Práticas educativas dos serviços dirigidos a trabalhadores(as) do sexo em Portugal11Pesquisa financiada pela Feder através do Programa Operacional Fatores de Competitividade (Compete), pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), projeto PEst-C/CED/UI0194/2013 e pela bolsa de doutoramento da FCT (SFRH/BD/78139/2011).

Educational practices of services for sex workers in Portugal

Resumo

Os projetos de educação social e em saúde dirigidos a trabalhadores(as) do sexo são sobretudo desenvolvidos por organizações não governamentais. Essas organizações têm diferentes perspectivas sobre a prostituição, entendendo-a como opressão ou trabalho. No entanto, pouco é conhecido sobre a forma como essas perspectivas moldam suas práticas educativas. Neste estudo qualitativo, pretende-se identificar as ações educativas empreendidas pelas 23 organizações que dirigem serviços a trabalhadores(as) do sexo em Portugal, tendo em conta as perspectivas em que se inserem. A partir dos três paradigmas teóricos presentes na literatura sobre o trabalho sexual - opressão, empoderamento e polimorfo (neutro) -, estabelecemos ligação com a perspectiva institucional sobre o trabalho sexual. Concluímos que as ações educativas são influenciadas pelas visões sobre a prostituição; incidem predominantemente na educação em saúde e, de forma menos expressiva, focalizam no desenvolvimento de competências sociais e no empoderamento. Não obstante a importância e a relevância do trabalho dessas organizações, evidencia-se a necessidade de uma avaliação mais estruturada e participada das ações, que devem promover a participação dos(as) trabalhadores(as) do sexo no planejamento, na implementação e na avaliação dos projetos que lhes são dirigidos.

Palavras-chave:
Educação Não Formal; Trabalho Sexual; Organizações

Abstract

Health and social education projects for sex workers are run mainly by nongovernmental organizations. These organizations have different perspectives regarding prostitution, seeing it as either oppression or as work. However, little is known about how their ideological stance shapes their educational practices. In this qualitative study, we aim to identify educational initiatives undertaken by the 23 agencies that provide services for sex workers in Portugal, considering their respective stances on the subject. We link their perspectives on sex work with the three theoretical paradigms in sex work literature: oppression, empowerment and polymorphous (neutral). We concluded that educational initiatives are influenced by views on prostitution. These are focused mainly on health education; and, in at lesser degree, on developing social skills and on empowerment. Despite the importance and relevance of these organizations’ work, the findings highlight the need for more structured and participatory initiatives, which should seek to encourage sex workers’ participation in the design, implementation and evaluation of projects that concern them.

Keywords:
Non-formal Education; Sex Work; Organizations

Introdução

A educação não formal (ENF), definida como uma atividade baseada em fundamentos educacionais e pedagógicos que se desenvolve em organizações educacionais e da comunidade exteriores à escola, implicando atributos únicos, contextos específicos e metodologia característica (Romi; Schmida, 2009ROMI, S.; SCHMIDA, M. Non-formal education: a major educational force in the postmodern era. Cambridge Journal of Education, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 257-273, 2009.), encontra-se associada a movimentos sociais que almejam a mudança da sociedade (Finger, 2005FINGER, M. A educação de adultos e o futuro da sociedade. In: CANÁRIO, R.; CABRITO, B. (Org.). Educação e formação de adultos. Mutações e convergências. Lisboa: Educa, 2005. p. 15-30.). Caracteriza-se pela flexibilidade, abertura à mudança, capacidade de adaptação a populações heterogêneas, com muitas e diversas necessidades educacionais (Romi; Schmida, 2009ROMI, S.; SCHMIDA, M. Non-formal education: a major educational force in the postmodern era. Cambridge Journal of Education, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 257-273, 2009.), assumindo-se como um processo de aquisição e conjunto de competências, destrezas e atitudes adquiridas com estímulos diretamente educativos em atividades não confirmadas pelo sistema escolar (Touriñán López, 1996TOURIÑÁN LÓPEZ, J. M. Análisis conceptual de los procesos educativos formales, no formales e informales. Teoría de la Educación: Revista Interuniversitaria, Salamanca, n. 8, p. 55-79, 1996.). Essas aquisições contribuem para o exercício pleno de uma cidadania ativa, consciente e emancipatória, contemplando as diversas dimensões do desenvolvimento e da satisfação humana. Enquanto processo de aprendizagem, a ENF parte do entendimento dos sujeitos como portadores de capacidade e poder de acrescentar mais e melhores competências à sua realização pessoal em uma participação ativa na sociedade (Freire, 1972FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1972.). Desse modo, a educação deve ser entendida como processo dialógico do aperfeiçoamento humano, concretizando-se no plano dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (Amado, 2013AMADO, J. A investigação em educação e seus paradigmas. In: AMADO, J. Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013. p. 19-71.).

As práticas educativas associadas à ENF são maioritariamente empreendidas por organizações da sociedade civil e assumem as mais diversas formas, muitas vezes ligadas à intervenção comunitária, à ação social ou à animação sociocultural; e encontram-se normalmente integradas em programas com objetivos sociais mais amplos (Luque, 1997LUQUE, P. A. Educación no formal: un acercamiento a otras instituciones educativas. Pedagogía Social: Revista Interuniversitaria, Sevilla, v. 15-16, p. 313-320, 1997.), como é o caso do trabalho desenvolvido por programas e organizações não governamentais (ONG) com pessoas que se prostituem. Essas organizações assumem um papel preponderante, na medida em que desenvolvem espaços e tempos educativos mais próximos dos cidadãos e conseguem fornecer respostas imediatas e adaptadas às necessidades prementes.

Em Portugal, a intervenção educativa desenvolvida com os(as) trabalhadores(as) do sexo (TS) centra-se sobretudo numa abordagem de educação em saúde, no sentido da redução de riscos e minimização de danos, prevenção das doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a hepatite B, a sífilis e o HIV/aids (Coutinho; Oliveira, 2014COUTINHO, J.; OLIVEIRA, A. Redução de riscos no trabalho sexual em Portugal: representações dos técnicos interventores. Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 15, n. 2, p. 538-553, 2014.; Maia; Rodrigues, 2014MAIA, M.; RODRIGUES, C. As organizações da sociedade civil na prevenção das infeções sexualmente transmissíveis em trabalhadoras do sexo, em Portugal. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 77-90, 2014.; Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.).

Muito embora, no decorrer das últimas décadas, assistimos à transformação dos conceitos quer de educação, quer de saúde, alargando os espectros a outros contextos, formas e atores (Feio; Oliveira, 2015FEIO, A.; OLIVEIRA, C. C. Confluências e divergências conceituais em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 703-715, 2015.), existe ainda pouco conhecimento sobre as práticas educativas empreendidas pelas ONG com os(as) TS, suas potencialidades e limitações.

A educação em saúde é considerada uma atividade de promoção de saúde, relacionada com o empoderamento dos sujeitos, no sentido destes adquirirem um maior controle sobre os fatores que afetam a saúde. (Ewles e Simnett, 2003EWLES, L.; SIMNETT, I. Promoting health: a practical guide. 5. ed. Edinburgh: Baillière Tindall Elsevier, 2003.) distinguem cinco abordagens de promoção de saúde: (1) a abordagem médica, que recorre a métodos de intervenção persuasivos e paternalistas; (2) a abordagem de mudança comportamental, que visa encorajar a adoção de um estilo de vida saudável; (3) a abordagem educativa, na qual se inclui o facultar informação, assegurar o conhecimento e compreensão de questões ligadas com a saúde e permitir a tomada de decisão informada; (4) a abordagem centrada no cliente, em que o papel do educador é de facilitador no processo de ajudar as pessoas a identificar as preocupações, a adquirir conhecimento e competências para a mudança. Nessa abordagem os sujeitos são considerados como iguais, com conhecimento, competências e capacidades de assumir controle sobre suas vidas, estando presente o constructo de empoderamento; (5) a abordagem de mudança da sociedade, que se propõe a efetuar mudanças no ambiente físico, social e econômico, e se incluem os que defendem que têm o direito democrático de mudar a sociedade e estão comprometidos em colocar a saúde na agenda política. A essas abordagens correspondem três gerações diferentes de educação em saúde em função do seu foco: transmissão de informação; mudança comportamental; e promoção da capacidade individual (Feio; Oliveira, 2015FEIO, A.; OLIVEIRA, C. C. Confluências e divergências conceituais em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 703-715, 2015.) As primeiras abordagens encontram-se associadas à concepção de educação bancária (Freire, 1972FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1972.), isto é, a um modelo tradicional de educação em saúde, e a última, por sua vez, ao modelo dialógico, centrada numa abordagem crítica, reflexiva e no diálogo (Figueiredo; Rodrigues-Neto; Leite, 2010FIGUEIREDO, M. F. S.; RODRIGUES-NETO, J. F.; LEITE, M. T. S. Modelos aplicados às atividades de educação em saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 63, n. 1, p. 117-121, 2010.).

As iniciativas de educação em saúde, com os(as) TS, assumem sobretudo um cariz epidemiológico (Coutinho; Oliveira, 2014COUTINHO, J.; OLIVEIRA, A. Redução de riscos no trabalho sexual em Portugal: representações dos técnicos interventores. Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 15, n. 2, p. 538-553, 2014.; Maia; Rodrigues, 2014MAIA, M.; RODRIGUES, C. As organizações da sociedade civil na prevenção das infeções sexualmente transmissíveis em trabalhadoras do sexo, em Portugal. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 77-90, 2014.; Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.), o que pode remeter para a prevalência de dispositivos de controle sobre o corpo e a sexualidade, consolidada numa estratégia de Saber-Poder (Foucault, 1990FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.) para a vigilância higiénico-sanitária dos(as) TS com benefícios para a saúde pública, tal como ocorreu no passado com a proliferação de discursos sobre a sexualidade (Foucault, 1990FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.). É possível que essa abordagem se enquadre no advento da aids e na construção probabilística do risco (Almeida Filho, 1989ALMEIDA FILHO, N. Epidemiologia sem números: uma introdução à ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus, 1989.), uma vez que a prostituição encontra-se associada à atividade sexual com diversos parceiros e, por isso, sujeita a um risco ocupacional (Ross et al., 2012ROSS, M. W. et al. Occupational health and safety among commercial sex workers. Scandinavian Journal of Work, Environment & Health, Helsinki, v. 38, n. 2, p. 105-119, 2012.). Justifica-se, por essa via, a centralidade da educação em saúde e, consequentemente, a relativa escassez de estudos sobre a intervenção socioeducativa dessas organizações, numa perspectiva mais abrangente - com exceção de (Ayuste González e Payá Sánchez, 2014AYUSTE GONZÁLEZ, A.; PAYÁ SÁNCHEZ, M. La relación educativa con mujeres en contextos de prostitución: la dimensión pedagógica de la intervención. Educación XX1, Barcelona, v. 17, n. 1, p. 289-308, 2014.).

Vários estudos apontam que o preservativo é usado com frequência nas relações sexuais comerciais (Day, 1988DAY, S. Prostitute women and AIDS: anthropology. AIDS, London, v. 2, n. 6, p. 421-428, 1988.; Mckeganey; Barnard, 1996MCKEGANEY, N. P.; BARNARD, M. Sex work on the streets: prostitutes and their clients. Buckingham: Open University, 1996.; Ward et al., 1993WARD, H. et al. Prostitution and risk of HIV: female prostitutes in London. British Medical Journal, London, v. 307, n. 6900, p. 356-358, 1993.), sendo que é nas relações íntimas e com clientes habituais que se pratica mais sexo sem preservativo (Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.; Ward et al., 1993WARD, H. et al. Prostitution and risk of HIV: female prostitutes in London. British Medical Journal, London, v. 307, n. 6900, p. 356-358, 1993.). Outras investigações demonstram ainda uma prevalência baixa de HIV entre os TS na Europa, com a exceção de consumidores de drogas intravenosas, e migrantes de países onde o HIV é endémico, que são infetados no país de origem e não no país de acolhimento (Gaffney et al., 2008GAFFNEY, J. et al. Practical guidelines for delivering health services for sex workers. Amsterdam: Foundation Regenboog AMOC, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/74M0bG >. Acesso em: 12 nov. 2015.
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). No entanto, em Portugal, a prevalência de infeção pelo HIV é ainda bastante alta entre os(as) TS, pelo que são recomendados esforços no sentido da promoção do diagnóstico e prevenção sobretudo com os subgrupos mais vulneráveis ao risco, por exemplo, TS masculinos e transgênero (Dias et al., 2014DIAS, S. et al. Risk-taking behaviours and HIV infection among sex workers in Portugal: results from a cross-sectional survey. Sexually Transmitted Infections, London, v. 91, n. 5, p. 346-352, 2014.).

A partir da revisão da literatura sobre riscos de saúde, ocupação e segurança no trabalho sexual, (Ross et al., 2012ROSS, M. W. et al. Occupational health and safety among commercial sex workers. Scandinavian Journal of Work, Environment & Health, Helsinki, v. 38, n. 2, p. 105-119, 2012.) salientam que os riscos ocupacionais associados ao trabalho sexual ultrapassam as DST. Nessa sequência, enfatizam aspectos relacionados com a saúde física e mental, bem como questões associadas à segurança, nomeadamente burnout, estresse pós-traumático, estresse, depressão, dependência de álcool e drogas, alergia ao látex, morte, ferimentos/lesões a nível muscular e do esqueleto; coação para relações desprotegidas e gravidez; violência e assédio perpetrados por clientes e/ou proxenetas. Para diversos autores (Lazarus et al, 2012LAZARUS, L. et al. Occupational stigma as a primary barrier to health care for street-based sex workers in Canada. Culture, Health & Sexuality, London, v. 14, n. 2, p. 139-150, 2012.; Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.; Ross et al., 2012ROSS, M. W. et al. Occupational health and safety among commercial sex workers. Scandinavian Journal of Work, Environment & Health, Helsinki, v. 38, n. 2, p. 105-119, 2012.), esses e outros riscos encontram-se associados à legislação vigente e à estigmatização das(os) TS.

Em termos do enquadramento legal do trabalho sexual em Portugal, não existe criminalização de quem compra ou vende serviços sexuais, apenas é punível legalmente a prática de lenocínio. O Estado não reconhece a profissão e não existem quaisquer medidas que protegem as condições de trabalho e de vida dos(as) TS. Não obstante o denominado vazio legal (Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.), a sociedade continua a considerar os(as) TS como desviantes, na medida em que desafiam as regras de gênero de honra/desonra (Pheterson, 1993PHETERSON, G. The whore stigma: female dishonor and male unworthiness. Social Text, Durham, n. 37, p. 39-64, 1993.), imposta pela dominação do patriarcado (Bourdieu, 1999BOURDIEU, P. A dominação masculina. Oeiras: Celta, 1999.) e pela construção social do gênero (Bourdieu, 1999; Scott, 1995SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.). Os discursos, que (in)formam as representações socialmente construídas sobre a prostituição, tendem a vulnerabilizar os(as) TS à exclusão, discriminação e estigmatização

De acordo com (Weitzer, 2009WEITZER, R. Sociology of sex work. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 35, p. 213-234, 2009.), os discursos sociais e científicos tendem a assumir duas posições divergentes - uma que defende a prostituição enquanto trabalho (empoderamento) e outra que a considera uma atividade a erradicar (opressão). Para o autor, o trabalho sexual não pode ser reduzido a um dos paradigmas, sugerindo, desse modo, o paradigma polimorfo para designar uma constelação de arranjos ocupacionais, relações de poder e experiências de trabalho diferentes. Estudos recentes apontam que estes três paradigmas correspondem às orientações ideológicas das organizações e moldam os objetivos e a prática dos serviços dirigidos a TS (Graça; Gonçalves, 2015GRAÇA, M.; GONÇALVES, M. Serviços dirigidos a trabalhadores(as) do sexo em Portugal: ideologias e práticas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 547-570, 2015.; Oselin; Weitzer, 2013OSELIN, S. S.; WEITZER, R. Organizations working on behalf of prostitutes: an analysis of goals, practices, and strategies. Sexualities, London, v. 16, n. 3-4, p. 445-466, 2013.).

Nesse seguimento, este estudo tem por objetivo identificar divergências e convergências nas práticas educativas não formais, empreendidas pelas organizações que dirigem serviços a TS, em Portugal, tendo em conta os paradigmas presentes no trabalho sexual e a forma como se repercutem nessas práticas.

Para o efeito, entendemos por trabalho sexual as situações que envolvem a troca comercial de serviços sexuais, performances ou produtos, entre adultos e com consentimento, na qual se incluem atividades de contato físico direto entre compradores e vendedores (por exemplo, a prostituição); e as de estimulação sexual indireta (Oliveira, 2011OLIVEIRA, A. Andar na vida: prostituição de rua e reacção social. Coimbra: Almedina, 2011.; Weitzer, 2009WEITZER, R. Sociology of sex work. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 35, p. 213-234, 2009.). Referimo-nos à prostituição como uma forma de trabalho sexual e utilizamos as duas designações indistintamente.

Método

Participantes e respectiva seleção

Para este estudo qualitativo, consideramos as organizações em território nacional que, à data deste estudo, contemplam as(os) TS como população-alvo e, portanto, desenvolvem trabalho com esses sujeitos, num total de 23.

Técnica de recolha de dados e procedimentos éticos

Foram efetuadas 23 entrevistas semiestruturadas com coordenadores da equipe ou a elementos da equipe técnica. Ressalvamos que efetuamos uma análise tendo em conta a atuação da instituição e não os percursos individualizados dos seus representantes.

Essas entrevistas foram realizadas entre outubro de 2012 e março de 2013. Os(as) entrevistados(as) consentiram a participação no estudo e a gravação em áudio das entrevistas, tendo sido as respectivas transcrições enviadas para eles para eventuais retificações. Retiramos, ainda, todas as referências que podiam identificar os participantes, preservando a confidencialidade e anonimato. Esta pesquisa foi conduzida respeitando os princípios éticos, tendo sido previamente aprovada pelo Centro de Investigação que acolhe este estudo.

Procedimento de tratamento dos dados

Para analisar o corpus optamos pela técnica de análise de conteúdo das respostas, do tipo categorial ou temática, tendo sido considerada a técnica mais adequada pelas suas dimensões descritiva e interpretativa. Adotamos os princípios e procedimentos indicados na literatura especializada sobre esta técnica (Strauss; Corbin, 2008STRAUSS, A.; CORBIN, J. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2008.) Recorremos ainda ao software de análise qualitativa WebQDA.

Resultados e discussão

Neste ponto apresentamos brevemente algumas características das organizações e dos serviços que disponibilizam, para posteriormente focalizar as iniciativas de ENF empreendidas. Procedemos ainda à identificação de necessidades formativas e refletimos sobre a relação educativa estabelecida entre técnicos e TS. Para esta análise estabelecemos ligação entre a perspectiva sobre a prostituição identificada no discurso dos(as) entrevistados(as) e os paradigmas presentes na literatura sobre o tema (Quadro 1). A categorização das posições das organizações foi encontrada por meio de questão aberta, sobre a forma como entendem o trabalho sexual e os atores envolvidos.

Quadro 1
Categorias de análise

À data deste estudo, as 23 organizações que ofereciam serviços a TS, à exceção de duas que pertencem ao Ministério da Saúde, são na maioria ONG, onde se incluem três de índole religiosa. O perfil dos(as) educadores(as) entrevistados(as) é predominantemente técnico e não existem associações de profissionais do sexo em Portugal. Subsistem, no entanto, ainda que de forma residual, organizações que integram TS como mediadores e/ou educadores(as) de pares.

Os serviços disponibilizados encontram-se focalizados sobretudo nas seguintes áreas: (1) apoio à saída da atividade (opressão); (2) defesa dos direitos dos(as) TS, incluindo a saúde e a segurança ocupacional (empoderamento); (3) redução de riscos e minimização de danos decorrentes do trabalho sexual (polimorfo).

De forma geral, os serviços disponibilizados abrangem a saúde, o apoio psicossocial e a educação/formação, sendo que o apoio à saída da atividade é efetuado por duas das organizações de cariz religioso. A instituição mais antiga iniciou a intervenção em 1967 e a mais recente em 2012, mas é nos anos 2000 que se regista um maior número de novas iniciativas, num total de 18, relacionado com a abertura de candidaturas a projetos financiados da Direção-Geral da Saúde e, possivelmente, na sequência da integração oficial das ONG, a partir de 1994, na estratégia nacional de combate à aids (Lopes, 2001LOPES, A. Lógicas do terceiro setor português na gestão do complexo VIH/SIDA. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 61, p. 169-206, 2001.) Esses serviços dirigem-se sobretudo a mulheres, havendo apenas um projeto especializado no atendimento a homens e outro a transgênero. Essa opção encontra-se relacionada com a notoriedade da prostituição feminina, maioritária e mais acessível; e com as dificuldades na acessibilidade, falta de recursos e conhecimentos para intervenção com homens e transgênero.

Foram identificadas iniciativas educativas dirigidas a três tipos de público: (1) aos(às) TS; (2) à comunidade e (3) a técnicos de outras organizações da rede de serviços local, conforme explicitamos em seguida.

Ações dirigidas a TS

Iniciativas de educação em saúde e social

De acordo com os resultados obtidos, a maioria das organizações desenvolve ações de ENF para TS, incidindo sobre as questões de saúde. Esse aspecto, associado aos objetivos delineados pelas organizações, que se centram predominantemente na promoção da saúde, pode ser explicado pela entidade financiadora e ainda pela atribuição de papéis nessa área a diferentes indivíduos, grupos e comunidades ou instituições (Feio; Oliveira, 2015FEIO, A.; OLIVEIRA, C. C. Confluências e divergências conceituais em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 703-715, 2015.; Greene; Simons-Morton, 1988GREENE, W. H.; SIMONS-MORTON, B. G. Educación para la Salud. México: Interamericana, 1988.; WHO, 1978WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Declaration of Alma-Ata. Geneva, 1978. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/aikTrM >. Acesso em: 21 jan. 2016.
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, 1986WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The Ottawa charpter for health promotion. Geneva, 1986. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/wY5n4F >. Acesso em: 21 jan. 2016.
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). Contudo, como mais da metade das organizações contemplam objetivos comuns de promoção social, encontramos ainda referência a outro tipo de ações, conforme nos apresenta a Tabela 1. Essas ações são geralmente semiestruturadas, informais, realizadas individualmente, não obedecendo a programas pré-estabelecidos. Assumem, desse modo, características associadas a iniciativas de ENF, conforme elencadas por (Romi e Schmida, 2009ROMI, S.; SCHMIDA, M. Non-formal education: a major educational force in the postmodern era. Cambridge Journal of Education, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 257-273, 2009.)

Tabela 1
Tipologia de ações de ENF dirigida a TS

Educação em saúde: a saúde como um direito fundamental

A Organização Mundial de Saúde estabelece a saúde como um direito fundamental (WHO, 1978WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Declaration of Alma-Ata. Geneva, 1978. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/aikTrM >. Acesso em: 21 jan. 2016.
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), pelo que, em todas as categorias, a saúde é apontada como um aspecto prioritário, no entanto, difere a forma como é abordada Os(as) entrevistados(as) da categoria opressão consideram que é e deve ser assegurada pelos serviços formais, e justificam a pouca iniciativa nessa área com a inclusão, empoderamento e rentabilização dos recursos.

Tem a ver também com a nossa pedagogia, é importante ensinar as pessoas, não criar guetos, porque em guetos elas já vivem. Vamos criar outro gueto com o médico, com o enfermeiro? (E12 - opressão).

Ao contrário dos(as) entrevistados(as) da categoria opressão, os(as) entrevistados(as) da categoria empoderamento e polimorfo consideram que os serviços formais de saúde nem sempre respondem de forma adequada, o que justifica seu papel no âmbito da educação em saúde e a necessidade identificada de sensibilização nos serviços formais, de forma a diminuir o preconceito, os julgamentos morais e a promover o respeito pelas pessoas. O estigma associado ao trabalho sexual tem sido apontado como uma barreira de acesso aos serviços (Lazarus et al., 2012LAZARUS, L. et al. Occupational stigma as a primary barrier to health care for street-based sex workers in Canada. Culture, Health & Sexuality, London, v. 14, n. 2, p. 139-150, 2012.), pelo que os pressupostos da não discriminação e do não julgamento são essenciais para pessoas estigmatizadas que raramente se sentem confiantes para procurar ajuda nos serviços de saúde e sociais formais.

Os próprios serviços de saúde ainda não estão muito, ainda há muito a fazer para mudar mentalidades e acabar com preconceitos e ideias pré-formadas (E1 - polimorfo).

a questão dos transexuais, por exemplo, […] há muitos serviços onde são discriminados, onde são olhados, e aqui, as administrativas, toda a gente está habituada, podem vir mais espampanantes, menos espampanantes (E11 - polimorfo).

No campo da educação em saúde, as organizações adotam uma abordagem educativa (Ewles; Simnett, 2003EWLES, L.; SIMNETT, I. Promoting health: a practical guide. 5. ed. Edinburgh: Baillière Tindall Elsevier, 2003.; Feio; Oliveira, 2015FEIO, A.; OLIVEIRA, C. C. Confluências e divergências conceituais em educação em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 703-715, 2015.), na prestação de informação genérica sobre saúde sexual e reprodutiva; sobre o uso correto e consistente do preservativo, bem como sobre os diferentes preservativos, incluindo o feminino; sobre cuidados de higiene; sensibilizam para a importância da realização do Plano Nacional de Vacinação (PNV) e rastreios a DST; prestam aconselhamento e esclarecem dúvidas. Com a exceção de uma instituição da categoria opressão, todas disponibilizam material preventivo, como preservativos e lubrificantes, e algumas facultam folhetos com informação diversa sobre DST. A disponibilização de material preventivo, a par da estratégia de outreach (utilizada por 19 organizações), é a tática mais adotada para contornar a dificuldade de acessibilidade inicial à população. O outreach é considerado uma estratégia de alcance de grupos considerados de difícil acesso, que não procuram os serviços formais existentes na comunidade, com o principal objetivo de estabelecer contacto com estes e providenciar o suporte adequado (Mikkonen et al., 2007MIKKONEN, M. et al. Outreach work among marginalised populations in Europe: guidelines on providing integrated outreach services. Amsterdam: Foundation Regenboog AMOC, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/mlyXai >. Acesso em: 5 abr. 2013
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). É diferente dos outros serviços porque ocorre no ambiente das populações identificadas. É menos burocrático e mais fácil de acessar, estando a sua potencialidade relacionada com a redução de distâncias e o aumento de intimidade entre utentes e profissionais, em estabelecimento de relações de confiança (Mikkonen et al., 2007MIKKONEN, M. et al. Outreach work among marginalised populations in Europe: guidelines on providing integrated outreach services. Amsterdam: Foundation Regenboog AMOC, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/mlyXai >. Acesso em: 5 abr. 2013
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; Porter; Bonilla, 2010PORTER, J.; BONILLA, L. The ecology of street prostitution. In: WEITZER, R. (Ed.). Sex for sale: prostitution, pornography, and the sex industry. 2. ed. New York: Routledge, 2010. p. 163-185.). Dada esta componente de proximidade relacional, a importância dos princípios éticos e de respeito pelo outro são cruciais, o que conduz (Mikkonen et al., 2007MIKKONEN, M. et al. Outreach work among marginalised populations in Europe: guidelines on providing integrated outreach services. Amsterdam: Foundation Regenboog AMOC, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://goo.gl/mlyXai >. Acesso em: 5 abr. 2013
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) a considerarem o outreach primeiramente como uma atitude e depois com um método. Desse modo, podemos afirmar que o outreach traduz as características inerentes à ENF, isto é, flexibilidade, abertura à mudança, capacidade de adaptação a populações diferenciadas, tal como identificadas por autores como (Romi e Schmida, 2009ROMI, S.; SCHMIDA, M. Non-formal education: a major educational force in the postmodern era. Cambridge Journal of Education, Abingdon, v. 39, n. 2, p. 257-273, 2009.), assumindo um papel fundamental na implementação das iniciativas educativas.

Sobre a segurança na atividade, já foram abordadas questões de defesa pessoal e de cuidados a ter com os clientes potencialmente perigosos, de forma a protegerem a integridade física e psicológica, coerente também com a perspectiva de redução de riscos. A inclusão destes aspectos na agenda das ONG denota o reconhecimento de outros riscos associados ao trabalho sexual, tal como elencados por (Ross et al., 2012ROSS, M. W. et al. Occupational health and safety among commercial sex workers. Scandinavian Journal of Work, Environment & Health, Helsinki, v. 38, n. 2, p. 105-119, 2012.), alargando a visão da educação em saúde para uma concepção mais holística.

No entanto, a abordagem descrita parece inscreve-se num modelo substancialmente tradicional de educação, centrada na transmissão da informação e na mudança comportamental. É possível que esse fato esteja relacionado com o pouco conhecimento e capacitação, por parte dos profissionais, para aplicar o modelo dialógico, conforme verificaram (Figueiredo, Rodrigues-Neto e Leite, 2010FIGUEIREDO, M. F. S.; RODRIGUES-NETO, J. F.; LEITE, M. T. S. Modelos aplicados às atividades de educação em saúde. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 63, n. 1, p. 117-121, 2010.), ou ainda com o modelo de funcionamento de matriz conservadora e assistencialista, que permeou grande parte das ONG que desenvolviam atividade no âmbito da luta contra a aids, em Portugal, até aos anos 2000 (Lopes, 2001LOPES, A. Lógicas do terceiro setor português na gestão do complexo VIH/SIDA. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 61, p. 169-206, 2001.). Essas abordagens podem incorrer na imposição de discursos de solidariedade, empoderamento, autoestima e inclusão social (Agustín, 2007AGUSTÍN, L. M. Questioning solidarity: outreach with migrants who sell sex. Sexualities, London, v. 10, n. 4, p. 519-534, 2007.), tanto mais se tenderem a não incluir os(as) próprios(as) TS, enquanto agentes ativos, nos processos educativos.

Promoção social: os direitos humanos em questão

As organizações empreendem ações não formais focalizadas nos direitos humanos e cívicos, no desenvolvimento de competências e no empoderamento Todavia, tal como na saúde, essa questão assenta em premissas distintas: na categoria opressão, a prostituição constitui uma violação dos direitos humanos, que deve ser erradicada e as pessoas protegidas; na categoria empoderamento, a única forma de garantir direitos é pelo reconhecimento da atividade. A categoria polimorfa, ao contemplar a diversidade, compreende a existência de situações de exploração que devem ser protegidas e outras de exercício voluntário, que devem ser salvaguardadas.

O nosso objetivo é contribuir para a promoção dos direitos humanos, da igualdade de género e de oportunidades, denunciar situações de violência de gênero e exploração sexual, que são geradoras de vulnerabilidade e exclusão (E5 - opressão).

O modelo [jurídico] devia ser um modelo de descriminalização com regulamentação da atividade, com alguma regulamentação da atividade mas sem registo obrigatório, por exemplo, e sem rastreios obrigatórios (E14 - empoderamento).

Apesar de considerarmos que as pessoas devem poder fazer escolhas livres mas informadas e conscientes e que o nosso trabalho está exatamente aí, temos também a noção de que muitas vezes associado ao trabalho sexual podem estar situações muito complicadas de exploração, mesmo de tráfico e nós não somos coniventes com elas (E20 - polimorfo).

Dessa forma, o desenvolvimento de competências sociais e pessoais na categoria opressão encontra-se sobretudo relacionado com a procura de emprego (elaborar um currículo, como procurar emprego e como se comportar numa entrevista), treino e aprendizagem para o trabalho (cumprimento de um horário de trabalho) e cursos de formação profissional; na categoria empoderamento com competências promotoras de saúde e cidadania; e na categoria polimorfa com a reflexão, tomada de consciência de si e da atividade. Esses resultados sugerem que as ONG da categoria opressão estão alinhadas com uma perspectiva assistencialista de reeducação e de reinserção na sociedade, enquanto as outras categorias se aproximam mais à educação freiriana, pela conscientização e promoção da mudança

Ações dirigidas à comunidade e outros técnicos

No que se refere às ações dirigidas à comunidade, podem assumir um carácter de sensibilização/informação sobre a atividade, de forma a reduzir o estigma e a discriminação associados ao trabalho sexual (categoria empoderamento e polimorfo), ou ainda de prevenção de entrada na prostituição (categoria opressão), como atestam os seguintes exemplos:

Há um trabalho fundamental a fazer junto da população em geral que é a luta contra o preconceito, contra o estigma, contra a segregação e, no fundo, nós encaramos a saúde como um direito humano. A saúde como direito humano engloba lutar contra a segregação, contra o estigma, contra o preconceito, esse trabalho eu acho que tem de ser feito junto de toda a população (E1 - polimorfo).

Eu acho que o fundamental era trabalhar ao nível da educação, ou seja, muito antes, desde pequeno […] a questão é cultural, aprender [que] recorrer à prática da prostituição, isso nem [é] uma opção e para isso é preciso mudar [a] mentalidade (E5 - opressão).

Convém ressalvar que algumas das organizações desenvolvem ações mais amplas de educação em saúde na comunidade onde estão inseridas e destacamos que três organizações relataram que desenvolvem ações com os clientes de sexo pago. Quanto às ações dirigidas a outros técnicos, são também de sensibilização, no sentido do combate ao estigma e à discriminação nos serviços públicos e privados, sensibilização para o atendimento e sobre questões relacionadas com o TS e de informação sobre o trabalho da organização/projeto, de forma a estabelecer parcerias (categoria empoderamento e polimorfo).

Na medida em que houver menos preconceito mais possibilidades há destas mulheres serem atendidas como outras quaisquer, tudo depende do trabalho que se for fazendo a nível da sensibilização das pessoas(E1 - polimorfo).

Os(as) entrevistados(as) postulam a mudança de postura e mentalidades, de maneira a promover a aproximação das pessoas aos serviços e destacam a importância do respeito na relação com as(os) TS, para que dessa forma seus direitos fundamentais não se encontrem comprometidos:

Sim, coisas tão simples como tratar a pessoa pelo nome social e não insistir no nome legal do passaporte durante o atendimento, coisas tão básicas como evitar os comentários jocosos quando passa uma patrulha […] Porque coisas tão simples como estas criam uma distância às vezes e uma resistência a recorrer ou a serviços de saúde ou a serviços policiais (E15 - polimorfo).

Assim, essas ações, ao implicar outros técnicos e cidadãos, realçam uma compreensão holística e complexa do fenômeno, alargando a concepção de saúde a outros aspectos psicossociais. Nessa lógica, promover a saúde implica desafiar preconceitos e estigma, assim como desmitificar imagens estereotipadas e representações negativas do trabalho sexual e dos seus atores. Essa abordagem educativa em saúde para a mudança societal poderá constituir-se uma forma de derrubar barreiras e criar elos entre categorias sociais usualmente estigmatizadas e a sociedade.

Necessidades de educação/formação identificadas

Foram identificadas necessidades de ENF para TS centradas na formação de educação pelos pares, competências pessoais e sociais, higiene e saúde, segurança na atividade e legislação (empoderamento e polimorfo). A menção à necessidade de educação pelos pares denota uma aproximação das organizações do empoderamento ao modelo dialógico de educação em saúde, mostrando coerência com os princípios de promoção da capacidade individual do sujeito. As necessidades de educação, no âmbito escolar e profissional, foram identificadas nas categorias opressão e polimorfo, coerente também com a perspectiva na qual se inserem.

No que concerne à identificação de necessidades de ENF para comunidade e técnicos, encontra-se a legislação, isto é, transmissão de conhecimento sobre as leis que permitem a acessibilidade aos serviços por parte dos(as) TS e a sensibilização para o atendimento a TS, no sentido de combate ao estigma, à discriminação, ao preconceito e à mudança de mentalidades. Os(as) entrevistados(as) reforçam a necessidade de discutir sobre o trabalho sexual, no sentido de trazer à luz um tema que se encontra envolto em moralismo, como atestam os seguintes testemunhos da categoria empoderamento e polimorfo respectivamente:

Também existe aqui um grande movimento no sentido de desmistificar estes tabus e tentar colocar mais estas questões mesmo em termos de debate, em termos de intervenção para ver se conseguimos que em termos de mentalidade também umas coisas se modifiquem (E16 - empoderamento).

O interesse que nós temos em lutar contra os tabus, contra os mitos e contra a estigmatização das pessoas (E20 - polimorfo).

Acresce ainda a preocupação de informar o poder político, centrada em dois polos antagónicos: legalização do TS (categoria empoderamento) e erradicação da prostituição (categoria opressão).

O Estado tem responsabilidade perante esta classe. E como responsabilidade que tem, deve tomar todas as medidas para a que a legalização seja efetuada nos trâmites da lei. Como é lógico, uma sociedade tem direitos e para que haja esses direitos tem de haver deveres, sobretudo claramente a legalização do trabalho sexual (E6 - empoderamento).

[a instituição] fez parte de um grupo de trabalho a pedido do Conselho de Ministros para dar o seu parecer sobre a moldura jurídica que enquadrava a prostituição e nós, naturalmente, que defendemos o sistema abolicionista que é o que está a vigorar hoje em Portugal, porque não concordávamos de modo algum que as mulheres fossem presas pelo fato de se prostituírem, e que todos os outros agentes ficassem completamente impunes, aliás o proibir acho que leva à transgressão (E12 - opressão).

Perante esses resultados, podemos inferir que as ONG adotam, de acordo com as categorias onde estão inseridas, abordagens centradas na mudança da sociedade (Ewles; Simnett, 2003EWLES, L.; SIMNETT, I. Promoting health: a practical guide. 5. ed. Edinburgh: Baillière Tindall Elsevier, 2003.), considerando prioritária a inclusão da discussão sobre essa matéria em termos legislativos que visem proteger os(as) TS. Essa proteção tanto é perspectivada no sentido da erradicação da prostituição (opressão), como no sentido do reconhecimento da profissão e respetivas condições de trabalho (empoderamento).

Relação educativa centrada na pessoa

Apesar das divergências mencionadas foi possível verificar a prevalência de pontos comuns relativamente às características da relação educativa. Essa relação, dita de confiança e de proximidade, parece reger-se por princípios enunciados por autores como Carl (Rogers, 1985ROGERS, C. Tornar-se pessoa. 7. ed. Lisboa: Moraes, 1985.) ou Paulo (Freire, 1972FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1972.), e materializam-se no estabelecimento de horizontalidade, empatia e suporte, associadas à promoção do empoderamento.

Como princípios rogerianos (Rogers, 1985ROGERS, C. Tornar-se pessoa. 7. ed. Lisboa: Moraes, 1985.) entendemos, para esta análise, exemplos como a atitude de não julgamento, não discriminação:

Nós, profissionais de saúde, não temos que fazer juízos de valor, temos que cuidar (E1 - polimorfo).

A aceitação, o respeito pelas opções e o apoio incondicional:

a pessoa perceber que a equipa estará aqui, independentemente das decisões que ela tomar (E5 - opressão).

Na linha de (Freire, 1972FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Porto: Afrontamento, 1972.), as relações estabelecidas com os(as) TS são descritas como sendo de igual para igual, colaborativas, valorizando uma abordagem de proximidade, continuidade e confiança como fundamentais para o desenvolvimento de uma intervenção socioeducativa. Desse modo, os(as) entrevistados(as) referenciam a aprendizagem mútua como estratégia educativa.

Eu tenho esta convicção, e sempre trabalhei com esta convicção, […], não vou ensinar ninguém, eu aprendi sempre mais do que o que ensinei, muito mais com toda a gente (E1 - polimorfo).

Uma visão da educação do “ah eu vou-te ensinar, vais ver como é que é”, não é nada disso, na verdade nós aprendemos muito numa lógica mutualista (E14 - empoderamento).

Uma vez que os entrevistados acreditam no potencial dos seus usuários:

Não partimos do princípio que as pessoas são um livro branco em que vamos escrever, não, as pessoas têm a sua cultura, têm as suas crenças, os seus conceitos, portanto, tem que haver uma partilha que nós temos [que] ser elementos facilitadores, temos de respeitar as capacidades que todas as pessoas têm (E1 - polimorfo)

Nesse sentido, os(as) entrevistados(as) perspectivam-se como facilitadores(as) no processo educacional, numa relação horizontal:

Na intervenção social também passa por uma relação de igualdade e não uma relação em que eu sei e a menina não sabe. Não, a menina é que sabe porque é quem está na situação e é quem me vai dizer aquilo que necessita. Não sou eu que lhe vou dizer o que precisa, as funções é que são outras, de resto estamos numa situação de igualdade (E12 - opressão).

Tendo por base o compromisso de ambas as partes:

Os nossos modelos de intervenção passam muito por esta filosofia do trabalho do autocuidado em saúde, da responsabilização, de negociação também no sentido de fazermos um plano para aquela família ou para aquela utente no fundo, mas dizermos perante isto cada um de nós vai ter aqui responsabilidades e compromissos e todos vamos ter de cumprir (E16 - empoderamento).

Nessa sequência, podemos afirmar que o tipo de relação privilegiado pelos profissionais insere-se no modelo dialógico de educação em saúde, reforçando o conceito de educação de (Amado, 2013AMADO, J. A investigação em educação e seus paradigmas. In: AMADO, J. Manual de investigação qualitativa em educação. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2013. p. 19-71.) como um processo dialógico de aperfeiçoamento humano.

O empoderamento guia também grande parte das intervenções, entendido como um processo pelo qual as pessoas, organizações e comunidades ganham controle e habilidade sobre questões que as preocupam, relacionadas com suas vidas e participação democrática nas suas comunidades (Zimmerman; Rappaport, 1988ZIMMERMAN, M.; RAPPAPORT, J. Citizen participation, perceived control, and psychological empowerment. American Journal of Community Psychology, Winston, v. 16, n. 5, p. 725-750, 1988.). Neste incluímos o trabalho desenvolvido em direção à autonomia e poder de decisão, o desenvolvimento de ações que promovem uma maior consciência de si e da atividade, a participação dos usuários na definição dos seus projetos de vida, a informação sobre os recursos existentes para que as pessoas possam usufruir dos seus direitos e proceder, dessa forma, a escolhas livres e informadas. Neste ponto, as categorias divergem uma vez mais na medida que o empoderamento é entendido ora como uma forma de libertação da opressão masculina e estrutural que submete as mulheres à prostituição (categoria opressão), ora como emancipação pelo exercício voluntário do trabalho sexual (categoria empoderamento); e ainda como consciencialização na diversidade de situações que caracteriza o trabalho sexual (categoria polimorfo). Para alguns, essa forma de conduzir a prática é uma potencialidade da intervenção (E4, E8, E12, E14 e E18), sendo esse pressuposto coerente com os modelos de promoção da saúde, de promoção social e com a visão holística, que defende grande parte dos participantes

Considerações finais

As ações de ENF promovidas pelas organizações aos(às) TS encontram-se relacionadas com as perspectivas sobre a prostituição e centram-se no apoio à saída da atividade; na defesa dos direitos dos(as) TS; e na redução de riscos e minimização de danos.

Quanto à redução de riscos, empreendida pelas organizações da categoria empoderamento e polimorfo, a intervenção focaliza-se principalmente na educação em saúde, incidindo predominantemente na prevenção de DST e HIV/aids, conforme recomendações de vários organismos internacionais. Embora não exista um modelo específico ou comum, encontramos sobretudo três tipos de abordagens, normalmente utilizadas em promoção da saúde: a educativa, a centrada no cliente e a de mudança da sociedade. Quanto à educação em saúde e à promoção social, nas quais se situam as práticas educativas das organizações, verificamos uma descrição congruente com um modelo de educação bancária. No entanto, a valorização da relação educativa com base em princípios rogerianos e a focalização no empoderamento dos sujeitos permite-nos inferir que os profissionais adotam modelos dialógicos de educação em saúde e promoção social. É possível que esse fato ilustre a coexistência de ambas as abordagens e alguma dificuldade na aplicação do modelo dialógico. Destacamos ainda que é também a relação educativa que confere uma proximidade às perspectivas díspares, designadamente das organizações da categoria opressão e empoderamento.

Não podemos deixar de referir que a focalização na epidemiologia, numa época pós-pandemia da aids, pode remeter para discursos higiênico-sanitários como estratégia de Saber-Poder, com a intenção de controlar a saúde com benefícios para os clientes de sexo pago e não para os(as) TS, como aconteceu durante praticamente todo o século XIX. Essa centralização de ações educativas em saúde, pode inadvertidamente contribuir para a perpetuação da estigmatização dos(as) TS. Por outro lado, a posição pró-trabalho sexual tende a ignorar as pessoas que se encontram temporariamente numa situação de trabalho sexual com determinadas vantagens, mas sobre a qual não pretendem construir uma identidade. Do mesmo modo, as organizações que apoiam o abandono da prática estão também sujeitas a críticas na medida que reproduzem discursos moralistas e não respeitam a diversidade patente no trabalho sexual.

Independentemente das perspectivas sobre o trabalho sexual, parece-nos importante o trabalho dessas organizações, sem as quais os(as) TS estariam provavelmente numa situação de ainda maior vulnerabilidade, uma vez que, por norma, não solicitam os serviços formais. No entanto, para reforçar consideramos que urge envolver os(as) TS na concepção, implementação e avaliação de serviços que lhes são dirigidos, com o objetivo de romper com mecanismos e processos de exclusão, estigmatização e discriminação; e adequar ações que respondam às necessidades e expectativas dos participantes, para que as práticas não assentem em discursos impostos de inclusão social.

Por fim, postulamos que, enquanto áreas do saber, a educação e a formação, em contextos não formais, podem assumir um papel relevante quer no âmbito da reflexão para a adequação de propostas educativas que contemplem as necessidades dos(as) TS, quer no âmbito formativo dos educadores que estabelecem relações educativas com essa população ou ainda na comunidade. Em concreto, podem contribuir para a compreensão e intervenção nas relações educativas que ocorrem nesses contextos não formais, produzindo conhecimento sobre as necessidades reais da população e avaliando de forma colaborativa os processos educacionais adotados. De forma mais específica, poderão assumir um papel na formação continua e atualizada dos educadores e com a comunidade, no sentido de combater o estigma, a violência e a discriminação associados ao trabalho sexual em geral, no qual se inclui a prostituição. Além disso, uma vez que os profissionais, de diferentes áreas do conhecimento, assumem o papel de educadores, a formação poderá contribuir para a definição de uma identidade diferenciada do educador tradicional e para o estabelecimento de um perfil profissional neste contexto em particular.

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    Pesquisa financiada pela Feder através do Programa Operacional Fatores de Competitividade (Compete), pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), projeto PEst-C/CED/UI0194/2013 e pela bolsa de doutoramento da FCT (SFRH/BD/78139/2011).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2016
  • Revisado
    17 Abr 2017
  • Aceito
    19 Abr 2017
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br