O desempenho dos municípios no Pacto pela Saúde no âmbito das relações federativas do Sistema Único de Saúde11 A pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Resumo

Este artigo avalia os resultados do Pacto pela Saúde (que busca regular as relações federativas do SUS) em relação ao alcance das metas e ao cumprimento das pactuações feitas pelos entes federados a partir de prioridades nacionais, além doo desempenho efetivo dos municípios em termos comparativos. Foram selecionados alguns indicadores do pacto para o período de 2007 a 2011, buscando-se responder às perguntas: (1) os municípios cumpriram o que foi pactuado? Como isso evoluiu no período? (2) o desempenho efetivo dos municípios evoluiu positivamente durante o período? (3) qual o grau de desigualdade entre os municípios quanto ao desempenho? (4) os resultados estão associados a fatores estruturais exógenos ou endógenos ao setor saúde? Foram utilizados dados do Datasus e do Sispacto. Construíram-se medidas para aferição do grau de cumprimento das metas pactuadas e para a avaliação do desempenho efetivo dos municípios e do grau de desigualdade entre eles. Modelos de regressão buscaram aferir a influência de fatores estruturais sobre esse desempenho. Os resultados apontam que o pacto não ampliou a cooperação entre os entes federados. Houve, além disso, evolução positiva do cumprimento das metas, particularmente nos indicadores com mecanismos punitivos, e variação de desempenho entre indicadores, associado principalmente à disponibilidade de recursos financeiros.

Palavras-chave:
Federalismo; Política de Saúde; Avaliação de Processos e Resultados

O marco regulatório das relações federativas no SUS

Este artigo apresenta resultados de pesquisa que buscou avaliar o Pacto pela Saúde, conjunto de reformas institucionais definido em 2006 e vigente até 2011 (Brasil, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, Brasília, 23 fev. 2006. Seção 1, p. 43-51.). O Pacto marca um momento no processo de regulação das relações federativas do Sistema Único de Saúde (SUS), que tem, entre os desafios para seu funcionamento, as especificidades decorrentes do contexto federativo no qual se insere.

O SUS foi criado como um pacto federativo assentado numa concepção de cooperação entre as esferas de governo. Desde sua implantação, verifica-se constante evolução do marco regulatório das relações federativas. Para enfrentar um dos dilemas centrais do federalismo (conciliar autonomia e interdependência dos entes federados), tem-se buscado definir mecanismos e instrumentos de regulação que promovam cooperação e coordenação, de forma a garantir a uniformidade da política e a universalidade e integralidade da atenção (Menicucci, 2014aMENICUCCI, T. M. G. A relação entre o público-privado e o contexto federativo do SUS: uma análise institucional. Santiago do Chile: Cepal, 2014a. (Série Políticas Sociais, n. 196), 2014bMENICUCCI, T. M. G. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: as relações intergovernamentais na regionalização da assistência à saúde. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: FAPEMIG, 2014b.; Menicucci et al., 2008MENICUCCI, T. M. G. et al. Regionalização da atenção à saúde em contexto federativo e suas implicações para a equidade de acesso e a integralidade da atenção. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2008.), além de criar incentivos à transferência de responsabilidades e combater as relações competitivas e predatórias entre União, estados e municípios.

Nesse arranjo, cabe à União a normatização e coordenação geral; o governo federal detém o controle do processo decisório, define o formato da cooperação e a destinação dos recursos transferidos, enquanto os municípios são executores e gestores dessa política (Arretche, 2012ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV: Fiocruz, 2012.; Menicucci, 2014bMENICUCCI, T. M. G. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: as relações intergovernamentais na regionalização da assistência à saúde. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: FAPEMIG, 2014b.; Menicucci et al., 2008MENICUCCI, T. M. G. et al. Regionalização da atenção à saúde em contexto federativo e suas implicações para a equidade de acesso e a integralidade da atenção. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2008.). O principal mecanismo de regulação, que define a natureza das relações intergovernamentais, é a distribuição dos recursos para custeio do sistema. Enquanto responsável por grande parte do financiamento - 44,7% em 2011 (Piola et al., 2013PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Texto para discussão nº 1.846. Rio de Janeiro: IPEA, 2013.) -, o governo federal tem nas transferências condicionadas um mecanismo importante para alinhar as decisões dos governos subnacionais às prioridades nacionais. Embora o repasse “fundo a fundo” seja a modalidade preferencial de transferência, parte dos recursos são transferidos sob a forma de incentivos para a adesão a programas ou ações definidas nacionalmente, mesmo que pactuados na Comissão Intergestora Tripartite (arena de pactuação entre os três entes federados).

Na década de 1990, o foco da regulação das relações federativas recaiu sobre o processo de descentralização. O aparato institucional montado foi bem-sucedido nesse objetivo, mas não conseguiu efetivar a integração entre os entes por meio da regionalização da atenção, conforme previsto na Constituição (Fortes, 2008FORTES, F. B. C. T. P. Inovação institucional no contexto do federalismo brasileiro pós-1988: a Emenda Constitucional 29 de 2000 e os governos estaduais. 2008. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.; Levcovitz; Lima; Machado, 2001LEVCOVITZ, E.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 269-291, 2001.; Mendes, 1998MENDES, E. V. A descentralização do sistema de serviços de saúde no Brasil: novos rumos e um outro olhar sobre o nível local. In: MENDES, E. V. (Org.). A organização da saúde no nível local. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 17-55.; Menicucci et al., 2008MENICUCCI, T. M. G. et al. Regionalização da atenção à saúde em contexto federativo e suas implicações para a equidade de acesso e a integralidade da atenção. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2008.). Ao contrário, as regras da descentralização, particularmente as relativas à transferência de recursos, atuaram no sentido de dificultá-la ao supervalorizar o papel do município como prestador dos serviços e subvalorizar o papel dos estados como instâncias de organização dos processos de gestão, financiamento, fiscalização e controle.

Num segundo momento, a evolução do marco regulatório expressou a tentativa de implementação da diretriz da regionalização, que, associada à hierarquização da assistência por níveis de atenção, exigia a articulação dos gestores para promover a integração da rede de serviços que transcende o espaço político-administrativo de um município ou estado. A partir de 2001, normatizações e ações voltadas à organização regionalizada do setor saúde tinham como um de seus objetivos corrigir as distorções do “municipalismo autárquico” e substituir a atitude de competição intermunicipal pela cooperação a fim de superar barreiras e diferenças de acesso entre cidadãos de diferentes localidades (Machado, 2009MACHADO, J. A. Pacto de gestão na saúde: até onde esperar uma “regionalização solidária e cooperativa”? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 24, n. 71, p. 105-119, 2009.).

Para ordenar o processo, foram estabelecidos instrumentos de planejamento, como o Plano Diretor de Regionalização, a Programação Pactuada Integrada e o Plano Diretor de Investimento. Embora tenham dado início a um esforço de integração federativa, foram pouco eficazes em articular redes regionais, romper com a fragmentação decorrente da municipalização e construir um verdadeiro sistema de saúde, o que acabou por levar à reformulação do marco regulatório em 2006, com o Pacto Pela Saúde. Essa denominação expressa o ponto nodal da questão federativa, particularmente no caso da assistência à saúde: a necessidade de pactuação entre os entes federados. Como mecanismo de gestão regional, o Pacto reitera os instrumentos anteriores, ainda pouco efetivos, e institui novas arenas de pactuação institucionalizadas (colegiados de gestão regional), visando a resolver os problemas da ação coletiva.

Um terceiro momento na evolução do marco regulatório das relações federativas no SUS é marcado pelo Decreto Presidencial n. 7.508/2011, que consolida processos em curso e busca assegurar o compromisso dos entes federados com a assistência à saúde integral, enfatiza a construção de pactos federativos para a formação de redes de atenção resolutivas e torna claras as responsabilidades dos entes federados por meio do Contrato Organizativo da Ação Pública. Além do decreto, a Lei n. 12.666/2011 reconhece e institucionaliza a competência deliberativa das comissões intergestores (CIB e CIT) enquanto espaços de coordenação federativa e institui uma comissão regional (CIR). Essas comissões passam a ser reconhecidas como instâncias de decisão, e não apenas como fóruns, assumindo-se formalmente a necessidade de articulação federativa ao se alterar seu estatuto legal.

Entretanto, se as regras circunscrevem o jogo, elas não eliminam os jogadores. A própria dinâmica das regras institucionais direcionadas a superar as dificuldades na assistência à saúde em territórios que extrapolam os limites político-administrativos dos entes federados é expressão das dificuldades na construção das redes regionais. Estudos apontam que o arranjo institucional não tem garantido êxito à regionalização (Menicucci, 2014aMENICUCCI, T. M. G. A relação entre o público-privado e o contexto federativo do SUS: uma análise institucional. Santiago do Chile: Cepal, 2014a. (Série Políticas Sociais, n. 196), 2014bMENICUCCI, T. M. G. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: as relações intergovernamentais na regionalização da assistência à saúde. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: FAPEMIG, 2014b.; Menicucci et al., 2008MENICUCCI, T. M. G. et al. Regionalização da atenção à saúde em contexto federativo e suas implicações para a equidade de acesso e a integralidade da atenção. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2008.). Mesmo que a União regule e defina incentivos de alinhamento dos entes federados às diretrizes nacionais, a regionalização é afetada pelo contexto e comportamento dos atores regionais e locais. Alguns dos principais instrumentos previstos não funcionam para a orientação da regulação ou dos fluxos dentro do sistema de saúde, e os espaços regionais não conseguem suprir a demanda dos seus habitantes. Ao mesmo tempo em que impactam a ação dos níveis regionais de governo (ainda que, por vezes, de modo formalista), as normas nacionais não são observadas uniformemente e não têm garantido a adesão de todos os entes federados. Avaliar alguns resultados desse processo, especificamente do Pacto pela Saúde, é o intento deste artigo.

Uma avaliação do pacto pela saúde

Uma pesquisa com os principais atores que participaram da formulação do Pacto, tendo como locus principal a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), permitiu identificar os diferentes pontos de vista presentes na arena federativa, as motivações dos diferentes atores, os conflitos federativos, divergências e colisões22MENICUCCI, T. M. G.; COSTA, L. A.; MACHADO, J. A. Pacto pela saúde: aproximações e colisões na arena federativa. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, no prelo. Disponível em: <https://goo.gl/lGHwqp>. Acesso em: 26 abr. 2017.. O foco inicial da proposta, originada no Ministério da Saúde (MS), estava na definição de mecanismos de gestão compartilhada entre os entes federativos no âmbito de territórios. Ao longo do processo de sua formulação, e na incapacidade de resolução dos conflitos, o Pacto perdeu essa ênfase e focou-se na responsabilização por compromissos e metas a serem “pactuadas”, mantendo o objetivo da melhoria da gestão, mas não a partir de uma perspectiva federativa, num claro esvaziamento do conceito original.

Ao mesmo tempo, deu-se a ampliação formal de seu escopo com a inclusão de duas novas dimensões, sendo formulado com três componentes: o Pacto pela Vida, um compromisso entre gestores em torno de prioridades com impacto sobre a situação de saúde; o Pacto de Gestão, para reforçar a estratégia de “gestão compartilhada e solidária”; e o Pacto em Defesa do SUS, para reforçar o SUS como política de Estado e estabelecer compromissos para a consolidação dos princípios constitucionais.

Mesmo que de forma muitas vezes burocrática, houve adesão gradativa dos municípios ao Pacto, que chegou a alcançar a adesão de 82,5% deles. Mas poucos avanços ocorreram no sentido da organização das redes regionalizadas de atenção. Enquanto pacto federativo, o Pacto não ampliou a cooperação entre os entes federados e foi extinto apenas cinco anos após sua formulação.

Avaliações mais gerais do Pacto foram realizadas no âmbito das esferas gestoras do SUS, mas, em relação ao alcance das metas e cumprimento das pactuações, não existem análises publicizadas. Esse é o escopo deste artigo, que objetiva avaliar alguns resultados mensuráveis do Pacto pela Vida e Pacto de Gestão, que definem metas sanitárias e de gestão a serem pactuadas e alcançadas pelos entes federados a partir de prioridades nacionais, traduzidas em indicadores definidos pelo MS.

A partir da seleção de alguns desses indicadores para o período de 2007-2011, tendo como unidade de análise os municípios, buscou-se responder quatro perguntas: (1) Os municípios cumpriram o que foi pactuado, e como o processo evoluiu no período de vigência do Pacto? (2) O desempenho efetivo dos municípios evoluiu positivamente no período? (3) Qual o grau de desigualdade entre os municípios em relação ao seu desempenho? (4) Os resultados estão associados a fatores estruturais exógenos ao setor saúde (condições socioeconômicas e capacidade de financiamento), ou endógenos, mas de baixa ingerência em termos de gestão, como capacidade instalada para prestação de serviços?

Para responder as duas primeiras perguntas, foram selecionados indicadores do Pacto pela Vida e Pacto de Gestão, com utilização de dados secundários, obtidos do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) e do Sistema de Informações do Pacto pela Saúde (Sispacto). Para a seleção, foram adotados dois critérios: (1) permanência do indicador durante todo o período, para permitir a análise diacrônica, dado que os indicadores variavam anualmente, seja por acomodações do programa ou mudanças de prioridades (em média, o número de indicadores foi de 48, com variação anual de 40 a 54); indicadores que mudavam de nome, mas a fórmula permanecia a mesma, foram selecionados; (2) índice de perdas abaixo de 30%, para garantir robustez à análise (Viegas et al., 2007VIEGAS, M. et al. Análise da eficiência hospitalar no estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: FJP, 2007.).

A aplicação dos dois critérios levou à definição de dez indicadores aplicáveis a todos os municípios e um restrito à Amazônia Legal (malária), sendo que o segundo critério foi o que mais impactou na seleção. O Quadro 1 relaciona os indicadores, suas abreviações, polaridade (sentido do melhor resultado do indicador) e classificação em indicadores de processos e de resultados. Indicadores de processo referem-se às atividades desenvolvidas para o alcance dos objetivos planejados; os de resultado são demonstrações dos efeitos consequentes das intervenções realizadas (Bittar, 2001BITTAR, O. J. N. V. Indicadores de qualidade e quantidade em saúde. Revista de Administração em Saúde, São Paulo, v. 3, n. 12, p. 21-28, 2001.; Donabedian, 1994DONABEDIAN, A. A gestão da qualidade total na perspectiva dos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1994.; Martins; Blais; Leite, 2004MARTINS, M.; BLAIS, R.; LEITE, I. C. Mortalidade hospitalar e tempo de permanência: comparação entre hospitais públicos e privados na região de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S268-S282, 2004. Suplemento 2.). Os indicadores selecionados foram utilizados tanto para avaliar o cumprimento das metas pactuadas quanto para avaliar o desempenho dos municípios.

Quadro 1
Indicadores selecionados do Pacto pela Saúde, Brasil, 2007-2011

A primeira pergunta é respondida na próxima seção; as demais, na seção seguinte, na qual o desempenho efetivo dos municípios em relação à atenção e situação de saúde é avaliado, sendo identificadas as desigualdades entre eles e relacionando esse desempenho a fatores estruturais que podem afetar os resultados. A descrição da metodologia específica é feita em cada seção. A última seção apresenta algumas conclusões.

Evolução do cumprimento das pactuações

Para analisar o cumprimento da pactuação, foi calculado o percentual de cumprimento das metas para cada indicador conforme a fórmula:

Quando o indicador foi do tipo “quanto menor, melhor”, os resultados foram invertidos. Para as metas pactuadas, foram utilizados dados do Sispacto, e os valores alcançados pelos municípios foram extraídos do Datasus. Os dados declarados pelos próprios municípios e que apresentaram discrepância em relação ao Datasus foram desconsiderados. Por não apresentarem distribuição normal, os dados foram normalizados a partir do intervalo interquartílico normalizado, que reconstrói limites máximos e mínimos a partir da mediana acrescida, ou diminuída, de uma vez e meia a diferença entre o primeiro e o terceiro quartil em cada indicador. Assim, os dados foram homogeneizados com a exclusão dos valores extremos.

Para agrupar condições semelhantes e simplificar a apresentação dos dados, foram atribuídos valores de 0,00 a 1,00, de acordo com intervalos de cumprimento percentual das metas: até 59,9%=0,00; de 60% a 69,9%=0,25; de 70% a 79,9%=0,50; de 80% a 89%=0,75; 90% ou mais=1,00. Os valores atribuídos a cada indicador foram somados, gerando para cada município uma nota final de valor máximo 10 (à exceção de 711 municípios pertencentes à Amazônia Legal, que podem atingir a nota 11). Essa nota expressa, sinteticamente, o grau de cumprimento da pactuação em um dado ano. O Gráfico 1 apresenta o percentual de municípios em faixas de notas, sendo que notas menores que cinco foram agrupadas na faixa de 0 a 4,99 devido à baixa frequência.

Gráfico 1
Percentual de municípios por faixa de nota e ano, Brasil, 2007-2011

O perfil de cumprimento da pactuação muda ao longo dos anos. As notas mais altas (acima de oito) apresentam evolução positiva (embora com queda significativa no último ano da série) simultaneamente à diminuição das mais baixas (menores que seis). As faixas intermediárias (entre seis e oito), embora apresentem flutuações, retornam, em 2011, ao mesmo patamar de 2007.

Esses resultados sugerem que o Pacto parece ter provocado efeitos relevantes. O estabelecimento de metas e sua posterior avaliação pode ter afetado o comportamento de parte dos municípios, que apresentaram, gradativamente, notas mais altas. Em 2007, apenas 18% dos municípios obtiveram nota maior que 8; em 2010, essa porcentagem aumentou para cerca de 35%; só em 2011 (29%), quando há piora geral no cumprimento das metas, verifica-se um pequeno declínio. Esse resultado não significa, necessariamente, que houve melhoria na atenção à saúde prestada nem na saúde dos habitantes, mas pode indicar melhoria na capacidade de definição das próprias metas a partir do melhor conhecimento das capacidades de cada município.

Pode-se supor que o MS teve algum sucesso no objetivo de inscrever gradativamente nas agendas municipais o conhecimento das prioridades definidas nacionalmente, pois uma proporção cada vez menor de municípios obteve notas mais baixas (menores que 6) ao longo do período: de 32% em 2007 para 19% em 2010, com leve piora em 2011 (22%). Uma hipótese seria a de que o Pacto sistematizou um processo periódico de monitoramento e avaliação que, de certa forma, constrangeu os entes federados subnacionais, que precisaram aprender minimamente sobre os próprios indicadores. Entretanto, os efeitos parecem ser parciais, pois aproximadamente metade dos municípios apresentou comportamento estável no período, mantendo-se com notas intermediárias.

Os resultados globais escondem diferenças importantes entre os indicadores. A Figura 1 resume a evolução dos percentuais dos municípios que obtiveram valor 1,00 (90% ou mais de cumprimento da meta), ou seja, aqueles que alcançaram as metas pactuadas. Cada indicador apresenta uma evolução própria, não havendo nenhum padrão entre eles.

Figura 1
Percentual de municípios, por ano, que obtiveram valor 1,00* em cada indicador separadamente, Brasil, 2007-2011

Dois fatores permitem a elaboração de hipóteses para explicar o maior cumprimento das metas em alguns indicadores. O primeiro é a existência de incentivos legais e normativos cujo não cumprimento pode gerar penalidades fortes para os entes federados. Isso explica os resultados nos indicadores de aplicação de recursos conforme a Emenda Constitucional n. 29 (acima de 95% dos municípios cumpriram a meta em todos os anos) e da alimentação de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) - numa escalada crescente, 100% dos municípios cumpriam as metas em 2011. No primeiro caso, porque a emenda constitucional que definiu os percentuais mínimos a serem aplicados na saúde vigorava desde 2000, estabelecendo o percentual de 15% de recursos próprios para os municípios. No caso da alimentação do CNES, o incentivo vem da Portaria MS/GM nº 373/2002 e suas alterações, que estabeleceram que o descumprimento da obrigatoriedade da alimentação dos bancos de dados nacionais por dois meses consecutivos ou três meses alternados é motivo de suspensão imediata, pelo MS, dos repasses financeiros transferidos mensalmente, fundo a fundo. Isso quer dizer que os entes subnacionais podem sofrer uma sanção financeira pelo não cumprimento das normas.

Essa hipótese, entretanto, não consegue explicar os resultados encontrados nos demais indicadores. Nesses casos, uma segunda hipótese seria a maior facilidade para cumprir metas quando estas dependem apenas dos esforços individuais de cada município e independem da cooperação de outros entes federados ou da atuação de outros atores independentes, como prestadores de serviços. Se a dependência é maior, diminui a proporção de municípios que cumprem as metas pactuadas. Nesse sentido, indicadores como a cobertura vacinal da tetravalente e a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF), embora apresentem percentuais significativos de cumprimento das metas, variando entre 80% e 70% dos municípios, respectivamente, possuem resultados inferiores aos de outros indicadores, como EC29 e CNES. Possivelmente, o pior resultado relativo deve-se, no primeiro caso, à dependência da disposição da população para se vacinar e, no segundo, à necessidade de conseguir fixar profissionais, algo mais difícil em áreas distantes (Menicucci, 2014bMENICUCCI, T. M. G. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: as relações intergovernamentais na regionalização da assistência à saúde. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: FAPEMIG, 2014b.).

Alguns indicadores têm maior dependência do funcionamento cooperativo da rede de serviços disponível para o SUS (própria ou contratada) e, obviamente, da cooperação dos gestores municipais envolvidos. Esse parece ser o caso dos indicadores de mortalidade neonatal (aproximadamente 45% dos municípios cumprem a meta em cada ano), internação por AVC (aproximadamente 60%), internação por complicações da diabetes (aproximadamente 50%) e consultas de pré-natal (aproximadamente 60%). Por fim, os indicadores mais complexos dependem de fatores externos ao setor da saúde. Como exemplos, podemos citar a taxa de mortalidade infantil e o controle da malária, indicadores associados a condições de vida em geral e que recebem influência de diversos elementos, como políticas públicas de outras áreas (educação, saneamento básico) e desmatamento da Floresta Amazônica, respectivamente. Caso atípico foi o do indicador “razão de exames Citopatológicos”, que não apresentou comportamento uniforme, com grande queda no último ano analisado (resultado ruim, por se tratar de um exame para prevenção de câncer feminino).

Em certa medida, a hipótese alternativa também ajuda a explicar os indicadores de cumprimento da EC29 e alimentação do CNES. No primeiro caso, a gestão municipal precisa apenas de seu esforço próprio para cumprir a meta: a disposição política, um controle regular das finanças municipais e capacidade administrativa mínima são suficientes para garantir bom desempenho, sem depender de outro ente federado ou prestador de serviço. No caso do CNES, basta organizar o processo de envio dos arquivos para o MS, embora isso não signifique, necessariamente, qualidade das informações.

Desempenho dos municípios no período 2007-2011

Nesta seção, o foco da análise desloca-se do cumprimento dos acordos para os resultados efetivos alcançados nos indicadores do Pacto. Esse desempenho é analisado tanto na perspectiva diacrônica (evolução do município) quanto comparativamente (entre municípios), visando responder às questões: (1) O desempenho dos municípios evoluiu positivamente durante a vigência do Pacto? (2) Qual o grau de desigualdade entre eles? (3) Os resultados estão associados a fatores estruturais, exógenos ou endógenos ao setor saúde?

Para tanto, foram construídas duas medidas. A primeira compara o desempenho do município ao longo do período, tendo como parâmetro as metas nacionais estabelecidas para o último ano da série (2011). A partir desse desempenho, os municípios foram classificados em quatro posições: (1) desempenho inferior a 75% da meta nacional; (2) desempenho entre 75% e 100% (exclusive) da meta nacional; (3) desempenho entre 100% (inclusive) e 125% da meta nacional; (4) desempenho igual ou superior a 125% da meta nacional.

Para mortalidade infantil e neonatal, cujas metas são reduzir em um dado percentual o valor alcançado no ano anterior, utilizou-se o parâmetro da Organização Mundial de Saúde: valores menores que 10 óbitos por mil nascidos vivos para os municípios com 80 mil habitantes ou mais. Para aqueles com menos de 80 mil habitantes, em que o indicador considera o número de óbitos por ano, inexistindo parâmetro do que seja o desejável, considerou-se a variação de 1 óbito para definir as faixas de desempenho.

Como segunda medida, para analisar a desigualdade entre municípios, foi calculado o coeficiente de Gini a partir dos valores observados nos indicadores. O Gini é uma medida de desigualdade de qualquer distribuição, inclusive na saúde (Schneider, 2002SCHNEIDER, M. C. et al. Métodos de medición de las desigualdades de salud. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 12, n. 6, p. 398-415, 2002.), embora mais comumente utilizado para medir desigualdade de renda44Arretche (2016), por exemplo, compara desigualdades entre municípios em relação aos resultados de políticas sociais, e Soares (2006) mensura desigualdades na educação..

Por fim, com vistas a identificar possíveis fatores explicativos, o desempenho dos municípios foi relacionado a fatores estruturais, exógenos ou endógenos ao setor saúde, que incidem sobre a capacidade de prestação de serviços e, portanto, sobre o desempenho dos municípios, e não dependem da ação direta dos gestores. Esses fatores foram organizados em dois grupos de indicadores: (1) indicadores de capacidade instalada (Datasus, CNES, IBGE): leitos totais por mil habitantes (média mensal), leitos SUS por mil habitantes (média mensal), médicos totais por mil habitantes (média mensal), médicos SUS por mil habitantes (média mensal); (2) indicadores financeiros (Datasus, Siops): PIB municipal per capita, receitas de impostos e transferências constitucionais por habitante, despesa total em saúde por habitante, percentual de despesas próprias em saúde e despesas próprias em saúde por habitante.

Em função da multicolinearidade (forte correlação entre variáveis explicativas), foram excluídos da análise três desses fatores: leitos e médicos totais por mil habitantes e despesas próprias em saúde por habitante. Foi adotado o método de regressão linear múltipla, tendo como variável dependente o desempenho municipal e, como variáveis explicativas, os fatores estruturais.

Os resultados mostram que o desempenho foi bastante variado entre indicadores e entre municípios. A maioria dos indicadores apresentou uma evolução levemente positiva, como mostra a Tabela 1.

Tabela 1
Desempenho dos municípios tendo como referência as metas nacionais para 2011, por ano, segundo indicador, Brasil, 2007-2011

O caso do CNES chama atenção pela melhoria surpreendente: em 2011, todos os municípios alcançaram a meta nacional, embora no momento da implantação do Pacto essa proporção fosse de apenas 11,5%. Essa evolução é explicada pela possibilidade de sanção e confirma a regra geral de que, por meio de incentivos positivos ou negativos, a União consegue afetar o comportamento dos entes federados; nesse caso, induzindo os municípios a produzirem informações que contribuem para o gerenciamento do sistema de saúde.

Nos demais indicadores, o desempenho foi pior ou irregular no período em grande parte dos municípios. É curioso que, no caso de outros indicadores de processo, o desempenho oscile bastante ou piore significativamente nos dois últimos anos ou no último ano da série: a cobertura tetravalente cai da porcentagem de mais de 80% dos municípios cumprindo ou superando a meta nacional em 2007 para 66,9% em 2011. Ressalta-se, contudo, que mais de 20% dos municípios superam a meta de 100%, o que pode ser explicado tanto pelo caráter universal do SUS, que permite a dispersão da vacinação por vários motivos (viagem, disponibilidade do serviço), como pelo fato de a maioria dos municípios serem de pequeno porte, fazendo com que a aplicação de poucas doses a mais impacte fortemente o indicador, dado o baixo denominador. No pré-natal, há piora significativa a partir de 2010, quando 66% dos municípios alcançam desempenho abaixo da meta nacional, passando para 58% no ano seguinte. Essa queda pode ser explicada pela mudança no indicador que a partir de 2010 passa a considerar sete consultas e não mais quatro. Quanto à realização de exames citopatológicos, o desempenho nas duas faixas abaixo da meta nacional passa de 50% para mais de 80% dos municípios em 2011.

Os indicadores que medem a mortalidade infantil apontam resultados negativos levando-se em conta os parâmetros considerados: mesmo com melhoria significativa na proporção de municípios com taxa igual ou superior à meta nacional, mais da metade ainda apresentava baixo desempenho no final do período, e aproximadamente 80% estavam abaixo dos parâmetros considerados adequados pela OMS. Situação pouco mais favorável foi verificada em relação ao óbito infantil, com cerca de 40% dos municípios nas faixas superiores de desempenho.

A mortalidade neonatal apresenta melhora gradativa e, em 2011, 64% dos municípios apresentavam taxas iguais ou superiores à meta nacional. Nesse caso, o resultado é afetado significativamente pelo desempenho do sistema de saúde, ao passo que a mortalidade infantil reflete condições de vida mais gerais, externas ao sistema. Os resultados sugerem melhoria efetiva do desempenho da maioria dos municípios, mas ainda distante de uma situação desejável.

Nos indicadores que medem as taxas de internações por diabetes mellitus e suas complicações ou por acidente vascular cerebral, os resultados são similares e com pouca variação. Embora haja um percentual significativo de municípios com desempenho igual ou superior à meta nacional (mais de 40%), a maior concentração está na faixa mais baixa de desempenho e esses resultados permanecem constantes ao longo do período. Embora fuja ao escopo deste trabalho avaliar os indicadores do Pacto, cabe ressaltar as controvérsias sobre eles. As internações pelos motivos citados são usualmente utilizadas como indicadores do acesso e da qualidade da atenção primária, que, se ineficazes, podem levar à internação em função do agravamento de doenças crônicas (Alfradique et al., 2009ALFRADIQUE, M. et al. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP - Brasil). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 1337-1349, 2009.). Entretanto pode ocorrer o oposto, e a maior cobertura pela ESF pode facilitar internações necessárias em regiões carentes de serviços de saúde, gerando demanda para serviços hospitalares (Mafra, 2011MAFRA, F. O impacto da atenção básica em saúde em indicadores de internação hospitalar no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado em Regulação e Gestão de Negócios) - Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011.; Oliveira; Travassos; Carvalho, 2004OLIVEIRA, E. X. G.; TRAVASSOS, C.; CARVALHO, M. S. Acesso à internação hospitalar nos municípios brasileiros em 2000: territórios do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S298-S309, 2004. Suplemento 2.).

O segundo passo foi identificar o grau de desigualdade entre os municípios a partir do coeficiente de Gini. Em relação ao desempenho nos indicadores selecionados do Pacto pela Saúde, houve, em geral, certa estabilidade no índice de desigualdade, exceto no caso do CNES, que alcançou o valor zero em 2011. Já no indicador relativo a exames citopatológicos, registrou-se aumento da desigualdade no período de aproximadamente 13%, conforme apontado no Gráfico 2.

Gráfico 2
Índice de Gini do desempenho dos municípios nos indicadores selecionados do Pacto pela Saúde, Brasil, 2007-2011

A maior desigualdade é observada no índice parasitário anual de malária para os municípios da Amazônia Legal, com Gini acima de 0,60 durante todo o período, seguido pelas taxas de mortalidade infantil, neonatal, internações por diabetes (superiores a 0,50) e internações por acidente vascular cerebral (superiores a 0,45). Nos demais indicadores, a desigualdade entre municípios revelou-se abaixo de 0,20.

O próximo passo foi buscar identificar se existe uma relação entre os fatores estruturais selecionados e o desempenho dos municípios. Para isso, foi adotado o método de regressão linear múltipla, tendo como variável dependente indicadores do desempenho municipal55Os indicadores utilizados referem-se ao desempenho dos municípios em pré-natal, tetravalente, CNES, citopatológico, mortalidade infantil, óbito infantil, mortalidade neonatal, óbito neonatal, diabetes, EC29, PSF, AVC e malária, tendo como referência as metas nacionais para 2011. e, como variáveis explicativas, os fatores estruturais, relativos à capacidade instalada e financeira66Indicadores considerados: leitos SUS por mil habitantes (média mensal), médicos SUS por mil habitantes (média mensal), PIB municipal per capita, receitas de impostos e transferências constitucionais por habitante, despesa total em saúde por habitante e percentual de despesas próprias em saúde.. Um primeiro modelo utilizou um indicador sintético de desempenho na forma de um índice que varia de 0 a 100, sendo resultado da média aritmética de todos os indicadores. Outros modelos consideraram separadamente cada indicador de desempenho.

Os resultados do primeiro modelo de regressão, utilizando o índice sintético (média dos indicadores de desempenho) apontam que todas as variáveis independentes consideradas são altamente significantes para explicar o desempenho dos municípios (Tabela 2). A receita de impostos e transferências constitucionais, o percentual de despesas próprias em saúde e a despesa total em saúde, são, em ordem decrescente, os fatores com maior poder explicativo, conforme a análise do beta padronizado. Isso indica que a disponibilidade de recursos financeiros, gerais e específicos da saúde, é a dimensão que impacta com maior intensidade o desempenho.

Tabela 2
Modelos de regressão linear com indicador sintético de desempenho municipal no Pacto pela Vida e Pacto de Gestão como variável dependente, Brasil 2007-201177Além do modelo tradicional, foi elaborado um modelo com os coeficientes padronizados, o que permite comparar o impacto das variáveis sobre o desempenho dos municípios.

Fatores relacionados à capacidade instalada (disponibilidade de leitos e de médicos) apresentaram relação negativa e mais baixa com o desempenho, o que pode ajudar a explicar o baixo poder explicativo do modelo (R2=0,2565). Isso sugere que outros fatores não considerados, tais como diretrizes políticas, demanda por atendimento e a própria dinâmica regional de atenção na saúde também afetam o desempenho dos municípios.

Em relação ao segundo conjunto de modelos de regressão, que consideram cada indicador de desempenho separadamente (Tabela 3), as variáveis independentes foram significantes para explicar, na maior parte dos casos, os resultados alcançados pelos municípios, embora com variações entre os indicadores. A disponibilidade de médicos para o SUS e a despesa total em saúde foram significantes para explicar todos os indicadores de desempenho. Já o indicador de cobertura vacinal tetravalente não é explicado pelo PIB municipal, pelas receitas e pelo percentual de despesas próprias - o que se justifica pelo fato de que as vacinas são financiadas pelo Ministério da Saúde. O número de leitos para o SUS é significante para todos indicadores de desempenho, exceto, como era de se esperar, para o indicador pré-natal, que não demanda esse recurso.

Tabela 3
Modelos de regressão linear com indicadores de desempenho municipais no Pacto pela Vida e Pacto de Gestão como variáveis dependentes, Brasil 2007-201188Para cada um dos indicadores, foi elaborado o modelo tradicional e outro com os coeficientes padronizados, o que permite comparar o impacto das variáveis sobre o desempenho dos municípios.

Entretanto, o poder explicativo dos modelos como um todo é limitado, excetuando-se o cumprimento da EC29, que apresenta sobreposição óbvia ao fator explicativo percentual de despesas próprias em saúde (R2=0,982). Mesmo assim, alguns resultados são expressivos. As receitas de impostos e transferências constitucionais são significativas para explicar o melhor desempenho na realização de pré-natal e, principalmente, sobre o índice de malária (coeficientes de 0,3277319 e 0,5042745, respectivamente). Esse último, no entanto, é afetado negativamente pela despesa em saúde, confirmando a noção de que a incidência de malária é afetada pelas condições gerais de vida e, por sua vez, pelos recursos financeiros disponíveis ao município (fator exógeno ao setor saúde), mas não com a despesa específica em saúde (indicador de processo), que expressa os gastos com atendimentos e não necessariamente afetam a incidência da malária.

As mortalidades infantil e neonatal são forte e negativamente afetadas pela receita do município (-0,631951 e -0,5991063), o que destaca a importância das condições de vida para esses indicadores (fator exógeno ao setor saúde). A disponibilidade de médicos também é relevante para os dois indicadores (0,3098398 e 0,3098398, respectivamente), sugerindo uma associação entre a diminuição da mortalidade infantil e neonatal e a existência de profissionais para realização do acompanhamento e tratamento médico requeridos, seja no acompanhamento do pré-natal e parto das gestantes, seja para os cuidados aos bebês no seu primeiro ano de vida.

Conclusão

A reforma institucional proposta inicialmente no processo de formulação do Pacto pela Saúde tinha como foco a definição de mecanismos de gestão para avançar na solidariedade compartilhada entre os entes federativos. A incapacidade de resolução dos conflitos levou à redução do Pacto a uma proposta de gestão por resultados a partir da definição de metas individuais e não cooperativas. Embora pretensamente federativo, pode-se dizer que o Pacto não ampliou a cooperação entre os entes federados.

Da perspectiva da assunção pelos municípios de obrigações em relação à saúde, houve uma evolução positiva do cumprimento das metas acordadas durante a vigência do Pacto, à exceção de 2011, quando os resultados sofreram queda considerável, não passível de ser explicada no escopo desta pesquisa. Essa evolução positiva, entretanto, não esconde que grande parte dos municípios não alcançou as metas pactuadas por eles mesmos, ainda que esses resultados divirjam consideravelmente entre diferentes indicadores. O maior alcance das metas está relacionado com a existência de incentivos legais e normativos e com sanções impostas pela Constituição ou pelo MS ou, ainda, pelo grau de autonomia do município para cumprir a pactuação, quando não há dependência de outros entes federados ou atores na atenção à saúde.

Cumprir os acordos ou metas não significa ter desempenho satisfatório em termos de garantir atenção adequada. Comparando o desempenho dos municípios com as metas nacionais e parâmetros internacionais, verificou-se grande disparidade entre os indicadores. Houve melhoria no cumprimento da EC29, alimentação do CNES, cobertura pelo ESF (todos indicadores de processo) e na redução da malária na Amazônia Legal. Inversamente, houve piora nos indicadores de cobertura tetravalente, pré-natal e exames citopatológicos. O desempenho da maioria não é positivo em relação à mortalidade infantil, que expressa as condições de vida, mas é melhor no caso da mortalidade neonatal, bastante afetada pelo desempenho do sistema de saúde e disponibilidade de recursos. Também em relação ao desempenho é possível constatar melhoria na maioria dos indicadores em que a atuação do município é autônoma, ou seja, não depende da cooperação de outros, ou é reforçada pelos incentivos, negativos ou positivos, das regras nacionais e do governo federal (EC29, CNES, malária, ESF, cobertura vacinal).

A tentativa de identificar fatores estruturais capazes de serem associados ao desempenho sinalizou a influência da disponibilidade de recursos financeiros sobre o desempenho dos municípios, que parece estar mais associado à disponibilidade geral de recursos financeiros do que propriamente aos gastos em saúde. Os recursos que indicam a capacidade de prestação de serviços (disponibilidade de leitos hospitalares e de médicos) parecem ter impacto bem menor sobre o desempenho, o que sugere que os gastos em outros setores, propiciados pela maior receita municipal, podem ter efeitos significativos sobre a saúde.

Entretanto, mesmo que o desempenho não seja satisfatório na maioria dos municípios, e apesar das diferenças em relação aos recursos disponíveis, a desigualdade entre eles, expressa pelo Gini, não é expressiva na maioria dos indicadores, o que demonstra o impacto da coordenação nacional e do poder distributivo da União sobre o desempenho municipal, particularmente quanto a recursos financeiros.

Este estudo tem a limitação de trabalhar com os indicadores definidos pelo Pacto da Saúde a partir das prioridades da política de saúde nacional e podem ser insuficientes para avaliar desempenho, considerando ainda que a seleção reduziu o seu número. Os indicadores selecionados, porém, atendem ao objetivo de fazer uma análise diacrônica, no esforço inédito de avaliar o Pacto pela Saúde em todo seu período de vigência, comparando metas pactuadas com as metas alcançadas por todos os municípios brasileiros. O estudo vai além ao buscar usar os mesmos indicadores para avaliar os resultados que em alguma medida indicam o desempenho dos municípios. Mas diversas variáveis afetam o desempenho e as relações intergovernamentais, como desigualdade de porte, modos de transporte disponíveis, logística loco-regional ou habilidades de gestão, entre outras. Essa pode ser uma agenda de pesquisa importante para a análise do desempenho em saúde e das relações federativas. As inferências e hipóteses feitas a partir de indicadores quantitativos sugerem também a necessidade de explorá-las em estudos qualitativos em profundidade.

Apesar dessas limitações, o estudo mostra que o Pacto pela Saúde parece ter contribuído para a formação de uma agenda de prioridades de âmbito nacional, para a ampliação do conhecimento dos municípios sobre suas próprias capacidades e sobre o acompanhamento de seu desempenho. Por outro lado, o Pacto parece ter tido pouca repercussão sobre o desempenho dos municípios, particularmente quando depende da cooperação federativa ou intermunicipal (taxas de internação por AVC ou por diabetes e realização de exames citopatológicos) ou de fatores exógenos ao setor saúde (taxa de mortalidade infantil), indicadores nos quais o desempenho não foi favorável em grande parte dos municípios, possivelmente em consequência da permanência de um modelo que se guia por uma pactuação individual e não colaborativa.

O Pacto, enfim, teve pouco ou nenhum efeito para induzir a cooperação. Sua extinção em 2011 aponta para seu esvaziamento gradativo enquanto política pública. Obter a cooperação entre os entes federados continua sendo o desafio no processo de efetivação do direito constitucional à saúde, e construir um verdadeiro pacto entre gestores dos três níveis de governo e entre a sociedade em geral, a quem cabe o financiamento do sistema de saúde, ainda permanece como o horizonte da necessidade.

Agradecimentos

Agradecemos aos comentários de Marta Arretche para a primeira versão, apresentada em Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, e à contribuição de Bruno Guimarães de Melo para a análise estatística.

Referências

  • ALFRADIQUE, M. et al. Internações por condições sensíveis à atenção primária: a construção da lista brasileira como ferramenta para medir o desempenho do sistema de saúde (Projeto ICSAP - Brasil). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 1337-1349, 2009.
  • ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV: Fiocruz, 2012.
  • ARRETCHE, M. Federalism, social policy, and reductions in territorial inequality in Brazil. In: SCHNEIDER, B. R. New order and progress: development and democracy in Brazil. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 108-134.
  • BITTAR, O. J. N. V. Indicadores de qualidade e quantidade em saúde. Revista de Administração em Saúde, São Paulo, v. 3, n. 12, p. 21-28, 2001.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do Referido Pacto. Diário Oficial da União, Brasília, 23 fev. 2006. Seção 1, p. 43-51.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.669, de 3 de novembro de 2009. Estabelece as prioridades, objetivos, metas e indicadores de monitoramento e avaliação do Pacto pela Saúde, nos componentes pela Vida e de Gestão, e as orientações, prazos e diretrizes do seu processo de pactuação para o biênio 2010 - 2011. Diário Oficial da União, Brasília, 6 nov 2009.
  • DONABEDIAN, A. A gestão da qualidade total na perspectiva dos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1994.
  • FORTES, F. B. C. T. P. Inovação institucional no contexto do federalismo brasileiro pós-1988: a Emenda Constitucional 29 de 2000 e os governos estaduais. 2008. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
  • LEVCOVITZ, E.; LIMA, L. D.; MACHADO, C. V. Política de saúde nos anos 90: relações intergovernamentais e o papel das Normas Operacionais Básicas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 269-291, 2001.
  • MACHADO, J. A. Pacto de gestão na saúde: até onde esperar uma “regionalização solidária e cooperativa”? Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 24, n. 71, p. 105-119, 2009.
  • MAFRA, F. O impacto da atenção básica em saúde em indicadores de internação hospitalar no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado em Regulação e Gestão de Negócios) - Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Ciência da Informação e Documentação da Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2011.
  • MARTINS, M.; BLAIS, R.; LEITE, I. C. Mortalidade hospitalar e tempo de permanência: comparação entre hospitais públicos e privados na região de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S268-S282, 2004. Suplemento 2.
  • MENDES, E. V. A descentralização do sistema de serviços de saúde no Brasil: novos rumos e um outro olhar sobre o nível local. In: MENDES, E. V. (Org.). A organização da saúde no nível local. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 17-55.
  • MENICUCCI, T. M. G. A relação entre o público-privado e o contexto federativo do SUS: uma análise institucional. Santiago do Chile: Cepal, 2014a. (Série Políticas Sociais, n. 196)
  • MENICUCCI, T. M. G. Cooperação e coordenação na implementação de políticas públicas: as relações intergovernamentais na regionalização da assistência à saúde. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CIÊNCIA POLÍTICA, 9., 2014, Belo Horizonte. Anais… Belo Horizonte: FAPEMIG, 2014b.
  • MENICUCCI, T. M. G. et al. Regionalização da atenção à saúde em contexto federativo e suas implicações para a equidade de acesso e a integralidade da atenção. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2008.
  • OLIVEIRA, E. X. G.; TRAVASSOS, C.; CARVALHO, M. S. Acesso à internação hospitalar nos municípios brasileiros em 2000: territórios do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S298-S309, 2004. Suplemento 2.
  • PIOLA, S. F. et al. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Texto para discussão nº 1.846. Rio de Janeiro: IPEA, 2013.
  • SCHNEIDER, M. C. et al. Métodos de medición de las desigualdades de salud. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 12, n. 6, p. 398-415, 2002.
  • SOARES, J. F. Measuring cognitive achievement gaps and inequalities: the case of Brazil. International Journal of Educational Research, Amsterdam, v. 45, n. 3, p. 176-187, 2006.
  • VIEGAS, M. et al. Análise da eficiência hospitalar no estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: FJP, 2007.

  • 1
    A pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

  • 2
    MENICUCCI, T. M. G.; COSTA, L. A.; MACHADO, J. A. Pacto pela saúde: aproximações e colisões na arena federativa. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, no prelo. Disponível em: <https://goo.gl/lGHwqp>. Acesso em: 26 abr. 2017.

  • 4
    Arretche (2016ARRETCHE, M. Federalism, social policy, and reductions in territorial inequality in Brazil. In: SCHNEIDER, B. R. New order and progress: development and democracy in Brazil. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 108-134.), por exemplo, compara desigualdades entre municípios em relação aos resultados de políticas sociais, e Soares (2006SOARES, J. F. Measuring cognitive achievement gaps and inequalities: the case of Brazil. International Journal of Educational Research, Amsterdam, v. 45, n. 3, p. 176-187, 2006.) mensura desigualdades na educação.

  • 5
    Os indicadores utilizados referem-se ao desempenho dos municípios em pré-natal, tetravalente, CNES, citopatológico, mortalidade infantil, óbito infantil, mortalidade neonatal, óbito neonatal, diabetes, EC29, PSF, AVC e malária, tendo como referência as metas nacionais para 2011.

  • 6
    Indicadores considerados: leitos SUS por mil habitantes (média mensal), médicos SUS por mil habitantes (média mensal), PIB municipal per capita, receitas de impostos e transferências constitucionais por habitante, despesa total em saúde por habitante e percentual de despesas próprias em saúde.

  • 7
    Além do modelo tradicional, foi elaborado um modelo com os coeficientes padronizados, o que permite comparar o impacto das variáveis sobre o desempenho dos municípios.

  • 8
    Para cada um dos indicadores, foi elaborado o modelo tradicional e outro com os coeficientes padronizados, o que permite comparar o impacto das variáveis sobre o desempenho dos municípios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2016
  • Revisado
    10 Mar 2017
  • Aceito
    06 Abr 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br