 5, p. 383-854, 2002.). Uma vez que esta clas sificação foi alvo de múltiplas críticas, ambos os con ceitos foram substituídos por um único, o treatment injury - isto é, dano resultante do tratamento - mais próximo da ideia nuclear do modelo no-fault .
Outra alteração importante neste mecanismo prende-se com a divisória entre procedimentos compensatórios e sancionatórios. Inicialmente não existia separação entre a concessão da indemniza ção e os processos disciplinares, mas após 2005 o ACC apenas está vinculado a relatar ao Conselho de Medicina os riscos de danos para o público (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ). Contudo, as medidas disciplinares são raras e somente dirigidas aos médicos condenados em processos civis e criminais, pois em regra apenas se leva a cabo procedimento de revisão da actuação do médico. O ACC não tem em si mesmo qualquer papel sancionador, dado que se trata de um orga nismo fortemente orientado para a segurança do paciente (Bismark; Paterson, 2006BISMARK, M.; PATERSON, R. No-fault compensation in New Zealand: harmonizing injury compensation, provider accountability, and patient safety. Health Affairs, Bethesda, v. 25, n. 1, p. 278-283, 2006.). Na realidade, todo o sistema está mais orientado para promover a qualidade dos cuidados médicos do que sancionar os prestadores de saúde. A dimensão mais ligada à ideia de accountability reporta-se a Disability Com mission, ao Medical Council e ao Health Practitioner Disciplinary Tribunal, mas mesmo aí sem a vertente sancionatória típica dos modelos fundados na culpa.
Seguindo o raciocínio típico dos restantes mo delos no-fault , não se exige a negligência do médico e, agora divergindo de outros modelos da mesma natureza, nem sequer se exige a evitabilidade do dano. Mas tal não significa que todos os danos aqui estejam incluídos, pois não abarca lesões integral ou parcialmente causadas pela condição subjacente da pessoa, lesões exclusivamente atribuíveis a decisões de alocação de recursos, lesões decorrentes do atra so injustificado do consentimento para tratamentos médicos e lesões que sejam uma parte necessária ou uma consequência normal do tratamento.
O processo de obtenção da compensação inicia-se com a apresentação de um pedido ao ACC, em regra formulado apenas com a ajuda de um profissional de saúde, dado que não é necessário apoio jurídico (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ). Todo o processo se desenrola de forma bastante rápida, pois em regra decide-se em duas ou três semanas, sendo que o prazo máximo de decisão é de nove meses.
Sempre que o prejuízo sofrido pela paciente é abrangido pelo esquema no-fault , não é permitido o recurso à via judicial, ainda que o paciente decida não apresentar um pedido ao ACC. Não obstante potencialmente existir aqui uma violação do direito de acesso ao tribunal, entende-se que se trata de uma espécie de contrato social, que conta até com o aval dos tribunais. A única possibilidade disponibilizada ao paciente para fazer uso das vias judiciais prende -se com a reclamação de danos morais em caso de condutas especialmente graves, para as quais a mera indemnização patrimonial não seja suficiente; ou quando o paciente pretende reclamar danos punitivos (Farrell; Devaney; Dar, 2010FARRELL, A-M.; DEVANEY, S.; DAR, A. No-fault compensation schemes for medical injury: an overview. Edinburgh: Scottish Government Social Research, 2010.; OECD, 2006). Mas, em boa verdade, raramente os pacientes têm interesse em aceder à via judicial, dado o seu custo e lentidão. Em contrapartida, os processos decididos no ACC são substancialmente menos custosos e bastante céleres.
O modelo norte-americano
Os estados norte-americanos mantêm o clássi co sistema fundado na culpa para a generalidade dos actos médicos; porém, podemos encontrar soluções de no-fault para situações pontuais (Coppolo, 2003COPPOLO, G. Medical malpractice-no-fault-systems. Hartford: OLR Research Report, 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.cga.ct.gov/2003/olrdata/ins/rpt/2003-R-0885.htm >. Acesso em: 10 nov. 2014.
http://www.cga.ct.gov/2003/olrdata/ins/r... ).
Assim, nos estado de Virgínia e Flórida existem soluções de no-fault , ainda que apenas estipuladas para lesões neurológicas relacionadas com o parto, e somente desde que o nascimento tenha ocorrido num hospital que seja parte integrante deste pro grama, acompanhado por um médico que também o seja. Esses cenários foram eleitos para tramitação segundo o modelo no-fault porque relativamente a eles a taxa de sucesso de um pedido de indemniza ção em tribunal é muito elevada e as compensações concedidas poderão igualmente ser muito elevadas. Também no que respeita a danos resultantes de vacinas - ainda que não todos, já que a delimitação do dano indemnizável é até bastante restrita - foi im plementado a nível nacional um esquema no-fault , o National Vaccine Injury Compensation Program .
Caracterização dos danos a indemnizar
Requisitos exigidos para a indemnização
Embora os requisitos variem de uma ordem jurí dica para a outra, é possível apontar alguns traços comuns, que passaremos a descrever.
Ao contrário do que se poderia pensar, nem todos os danos são compensáveis à luz das regras de no -fault , porquanto existem requisitos de elegibilidade a ter em consideração (Von Eyben, 2001VON EYBEN, B. Alternative compensation systems. In: WAHLGREN, P. (Coord.). Scandinavian studies in law, Tort Liability and Insurance. Stockholm: The Stockholm University Law Faculty, 2001. p. 192-232.; Farrell; Devaney; Dar, 2010FARRELL, A-M.; DEVANEY, S.; DAR, A. No-fault compensation schemes for medical injury: an overview. Edinburgh: Scottish Government Social Research, 2010.; World Bank, 2004WORLD BANK. Medical malpractice systems around the globe: examples from the US tort liability system and the Sweden no fault system. Washington, DC: World Bank, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://194.84.38.65/files/esw_files/malpractice_systems_eng.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2014.
http://194.84.38.65/files/esw_files/malp... ).
Usualmente exige-se que o pedido atinja certo nível de gravidade. Por exemplo, na Suécia é necessário que a condição do paciente tenha durado um mínimo de 30 dias, ou esteja hospitalizado durante pelo menos dez dias, sofra incapacidade permanente ou faleça. Assim, o montante compensável depende mais da ele gibilidade do paciente (a qual, por sua vez, depende da gravidade da lesão) do que da culpabilidade do médico.
Além disso, o prejuízo deve ter ocorrido durante o tratamento médico e por causa dele, o que no fundo nos remete para o requisito da causalidade, aliás, entendido em termos semelhantes aos que regem a responsabilidade jurídica.
Este tratamento, por sua vez, tem que ser for necido por um médico credenciado ou sob a sua responsabilidade, pois a comunidade apenas aceita a comunitarização do risco quanto a actos médicos providos de reconhecimento público em termos de aptidão profissional.
Os nórdicos exigem ainda um pressuposto adi cional: o acto médico em causa terá ainda que ser considerado não clinicamente justificado. Tal sig nifica que a lesão em causa poderia ter sido evitada (evitabilidade) caso o paciente tivesse sido sujeito ao tratamento adequado.
Apesar destas limitações e exclusões, ainda as sim o leque de danos indemnizáveis continua a ser mais vasto do que quando comparado com o modelo fundado na negligência. Porém, não será o fundo no-fault a cobrir todos os danos, já que na verdade é sobre o sistema nacional de segurança social que recai parte substancial do peso financeiro. Mas, et pour cause , o modelo de no-fault pressupõe, como requisito do seu funcionamento, um sistema forte de segurança social (Bismark; Paterson, 2006BISMARK, M.; PATERSON, R. No-fault compensation in New Zealand: harmonizing injury compensation, provider accountability, and patient safety. Health Affairs, Bethesda, v. 25, n. 1, p. 278-283, 2006.).
A evitabilidade (avoidability) do dano
A designação do chamado modelo no-fault pode induzir em erro, levando a pensar que este modelo abstrai totalmente da culpa. Na verdade, não é assim. Desde logo porque não aniquila a responsa bilidade criminal, que inelutavelmente se mantém para as condutas consideradas criminosas. Depois, porque subsistem actos médicos submetidos às regras da responsabilidade civil, a qual é em regra subjectiva. Finalmente, porque mesmo quando supostamente entram no estrito âmbito no-fault , ainda assim a culpa persiste em algumas forma de implementação deste modelo, mas agora sob a capa da "evitabilidade" (avoidability ).
Trata-se de um conceito que os nórdicos cunha ram especialmente para este modelo e que pretende expressar a ideia de que apenas danos evitáveis serão compensados, o que desmente a crença tra dicional de que este sistema indemniza todos os danos. De facto, no modelo nórdico a obtenção de uma compensação por parte do paciente depende da prévia apreciação da evitabilidade do dano (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ), ou seja, avaliar se o dano teria acon tecido caso outra assistência médica (resta saber se qualquer outra ou antes a melhor assistência possível, como analisaremos no ponto seguinte) tivesse sido prestada ao paciente.
Porém, cumpre fazer notar que o paciente terá sempre que demonstrar o nexo de causalidade en tre a conduta do médico e o dano (evitável) sofrido, sendo provavelmente esta a principal razão pela qual se pode revelar difícil ser compensado à luz do critério da evitabilidade, pois segundo alguns estudos, apenas 40% das reivindicações são bem sucedidas (Bogdan, 2011BOGDAN, J. Medical malpractice in Sweden and New Zeeland: should their systems be replicated here? Centre for Justice and Democracy, New York, n. 21, jul. 2011.).
Evitabilidade e negligência
Alguns autores sustentam que, na verdade, a evi tabilidade não é tão diferente assim da negligência, pois se o dano poderia ter sido evitado, tal significa que o profissional de saúde não providenciou ao pa ciente um cuidado médico adequado; em suma, foi negligente (Maccourt; Bernstein, 2009MACCOURT, D.; BERNSTEIN, J. Medical error reduction and tort reform through private, contractually-based quality medicine societies. American Journal of Law and Medicine, Boston, v. 35, n. 4, p. 505-561, 2009.; Mehlman; Nance, 2007MEHLMAN, M.; NANCE, D. The case against 'health courts'. [S. l.]: [s. n.], 2007. Disponível em: <Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383 >. Acesso em: 29 nov. 2014.
http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383... ). Como perguntam Mehlman e Nance (2007)MEHLMAN, M.; NANCE, D. The case against 'health courts'. [S. l.]: [s. n.], 2007. Disponível em: <Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383 >. Acesso em: 29 nov. 2014.
http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383... , "what physician would not experience shame upon being accused of an avoidable error?" (p. 66).
Contudo, tudo está em saber o que se entende por "cuidado médico adequado" para este efeito: se qual quer um que evite o resultado danoso (e neste caso, de facto, ambos os conceitos acabam por traduzir o mesmo nível de exigência) ou antes o melhor cuidado possível (sendo que, se assim for, já a evitabilidade ultrapassa o standard de conduta do médico-médio e, por conseguinte, será possível indemnizar uma esfera de danos mais ampla do que se verifica na negligência). Por outras palavras, o dano evitável (OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.) será aquele que poderia não ter ocor rido caso o médico tivesse disponibilizado outros cuidados médicos ao paciente ou, numa outra opção, o que resultaria do melhor cuidado médico acessível?
A fórmula de dano evitável que nos parece mais correcta é a que exige ao médico a melhor assis tência médica existente, de acordo com as mais elevadas práticas vigentes. Não porque nos pareça que este deva ser o padrão de conduta para avaliar o comportamento do médico, mas porque só assim se distinguirá a evitabilidade, enquanto critério novo e autónomo, da negligência, tal qual está plasmada nos Códigos Civis e Criminais (Mehlman; Nance, 2007MEHLMAN, M.; NANCE, D. The case against 'health courts'. [S. l.]: [s. n.], 2007. Disponível em: <Disponível em: http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383 >. Acesso em: 29 nov. 2014.
http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1785383... ). De facto, a negligência avalia a conduta do médico segundo o critério do bonus pater familias , isto é, o bom pai de família usado para aferir a cul pa do agente na responsabilidade jurídica, o qual se traduz no modelo de conduta do homem médio, aqui transmutado no médico-médio (Raposo, 2013RAPOSO, V. L. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.). Logo, facilmente se confundiria com a evitabilidade caso esta se traduzisse na mera prestação de outros cuidados médicos alternativos que no caso concreto se apresentassem como mais eficazes, ainda que não necessariamente os melhores. A única forma de distinguir ambos os conceitos é entendendo que o padrão de avaliação utilizado pela evitabilidade vai muito além do standard of care determinado pelo padrão do médico-médio.
Paralela a esta é a questão de saber se deve ser exigido ao médico a conduta que iguale a do médico -médio ou a do super-médico. Segundo nos parece, num modelo que impute a responsabilidade pela indemnização ao médico, o único padrão de conduta admissível será o do médico-médio, dado que o direi to não pode exigir aos seus destinatários que sejam perfeitos, mártires ou heróis. Impor ao agente uma sanção por não respeitar um comportamento que vai para além do âmbito de compreensão ou de desem penho da pessoa normal não é o propósito da respon sabilidade civil. Em vez disso, busca-se um modelo fundado na socialização do risco, em que o principal objectivo consiste em compensar os lesados, mas sem que a compensação seja paga pelo agente, permite uma resposta diferente. Nesta segunda hipótese, já o critério mais exigente é não apenas aceitável como até recomendável, dado que não se trata aqui de delinear um padrão de conduta que seja exigível ao agente sob pena de sanção, mas sim de identificar os danos a compensar. Assim, ao recorrer ao padrão de conduta do melhor médico, a evitabilidade determina ao pro fissional de saúde um standard de conduta mais exi gente, sem, porém, o sancionar quando a sua conduta fique aquém desse standard ; do mesmo passo que se revela mais generosa para o paciente, aumentando a probabilidade de receber uma indemnização.
Tem a doutrina acentuado que daqui não decor re que o paciente tenha direito a receber o melhor tratamento possível, porquanto tudo dependerá dos recursos disponíveis nas circunstâncias particula res. Ou seja, a falta de recursos humanos ou técnicos opera como uma causa de exclusão da indemnização. Mas caso o dito "melhor médico" tivesse enviado o paciente para um hospital mais bem equipado, em vez de providenciar um tratamento fundado em re cursos escassos, já o paciente terá direito a receber uma indemnização (Ulfbeck; Hartlev; Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.).
Ainda assim, alguns eventos considerados evi táveis não poderiam ser prevenidos com uma assis tência médica adequada, nem mesmo com a melhor assistência possível por parte do médico, uma vez que ocorreriam de qualquer modo. Somente poderiam ser evitados por meio de algum outro mecanismo, como o uso de instrumentos mais sofisticados, não disponíveis naquele hospital; ou se a cadeia de comu nicação na instituição houvesse funcionado de forma mais eficaz, disponibilizando informação relevante sobre o paciente a todos os membros da equipa mé dica; ou se as tarefas no seio da equipe tivessem sido mais adequadamente distribuídas. Em todas estas hipóteses nos referimos a danos que apenas teriam sido evitados pela instituição. Mas nem sempre configurarão um comportamento negligente por parte da instituição (enquanto pessoa jurídica que é, igualmente susceptível de ser responsabilizada), mas, sim, falhas no próprio sistema (IOM, 1999IOM - INSTITUTE OF MEDICINE. To err is human: building a safer health system. Washington, DC: National Academy Press, 1999. Disponível em: <Disponível em: http://www.csen.com/err.pdf >. Acesso em: 3 dez. 2014.
http://www.csen.com/err.pdf... ).
Também estes últimos cenários são susceptíveis de indemnização num modelo fundado na negligência, porém, em bom rigor, representam uma forma sui generis de culpa, que no direito europeu continental são analisadas à luz dos institutos da faute de service , quando a falta se deva a uma pessoa individual, ainda que não identificável, e faute du service , quando a falta se deva ao próprio serviço (Raposo, 2013RAPOSO, V. L. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.). Ora, se no primeiro caso é ainda possível descortinar uma culpa, embora anónima, já no segundo tal parece difícil, dado que muitas vezes se verificam apenas falhas de funcionamento de instituição, mas que não podem ser culposamente reportadas a ninguém, nem mesmo à própria pessoa colectiva.
Evitabilidade e responsabilidade objectiva
Aqui chegados podemos já concluir que a evitabi lidade consubstancia um critério mais exigente do que a negligência - não obstante algumas definições de evitabilidade a aproximarem bastante da negli gência (Udell; Kendall, 2005UDELL, N.; KENDALL, D. Health courts: fair and reliable justice for injured patients. Progressive Policy Institute, 2005. Disponível em: <Disponível em: http://www.dlc.org/documents/healthcourts_0217.pdf >. Acesso em: 14 out. 2014.
http://www.dlc.org/documents/healthcourt... ) - pelo que à luz desse padrão serão indemnizáveis os comportamento ne gligentes, mas também aqueles outros que poderiam ter sido evitados, mas não são negligentes.
Ainda assim, esse critério não é tão exigente a ponto de coincidir com a responsabilidade objectiva, a qual, por sua vez, corresponde aos cuidados de saúde prestados em circunstâncias perfeitas. No fundo, situa-se num ponto intermédio entre o dever de cuidado imposto pela negligência e a responsa bilidade objectiva (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ). De facto, embora se expanda substancialmente o rol de pa cientes elegíveis para uma compensação, o número de compensados não será tão extenso como o seria no contexto de uma responsabilidade objectiva, uma vez que esta última atribuiria uma indemnização a danos decorrentes de complicações insusceptíveis de ser evitadas, nem mesmo com o melhor cuidado médico possível, e que, por conseguinte, não serão indemnizados à luz do critério da evitabilidade.
Critérios para aferir a evitabilidade do dano
Tal como já referimos, a primeira dificuldade na identificação dos danos potencialmente indemnizá veis consiste em saber qual o padrão de conduta mé dica a adoptar para efeitos de aferir a evitabilidade do dano. Caso se adopte, como propugnamos, o crité rio do "melhor cuidado médico possível" estaremos a afastar o padrão de conduta do "médico-médio", substituindo-o pelo do "especialista experiente" (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ). Segundo este último, a com pensação é concedida quando for possível supor que um especialista experiente no campo em questão teria agido de forma diferente nas circunstâncias do caso e, assim, evitado o prejuízo.
Em contrapartida, caso se entenda que serão evitáveis aqueles danos que teriam sido prevenidos por um outro médico, que não necessariamente o melhor médico, já será outro o padrão usado para aferir a compensação: o critério do "tratamento alternativo". Segundo este, a compensação será con cedida se, com base numa avaliação subsequente, for possível concluir que o prejuízo poderia ter sido evitado se tivesse sido utilizado outro tratamento.
Qualquer desses dois critérios pode operar com um critério de razoabilidade, que preconiza a in demnização daqueles danos que se revelem mais graves do que seria de esperar diante da patologia do paciente e do tratamento providenciado. A ideia que fundamenta este critério é que, embora alguns danos sejam expectáveis, outros são desproporcionados quando comparados com a doença e suas normais consequências (Ulfbeck; Hartlev; Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.).
Qualquer que seja o padrão de conduta utilizado - o melhor standard of care existente ou simplesmen te um melhor standard of care - essa avaliação leva usualmente em consideração não só as informações existentes no momento do tratamento, mas também informações só posteriormente disponíveis. Porém, o tratamento alternativo em si mesmo terá que estar acessível no momento da intervenção (e não apenas no momento da avaliação), ou seja, exige-se que este pudesse ter sido uma escolha real para o médico (Ulfbeck; Hartlev; Schultz, 2013ULFBECK, V.; HARTLEV, M.; SCHULTZ, M. Malpractice in Scandinavia. Chicago-Kent Law Review, Chicago, v. 87, n. 6, p. 111-129, 2013.).
Em suma, a evitabilidade do dano deve ser avalia da tendo em conta outras possíveis alternativas de tratamento que estivessem efectivamente disponí veis no momento em que o acto médico foi praticado, que fossem igualmente seguras e eficientes e que pu dessem ter evitado a lesão, sendo ainda necessárias evidências médicas que demonstrem a superioridade do tratamento. Quando todos esses requisitos se ve rificarem, a pretensão do lesado será bem-sucedida. No entanto, esta avaliação não é admissível para a compensação de lesões resultantes de diagnósticos omissos ou atrasados, caso contrário a compensação destes danos seria automática em termos práticos.
Da exposição supra apresentada já se depre ende que uma das dificuldades prementes deste modelo consiste em saber que eventos serão evi táveis. A fim de facilitar o processo de avaliação, alguns autores propuseram uma lista de eventos elegíveis, que se presumem evitáveis, embora na situação particular o profissional de saúde pos sa demonstrar o contrário e ilidir a presunção. Para esses eventos tem-se sugerido a designação accelerated-compensation events , isto é, eventos de compensação acelerada (Mello et al., 2006MELLO, M. M. et al. 'Health courts' and accountability for patient safety. Milbank Quarterly, Malden, v. 84, n. 3, p. 459-492, 2006.). Uma das vantagens de tal lista seria promover a dissu asão, uma vez que os profissionais saberiam que se a sua conduta causa algum dos danos elencados nesse rol, o paciente teria direito a uma compen sação, sem necessidade de subsequente avaliação. Contudo, não vemos em que medida esta solução promove a deterrence , dado que a ocorrência de um dos referidos eventos não determina qualquer responsabilidade para o médico. Tampouco se pode considerar a compensação do paciente - único efei to daqui decorrente - como uma hipotética ameaça dissuasora de comportamentos pouco diligentes. Por outro lado, a rigidez de uma tal lista também se presta a críticas, porquanto formulações abs tractas de eventos compensáveis abstraem das particularidades da situação concreta que, no fundo, podem ditar uma solução oposta para o caso. Ou seja, a medicina dificilmente se presta a este tipo de estandardizações, de modo que os possíveis benefícios seriam somente a celeridade e eventual redução de custos na avaliação do caso, resultantes precisamente da referida estandardização.
Avaliação dos dois modelos: fault vs no-fault
Não é tarefa fácil eleger qual desses dois modelos - o da culpa ou o de no-fault - se revela o melhor, dado que qualquer deles apresenta benefícios e fragilida des. Porém, nos últimos tempos, o que sobressai são as críticas ao modelo fundado na culpa (Kachalia et al., 2008KACHALIA, A. B. et al. Beyond negligence: avoidability and medical injury compensation. Social Science and Medicine, Oxford, v. 66, n. 2, p. 387-402, 2008. Disponível em: <http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mello/files/2012/10/Avoidability_paper_-_final_Word_version.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2014.
http://www.hsph.harvard.edu/michelle-mel... ; OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.).
Comecemos pelo antagonismo a que dá azo e o consequente consumo excessivo de tempo e de dinheiro (dos lesados e do próprio Estado), preci samente por causa da forma (também conflituosa) como o litígio é resolvido. O conflito aceso pode agravar o estado de saúde do paciente, um problema especialmente premente no caso de pacientes que necessitam ainda de cuidados médicos, muitas vezes até devido ao dano sofrido, e que carecem de meios financeiros para os custear.
A estes acrescem os efeitos negativos que um processo litigioso tem nos profissionais de saúde, suas carreiras e inclusive vidas pessoais (Ong; Kachalia, 2013ONG, C.; KACHALIA, A. Safe harbours: liability reform for patients and physicians. Bulletin of the American College of Surgeons, Chicago, v. 98, n. 3, p. 147-150, 2013.). A desmoralização, a desconsidera ção social e a vergonha diante dos seus pares não trazem, seguramente, melhorias na prestação de cuidados médicos.
Outra das suas fragilidades prende-se com os efeitos prejudicais do excesso de prevenção nega tiva (overdeterrence ). Por um lado, o receio de ser processado e de uma eventual condenação, um temor que está a empurrar os médicos para a medicina de fensiva e a deixar desertas algumas especialidades médicas, como obstetrícia, ginecologia, cirurgia (OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.). Por outro lado, o ambiente de temor e de secretismo leva os profissionais de saúde a esconder informação dos pacientes e até mesmo dos seus colegas, quando hoje em dia é um dado cientificamente aceite que vários dos erros pratica dos poderiam ser estudados e prevenidos no futuro. Também impossibilitados pelo clima de silêncio são os pedidos de desculpa aos lesados, que poderiam ser poderosos bálsamos ao conflito existente.
A hodierna imagem do processo judicial como uma espécie de roleta russa tem igualmente sido muito criticada, dado que atribui indemnizações excessivas a quem porventura não as merece (ou porque não sofreu um dano, ou porque este não pode ser culposamente imputado a ninguém) e, em contrapartida, deixa sem nada aqueles que foram verdadeiramente vítimas de negligência. Essa disparidade de avaliações e a incerteza quanto ao desfecho revela-se igualmente prejudicial para os profissionais de saúde, que não sabem ao certo o que o direito espera de si, atentas às discrepâncias, e mesmo antinomias, entre as pronúncias judiciais.
Apesar das críticas ao modelo fundado na culpa, não olvidemos as suas virtualidades (OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.). Por exemplo, a maior flexibilidade na atribuição de indemnizações, atendendo às particularidades concretas de cada caso, o que dificilmente sucede no modelo no-fault , cujas compensações são mais estandardizadas; o facto de cobrir diferentes tipos de danos, incluindo danos não patrimoniais, fre quentes descurados pelo sistema no-fault ; e o efeito de prevenção de futuras condutas lesivas, ausente do sistema no-fault pela sua falta de accountability , porventura a maior debilidade desse modelo e que ainda hoje não foi devidamente colmatada.
Reconhecemos que num mundo em mutação (quer no Direito, quer na Medicina) os benefícios do sistema no-fault parecem mais sedutores (Farrell et al., 2010FARRELL, A-M.; DEVANEY, S.; DAR, A. No-fault compensation schemes for medical injury: an overview. Edinburgh: Scottish Government Social Research, 2010.; OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.), até porque pretendem dar resposta a muitas das críticas apontadas ao modelo de negligência. Trata-se de uma forma mais rápida, menos custosa (Bismark; Paterson, 2006BISMARK, M.; PATERSON, R. No-fault compensation in New Zealand: harmonizing injury compensation, provider accountability, and patient safety. Health Affairs, Bethesda, v. 25, n. 1, p. 278-283, 2006.) e menos conflituosa de resolver o litígio, permitindo ao lesa do ter acesso a cuidados médicos mais rapidamente e abrangendo maior número de lesados. Por outro lado, a circunstância de os profissionais de saúde não estarem tão receosos quanto à possibilidade de serem processados facilita a transparência, a notificação de erros e de incidentes adversos; logo, parece aumentar a possibilidade de aprender com os erros cometidos e, concomitantemente, melhora substancialmente as relações entre pacientes e profissionais de saúde. O facto de a pressão sobre os médicos diminuir - não existe a imposição de encontrar um culpado (Mello et al., 2006MELLO, M. M. et al. 'Health courts' and accountability for patient safety. Milbank Quarterly, Malden, v. 84, n. 3, p. 459-492, 2006.), de pagar elevadíssimas apólices de seguro, de ir a tribunal ou de aparecer na capa dos jornais - também evita o perigo da medicina defensiva.
Contudo, não nos deixemos levar por impulsos entusiastas, pois o modelo de no-fault apresenta igualmente as suas debilidades (Farrell et al., 2010FARRELL, A-M.; DEVANEY, S.; DAR, A. No-fault compensation schemes for medical injury: an overview. Edinburgh: Scottish Government Social Research, 2010. 2010; Maccourt; Barnett, 2009MACCOURT, D.; BERNSTEIN, J. Medical error reduction and tort reform through private, contractually-based quality medicine societies. American Journal of Law and Medicine, Boston, v. 35, n. 4, p. 505-561, 2009.; OECD, 2006OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Policy issues in insurance. Paris: OECD Publishing, 2006.). Por exemplo, o valor das compensações pode ficar além do que seria necessário para cobrir os danos, espe cialmente os de cariz não patrimonial, que muitas vezes são simplesmente excluídos. Mesmo em relação aos danos patrimoniais pode suceder que o montante outorgado não corresponda ao valor necessário para indemnizar o dano, dado que em regra existem limites pré-fixados aos montantes a atribuir. Tampouco se pense que todos os danos são compensados, pois em regra sempre se deli mitam quais os danos a compensar (por exemplo, recordemos o conceito de treatment injury , vigente no modelo da Nova Zelândia, e de avoidable event , este último tão caro aos nórdicos). Outro entrave à compensação é o facto de o lesado ter que continuar a provar o nexo de causalidade (Bush; Chen; Bush, 1975BUSH, J. W.; CHEN, M. M.; BUSH, A. S. No-fault malpractice insurance. The Western Journal of Medicine, Los Angeles, v. 122, n. 3, p. 262-270, 1975.), o que se revela tão difícil quanto no modelo da negligência, podendo fazer soçobrar alguns pedidos.
Também se tem argumentado que em termos de segurança do paciente os ganhos do modelo no-fault não são tão expressivos como os seus defensores querem fazer pensar, dado que os erros podem eventualmente ser mais reportados, mas não são necessariamente mais estudados. Mesmo a própria conclusão no sentido de a percentagem de notificação de incidentes adversos ser mais alta no sistema no-fault carece de suficiente fun damento, dado que vários estudos demonstram que neste aspecto não existe diferença subs tancial face ao modelo fundado na negligência (Schwartz, 2013SCHWARTZ, J. C. A dose of reality for medical malpractice reform. New York University Law Review, New York, v. 88, p. 1225-1300, out., 2013.).
A isto acresce que o desaparecimento da ameaça de litigância poderá aniquilar o incentivo a práticas mais seguras, dado que, em bom rigor, o profissional de saúde nunca é penalizado. É certo que em algu mas comunidades o agente não carece da ameaça de sanção para elevar o seu padrão de conduta, como parece suceder nos países nórdicos e na Nova Zelân dia. Porém, estes são contextos muito particulares (e mesmo aí tem-se contestado a eficácia do modelo no-fault em relação aos incentivos à segurança). Em contrapartida, na maioria dos contextos sociais teme-se que o desaparecimento de uma das ameaças sancionatórias (claro que sempre persistiria a cri minal) possa levar os agentes a relaxar demasiado o seu comportamento.
Por outro lado, corre-se o sério risco de aumento de queixas infundadas, alimentadas pela aparente facilidade do procedimento, um risco tanto mais premente em sociedades particularmente litigantes.
Tampouco se deve dar por adquirida a melhoria nas relações entre profissionais de saúde e pa cientes, dado que a existência de desculpas ou de explicações não é necessariamente um imperativo do sistema no-fault .
A diminuição de custos também pode ser mais aparente do que real. Primeiro porque em algumas comunidades todos os lesados recorrerão ao fundo de socialização do risco, o que fará subir o montante das quantias pagas. Depois, porque na verdade há que manter dois aparelhos de reacção - os tribunais (cuja necessidade se mantém para danos excluídos do modelo no-fault , para recursos, como via de reac ção alternativa e para o processo crime) e os órgãos administrativos - em funcionamento, cada um com os seus custos próprios.
Em termos de direito fundamental de acesso aos tribunais têm-se igualmente suscitado problemas, pois alguns sistemas impõem que o incidente seja necessariamente resolvido por meios administrati vos, sem que se permita aos lesados o uso das vias litigiosas.
Algumas notas finais
Não obstante o carácter sedutor do sistema no -fault - a ausência do espectro da culpa e da acusa ção, a diminuição de confrontação, a possibilidade de indemnizar maior número de pacientes - há que reconhecer que apresenta igualmente falhas graves, nomeadamente a quase total ausência de accoun tability , a recusa da indemnização em relação a vários danos e a potencial degradação do padrão de conduta dos profissionais de saúde.
Contudo, ainda que o modelo no-fault seja de facto considerado superior ao modelo fundado na culpa - o que, como deixámos exposto no capítulo supra , não temos por evidente - certo é que não poderá operar em toda e qualquer ordem jurídica, na medida em que carece de alguns pressupostos específicos de funcionamento. Na verdade, a sua aplicabilidade prática está limitada a contextos muito específicos, que dificilmente existem na maior parte dos países: por um lado, um sistema robusto de segurança social, dado que o modelo de compensação do paciente assume necessariamente um papel subsidiário em relação ao referido sistema, que acaba por arcar com a maior parte dos gastos; por outro lado, uma comunidade pouco litigante, pois se todos os pacientes potencialmente elegíveis apresentarem pedidos de indemnização o sistema sucumbirá; por outro lado ainda, uma comunidade de prestadores de cuidados médicos que seja capaz de manter um padrão de conduta compatível com as boas práticas médicas independentemente da ame aça de sanção civil. Quando este específico contexto não ocorra, como em regra não ocorre, este modelo não pode florescer.
Por conseguinte, o modelo de no-fault não poderá ser transposto para a generalidade das ordens jurídicas, excepto no que respeita a danos muito particulares, como sucede nos estados nor te-americanos de Virgínia e Florida quantos aos danos neurológicos em recém-nascidos e na ordem jurídica francesa em relação aos danos resultantes de infecções nosocomiais. Quando implementa do apenas para restritos leques de danos já nos parece que poderá ser uma solução a considerar. Os danos mais aptos para tal serão aqueles cuja obtenção de indemnização em tribunal se revele particularmente difícil, nomeadamente porque a prova dos requisitos da responsabilidade do pro fissional de saúde seja complexa e, muitas vezes, quase impossível; ou porque os danos podem se revelar mais graves do que a censurabilidade da conduta do agente.
Segundo cremos, o modelo fundado na culpa deve manter-se como mecanismo base para lidar com a responsabilidade médica, ainda que sujeito a um conjunto de reformas destinadas a melhorar a sua performance em relação aos objectivos básicos a que a responsabilidade civil médica se destina: aumentar a segurança do paciente, compensar os lesados dos danos sofridos e prevenir a prática futura do mesmo erro. Reconhecendo embora que no momento actual a responsabilidade médica fundada na culpa se revela incapaz de realizar com sucesso esses propósitos, cremos que se deve apostar no seu aperfeiçoamento em vez da sua substituição.
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- 1Este trabalho foi elaborado com o apoio económico de uma bolsa de estudo concedida pela Universidade de Macau: a Start Up Research Grant.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2016
Histórico
- Recebido
19 Dez 2014 - Revisado
24 Jun 2015 - Aceito
18 Ago 2015