O conceito de equidade na produção científica em saúde: uma revisão11Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Processo nº 141022/2013-2.

Resumo

Este ensaio tem como objetivo identificar como o princípio da equidade é empregado nos estudos brasileiros que versam sobre saúde. Foi realizada uma revisão da produção científica de quatro bases de dados utilizando os Descritores em Ciências da Saúde “equidade” e “saúde” em todos os índices. Foram revisados 34 artigos que abordavam o tema da saúde no Brasil. Como resultado, percebe-se que a equidade é entendida na maioria dos artigos como um fator essencial para a justiça social, considerando o contexto de desigualdades sociais no qual o Sistema Único de Saúde se encontra inserido. Houve a predominância do conceito de equidade proposto pela Organização Mundial da Saúde que destaca a dimensão moral e ética do termo. A concentração da discussão da equidade apenas no nível do acesso indica uma compreensão restrita do termo, que pode ser explicada pela dificuldade em operacionalizá-lo, uma vez que um princípio social se trata de um valor abstrato.

Palavras-chave:
Equidade; Equidade em Saúde; Sistema Único de Saúde; Gestão em Saúde

Introdução

O conceito de equidade em saúde começou a ser debatido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1986, aparecendo na Carta de Ottawa - documento resultado da Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde - como um de oito pré-requisitos para a saúde (OMS, 1986OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Carta de Ottawa - Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. Ottawa, 1986. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/awIW3D >. Acesso em: 15 set. 2015.
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). O termo ganhou espaço nas conferências subsequentes, a ponto da OMS solicitar a elaboração de um documento voltado a refinar uma definição da equidade em saúde. (Whitehead, 1990WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 1990.) afirma que não há uma definição própria, mas apresenta uma importante contribuição ao incluir a dimensão moral e ética no termo, sendo um dos principais referenciais no tema. Esse documento foi publicado posteriormente no International Journal of Health Services (Whitehead, 1992WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. International Journal of Health Services, Westport, v. 22, n. 3, p. 429-445, 1992.).

Ao discorrer sobre equidade e saúde, (Whitehead, 1992WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. International Journal of Health Services, Westport, v. 22, n. 3, p. 429-445, 1992.) parte de dois pressupostos: grupos de pessoas menos favorecidas têm menores chances de sobrevida e existem grandes diferenças nas experiências de adoecimento entre as pessoas. Considerando que existem diferenças no perfil de saúde entre nações e entre grupos de uma mesma nação, a inequidade se refere a uma diferença específica: a desnecessária, evitável e injusta. Tal termo ganha uma perspectiva moral e ética, à medida que, embora os fatores biológicos e os efeitos de pessoas doentes se deslocando para classes sociais mais baixas sejam em parte responsáveis pelas diferenças em saúde, os fatores socioeconômicos e ambientais são os protagonistas nesse cenário.

A questão da injustiça se relaciona com o nível de escolha envolvido: existem pessoas que possuem pouca ou nenhuma escolha sobre as condições de vida e de trabalho, resultando em disparidades em saúde. Para (Whitehead, 1992WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. International Journal of Health Services, Westport, v. 22, n. 3, p. 429-445, 1992.) a equidade exige que, idealmente, as pessoas tenham oportunidades justas de atingir seu potencial em saúde e que ninguém deveria ser menos favorecido de atingir esse potencial, caso essa situação possa ser evitada. As políticas deveriam reduzir ou eliminar as diferenças em saúde que são resultado dos fatores considerados evitáveis e injustos.

No Brasil, a equidade constitui um dos princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS), embora o termo não conste nos principais dispositivos legais que o regulamentam: a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/HwJ1Q >. Acesso em: 15 set. 2015.
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) e a Lei nº 8.080 de 1990 (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/twYSz >. Acesso em: 15 set. 2015.
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). Quando a equidade é apresentada pela primeira vez após a criação do SUS no texto de uma cartilha do Ministério da Saúde (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/twYSz >. Acesso em: 15 set. 2015.
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), seu conceito estava relacionado à igualdade dos cidadãos perante as ações e serviços do SUS. Na década seguinte, observa-se a influência das contribuições de (Whitehead, 1992WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. International Journal of Health Services, Westport, v. 22, n. 3, p. 429-445, 1992.): gradualmente o enfoque na igualdade dos cidadãos é substituído pela ênfase na redução das disparidades sociais e regionais existentes do país (Brasil, 2000BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Sistema Único de Saúde (SUS): princípios e conquistas. Brasília, DF, 2000.).

Por vezes, como no discurso de (Whitehead, 1992WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health. International Journal of Health Services, Westport, v. 22, n. 3, p. 429-445, 1992.), o conceito de equidade se encontra atrelado à discussão sobre justiça social. Dois autores merecem destaque nesse debate por apresentarem perspectivas com pressupostos distintos: John Rawls e Amartya Sen.

(Rawls, 1997RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.) propõe uma teoria da justiça pautada na equidade, compreendida a partir de uma situação hipotética inicial, na qual existe uma posição de igualdade entre todos os indivíduos, ignorando o conhecimento sobre contingências que resultam em disparidades entre os homens, como a posição social, a situação de classe e os atributos e talentos naturais. Tal conjuntura é chamada por (Rawls, 2003RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) de “véu da ignorância” e garante que todos os participantes estejam na mesma situação, evitando que os indivíduos se orientem pelos seus preconceitos e estabeleçam princípios que beneficiem sua situação particular. Para atingir tal condição, as instituições (especificadas pelo autor como constituição política e principais acordos econômicos e sociais) desempenham papel fundamental, uma vez que constituem a estrutura básica da sociedade e podem ocasionar desigualdades profundas ao favorecerem certas circunstâncias (como posições sociais diferentes) que não são justificadas por mérito ou valor. Na teoria de (Rawls, 2003RAWLS, J. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 14), a estrutura básica é o objeto primário da justiça, uma vez que seus efeitos sobre as metas, aspirações e oportunidades dos cidadãos “são profundos e estão presentes desde o início da vida”. Uma vez estabelecida a situação de igualdade, um conjunto de princípios seriam aceitos de forma consensual. O autor propõe dois princípios que poderiam ser admitidos sob essa situação hipotética: que certas regras que definem as liberdades básicas permitam a cada pessoa a mais abrangente liberdade compatível com uma liberdade igual para os demais; e que as desigualdades econômicas e sociais sejam distribuídas de forma que, ao mesmo tempo, constituam o maior benefício esperado aos menos favorecidos e estejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa e oportunidades.

Os princípios são sequenciais, de modo que as liberdades básicas (do primeiro princípio) não podem ser justificadas ou compensadas por questões econômicas e sociais (do segundo princípio). No primeiro princípio, as liberdades só podem ser limitadas quando entram em conflito com outras liberdades, sendo ajustadas para formarem um único sistema. O segundo princípio é conhecido como o princípio da diferença e define que, se não existir uma distribuição que melhore a situação dos menos favorecidos e dos mais favorecidos, é preferível uma distribuição igual. Dessa forma, assegura-se que a mudança na expectativa dos que estão em melhor situação somente configurará uma situação justa se elevar também as perspectivas dos que estão em situação mais baixa.

(Sen, 2011SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.) parte das críticas a Rawls para apresentar uma abordagem cujos princípios de justiça não são definidos apenas com relação às instituições (que constituem o objeto primário da teoria da justiça de Rawls), mas concentram-se na vida e na liberdade das pessoas envolvidas. A principal crítica de (Sen, 2011SEN, A. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 48) a Rawls dedica-se à compreensão de que a justiça não deve se limitar à escolha das instituições e à definição de arranjos sociais ideais, mas depende também das realizações humanas e “incluem as vidas que as pessoas conseguem - ou não - viver”. Considerando que as instituições não são manifestações da justiça e nem invioláveis, a influência dos padrões comportamentais das pessoas associados à busca de instituições que promovam a justiça devem ser analisadas em conjunto na busca pela justiça. Sen apresenta a teoria da escolha social em contraponto à proposta de Rawls, concentrando-se na base racional dos juízos sociais e nas decisões públicas na escolha entre alternativas sociais.

Na visão de (Sen, 2001SEN, A. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2001.) sobre a promoção da justiça, os indivíduos desempenham papel primordial, à medida que apresentam capacidades diferentes de buscar seus objetivos. Diminuir as desigualdades significa considerar que existe uma diversidade de características internas (idade, sexo, propensão a doenças etc.) e externas (patrimônios disponíveis, ambientes sociais etc.) que interferem na capacidade dos indivíduos de realizarem funcionamentos (estados e ações) que, por sua vez, constituem a sua liberdade para alcançar objetivos que consideram valiosos.

Nesse sentido, a saúde participa da justiça social de várias formas distintas, uma vez que é um componente fundamental das possibilidades humanas. A equidade em saúde, então, deve ter o enfoque em como a saúde se relaciona com outras características por meio da distribuição de recursos e acordos sociais. Como um conceito multidimensional, a equidade em saúde inclui: aspectos que dizem respeito a alcançar uma boa saúde e a possibilidade de alcançar uma boa saúde (e não apenas com a distribuição da atenção sanitária); promover a justiça nos processos prestando atenção na ausência da discriminação da prestação da assistência sanitária; integração entre as considerações sobre a saúde e os temas mais amplos da justiça social e da equidade global (Sen, 2002SEN, A. ¿Por qué la equidad en salud? Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 11, n. 5/6, p. 302-309, 2002.).

Diante dos diferentes sentidos que podem ser atribuídos ao termo equidade, essa revisão tem como objetivo identificar como o princípio da equidade é empregado nos estudos brasileiros que versam sobre saúde.

Material e métodos

Os dados foram coletados nos meses de junho e julho de 2015, nas bases de referências: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Índice Bibliográfico Espanhol de Ciências da Saúde (Ibecs), Literatura Internacional em Ciências da Saúde (Medline), Biblioteca Cochrane e Scientific Electronic Library Online (SciELO).

A pesquisa teve como questão norteadora: “Como é empregado o princípio da equidade nos estudos brasileiros em saúde?”. Como estratégia de pesquisa, foram utilizados os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) “equidade” e “saúde” em todos os índices (título, autor e assunto). Não houve restrição de período e foi definido o seguinte critério de inclusão: abordar o tema da saúde no Brasil. Dessa forma, foram encontrados 788 registros (1985-2015). Foram excluídos: os registros repetidos (n=260), as ocorrências que não se tratavam de artigo original, mas de comentários, editorial e revisões (n=10), os artigos que não abordavam o Brasil (n=86) e que não tratavam do tema da saúde (n=10). Essa etapa resultou em 422 ocorrências.

A leitura dos títulos, resumos e palavras-chave dos artigos foi acompanhada de uma pesquisa de texto do termo “equidade”. As ocorrências foram classificadas em relação ao termo equidade: só citam (n=336), dedicam um parágrafo ao termo, mas não o discutem (n=52) e realizam a discussão (n=34). Durante a leitura na íntegra dos artigos que realizam a discussão sobre o termo equidade, foi elaborado um quadro síntese com as seguintes informações: ano de publicação, autores, título, objetivo e concepções sobre equidade. Ao final, foram revisados 34 artigos. Para não tornar a discussão extensa, os artigos foram numerados e são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Produção indexada na Biblioteca Virtual da Saúde, selecionada segundo autores, título, ano de publicação, objetivo, concepções sobre equidade e principais trechos, 1993-2015

Cabe destacar que não houve necessidade de encaminhar o projeto de pesquisa ao comitê de ética e pesquisa em seres humanos, uma vez que os artigos revisados se encontram disponíveis em bases de dados de acesso público.

Resultados e discussão

Dos 34 artigos analisados, 25 correspondem ao período de publicação de 2000 a 2009; dez artigos foram publicados entre 2010 a 2015 e apenas um foi publicado em período anterior, no ano de 1993 (Quadro 1). Não se observou a predominância de determinados autores nesses períodos.

O conceito de Whitehead foi o mais mencionado, estando presente em dezoito trabalhos (artigos 6, 9, 11-15, 18-20, 22, 23, 25-28, 32, 33). Compreende-se a importância de tal obra, uma vez que foi o primeiro e continua sendo o principal documento da Organização Mundial da Saúde que discorre sobre a equidade em saúde, trazendo uma contribuição fundamental: ao considerar que as diferenças em saúde são, além de desnecessárias e evitáveis, incorretas e injustas, a autora acrescenta uma dimensão moral e ética do termo.

Rawls foi o segundo autor mais citado, tendo sua teoria que relaciona a equidade com a justiça social presente em oito trabalhos (artigos 1, 7, 8, 12, 14, 15, 24, 27). Enquanto a maioria dos autores se refere à teoria de Rawls enfatizando os benefícios compensatórios que devem ser destinados aos menos favorecidos (artigos 1, 12, 14, 15, 24 e 27), dois artigos destacam a importância do Estado nesse processo por meio da redistribuição de recursos. (Coelho, 2010COELHO, I. B. Democracia sem equidade: um balanço da reforma sanitária e dos dezenove anos de implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 171-183, 2010.) retoma a obra de Rawls para sugerir que o Estado seja mais incisivo ao intervir nos problemas sociais ou na distribuição de renda. Já, (Fortes, 2010FORTES, P. A. C. A equidade no sistema de saúde na visão de bioeticistas brasileiros. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 56, n. 1, p. 47-50, 2010.) identifica a proposta de Rawls na fala de bioeticistas brasileiros com relação a importância do Estado na justiça distributiva:

Parece haver uma concordância entre parte dos discursos de bioeticistas e o proposto por Rawls, aceitando-se que seria justo que o Estado democrático orientasse a distribuição de recursos para resultar em consequências desiguais para os diversos envolvidos, mas beneficiando os “menos favorecidos” da sociedade, “os mais pobres”, “os mais vulnerados”, os sem condições de arcar com atendimento de suas necessidades de saúde por via dos modelos liberais de mercado, a justeza da ocorrência de uma “discriminação positiva” (Fortes, 2010FORTES, P. A. C. A equidade no sistema de saúde na visão de bioeticistas brasileiros. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v. 56, n. 1, p. 47-50, 2010., p. 49).

Embora a contribuição do autor seja decisiva para incluir a equidade como parâmetro na promoção da justiça social, em apenas um dos artigos consta que Rawls apresenta como pilar de sua teoria uma situação hipotética, na qual todos os indivíduos ocupam uma posição de igualdade, evitando que cada um estabeleça princípios que beneficiem sua situação particular (Fortes, 2015FORTES, P. A. C. Refletindo sobre valores éticos da saúde global. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, p. 152-161, 2015. Suplemento 1.). Ao aplicar essa teoria à realidade sem fazer tal ressalva, ignora-se a influência das liberdades e padrões individuais das pessoas, atribuindo a responsabilidade da promoção da justiça apenas às instituições. Essa é uma das principais críticas de Sen a Rawls, e apenas (Lucchese, 2003LUCCHESE, P. T. R. Equidade na gestão descentralizada do SUS: desafios para a redução de desigualdades em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 439-448, 2003.) se apropria da “perspectiva da capacidade” de Sen para identificar tarefas prioritárias para a redução das desigualdades em saúde no Brasil.

A justiça social se encontrou atrelada à equidade em 21 estudos, uma vez que se entende que as desigualdades devem ser superadas com o parâmetro da equidade na busca pela justiça social (artigos 1, 2, 5-8, 11-13, 15, 16, 18-20, 22-24, 28, 29, 32, 33). A lógica da alocação de recursos públicos em saúde ganha espaço de destaque nessa discussão, tendo como propósito eliminar as inequidades. Nesse âmbito, dois estudos remetem à discussão da focalização versus universalização, destacando o desafio de promover a equidade com recursos escassos e sem deixar de priorizar os grupos que sofrem desigualdades injustas e evitáveis (artigos 23 e 24). Mais dois estudos citam a focalização como uma forma de promover a discriminação positiva ou o caráter inclusivo (artigos 15 e 32). Como conclui (Senna, 2002SENNA, M. C. M. Equidade e política de saúde: algumas reflexões sobre o Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. 203-211, 2002. Suplemento.):

Este artigo buscou ressaltar a complexidade que envolve o tema da equidade e da justiça social no âmbito do PSF. Essa complexidade se aprofunda em face das grandes heterogeneidades regionais, sociais, econômicas, políticas e administrativas que marca a história brasileira. Nesse sentido, a focalização assume o caráter de inclusão de grandes parcelas da população tradicionalmente alijadas do acesso a um mínimo de garantias sociais (Senna, 2002SENNA, M. C. M. Equidade e política de saúde: algumas reflexões sobre o Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. 203-211, 2002. Suplemento., p. 210).

Como um valor, a equidade aparece relacionada aos princípios da justiça e da democracia em dois estudos de formas diferentes (artigos 7 e 16). (Coelho, 2010COELHO, I. B. Democracia sem equidade: um balanço da reforma sanitária e dos dezenove anos de implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 171-183, 2010.) afirma que a democratização não leva necessariamente à equidade em saúde, visto que, por exemplo, a escassez de recursos pode levar a sobrepor os princípios de universalidade e integralidade (artigo 7). Já (Costa e Lionço, 2006COSTA, A. M.; LIONÇO, T. Democracia e gestão participativa: uma estratégia para a equidade em saúde? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 47-55, 2006.) entendem que a equidade só pode ser promovida em um ambiente democrático, onde sujeitos mostram poder e autonomia para enunciar seus desejos e necessidades (artigo 16): “A equidade na saúde, entendida como o provimento de serviços para necessidades específicas de grupos ou pessoas, requer sujeitos e coletividades com poder e autonomia para enunciar seus desejos e necessidades” (Costa; Lionço, 2006COSTA, A. M.; LIONÇO, T. Democracia e gestão participativa: uma estratégia para a equidade em saúde? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 47-55, 2006., p. 47).

A diferenciação entre equidade vertical e horizontal aparece em oito artigos, considerando as demandas semelhantes entre indivíduos semelhantes (equidade horizontal) e tratamentos desiguais para indivíduos desiguais (artigos: 3, 5, 6, 12, 13, 23, 27, 34). Esses conceitos foram utilizados pelos autores de três artigos para se referir ao acesso às ações e serviços de saúde (3, 5, 6). Nesse sentido, (Sanchez e Ciconelli, 2012SANCHEZ, R. M.; CICONELLI, R. M. Conceitos de acesso à saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 31, n. 3, p. 260-268, 2012.) descrevem as quatro dimensões de acesso à saúde e concluem ser indissociável a questão da equidade: “A definição de acesso, calcada em quatro elementos principais, denominados disponibilidade, aceitabilidade, capacidade de pagamento e informação, cada vez mais se confunde com o conceito de equidade em saúde” (Sanchez; Ciconelli, 2012SANCHEZ, R. M.; CICONELLI, R. M. Conceitos de acesso à saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 31, n. 3, p. 260-268, 2012., p. 267).

Conclusões

Percebe-se que a equidade é entendida na maioria dos artigos como um fator essencial para a justiça social, considerando o contexto de desigualdades sociais no qual o Sistema Único de Saúde se encontra inserido. Embora poucos estudos articulem a equidade com a democracia, pode-se compreender que a busca pela equidade em saúde constitui uma forma de garantir um direito social - a saúde -, fortalecendo, assim, o protagonismo do indivíduo em um sistema democrático.

Os conceitos de equidade observados apresentam grande influência dos pressupostos de Whitehead e da teoria de Rawls, à medida que relacionam diferentes situações de saúde com a questão da justiça, sendo a equidade um meio para diminuir ou eliminar essas disparidades. Por outro lado, quando comparados ao conceito multidimensional de Sen, parecem dispor de uma compreensão restrita, referindo-se apenas ao acesso dos indivíduos sujeitos a desigualdades injustas e evitáveis ao sistema de saúde. A limitação do conceito de equidade pode ser compreendida pela dificuldade em operacionalizá-lo, uma vez que um princípio social se trata de um valor abstrato, reportando a aspectos éticos e morais.

A discussão sobre equidade deveria ser intensificada no contexto brasileiro, considerando que o Sistema Único de Saúde lida com um orçamento limitado e uma grande demanda, o que, por vezes, acaba sobrepondo os princípios de universalidade, integralidade e equidade. O debate não deveria ocorrer apenas no nível do acesso às ações e serviços de saúde, mas na equidade do processo que deve acontecer baseado na perspectiva da inclusão, caso contrário, o indivíduo pode ter acesso, mas se sentir excluído em participar do sistema de saúde. O desafio consiste em discutir uma forma de operacionalizar a equidade enfrentando a escassez de recursos e fazê-lo de forma contínua, sem que o princípio se perca ao longo do processo e, dessa forma, o indivíduo sinta-se discriminado no cuidado à saúde.

Como limitação do estudo, convém ressaltar que se trata de uma pesquisa que, por meio de uma amostra de artigos, buscou identificar o conceito de equidade e seus principais usos em estudos brasileiros que versam sobre saúde, motivo pelo qual não se julgou que reformulações aprofundadas sobre o termo fossem necessárias.

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    Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Processo nº 141022/2013-2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2016
  • Revisado
    07 Dez 2016
  • Aceito
    13 Dez 2016
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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