Resumo
Introdução:
A mortalidade materna apresenta grande diferença entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento e espelha a qualidade da assistência prestada à saúde da mulher. Para evidenciar melhor essa assistência, novos métodos de estudo vêm sendo utilizados, entre eles a investigação das morbidades maternas graves - near misses.
Objetivo:
Analisar os fatores de risco para ocorrência de near miss nas diferentes raças/cores das mulheres residentes em três municípios da Região Metropolitana de Curitiba.
Método:
Estudo descritivo.
Resultados:
Na análise multivariada, identificou-se ser as variáveis idade (p=0,0321 com OR 3,08 e IC 95% 1,10-8,65), doenças associadas (p=0,0018 com OR 4,06 e IC 95% 1,61-10,24) e causa de internação (p=<0,0001 com OR 8,75 e IC 95% 3,36-22,75) os fatores de risco para near miss; o OR foi estimado com base no modelo multivariado. Já a variável cor não foi identificada como sendo fator de risco para near miss (p=0,8964) na presença das demais variáveis.
Conclusões:
Evidenciou-se, no estudo, a necessidade de aprofundar a análise em pesquisas sobre ocorrência de near miss e cor da variável idade e outras causas de internação para mulheres brancas, e a paridade/número de gestações e presença de doenças crônicas ou associadas para as mulheres negras, assim como a instituição de outros parâmetros de análise como as transferências e reinternações.
Palavras-chave:
Morbidade Materna Grave; Near Miss
Abstract
Introduction:
Maternal mortality shows big difference between developed and developing countries and reflects the quality of care provided to women's health. To better demonstrate this, new service study methods have been used, including the investigation of serious maternal morbidity - near misses.
Objective:
To analyze the risk factors for the occurrence of near miss in different race/color, women living in three municipalities of the Metropolitan Region of Curitiba.
Method:
A descriptive study.
Results:
In multivariate analysis, we identified the variables age (p=0.0321 with OR 3.08 and CI 95% 1.10 to 8.65), associated diseases (p=0.0018 with OR 4.06 and 95% CI 1.61 to 10.24 ) and cause of hospitalization (p=<0.0001 with OR 8.75 and 95% CI 3.36 to 22.75) as risk factors for near miss; OR estimated based on the multivariate model. The color variable was not identified as a risk factor for near miss (p=0.8964) in the presence of other variables.
Conclusions:
The study showed the need for further analysis in studies on the occurrence of near miss and color of the variable age and other causes of hospitalization for white women and the rate/number of pregnancies and the presence of chronic or associated diseases for black women as well as the imposition of other analysis parameters such as transfers and readmissions.
Keywords:
Severe Maternal Morbidity; Near Miss
Introdução
A mortalidade materna espelha a qualidade da assistência prestada à saúde da mulher; entretanto, a não ocorrência do óbito materno nem sempre indica uma assistência de qualidade. Para melhor evidenciar os fatores associados à qualificação da assistência, novos métodos de estudo vêm sendo utilizados, entre eles a investigação das morbidades maternas severas - near misses.
A necessidade de estudos de near miss se justifica, segundo (Ronsmans e Filippi, 2004RONSMANS, C.; FILIPPI, V. Reviewing severe maternal morbidity: learning from survivors from life-threatening complications. In: WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Beyond the Numbers: reviewing deaths and complications to make pregnancy safer. Geneva: World Health Organization, 2004. p. 103-124.), por ser "a morbidade materna muito mais comum que a mortalidade, este é um melhor indicador da eficácia de programas de maternidade segura". Segundo essas autoras, near misses são mulheres cuja vida foi ameaçada por morbidade grave, mas não morreram.
A definição conceitual dos casos variou muito, encontrando-se desde doenças obstétricas até mulheres que receberam manobras de ressuscitação. (Filippi et al., 2000FILIPPI, V. et al. Women's reports of severe (near-miss) obstetric complication in Benin. Studies in Family Planning, Malden, v. 31, n. 4, p. 309-324, 2000.) afirmam que aproximadamente 40% das gestantes apresentarão algum tipo de morbidade, sendo o alto risco materno e fetal em torno de 15%. Ainda, de 9% a 15% das gestantes apresentarão sérias complicações - estas seriam as near miss.
(Minkauskiene et al., 2004MINKAUSKIENE, M. et al. Systematic review on the incidence and prevalence of severe maternal morbidity. Medicina, Kaunas, v. 40, n. 4, p. 299-309, 2004.), em revisão de literatura nas bases Medline, POPline e SciELO sobre morbidade materna severa, encontraram, em 24 estudos, ocorrências que variaram com frequência de 0,07% a 8,23%, dependendo da região estudada.
(Mantel et al., 1998MANTEL, G. D. et al. Severe acute maternal morbidity: a pilot study of a definition for a near-miss. British Journal of Obstetrics and Gynaecology, Oxford, v. 105, n. 9, p. 985-990, 1998.) citam que uma near miss é descrita como uma paciente com uma disfunção aguda num sistema orgânico que, se não tratada adequadamente, pode resultar em morte materna. Aproximadamente a mesma definição é dada por (Bouvier-Colle, 1999BOUVIER-COLLE, M. H. Maternal intensive care and near-miss mortality in obstetrics. British Journal of Obstetrics and Gynaecology, Oxford, v. 106, n. 11, p. 1234, 1999.), quando afirma que a definição de caso de near miss é a transferência para UTI dependendo de como os serviços de saúde são organizados, o que, talvez, possa não ser comparável entre países ou regiões com diferentes níveis de organização ou estilos de prática clínica. Ainda, ressalta que nem todos os casos de near miss necessitam de UTI e exemplifica: uma hemorragia severa pode ameaçar a vida de uma mulher e ser tratada sem a transferência para UTI.
As mulheres que sobrevivem a complicações severas de gravidez, parto e pós-parto têm muitos aspectos em comum com aquelas que morrem dessas mesmas complicações. Essa semelhança levou ao desenvolvimento do conceito de near miss materno (NMM), cuja definição foi estabelecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (apud Dias et al., 2014DIAS, M. A. B. et al. Incidência do near miss materno no parto e pós-parto hospitalar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, p. S169-S181, 2014. Suplemento 1.) como "uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu a complicação que ocorreu durante a gravidez, parto ou até 42 dias após o fim da gestação".
Quanto às causas, os percentuais alteram-se um pouco entre uma e outra patologia conforme a região, mas evidenciam, principalmente, as patologias obstétricas diretas, assim como na mortalidade materna. (Pattinson et al., 2003PATTINSON, R. C. et al. Can enquiries into severe acute maternal morbidity act as a surrogate for maternal death enquiries? British Journal of Obstetrics and Gynaecology, Oxford, v. 110, n. 10, p. 889-893, 2003.) encontraram, entre as causas de mortes maternas, hipertensão, hemorragia pós-parto, hemorragia anteparto e aborto e, de near misses, infecção puerperal, hipertensão e aborto, além da doença infecciosa como patologia obstétrica indireta.
(Waterstone, Bewley e Wolfe, 2001WATERSTONE, M.; BEWLEY, S.; WOLFE, C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. British Medical Journal, London, v. 322, n. 7294, p. 1089-1094, 2001.) realizaram estudo para analisar os fatores de risco para ocorrência de near miss e encontraram, além de outros: idade acima de 34 anos; mulheres não brancas; exclusão social; doenças pré-existentes, como hemorragia e hipertensão, e procedimentos como indução ao parto e cesárea de emergência; sendo 118 casos para cada morte materna. Concluíram que a morbidade materna severa é mensurável e pode ser uma significativa forma de conseguir melhorias na assistência à saúde da mulher.
Em estudo em uma maternidade de referência regional no Brasil, (Morse et al., 2011MORSE, M. L. et al. Morbidade materna grave e near misses em hospital de referência regional. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 310-22, 2011.) encontraram razões entre 81,4 a 9,4 por 1.000 nascidos vivos, dependendo do critério utilizado. O índice de mortalidade foi de 3,2%, chegando a 23% no critério da OMS. Apenas 40% fizeram mais de seis consultas de pré-natal e 10% não realizaram qualquer consulta. Os marcadores mais encontrados foram a pré-eclâmpsia grave seguida de hemorragia grave, internação em UTI, Síndrome Hemolysis, Elevated Liver enzymes, Low Platelet count (HELLP) e eclâmpsia. O critério da OMS se mostrou mais específico, identificando os casos mais graves, enquanto o de Waterstone foi mais sensível.
Um dos primeiros trabalhos nacionais é de (Viggiano e Viggiano, 2000VIGGIANO, M. G. C.; VIGGIANO, M. B. A necessidade de cuidados intensivos e o termo "near-miss mortality" aplicado à realidade obstétrica brasileira. GO Atual, v. 9, n. 1, p. 29-32, 2000.), que calcularam a taxa de incidência de 8,2/1000 partos transferidos para UTI. Para (Souza, Cecatti e Parpineli, 2005SOUZA, J. P. D.; CECATTI, J. G.; PARPINELLI, M. A. Fatores associados à gravidade da morbidade materna na caracterização do near miss. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 197-203, 2005.), também em hospital terciário, a taxa de ocorrência de transferências foi de 1,4/1000; entre as principais causas, estão desordens hipertensivas (41%), hemorragias (15%) e sepsis (13%), com uma taxa de cesárea de 75,4% e 33,8% de mortes maternas.
Em revisão sistemática de 38 estudos, (Souza et al., 2006SOUZA, J. P. et al. Revisão sistemática sobre morbidade materna near miss. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p 255-264, 2006.) encontraram razão de near miss média de 8,2/1000 partos, com índice de mortalidade materna de 6,3%, e a razão caso:fatalidade de 16:1. Concluíram que a incidência de near miss tende a ser maior nos países em desenvolvimento e quando utilizada a definição de disfunção orgânica.
(Cecatti et al., 2008CECATTI, J. G. et al. Pesquisa sobre morbidade materna severa e near-misses no Brasil: o que aprendemos. Questões de Saúde Reprodutiva, Rio de Janeiro, v. 3, n. 3 p. 47-57, 2008.) justificam que a versatilidade do conceito, a maior frequência de casos disponíveis para estudo e a possibilidade de entrevistar as sobreviventes de complicações graves sustentam a importância do estudo para apoiar os esforços locais de redução da mortalidade materna, o que continua a representar um desafio importante e difícil de ser superado em locais onde seus benefícios seriam mais evidentes.
No estudo em um município, (Moraes, 2011MORAES, A. P. P. Morbidade materna grave em São Luís-Maranhão. 2011. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.) encontrou incidência de 15/1000 partos, dos quais 14,1/1000 se incluíam nos critérios de Waterstone e 3,4/1000 se incluíam nos critério de Mantel, sendo as principais causas de morbidade materna grave a hipertensão na gravidez, mais presente nos casos de menor gravidade (p=0,001), e a hemorragia obstétrica, mais comum nos casos de extrema gravidade (p=0,01). Os fatores de risco foram a idade acima de 35 anos, a hipertensão prévia à gestação, o antecedente de aborto e o baixo número de consultas, concluindo que, em população com indicadores sociais precários, as causas obstétricas diretas foram as principais causas da morbidade materna grave, além de variáveis que apresentavam relação direta com o risco gestacional e a atenção à saúde.
(Magalhães e Bustamante-Teixeira, 2012MAGALHÃES, M. C.; BUSTAMANTE-TEIXEIRA, M.T. Morbidade materna grave: uso do SIH-SUS. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 472-478, 2012.), em estudo de base hospitalar, encontraram prevalência de morbidade materna de 37,8/1000 mulheres, e a proporção de mortalidade foi de 12/100.000 mulheres. O tempo de internação maior que quatro dias foi 13 vezes mais alto entre as mulheres que apresentaram alguma morbidade. Após análise ajustada, os fatores preditores de morbidade materna grave foram tempo de internação, número de internações e filhos natimortos, e os procedimentos/condições mais frequentes foram a transfusão de hemoderivados, "permanência a maior" e pré-eclâmpsia grave/eclâmpsia.
Ainda de base hospitalar, foi encontrado o estudo de (Haddad, 2012HADDAD, S. M. T. Rede nacional de vigilância de morbidade materna grave: explorando aspectos metodológicos da abordagem do near miss materno. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012.), que, com a criação da Rede Nacional de Vigilância de Morbidade Materna Grave no Brasil, utilizando os novos critérios de near miss da OMS, concluiu que os coeficientes de correlação intraclasse (ICC) para as variáveis de desfecho da Rede são considerados pequenos, o que indica adequada heterogeneidade amostral. O uso dos critérios de near miss da OMS para identificação de casos de morbidade materna grave foi validado. O índice de gravidade materna, Maternal Severity Index (MSI), pode ser utilizado como ferramenta para predição de mortalidade e avaliação de desempenho e adequação de cuidado em instituições que prestem atendimento a mulheres com condições potencialmente ameaçadoras à vida materna (CPAV).
(Puccia, 2012PUCCIA, M. I. R. Violência por parceiro íntimo e morbidade materna grave. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2012.) verificou que tanto as gestantes expostas à violência por parceiro íntimo (VPI) como as mulheres que desenvolveram CPAV apresentam fatores associados às condições sociodemográficas e reprodutivas desfavoráveis; uma dessas condições pode ser a idade, sendo que (Oliveira Júnior, 2013OLIVEIRA JÚNIOR, F. C. Morbidade materna grave e near miss nos extremos da vida reprodutiva. 2013. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013.) encontrou prevalências de near miss e morte materna maiores entre as mulheres com 35 anos ou mais, mas também foram muito elevados no extremo inferior da idade, ou seja, entre as adolescentes de 10 a 14 anos.
Mais recentemente, (Dias et al., 2014DIAS, M. A. B. et al. Incidência do near miss materno no parto e pós-parto hospitalar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, p. S169-S181, 2014. Suplemento 1., p. S172), também em artigo de base hospitalar, citam que "não foram observadas diferenças significativas segundo a cor de pele, situação conjugal e grau de escolaridade, embora o near miss materno tenha sido muito menor em mulheres com ensino superior, quando comparadas às demais faixas de escolaridade."
(Oliveira e Costa, 2015OLIVEIRA, L. C.; COSTA, A. A. Near miss materno em unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, São Paulo, v. 27, n. 3, p. 220-227, 2015) referem ter encontrado, entre 209 casos de near miss, 57,3% para pardas e 7,1% para negras; entretanto, o achado não foi correlacionado às demais variáveis do estudo. Ainda necessitamos, portanto, analisar a interseccionalidade entre as variáveis em todos os estudos.
A atenção às mulheres com risco de desenvolver morbidade materna severa também pode influenciar diretamente na prevalência dos óbitos fetais e neonatais. (Oliveira e Costa, 2013OLIVEIRA, L. C.; COSTA, A. A. R. Óbitos fetais e neonatais entre casos de near miss materno. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 59, n. 5, p. 487-494, 2013.) realizaram estudo analisando prontuários de pacientes admitidas em UTI e encontraram elevada ocorrência de óbitos fetais e neonatais entre as pacientes com near miss. Entre essas mulheres, há uma sobreposição de fatores que contribuem para esse desfecho, entre eles as que apresentaram pré-eclâmpsia grave, descolamento prematuro da placenta (DPP), endometrite, parto prematuro e critérios laboratoriais de near miss materno.
Segundo estudo de (Martins e Tanaka, 2000MARTINS, A. L.; TANAKA, A. C. d'A. Mulheres negras e mortalidade materna no estado do Paraná. Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 27-38, 2000., p. 27), as mulheres negras morrem mais, evidenciando que "o risco de morte foi 7,4 vezes maior nas pretas e 5 vezes nas amarelas, em 1993, e de 4,4 vezes maior entre as pretas e 3,4 vezes entre as amarelas, em 1997."
Dados semelhantes foram encontrados por (Batista, 2002BATISTA, L. E. Mulheres e homens negros: saúde, doença e morte. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Araraquara, 2002.): a proporção do coeficiente de morte materna foi de 5,64 para as mulheres pretas em relação às brancas, com 37,73 e 212,80/100 mil nascidos vivos respectivamente. Posteriormente, (Chor e Lima, 2005CHOR, D.; LIMA, C. R. A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1586-1594, 2005.) encontraram uma taxa de mortalidade materna cerca de sete vezes maior para as pretas (275/100 mil nascidos vivos) do que para as mulheres brancas (43/100 mil nascidos vivos).
(Saftlas et al., 2000SAFTLAS, A. F.; KOONIN, L. M.; ATRASH, H. K. Racial disparity in pregnancy-related mortality associated with livebirth: can established risk factors explain it? American Journal of Epidemiology, Oxford, v. 152, n. 5, p. 413-419, 2000.), em um estudo de caso-controle aninhado para determinar se o risco quatro vezes maior de mortalidade materna entre as negras comparadas com brancas poderia ser explicado por diferenças raciais, socioeconômicos e fatores reprodutivos; encontraram que a maioria da disparidade racial ocorreu entre mulheres com baixo risco de morte materna e, em contraste, não encontraram disparidade racial nas de alto risco, concluindo ser necessário desenvolver estratégias para reduzir a morte materna entre todas as mulheres negras, independentemente se de baixo ou alto risco.
As doenças racial-étnicas se encontram no interior da compreensão da interpenetração das variáveis classe, sexo/gênero, raça/etnia. Na mortalidade materna, o risco das negras é maior. É necessário saber se as mulheres negras têm morbidades maternas maiores e, em caso positivo, se há equidade no acesso ao tratamento. Esse é o propósito deste estudo: analisar os fatores de risco para ocorrência de near miss nas diferentes raças/cor.
Objetivo
Analisar se a cor é fator de risco determinante de casos de near miss das mulheres residentes em três municípios da região metropolitana de Curitiba, ocorridos de 1 de março de 2005 a 28 de fevereiro de 2006.
Método
Estudo de caso-controle. A população em análise é composta por todas as mulheres no ciclo gravídico puerperal residentes nos municípios de Araucária, Contenda e Lapa, no Paraná, localizados na região metropolitana de Curitiba, que foram internadas nesses municípios e nos hospitais de referência para pacientes com gestação de alto risco - Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC) e Maternidade do Hospital do Trabalhador (HT) -; hospitais-escola públicos; Hospital Universitário Evangélico de Curitiba (HUEC); e hospital escola filantrópico.
As near misses foram definidas como as mulheres no ciclo gravídico-puerperal que:
Tiveram qualquer falha aguda ou disfunção severa de um sistema orgânico como: descompensação cardíaca, disfunção respiratória, imunológica, renal ou cerebral.
Precisaram de hospitalização por mais de quatro dias, exceto internação "social" e/ou de internações repetidas.
Foram admitidas em unidades de tratamento intensivo, receberam transfusão sanguínea, tiveram cesáreas ou histerectomia de emergência, complicações anestésicas e/ou receberam manobras de ressuscitação.
Apresentaram complicações por alguma das seguintes patologias: hemorragias; desordens hipertensivas (pré-eclâmpsia e eclampsia); infecção puerperal e/ou aborto.
Foram classificadas como casos as mulheres no ciclo grávido puerperal que se enquadravam na definição de near miss e, como controles, as mulheres no ciclo grávido-puerperal que internaram dentro do período especificado do estudo nos hospitais dos municípios de abrangência da pesquisa. Foram sorteadas quatro parturientes internadas para cada caso identificado na semana, em um pool dos três municípios, para homogeneizar a casuística e evitar overmatching.
No sorteio dos controles, observou-se, inicialmente, se a sorteada não era caso de outro mês ou semana. Foram excluídas do sorteio quatro mulheres, sendo uma de cor amarela e três indígenas, por essas populações representarem apenas 0,10 e 0,37% respectivamente, segundo o Censo (IBGE, 2000IBGE − INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000: características da população e dos domicílios: resultados do universo. Brasil: IBGE, 2000. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/ >. Acesso em: 22 jul. 2016.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/... ), nessa região; elas representaram apenas 1,47% das mulheres no grupo controle, não tendo ocorrido nenhum caso entre elas. Foram, também, excluídas do sorteio dos controles três mulheres que se recusaram a participar da pesquisa, assim como outras três que não residiam nos municípios investigados.
Com base no pré-teste realizado, para a definição da amostra foram considerados:
A distribuição de nascidos vivos por cor - pardos e pretos -, que, segundo o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC-2004/2ª Regional de Saúde), variou de 2,59% em Araucária; 4,60% em Contenda; e 6,88% na Lapa; portanto, adotou-se o parâmetro de que 7% das mulheres negras se encontram no grupo de "não doentes" para garantir que todos estivessem na amostra.
O parâmetro de que 19,41% de mulheres negras estariam no grupo de "doentes", pois esse era o percentual de mulheres negras desses municípios segundo Censo (IBGE, 2000IBGE − INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000: características da população e dos domicílios: resultados do universo. Brasil: IBGE, 2000. Disponível em: <Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/ >. Acesso em: 22 jul. 2016.
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/... ).
Dessa forma, utilizando o programa EpiInfo 6.04, definiu-se como necessários quatro controles para cada caso para um nível de significância de 5% com poder do estudo de 80% e uma odds ratio (OR) de 3,20; isso é, o tamanho da amostra foi de 296 controles e 74 casos.
A coleta de dados consistiu em levantamento dos prontuários de internação nos hospitais e entrevista. Para identificar os casos e assegurar que todos tivessem a mesma probabilidade de entrar no estudo, foi realizado acompanhamento semanal do livro de registros de internação de cada hospital, buscando, por meio de listagem, transferências de pacientes e acompanhamento mensal das internações nos hospitais de referência, procurando internações nos municípios citados. Os dados coletados foram digitados semanal e mensalmente no Programa Excel, facilitando a identificação e o acompanhamento dos casos.
Todas as mulheres que internaram nos hospitais dos três municípios foram entrevistadas por pessoas treinadas, e, ao ser identificado um caso, realizou-se a entrevista, seguida do sorteio de quatro gestantes, parturientes ou puérperas como controle.
Neste estudo, trabalhou-se com cor, variável independente; as principais variáveis que evidenciaram a condição socioeconômica e as que determinaram melhor acesso à assistência de saúde, como idade; renda; ocupação; escolaridade; estado civil ou status marital; número de gestações; realização de pré-natal; causa básica das internações e/ou transferências; evolução; reinternações; entre outras.
Os dados coletados foram analisados no programa Statistica. Os resultados obtidos no estudo foram expressos por frequências e percentuais e são apresentados em quadros e tabelas. A associação entre variáveis dicotômicas e a variável near miss foi avaliada pelo teste exato de Fisher. Foram calculados os valores de OR e intervalos correspondentes de 95% de confiança. A influência da variável cor em relação à variável near miss foi investigada de forma multivariada, ajustando-se um modelo de Regressão Logística e usando-se o teste de Wald para a tomada de decisão. Foram selecionadas para o modelo as variáveis cujo valor de p foi menor do que 0,20 na análise univariada. Valores de p<0,05 indicaram significância estatística.
As entrevistadas que aceitaram participar assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa dos respectivos hospitais, pela Secretaria de Estado da Saúde do Paraná e pelo Comitê de Ética da FSP/USP. As Secretarias Municipais de Saúde de Araucária, Contenda e Lapa, assim como o hospital de Araucária, privado, assinaram Declaração de Concordância em participar da pesquisa.
Resultados
Ocorreram, no período estudado, 2774 nascimentos nos municípios da pesquisa e foram identificados 68 casos de near miss, entre eles um óbito materno direto, um indireto tardio e um terceiro, direto tardio, sendo a relação de um óbito para cada 23 casos de near miss (ou 4,41%). Calculando-se a razão de mortalidade materna, esta ficou em 36,05/100 mil nascidos vivos, mas atingiu 108,15/100 mil nascidos vivos, considerando os dois óbitos tardios.
Os casos identificados representam taxa de 2,45% das gestantes ou 24,5/1000 partos. Entre estes, 14 foram considerados com falha orgânica (0,55% da população de gestantes ou 5,5/1000 partos).
Na análise univariada, a cor apresentou p=0,416, com OR 0,80 (IC 95% 0,47 - 1,37) e, na multivariada, p=0,8964, o que mostrou a cor não ser fator de risco para near miss, podendo-se atribuir esse resultado à homogeneidade da amostra, às características da população e aos serviços estudados, exclusivamente atendidos pelo SUS. Entretanto:
Houve significância estatística na interação de cor com o número de gestações acima de três, p=0,0240, podendo-se concluir que a paridade é uma variável modificadora na relação entre cor e near miss. As mulheres negras que tiveram p=0,003 na análise univariada para três ou mais gestações - 36, sendo 23 nos controles (17,56%) e 13 nos casos (44,83%), e p=0,0095 na multivariada, com OR 3,67 e IC 95% 1,37 - 9,80 - também apresentaram p=0,0029 com OR 4,06 e IC 95% 1,61 - 10,24 para as doenças associadas.
A idade, p=0,0321 com OR 3,08 e IC 95% 1,10 - 8,65, e as outras causas de internação, p=<0,0001 com OR 8,75 e IC 95% 3,36 - 22,75, foram mais significativas para as mulheres brancas.
Excluindo-se a variável doença crônica ou associada e intercorrências em internações, assim como outras causas de internação que não gestação de termo (GT) e trabalho de parto (TP), por estarem entre os critérios para definição dos casos na análise de cor, idade e número de gestações, encontrou-se p=0,354 para mulheres negras, 0,102 idade acima de 30 anos, e p=0,041 para paridade acima de três gestações.
A maioria recebe até dois salários - 216 mulheres (63,53%) -, não havendo diferença para casos e controles; as mulheres negras apresentam a maior frequência, sendo 109 (68,12%), e as brancas 107 (59,44%). As negras que recebem até um salário são 143 (89,37%), e as brancas, 146 (81,11%); também entre os casos ocorreu a diferença de percentual: 27 (93,10%) são negras e 34 (87,18%) são brancas.
Apresenta-se, na Tabela 1, a distribuição dos casos e controles por cor, segundo as variáveis analisadas e respectivas classificações
Distribuição das variáveis analisadas e respectivas classificações, valores de Z e p, OR e intervalos de confiança, em cidades selecionadas do Paraná, entre 2005 e 2006
Na análise multivariada, conclui-se que o número de gestações acima de três é fator de risco para near miss, especialmente para as mulheres até 30 anos de idade, com p=0,0095 e OR 3,67 (IC 95% 1,37 - 9,80), e as doenças associadas com p=0,0029.Na Tabela 2, observa-se a frequência de controles e casos e os resultados de p, OR e intervalos de confiança na presença de todas as variáveis selecionadas. A idade e as outras causas de internação foram mais significativas para as mulheres brancas.
Outros resultados:
A frequência de doença crônica e intercorrências foi maior para as mulheres negras tanto nos controles como nos casos e, consequentemente, essas apresentaram maior frequência de patologias na gravidez, totalizando, nos controles, 42 (32,06%) e as brancas 37 (26,24%), e, nos casos, 15 (51,72%), e as brancas 18 (46,15%).
Com relação à assistência, no pré-natal, a segunda maior frequência foi o número insuficiente de consultas dos casos: 13 mulheres (19,12%), sendo seis brancas (15,38%) e sete negras (24,14%). Também se observou maior percentual na realização de consultas acima do normal para as mulheres negras: seis (20,69%), enquanto, para brancas, o número foi de cinco (12,82%) consultas.
A reinternação ocorreu entre 41 casos, entre os quais 14 (48,28%) negras foram reinternadas pelo menos uma vez, e sete (24,14%) foram reinternadas duas ou mais; entre as mulheres brancas, foram 11 (28,20%) e nove (23,08%), reinternações, respectivamente.
Com relação às causas por cor, a principal causa para as mulheres brancas foi a doença hipertensiva, com 11 casos (28,20%), e, para as mulheres negras, a hemorragia, também com 11 casos (37,93%).
Considerando que a variável doença crônica ou associada e intercorrências em internações, assim como outras causas de internação que não GT e TP, estão entre os critérios para definição dos casos de near miss, analisaram-se conjuntamente a cor, idade e número de gestações pelo Programa Stata, encontrando-se p=0,354 para mulheres negras, p=0,102 para idade acima de 30 anos e p=0,041 para paridade acima de três gestações.
Na análise final por esse programa, conclui-se que o número de gestações acima de três é fator de risco para near miss, especialmente para as mulheres até 30 anos de idade, como se observa no Tabela 3.
Distribuição dos valores de OR, Z, p e intervalo de confiança, para mulheres até 30 anos de idade e acima de 3 gestações, em cidades selecionadas do Paraná, entre 2005 e 2006
Discussão
Com relação à distribuição por município e cor, 180 (52,94%) dos casos e controles foram mulheres brancas, predominantemente de Contenda 10 (62,50%) e da Lapa 72 (66,06%). Esse resultado está próximo do encontrado por (Leal et al., 2005LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N.; CUNHA, C. B. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p.100-107, 2005.), no qual foi utilizada autoclassificação e alternativas fechadas: 51,9% brancas, 29% pardas e 19% pretas.
Neste estudo, a cor foi classificada segundo o proposto pelo IBGE, por autoclassificação, e, se discordante, por classificação corrigida pela entrevistadora, não sendo encontrada diferença significativa entre ambas. (Chor e Lima, 2005CHOR, D.; LIMA, C. R. A. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1586-1594, 2005.) referem que as categorias utilizadas pelo IBGE correspondem à maior parte dos termos utilizados pela população em perguntas abertas e é possível que a ascensão do movimento social negro e o debate sobre políticas de promoção da igualdade racial no Brasil contribuam cada vez mais para diminuir "tendências branqueadoras" de classificação étnico/racial.
Ainda, acreditam que não parece razoável deixar o tema inexplorado em função das limitações de estratégia (autoclassificação versus classificação por entrevistador) ou da operacionalização do constructo, e que as desigualdades étnico-raciais em saúde passarão a ocupar um papel mais expressivo na agenda de pesquisas epidemiológicas no país a fim de preencherem importante lacuna no conhecimento das condições de saúde da população.
As mulheres brancas no estudo foram 141 (51,84%) de controles e 39 (57,35%) nos casos; já as negras, 131 (48,16%) e 29 (42,65%), respectivamente, destacando-se as mulheres pretas, que foram 0,73% nos controles e 5,88% nos casos; o esperado, então, seria o mesmo percentual de nascidos vivos.
Considerando que 47,06% das mulheres que internaram eram negras, pois estas têm no SUS sua principal, senão única, forma de acesso à assistência de saúde, esperava-se um percentual de nascidos vivos negros maior, evidenciando que, apesar do baixo percentual sem identificação, a maioria dos nascidos vivos foi classificado como branco, diferentemente de suas mães. Essa diferença foi muito grande, se considerado o fato de que 47,06% das gestantes, parturientes e puérperas foram classificadas como negras e apenas 4,79% dos nascidos vivos também receberam essa classificação.
O sub-registro do número de crianças nascidas vivas e a dificuldade de saber se uma criança ao nascer é branca, parda ou preta podem ser interpretadas como um problema no cálculo da mortalidade materna e infantil, e (Batista, 2002BATISTA, L. E. Mulheres e homens negros: saúde, doença e morte. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Araraquara, 2002.) afirma que, em 1999, 30% das declarações não tinham a cor do feto; em 2000, o percentual foi de 26%.
Analisando a consistência de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade e Nascidos Vivos (SIM e SINASC) por cor, (Cardoso et al., 2005CARDOSO, A. M.; SANTOS, R. V.; COIMBRA JR, C. E. A. Mortalidade infantil segundo raça/cor no Brasil: o que dizem os sistemas nacionais de informação? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, p. 1602-1608, 2005.) citam que os óbitos infantis com raça/cor não informada eram 38,5% em 1999 e passaram para 25,8% em 2002, correspondendo a uma redução de 43%; para nascidos vivos com cor não informada no período, caiu de 28,3% em 1999 para 11,8% em 2002, uma redução de 58,3%.
Comparando-se as taxas de mortalidade infantil obtidas no estudo com as taxas estimadas por métodos indiretos, encontrou-se, entre outros, que a mortalidade infantil das crianças pretas superou em 30% e 80%, respectivamente, a mortalidade infantil das brancas, e em 40% e 80% a das pardas, concluindo que se espera a melhoria dos registros permitir um aprofundamento da discussão sobre desigualdades em saúde segundo raça, cor e etnia no país.
Essas considerações são corroboradas por (Lopes, 2005LOPES, F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1595-1601, 2005.), referindo que a ausência de relevância estatística na distribuição e comportamento das variáveis por raça/cor não isenta o pesquisador da responsabilidade de reiterar tanto a natureza perversa do racismo como sua capacidade e aptidão em criar e/ou perpetuar diferenciais nas condições gerais de vida nos grupos e intergrupos. É de sua responsabilidade indicar brechas a serem exploradas por outros estudos que adotem abordagens qualitativas ou quanti-qualitativas.
Com essas considerações, apesar de que, neste estudo, na análise univariada, foi calculada a OR de cor e ocorrência de near miss obtendo-se 0,80 (IC 95% 0,47-1,37), p=0,416 não significativo estatisticamente, foram feitas todas as análises com recorte racial étnico. Devido ao pequeno número de casos entre as pretas, como muitas das variáveis teriam categorias zeradas, optou-se por analisar o conjunto mulheres negras.
Pode-se atribuir o valor de p e OR encontrados à característica da população e aos serviços estudados (exclusivamente hospitais que atendem pelo SUS), além de ao tamanho final da amostra (340 mulheres).
Na análise univariada, a idade, até 30 anos e acima de 30 anos, foi a variável que teve o p=0,012 estatisticamente significativo, com OR 2,10 (IC 95% 1,18 - 3,75). Foram 260 mulheres até 30 anos de idade e 80 acima de 30 anos, entre estas 56 nos controles (20,59%) e 24 nos casos (35,29%). O valor de p foi significativo (p=0,038), também, para as mulheres brancas com idade acima de 30 anos: foram 45 mulheres (25%), entre as quais 30 (21,28%) nos controles e 15 (38,46%) nos casos.
Encontrou-se, entre os casos, desde mulher com 16 anos, parda, estudante, com infecção do trato urinário (ITU) até com 41 anos, parda, do lar, com Doença Hipertensiva Específica da Gestação (DHEG). A maioria dos controles 85 (31,25%) está na faixa de 20 a 24 anos, enquanto a ocorrência de casos se deu principalmente na faixa de 25 a 29 anos (29,41%), sendo 10 brancas (25,64%) e 10 negras (34,48%); destaca-se, ainda, que na faixa até 19 anos, entre os casos, cinco (12,82%) são brancas e seis (20,69%) são negras.
Ressalta-se que, a partir de 25 anos, estão 125 mulheres (45,96%) nos controles e 44 (64,70%) nos casos, sendo 25 brancas (64,10%) e 19 negras (65,52%), evidenciando, assim, o fator de risco "idade avançada" para a ocorrência de near miss. O Center for Disease Control and Prevention (CDC, 2003CDC - CENTER FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Pregnancy: related mortality surveillance: United States, 1991-1999. Morbidity and Mortality Weekly Report, Atlanta, v. 52, n. SS-2, 2003.) cita que a taxa de mortalidade materna é maior para mulheres negras em relação às brancas em todas as idades e aumenta substancialmente com o aumento da idade, ficando mais evidente para a faixa acima de 39 anos.
A baixa escolaridade foi característica da população estudada: 142 mulheres (41,76%) estudaram de cinco a oito anos, ou seja, apenas o ensino fundamental. Entre estas, 113 (41,54%) eram controles e 29 (42,65%) casos. O valor de p encontrado foi 0,400, OR 1,27 (IC 95% 0,72 - 2,24). Foram 215 casos (63,23%) com até oito anos de estudo, entre elas 169 (78,6%) controles e 46 (21,4%) casos.
Acima de oito anos de estudo, encontraram-se 125 mulheres: 103 (82,4%) entre os controles e 22 casos (17,6%), o que evidencia a baixa escolaridade ser outro fator de risco para ocorrência da morbidade materna severa. No estudo de (Almeida, 2002ALMEIDA, N. M. G. S. Mortalidade materna em Fortaleza, "Ceará, 1996 a 1999" estudo dos fatores de risco. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.) sobre mortalidade materna, também as mulheres mais escolarizadas encontravam-se no grupo controle.
Destacam-se duas mulheres com dois anos de escolaridade - a menor -, uma com três e 14 com quatro anos de escolaridade, totalizando os 17 (25%) casos. Nos controles, até quatro anos de estudo representou 20,58%. O valor de p para as mulheres brancas foi 0,140 e 0,095 para as mulheres negras na faixa de escolaridade de cinco a oito anos. Nessa faixa, os casos de mulheres brancas foram 25,97% e das negras, 13,85%.
(Leal et al., 2006LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N; CUNHA, C. B. Desigualdades sociodemográficas e suas consequências sobre o peso do recém-nascido. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. 3, p. 466-473, 2006.) também encontraram associação entre a cor da pele preta e peso ao nascer baixo somente no grupo de mais baixa instrução, sugerindo algumas reflexões como a reafirmação da raça como expressão de condição de saúde subordinada às condições sociais da população. Destaca a força de sua presença, capaz de permanecer como variável explicativa mesmo dentro de um grupo já estratificado pela escolaridade e que pode estar expressando os efeitos da discriminação social vivenciada pelas mulheres de cor de pele preta e baixa escolaridade sobre o produto de sua concepção.
Com relação ao estado marital, considerando-se com companheiro todas as casadas, em união consensual ou com companheiro fixo, estas foram 303, perfazendo 89,12%. Ocorreram cinco casos em solteiras, que correspondem a 7,35%. O valor de p para estado marital, considerando-se casadas e solteiras, é de p=0,301, OR 0,60 (IC 95% 0,22 - 1,59).
Sobre a distribuição segundo a renda familiar em salários mínimos, destaca-se, entre os casos, que 17 (25%) recebem apenas até um salário mínimo. Até dois salários, encontra-se a maioria, com 216 mulheres (63,53%), não havendo diferença para casos e controles; as mulheres negras apresentam a maior predominância, sendo 109 (68,12%), e as brancas 107 (59,44%). O valor de p para renda em salários mínimos não foi significativo, p=0,955 com OR 0,98 (IC 95% 0,57 - 1,71).
Com relação ao número de pessoas residentes no domicílio, em 221 (65,00%) residem até quatro pessoas, o que equivale a p=0,955 e OR 1,02 (IC 95% 0,58 - 1,77). A análise da renda per capta é mais significativa que apenas renda familiar ou número de pessoas na família, pois é diferente um salário mínimo para uma pessoa e o mesmo para a manutenção de uma família de 4-6 pessoas.
Nesse sentido, calculando-se a renda por residente no domicílio, foi encontrado que a maioria tem renda até um salário mínimo, totalizando 289 mulheres do estudo (85%), das quais 228 controles (83,82%) e 61 casos (89,71%). O valor de p (0,229) foi alterado, mas não significativamente, com OR 0,59 (IC 95% 0,26 - 1,39).
Identificou-se diferença nos percentuais entre mulheres negras e brancas, sendo 143 (89,37%) as negras que recebem até um salário, e as brancas, 146 (81,11%); entre os casos, a diferença de percentual foi 93,10% (27 negras) e 87,18% (34 brancas).
No estudo de (Filippi et al., 2000FILIPPI, V. et al. Women's reports of severe (near-miss) obstetric complication in Benin. Studies in Family Planning, Malden, v. 31, n. 4, p. 309-324, 2000.), as mulheres saudáveis pertenciam a grupos socioeconômicos maiores que as mulheres que apresentaram morbidade materna severa. Embora 46% dos companheiros de mulheres saudáveis fossem profissionais "white-collar" e somente 3% fazendeiros (lavradores), o número correspondente de mulheres com morbidade foi 25% e 18%, respectivamente.
A ocupação da maioria é do lar: 203 mulheres (59,71%), sendo 166 (61,03%) entre os controles, com o valor de p=0,320 e OR 0,76 (IC 95% 0,45 - 1,30). Para mulheres acima de 30 anos, o p encontrado foi de p=0,086.
Entre os casos, 37 (54,41%) são do lar, sendo 17 negras (58,62%) e 20 brancas (51,28%). Entre as de serviços e comércio - a segunda maior frequência, correspondendo a 13 (19,12%) -, estão quatro domésticas ou diaristas, seguida de 10 lavradoras (14,71%). Destaca-se que este percentual foi bem mais elevado do que para os controles, com 25 lavradoras (9,19%).
O número de gestações foi uma das variáveis com valor de p mais significativo na análise univariada, com p=0,007 e OR 2,32 (IC 95% 1,26 - 4,25) para até três gestações, sendo 275 mulheres (80,88%), entre as quais 228 (83,82%) controles e 47 (69,129%) casos. Acima de três gestações (maior risco), foram 65 mulheres (19,12%) - 44 (19,18%) nos controles e 21 (30,88%) nos casos.
Isso justifica o p encontrado, com número expressivo de mulheres com três ou mais gestações 125 (36,76%), igualando-se ao número de primigestas e maior que o de secundigestas, sendo, nos casos, equivalente a 34 mulheres (50,00%).
Destaca-se que as mulheres negras tiveram p=0,003 para acima de três gestações: foram 36 mulheres, sendo 23 nos controles (17,56%) e 13 nos casos (44,83%). Também apresentaram o maior percentual de três ou mais gestações nos controles, sendo 63 negras (39,37%), comparado a 62 brancas (34,44%).
Entre os casos com três ou mais gestações, encontram-se 19 brancas (48,72%) e 15 negras (51,72%). A gestação acima de três também foi estatisticamente significativa (p=0,022) para todas as mulheres até 30 anos de idade: 31 mulheres (11,9%), o que evidencia o fator de risco multiparidade.
(Leal et al., 2005LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N.; CUNHA, C. B. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p.100-107, 2005.) encontraram uma maior proporção de gestações em idades mais avançadas nas mulheres brancas em contraposição à maior prevalência, na adolescência, nas negras, e comentam que o prejuízo da gravidez precoce não se restringe aos efeitos adversos sobre o recém-nascido, mas se estende a outras esferas da vida da mãe, tais como a evasão escolar e pior qualificação profissional, levando à baixa colocação no mercado de trabalho.
Nas consultas de pré-natal, chamam atenção os casos de near miss. Assim como nos controles, tiveram o maior percentual (61,76%) com número de consultas suficientes em relação à idade gestacional, destacando-se, entre elas, 27 (69,23%) brancas e 15 (51,72%) negras, o menor percentual. A segunda maior frequência foi o número insuficiente de consultas: 13 mulheres (19,12%), sendo seis brancas (15,38%) e sete negras (24,14%).
Sabidamente, a não realização de pré-natal constitui risco obstétrico; por outro lado, a realização do número de consultas acima do normal pode também constituir risco por outros fatores de risco, como patologias ou doenças pré-existentes: foram 11 mulheres (16,18%), sendo cinco brancas (12,82%) e, destacando-se novamente, seis negras (20,69%).
O número de consultas pré-natais apresentou valor de p=1,000 e OR 1,00 (IC 95% 0,55 - 1,83), correspondendo a 90 mulheres (26,47%), que fizeram até cinco consultas, e 250 (73,53%), acima de seis consultas.
Quanto às causas de internação, o valor de p=<0,001 foi um dos mais significativos, com OR 7,66 (IC 95% 4,13 - 14,21) na análise univariada. Como era esperada, a porcentagem de mulheres que foram internadas no grupo casos por qualquer outra causa que não GT e TP, o que é esperado para uma população de gestantes e parturientes, foi mais que o dobro do que no grupo controles. Foram 81 mulheres (29,78%) nos controles e 52 (76,471%) nos casos, totalizando 133 (39,12%) da população do estudo.
Internaram para parir 207 mulheres (60,88%), sendo 191 nos controles (70,22%) e apenas 16 (23,53%) nos casos. A segunda causa de internação - presença de patologia na gravidez - justifica o valor de p encontrado: foram 112 (32,94%), com o diferencial de 79 (29,04%) para os controles e 33 (48,53%) para os casos.
As mulheres negras apresentaram maior frequência de patologia na gravidez, totalizando 42 (32,06%) nos controles, enquanto as brancas, 37 (26,24%). Nos casos, foram 15 (51,72%) negras e 18 (46,15%) brancas. Esse resultado está próximo do encontrado por (Almeida, 2002ALMEIDA, N. M. G. S. Mortalidade materna em Fortaleza, "Ceará, 1996 a 1999" estudo dos fatores de risco. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.), no qual a variável internação de alto risco foi o principal fator de risco, as patologias na gravidez representaram 29,04% nos controles e 48,53% nos casos.
Outra internação característica dos casos foi internação por infecção puerperal e por outras intercorrências pós-parto com 14,7%, sendo a terceira causa de internação, o que evidencia a qualidade da assistência ao parto.
Dentre as mulheres que internaram com GT e TP, apenas 124 (36,47%) tiveram partos normais. Outras 13 mulheres (3,82%) tiveram parto normal com alguma intercorrência séria, que acabou tornando-se caso e fazendo parte de 19,12% desses, colocando em evidência, mais uma vez, a atenção ao parto.
Outras características dos casos encontrados: 14 mulheres (20,59%) tiveram alguma intercorrência no tratamento clínico e cinco (7,35%), uma segunda curetagem uterina pós-aborto ou curetagem pós-parto, a maioria por hemorragia. A frequência mais elevada de cesárea justificada ocorreu entre os casos, 18 (26,47%), outro conhecido fator de risco para a mortalidade materna, e certamente para morbidade, como aqui encontrado.
Independente da evolução da internação, especificamente sobre os casos, a taxa de cesárea encontrada foi alta, sendo 24 partos normais (35,29%) e 37 partos cirúrgicos (54,41%). Ocorreram, ainda, cinco casos de aborto (7,35%) e um parto fórceps, sendo que uma das mulheres não pariu até o término da coleta de dados. Destaca-se que as mulheres brancas tiveram 24 partos cirúrgicos (61,54%) e as negras 13 (44,83%).
(Murphy e Charlett, 2002MURPHY, D. J.; CHARLETT, P. Cohort study of near-miss maternal mortality and subsequent reproductive outcome. The European Journal of Obstetrics & Gynecology and Reproductive Biology, Philadelphia, v. 102, n. 2, p. 173-178, 2002.) também encontraram alta taxa de cesárea em casos de near miss (58%) e acreditam que o aumento dessa em muitos serviços obstétricos inevitavelmente conduz ao aumento na dificuldade operativa desses procedimentos e em complicações que podem resultar em mais morbidade severa; afirmam que há, frequentemente, uma concepção errônea sobre a cesárea ser um procedimento simples, mas o potencial para maior hemorragia precisa ser considerado pelos profissionais de saúde.
A presença de doença crônica ou associada e intercorrências anteriores à internação foram estatisticamente significantes em todos os cálculos; na análise univariada p=<0,001, com OR 5,61 (IC 05% 3,18 - 9,91), só deixou de ser significante para mulheres com mais de 30 anos, presentes em 32,65% das mulheres, das quais 67 controles (24,63%) e 44 nos casos (64,71%).
A frequência de doença crônica e intercorrências foi maior para as mulheres negras tanto nos controles quanto nos casos: no primeiro, foram 37 negras (28,24%) comparadas às 30 (21,28%) brancas, e, nos casos, foram 19 negras (65,52%) contra 25 brancas (64,10%).
Entre os 44 casos com doença crônica ou associada e intercorrências em internações, identificaram-se sete mulheres (15,91%) exclusivamente com presença de doença crônica; três (6,82%) com outros fatores de risco gestacional; 20 (45,45%) tiveram doença crônica e complicações da gravidez; e 14 (31,82%), complicações do parto.
Entre as doenças crônicas presentes em 13 dos casos, a distribuição foi: hipertensão arterial sistêmica (HAS) com cinco casos (38,46%); anemia com dois (15,48%); além de trombose venosa profunda; varizes de MMII; cardiopatia; condilomatose; insuficiência renal e retocolite.
As causas básicas de morbidade materna grave corresponderam às quatro principais patologias de mortalidade materna. Foram 60 casos (88,23%) de patologias obstétricas diretas e oito (11,76%) indiretas. As hemorragias apresentaram maior frequência, 27,94%, o que está de acordo com o encontrado por outros autores.
(Souza, Cecatti e Parpinelli, 2005SOUZA, J. P. D.; CECATTI, J. G.; PARPINELLI, M. A. Fatores associados à gravidade da morbidade materna na caracterização do near miss. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 197-203, 2005.) encontraram, em 20 casos de near miss, 30%, de hipertensão; 35,5%, de hemorragias e 10%, de sepsis. Já para outras morbidades maternas, a hipertensão foi 62,5% e a hemorragia, 10,6%. Para (Waterstone, Bewley e Wolfe, 2001WATERSTONE, M.; BEWLEY, S.; WOLFE, C. Incidence and predictors of severe obstetric morbidity: case-control study. British Medical Journal, London, v. 322, n. 7294, p. 1089-1094, 2001.), o resultado foi: 6,7/1000 partos com hemorragia; 3,9, pré-eclampsia; 0,2, eclampsia; 0,5, síndrome HELLP; 0,4, sepsis e 0,2 para ruptura uterina.
Com relação às causas por cor, encontrou-se, neste estudo, que a principal para as mulheres brancas foi a doença hipertensiva, com 11 casos (28,20%), e, para as mulheres negras, a hemorragia, com 11 casos (37,93%).
Na análise multivariada, foram selecionadas para entrada as variáveis cujo valor de p foi menor do que 0,20: idade, número de gestações, doenças associadas e causa de internação. O modelo ajustado foi o de Regressão Logística, considerando-se as interações entre cada uma das variáveis que entraram no modelo e a variável cor.
Em relação às interações dessas variáveis com a cor, a única que apresentou significância estatística foi interação entre cor e número de gestações (p=0,0240). Em função disso, pode-se concluir que número de gestações é uma variável modificadora na relação entre cor e near miss.
Adicionalmente, na análise multivariada, identificaram-se as variáveis idade (p=0,0321 com OR 3,08 e IC 95% 1,10-8,65), doenças associadas (p=0,0018 com OR 4,06 e IC 95% 1,61-10,24) e causa de internação (p=<0,0001 com OR 8,75 e IC 95% 3,36-22,75) como fatores de risco para near miss (OR estimado com base no modelo multivariado). Já a variável cor não foi identificada como sendo fator de risco para near miss (p=0,8964) na presença das demais variáveis.
Como já referido, (Saftlas et al., 2000SAFTLAS, A. F.; KOONIN, L. M.; ATRASH, H. K. Racial disparity in pregnancy-related mortality associated with livebirth: can established risk factors explain it? American Journal of Epidemiology, Oxford, v. 152, n. 5, p. 413-419, 2000.), também utilizando modelo ajustado de regressão logística para os fatores de risco obstétricos, não conseguiram explicar a maior mortalidade materna de mulheres negras. Referem que isso deve estar associado a maior morbidade e que as gestantes negras apresentam 40-60% mais internações que as brancas, podendo representar o início do pré-natal ser tardio ou com baixa frequência, ou, ainda, a qualidade da assistência recebida ser baixa.
Com relação à assistência, citam resultados de estudos evidenciando a diferença de cuidados prestados a mulheres brancas e negras, como uso de amniocentese menos frequentemente para negras, e as mulheres brancas com maior probabilidade de realizar ultrassonografia - algo parecido com o citado por (Leal et al., 2005LEAL, M. C.; GAMA, S. G. N.; CUNHA, C. B. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n. 1, p.100-107, 2005.), no qual as parturientes negras no Rio de Janeiro receberam menos anestésico que brancas.
Concluem que o modelo da assistência ao pré-natal deve ser bastante flexível, permitindo a possibilidade de as mulheres negras, talvez, terem fatores de risco não tradicionalmente considerados pelos profissionais de saúde, especialmente estresse psicológico e social.
A discriminação no acesso e tratamento da saúde da população negra é um dos componentes que vem sendo discutido no combate ao racismo institucionalizado no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2006, p. 2), o governo federal tem investido esforços para promover melhores condições de atenção e cuidado da saúde da população afrodescendente, tendo sido aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde, em 10/11/2006 a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que cita:
É preciso considerar a grave e insistente questão do racismo no Brasil, persistente mesmo após uma série de conquistas institucionais, devido ao seu elevado grau de entranhamento na cultura brasileira. O racismo, inclusive o institucional, é condição histórica e traz consigo a noção do preconceito e da discriminação contra negros, afetando de forma dupla as mulheres negras, igualmente vitimadas pelo preconceito de gênero, o que torna este segmento especialmente mais vulnerável (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF: Editora MS, 2006., p. 2).
Considerando que fatores biológicos e sociais são determinantes das condições de saúde, corroborando a sugestão de (Saftlas et al., 2000SAFTLAS, A. F.; KOONIN, L. M.; ATRASH, H. K. Racial disparity in pregnancy-related mortality associated with livebirth: can established risk factors explain it? American Journal of Epidemiology, Oxford, v. 152, n. 5, p. 413-419, 2000.), sugere-se, para a nossa realidade, como um dos encontrados neste estudo, a análise e o aprofundamento em um dos fatores de risco: a reinternação. Essa ocorreu entre 41 casos, sendo que, entre eles, 48,28% das mulheres negras tiveram pelo menos uma reinternação e 24,14%, duas ou mais; entre as mulheres brancas, foram 28,2% e 23,08%, respectivamente. O número de internações seria indicador tão importante quanto o número de consultas de pré-natal, rotineiramente utilizado.
Evidenciou-se no estudo a necessidade de aprofundar a análise em estudos sobre ocorrência de near miss e cor, pois ainda são escassos os estudos com esta variável. Neste, encontramos que a idade e outras causas de internação, para mulheres brancas, e a paridade/número de gestações e presença de doenças crônicas ou associadas, para as mulheres negras, são fatores importantes. Também, é necessário analisar a ocorrência e cor com a instituição de outros parâmetros de análise, como as transferências e reinternações.
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- 1Baseado na tese "Near Miss" e mulheres negras em três municípios da Região Metropolitana de Curitiba, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública para obtenção do título de Doutor em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2007.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2016
Histórico
- Recebido
14 Abr 2014 - Aceito
03 Jul 2014