Percepções dos profissionais de saúde da atenção primária sobre qualidade no processo de trabalho

Josiane Fernandes Lozigia Carrapato Elen Rose Lodeiro Castanheira Nádia Placideli Sobre os autores

Resumo

O artigo descreve os núcleos de significação social identificados nas falas de profissionais de saúde da atenção primária com relação à qualidade das ações desenvolvidas. Trata-se de estudo de caso realizado em dois serviços organizados segundo modelos diferentes: uma unidade “tradicional”, com agentes comunitários, e uma de saúde da família. As entrevistas e observações realizadas são analisadas a partir do referencial proposto por Vigotski, em diálogo com a literatura sobre o processo de trabalho em saúde. Os resultados apontam como principais núcleos de significação da qualidade na atenção básica o acolhimento como interação entre profissional e usuário do Sistema Único de Saúde, as diversidades de ofertas multiprofissionais e intersetoriais, os agentes comunitários como elo entre equipe de saúde e comunidade, e o trabalho em equipe e gerenciamento democrático. Ainda que esses núcleos estejam socializados entre os profissionais como significados de qualidade, observam-se tensionamentos e contradições entre o legitimado e o instituído como prática.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde; Qualidade da Assistência à Saúde

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) é reconhecido como uma das maiores conquistas da sociedade brasileira. No entanto, o modelo assistencial ainda hegemônico tende a manter-se centrado na assistência médica, fragmentada e especializada, que tem nas ações curativas seu locus privilegiado de atenção, com articulações ainda incipientes em relação a outras práticas terapêuticas ou racionalidades que não aquela estritamente biomédica (Cavalheiro; Marques; Mota, 2013CAVALHEIRO, J. R.; MARQUES, M. C. C.; MOTA, A. A construção da saúde pública no século XX e início do século XXI. In: ROCHA, A. A.; CESAR, C. L. G.; RIBEIRO, H. Saúde pública: bases conceituais. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2013. p. 1-18.; Duarte et al., 2015DUARTE, L. S. et al. Regionalização da saúde no Brasil: uma perspectiva de análise. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 472-485, 2015.; Paim et al., 2011PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: histórias, avanços e desafios. The Lancet, Amsterdam, p. 11-31, 2011.).

A transformação desse modelo em direção ao ideário proposto pelo SUS exige avanços na reflexão e elaboração sobre os processos de produção de cuidado que vêm sendo operados pelos serviços, ou seja, nos (re)coloca a necessidade de tomar as práticas de saúde como foco específico de análise.

No âmbito da atenção primária em saúde (APS), o estudo das práticas de saúde como trabalho tem sido realizado sob diferentes perspectivas, sendo as abordagens sobre o processo de trabalho em saúde um ângulo privilegiado de análise (Merhy, 2000MERHY, E. E. Um ensaio sobre o médico e suas valises tecnológicas: contribuições para compreender as reestruturações produtivas do setor saúde. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 4, n. 6, p. 109-125, 2000.; Peduzzi, 2001PEDUZZI, M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 103-109, 2001., 2002PEDUZZI, M. Mudanças tecnológicas e seu impacto no processo de trabalho em saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 75-91, 2002.; Schraiber et al., 1999SCHRAIBER, L. B. et al. Planejamento, gestão e avaliação em saúde: identificando problemas. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 221-242, 1999.). Nessa vertente, podemos afirmar que a concepção da qualidade está diretamente relacionada aos modos concretos como se realizam as ações, à maneira como se dá o processo de trabalho, o que depende, entre outros determinantes, da atuação dos profissionais e do modo como esses agentes internalizam o conceito de qualidade e o expressam em ações no cotidiano dos serviços (Dalla Vecchia, 2012DALLA VECCHIA, M. Trabalho em equipe na atenção primária à saúde: fundamentos histórico-políticos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.; Nemes et al., 2004NEMES, M. I. B. et al. Avaliação da qualidade da assistência no programa de aids: questões para a investigação em serviços de saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S109-S118, 2004. Suplemento 2.).

No processo de trabalho em saúde, os sujeitos da ação, os profissionais das unidades de saúde, configuram-se como agentes responsáveis pela integração em ato dos elementos constituintes desse processo, intermediando as relações entre os instrumentos e os sujeitos-objetos da intervenção e assim realizando um projeto que é a um só tempo definido socialmente e mediado pela intersubjetividade dos sujeitos envolvidos. Nesse sentido, aproximarmo-nos das concepções dos profissionais de saúde sobre as qualidades de suas ações nos traz elementos para uma reflexão crítica sobre o projeto que orienta a articulação de instrumentos materiais e imateriais por parte desses sujeitos.

Como parte de um conjunto de estudos sobre qualidade da APS (Cunha; Giovanella, 2011CUNHA, E. M.; GIOVANELLA, L. Longitudinalidade/continuidade do cuidado: identificando dimensões e variáveis para a avaliação da atenção primária no contexto do sistema público de saúde brasileiro. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, p. 1029-1042, 2011. Suplemento 1.; Giovanella et al., 2009GIOVANELLA, L. et al. Saúde da família: limites e possibilidades para uma abordagem integral de atenção primária à saúde no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 783-794, 2009.; Starfield, 2012STARFIELD, B. Primary care: an increasingly important contributor to effectiveness, equity, and efficiency of health services. Gaceta Sanitaria, Barcelona, v. 26, p. 20-26, 2012. Suplemento 1.), este trabalho tem como principal objetivo determinar as concepções de qualidade incorporadas às práticas no cotidiano dos serviços. Em outras palavras, quais são as diretrizes que orientam as ações desenvolvidas nos serviços de saúde e que assim delimitam padrões de qualidade, segundo a percepção dos próprios sujeitos que as realizam? Existem diferentes concepções entre os profissionais inseridos em serviços organizados a partir de modelos distintos? Como é organizado e realizado o processo de trabalho na APS? As diretrizes do SUS para organização das ações na atenção primária, tomadas como normas de qualidade, tais como vínculo, humanização, corresponsabilidade, entre outros, estão presentes na percepção dos agentes diretos dessas ações? Avançar na compreensão de tais questões poderá nos auxiliar na construção de processos instituintes que reconheçam e coloquem em diálogo os diferentes conceitos que orientam as práticas dos sujeitos diretamente envolvidos na produção de cuidados na APS, potencializando a instauração de novas práticas (Camelo et al., 2000CAMELO, S. H. H. et al. Acolhimento à clientela: estudo em unidades básicas de saúde no município de Ribeirão Preto. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 4, p. 30-37, 2000.; Carvalho et al., 2004CARVALHO, A. I. et al. Concepts and approaches in the evaluation of health promotion. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 521-529, 2004.; Conill, 2002CONILL, E. M. Políticas de atenção primária e reformas sanitárias: discutindo a avaliação a partir da análise do Programa Saúde da Família em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 1994-2000. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, p. 191-202, 2002. Suplemento.; Giraldo, 2015GIRALDO, A. F. El rol de lós profissionales de la salud en la atención primaria em salud (APS). Revista Faculdad Nacional de Salud Pública, Medellín, v. 33, n. 3, p. 414-424, 2015.; Hartz; Contandriopoulos, 2004HARTZ, Z. M. A.; CONTANDRIOPOULOS, A. P. Integralidade da atenção e integração de serviços de saúde: desafios para avaliar a implantação de um “sistema sem muros”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. S331-S336, 2004. Suplemento 2.; Schimith; Lima, 2004SCHIMITH, M. D.; LIMA, M. A. D. S. Acolhimento e vínculo em uma equipe do Programa de Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1487-1494, 2004.).

Para uma aproximação das concepções de qualidade presentes no processo de trabalho na APS, como forma de avançar na compreensão dos valores internalizados pelos agentes na produção do cuidado, buscou-se amparo teórico nos estudos de Vigotski (2007VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.), procurando articular os conceitos desenvolvidos por esse autor e seus seguidores com os que orientam a análise das práticas de saúde enquanto trabalho, particularmente a partir da concepção de significado social.

Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 26, n. 2, p. 222-245, 2006.), com base em Vigotski e a partir da compreensão de que o homem transforma a natureza e a si mesmo na atividade, apontam que os significados devem ser entendidos como elementos constitutivos dos processos de produção cultural, social e pessoal. A atividade humana é sempre significada, ou seja, o homem, no agir humano, realiza uma atividade externa e uma interna, e ambas as situações operam com os significados.

O pensamento passa, portanto, por muitas transformações para ser expresso em palavras, de modo a concluir-se que a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado e o sentido. Dessa forma, podemos afirmar que a compreensão da relação pensamento/linguagem passa pela necessária compreensão das categorias significado e sentido. (Vigotski, 2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 226)

Para Vigotski (2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.), o significado corresponde às relações segundo as quais a palavra pode ser compreendida, pode significar alguma coisa às pessoas; já no campo psicológico, é uma generalização, um conceito. Os significados das palavras se desenvolvem e se transformam, porque são construídos ao longo da história da humanidade, com base nas relações dos indivíduos com o mundo social em que vivem. Para ele, significado é uma construção social, de origem convencional, relativamente estável, na qual o homem, ao nascer, encontra um sistema de significados pronto, elaborado historicamente, que será internalizado, reproduzido e transformado por suas ações.

Nesse sentido, podemos afirmar que toda atividade humana produzirá significados, definidos por Aguiar e Ozella (2006AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 26, n. 2, p. 222-245, 2006., p. 226) como:

produções históricas e sociais. São eles que permitem a comunicação, a socialização de nossas experiências. Os significados referem-se, assim, aos conteúdos instituídos, mais fixos, compartilhados, que são apropriados pelos sujeitos, configurados a partir de suas próprias subjetividades.

Neste estudo, procurou-se utilizar de modo articulado à teoria do trabalho em saúde a abordagem metodológica vigotskiana tanto na elaboração do instrumental para coleta como para a análise dos dados, enquanto quadro de referência para identificação de núcleos de significação na fala dos sujeitos e na observação das ações realizadas. São descritos os tensionamentos e as contradições entre o legitimado e o instituído como práticas de qualidade na APS. Nessa abordagem optou-se por não avançar na apreensão dos sentidos pessoais atribuídos ou construídos pelos sujeitos em sua individualidade, procurando-se apreender os significados socialmente instituídos pelo conjunto, como dimensão que a princípio instrui a elaboração dos sentidos e reflete os movimentos presentes nas práticas concretamente operadas. Embora significados e sentidos sejam discutidos em conjunto nas análises desenvolvidas pela psicologia socio-histórica, são categorias distintas, o que permite que possamos, na aproximação proposta, nos fixar mais na apreensão dos significados sociais atribuídos à qualidade na APS.

Métodos

Trata-se de estudo de caso realizado em dois serviços de atenção primária organizados segundo distintos modelos: um como unidade básica “tradicional”, com Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), e outro organizado segundo a Estratégia Saúde da Família (ESF). Esses serviços estão localizados em um município de médio porte no estado de São Paulo, com aproximadamente 400 mil habitantes. A escolha dos serviços se baseou nos resultados de pesquisa prévia que avaliou a rede básica desse município por meio de um questionário estruturado (QualiAB) respondido pelos gerentes de todas as unidades da rede básica em julho de 2007 e que definiu um ranking de qualidade entre os serviços (Bizelli; Castanheira, 2011BIZELLI, S. K.; CASTANHEIRA, E. R. L. Saúde na roça: expressões da qualidade das práticas de atenção primária. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. v. 1.; Castanheira et al., 2009CASTANHEIRA, E. R. L. et al. Avaliação da qualidade da atenção básica em 37 municípios do centro-oeste paulista: características da organização da assistência. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, p. 84-88, 2009. Suplemento 2., 2011, 2014).

Avaliar a qualidade da organização dos processos de trabalho na atenção básica por meio de instrumentos estruturados e de autorresposta, como propôs o QualiAB, possibilita a inclusão simultânea de um conjunto de serviços e a obtenção de resultados que instrumentalizam tanto equipes locais como gestores no planejamento e monitoramento de ações para incremento da qualidade, permitindo ainda caracterizar a base organizacional que define o modelo de atenção em operação. Entretanto, esse tipo de avaliação não avança em análises explicativas profundas, especialmente quando referidas a aspectos relacionais e intersubjetivos do trabalho em saúde, constitutivos como prática social e que não podem ser apreendidos por meio de indicadores organizacionais (Castanheira et al., 2014CASTANHEIRA, E. R. L. et al. Avaliação de serviços de atenção básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 103, p. 679-691, 2014.).

Este estudo propõe-se a avançar no modelo explicativo da avaliação anteriormente realizada nos serviços estudados, por meio de pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, que busca compreender como a qualidade se expressa na fala dos sujeitos que operam as ações realizadas no cotidiano desses serviços (Yin, 2001YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.).

Rey (2013REY, F. L. G. O pensamento de Vigotsky: contradições, desdobramentos e desenvolvimento. São Paulo: Hucitec, 2013., p. 108) refere que

o quantitativo orientou-se historicamente por uma lógica analítica, baseada na decomposição do problema em seus elementos […]. A passagem para uma representação qualitativa sobre o que se estuda é sempre uma construção do pensamento, o que é impossível fundamentar com bases em processos indutivos.

No período do estudo, a rede básica era composta por 19 unidades básicas de saúde, sendo 2 unidades de saúde da família, 12 unidades básicas tradicionais, 1 unidade básica com Pacs, 1 unidade básica com especialidades, 2 unidades integradas de atendimento ambulatorial e de urgência e 1 unidade básica com pronto atendimento e especialidade.

As unidades escolhidas para o estudo foram as duas mais bem avaliadas, segundo indicadores de estrutura e processo, e que correspondiam ao critério de estarem organizadas segundo modelos diferentes - uma unidade básica “tradicional” com Pacs e uma unidade de saúde da família (Carrapato, 2011CARRAPATO, J. F. L. Qualidade e organização do processo de trabalho na atenção básica: percepções e significados atribuídos pelos profissionais de saúde. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2011.; Vasconcelos, 2011VASCONCELOS, R. D. Avaliação da qualidade da atenção básica no município de Bauru/SP: desafios para um processo de mudança. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2011.).

Os serviços estudados contavam com um número total de profissionais de nível médio e superior semelhante. A unidade tradicional era um antigo Centro de Saúde do tipo I, ou seja, de maior complexidade, com agentes comunitários de saúde (ACS), a que chamaremos “UBS”. A Unidade de Saúde da Família contava com quatro equipes, consideradas em conjunto como constituindo o serviço, e será denominada “USF”.

O trabalho foi desenvolvido por meio de observação direta e sistemática da organização da assistência, entrevistas semiestruturadas com os gerentes e profissionais de nível superior e grupo focal com as equipes de apoio técnico-administrativo e ACS. Foram entrevistados todos os profissionais de nível universitário, 13 da UBS e 11 da USF, e realizados quatro grupos focais, dois em cada unidade, dirigidos aos profissionais de nível médio e aos ACS, totalizando 88 sujeitos, 39 profissionais da UBS tradicional e 49 da USF.

As observações seguiram um roteiro com foco na organização do trabalho e foram registradas em diário de campo. Observou-se o atendimento realizado nas duas unidades de saúde pesquisadas durante vinte dias, dez dias em cada serviço, com atenção dirigida ao trabalho dos profissionais de saúde e à maneira como a população era recepcionada, além do acompanhamento de visitas domiciliares dos ACS e da participação de atividades educativas, como caminhadas.

As entrevistas e os grupos focais foram gravados e transcritos, sendo posteriormente realizadas leituras flutuantes e exaustivas, buscando identificar nas falas os núcleos de significações que indicam a compreensão dos sujeitos sobre qualidade da atenção à saúde. Nessa construção, inicialmente utilizamos os registros do diário de campo e, em seguida, as entrevistas com os profissionais de nível superior e gerentes e os grupos focais.

Na análise buscou-se compreender os atributos da qualidade e os obstáculos à sua efetivação a partir da identificação dos significados dados pelo conjunto dos profissionais, singularidade da voz dos sujeitos a partir de uma primeira aproximação temática, a seguir organizada em núcleos de significação e apreensão da constituição dos sentidos implícitos nas falas, consequentemente com conteúdo emocional dos profissionais relacionados à qualidade e organização do processo de trabalho na atenção básica.

Segundo Aguiar e Ozella (2013AGUIAR, W. M. J.; OZELLA, S. Apreensão dos sentidos: aprimorando a proposta dos núcleos de significação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 94, n. 236, p. 299-322, 2013., p. 301), a singularidade é construída a partir da concepção

de um homem numa relação dialética com o social e com a história, o que o torna ao mesmo tempo único, singular e histórico. Este homem, constituído na e pela atividade, ao produzir sua forma humana de existência, revela - em todas as suas expressões - a historicidade social, a ideologia, as relações sociais e o modo de produção. Ao mesmo tempo, esse mesmo homem expressa a sua singularidade, o novo que é capaz de produzir, os significados sociais e os sentidos subjetivos.

Vigotski (2001VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001., 2007) refere que os signos estruturados em sistemas linguísticos de representação adquirem o valor de instrumentos psicológicos ao se converterem, pela atividade prática, em portadores de determinados significados. Nesse processo de apropriação da realidade pela consciência, de constituição de um reflexo psíquico consciente, os significados se estabilizam enquanto representações da realidade e, comunicados socialmente na forma da fala, objetivam-se, orientando intencionalmente a atividade consciente do ser humano, dando sentido a ela. Dessa maneira, procuramos por meio da análise das falas dos sujeitos pesquisados encontrar os significados atribuídos pelos profissionais de saúde à qualidade.

Segundo Aguiar (2009AGUIAR, W. M. J. Consciência e atividade: categorias fundamentais da psicologia sócio-histórica. In: BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G. M.; FURTADO, O. (Org.). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2009. p. 95-110.), a pesquisa na abordagem socio-histórica busca apreender o significado da fala enquanto unidade do pensamento e da linguagem, surgindo a palavra com significado como unidade de análise. Nesse processo, é possível identificar núcleos de significação que expressam formas e conteúdos de realização dos sentidos pelos indivíduos a partir de sua prática concreta e sua inserção histórica e social.

O artigo é resultado de dissertação de mestrado (Carrapato, 2011CARRAPATO, J. F. L. Qualidade e organização do processo de trabalho na atenção básica: percepções e significados atribuídos pelos profissionais de saúde. 2011. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 2011.) e não foi financiado por qualquer instituição. Além disso, os autores declaram não haver conflito de interesse. O projeto foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade do Sagrado Coração, segundo protocolo nº 118/08, em 30 de setembro de 2008.

Resultados e discussão

Os núcleos de significação social procuram refletir as concepções do pensar e sentir prevalentes no conjunto dos sujeitos de cada um dos serviços estudados sobre qualidade da atenção primária, enquanto compreensão socializada pelo grupo. Foram identificados quatro núcleos de significação social relativos à qualidade na APS.

Acolhimento como interação profissional-usuário é um atributo de qualidade, mas sua execução é limitada em função da falta de compreensão dos usuários e da elevada demanda por consultas médicas

Acolhimento não é atendimento médico. É necessário o sentimento de confiança entre os funcionários e tempo para realizar o acolhimento. (Médico da Família)

Em diversas ocasiões os profissionais de saúde expressam que a interação entre o profissional de saúde e o usuário conforma um dos principais determinantes da qualidade da APS, definindo esse dispositivo como “acolhimento” e inter-relacionando sua expressão com mecanismos de organização do trabalho.

Apontam que na USF há sempre uma escala de enfermagem afixada na sala de espera que identifica o técnico que atenderá em uma sala específica todos os usuários sem agendamento que procurarem atendimento na unidade. Na UBS é a Recepção que identifica o técnico com mais disponibilidade para atender e escutar o paciente em uma sala ou, quando não houver espaço privado disponível, na própria recepção. Ambas as unidades valorizam a “porta aberta” para a demanda espontânea e a designação de um profissional responsável e um espaço físico como definidores do acolhimento, ou seja, como indicadores do desenvolvimento de práticas compromissadas com a interação entre profissionais e usuários.

O acolhimento é uma forma peculiar de humanização na APS. No entanto, muitas vezes é realizado de forma inadequada devido à falta de um projeto específico nos diferentes contextos locais para orientar o trabalho dos profissionais nessa questão (Camelo et al., 2000CAMELO, S. H. H. et al. Acolhimento à clientela: estudo em unidades básicas de saúde no município de Ribeirão Preto. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 8, n. 4, p. 30-37, 2000.; Teixeira, 2005TEIXEIRA, R. R. Humanização e atenção primária à saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 585-597, 2005.).

Mais do que ser valorizada como postura da equipe na relação com a comunidade atendida, a intencionalidade em desenvolver ações que permitam a interação entre profissionais e usuários é principalmente uma orientação do modo de organizar a recepção à demanda espontânea. A priorização dada aos mecanismos de recepção da demanda espontânea, para além de representar a incorporação parcial da política de humanização, aponta tanto a importância dada pela equipe ao equacionamento da atenção a essa demanda como também sua valorização em relação ao conjunto do trabalho.

Por outro lado, os entrevistados referem que os usuários entendem o acolhimento como atendimento imediato, curativo, medicamentoso e como um momento prévio ao atendimento médico. Essa situação é verbalizada pelas enfermeiras da UBS:

O que as pessoas procuram como acolhimento são as consultas médicas. Uma boa parte acaba vindo para consulta de enfermagem, muitas vezes por falta da consulta médica. Às vezes resolvemos, porque muitas vezes são pedidos de exames, uma coisa que dá para desafogar do médico. Fazemos uma avaliação, [e,] dependendo dos exames, [o pedido] é feito por nós. (Enfermeira da UBS)

A gente acolhe esse paciente, escuta, vê qual é o problema dele e tenta nortear: se estiver com dor, damos remédios e orientamos o que deve ser feito - marcar uma consulta ou outra coisa. […] Logo que eu entrei para trabalhar, os pacientes queriam a consulta médica. Isso é cultural e existe muito. (Enfermeira da UBS)

Desse modo, além de considerar o acolhimento apenas como um momento particular da organização do trabalho, podemos identificar a existência de um tensionamento entre o modo como caracterizam o processo de acolhimento e a forma como expressam a demanda manifestada por esses usuários, responsabilizando-os por solicitarem um atendimento centrado no médico.

Por outro lado, a enfermeira se coloca como tendo um papel secundário e sem especificidade que “facilita” o trabalho médico, contrariando a ideia de interação entre profissionais.

As diretrizes do acolhimento, segundo a Política Nacional de Humanização do SUS (Brasil, 2003BRASIL. HumanizaSUS: política nacional de humanização. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003.), orientam mudanças na organização do processo do trabalho por meio da promoção de vínculos com os usuários, corresponsabilização e resolubilidade. Assim, preconizam acolher os pacientes, escutar e propiciar uma resposta positiva diante das queixas de saúde da população. O acolhimento realizado em muitas unidades básicas de saúde não segue o que está preconizado, tendendo a ocorrer uma divergência entre a prática do acolhimento estabelecida pelas políticas de saúde e aquela efetivamente exercida nos serviços (Camelo, et al., 2016CAMELO, M. S. et al. Acolhimento na atenção primária à saúde na ótica de enfermeiros. Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 463-468, 2016.; Girão; Freitas, 2016GIRÃO, A. L. A.; FREITAS, C. H. A. Usuários hipertensos na atenção primária à saúde: acesso, vínculo e acolhimento à demanda espontânea. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 37, n. 2, p. 1-7, 2016.). Essa divergência se expressa na fala dos profissionais entrevistados que reconhecem o preconizado para o acolhimento, mas não o praticam inteiramente.

Assim, a principal tensão que se estabelece é entre o “dever ser”, incorporado nas falas e nos esforços de reorganização das unidades, e a identificação simultânea de impedimentos em avançar num novo modelo em função “do outro”, o usuário apontado como resistente ao descentramento da consulta médica como a melhor resposta para qualquer necessidade, o que nos leva a questionar o quanto o “acolhimento” cumpre o papel que se quer dar a ele.

O usuário espera que a relação entre ele e o trabalhador de saúde seja capaz de gerar um acolhimento que permita uma atuação sobre o seu sofrimento, o seu problema. Há grande expectativa por parte do usuário de que o trabalhador - individual ou coletivamente - responda com resolutividade ao seu problema. Espera que o conjunto das ações de saúde ao qual se dispõe a se submeter lhe traga benefícios, isto é, consiga alterar sua situação. Enfim, a sua grande expectativa é que as ações de saúde sejam efetivas e o satisfaçam (Lima et al., 2014LIMA, C. A. et al. Relação profissional-usuário de saúde da família: perspectiva da bioética contratualista. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 22, n. 1, p. 152-160, 2014.; Schimith et al., 2011SCHIMITH, M. D. et al. Relações entre profissionais de saúde e usuários durante as práticas em saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 479-503, 2011.).

De fato, podemos dizer que a USF e a UBS apresentam dificuldades em realizar um processo de acolhimento à demanda espontânea que não esteja centrado no atendimento médico, pois os profissionais de saúde reiteram que por razões “culturais” os usuários buscam a unidade de saúde como um local para “curar” as doenças, sendo que a resposta esperada é atendimento médico imediato, realização de exames e acesso a medicamentos.

A gente trabalha aqui com modelo descaracterizado. No sentido de excesso de pessoas e da forma como é acolhido esse excesso de pessoas. Existe o acolhimento que passa muito do limite que é preconizado, então é como se fosse o pronto-socorro da família. […] Isso prejudica muito as outras atividades que temos que fazer, como os grupos educativos, reuniões, visitas domiciliares - a gente muitas vezes não consegue fazer, por causa do excesso de pacientes. […] O modelo está descaracterizado, porque teria que ser feito mais a parte de prevenção, mais visitas, mas não temos tempo para fazer. (Médico da Família)

A numerosa demanda também é apresentada como expressão do “mau uso” do serviço feito pela população usuária, reforçando a responsabilidade “do outro”.

O acolhimento realizado no cotidiano dos serviços estudados, conforme registro das observações e independentemente do modelo organizacional, tanto na UBS como na USF, assume muitas vezes o caráter de atendimento de recepção e triagem da “porta”, ainda que nas falas dos diferentes atores o acolhimento seja apontado como prática que perpassa todos os lugares dos serviços de saúde, ou seja, como estando presente onde houver o encontro entre trabalhadores e usuários.

Diversidade de ofertas multiprofissionais e intersetoriais conferem qualidade, mas competem com a centralidade da consulta médica no trabalho

tem que ter perfil, tem que gostar de trabalhar com a comunidade, porque o objetivo é mais com a comunidade, com a prevenção e promoção, do que com a consulta e a medicação em si. (Enfermeira da UBS)

Um segundo núcleo de significação que emerge na fala dos profissionais refere-se à importância de o trabalho ser organizado de maneira diversificada em relação ao enfoque biomédico, e para isso é valorizada a presença estratégica dos agentes comunitários.

Há esforço e valorização de uma oferta diversificada tanto na UBS como na USF. Assim, cotidianamente a equipe de saúde procura criar grupos terapêuticos, grupos de gestantes, hipertensos e diabéticos, e além dessas atividades internas há interesse e compromisso no desenvolvimento de atividades externas, como grupo de caminhada, promoção de passeios, comemoração de datas festivas e ocupação de espaços para realizar parcerias com universidades e outras secretarias municipais.

consegui desenvolver um trabalho intersetorial, no qual mobilizei e articulei a comunidade [e] conselho gestor de saúde. Nós conseguimos mostrar a essa comunidade a necessidade de fazer parcerias e buscar junto aos órgãos competentes a possibilidade de trazer os equipamentos para usar o espaço que estava ocioso. […] no período noturno com a Secretaria de Esportes, com a Capoeira, também usado como campo de estágio pela Faculdade de Direito da Anhanguera toda terça-feira de manhã para assistência jurídica à população usuária. (Gerente da UBS)

Uma ampla programação de ações “extramuros” representa o esforço em articular promoção da saúde, prevenção de doenças e assistência, avançando assim na constituição de práticas de atenção integral à saúde. No entanto, essas atividades “competem” entre si pelo tempo de trabalho dos que se responsabilizam por elas, e a assistência médica individual mantém-se como a principal resposta à grande demanda.

Então o que acontece: nós temos os pacientes que são agendados, mas não tem um número certo de acolhimento por dia; o que vem, a gente atende. Isso prejudica muito as outras atividades não assistenciais que temos que fazer, como os grupos educativos, reuniões, visitas domiciliares. Nós muitas vezes não conseguimos fazer, por causa do excesso de pacientes. (Médico da Família)

Apesar das diversas e intensas tentativas de transformar o espaço de ações assistenciais com atividades educativas, enfatizando uma visão de clínica ampliada e considerando relevantes os aspectos subjetivos e os determinantes sociais da “doença”, há ainda a predominância da assistência biomédica, que procura como foco principal o diagnóstico clínico e o tratamento medicamentoso, sem articular a doença com outros aspectos, como psicológicos e sociais.

Por outro lado, é apontado que a diversificação da oferta assistencial incorporando diferentes alternativas para responder à complexidade da demanda é reconhecida pelos usuários, que passam a procurar por essas alternativas.

Hoje é completo. Hoje eles querem nutricionista. Antigamente não tinha nem assistente social, é uma luta por causa da assistente social, porque ela tem tantas reuniões, em vários lugares. Hoje a procura é grande por outros profissionais, como assistente social, nutricionista, não só médico. Hoje em dia mudou um pouco, o papanicolau é feito pela enfermeira. Hoje tem essa procura, antigamente não tinha, a visão dos pacientes era exclusiva do atendimento médico. (Funcionário Administrativo da UBS)

Eu vejo como uma equipe multiprofissional para atender as necessidades dos pacientes, então sempre que eu preciso eu estou ali junto com a enfermeira discutindo o caso, pedindo ajuda. Mesmo com o médico temos uma relação muito boa, a gente pode ter esse acesso, discutindo a situação do paciente como um todo. Um sabe o que o outro faz, às vezes a gente senta para discutir um caso. Dependendo do caso que aparece, eu recorro ao médico, ao enfermeiro, ao assistente social para discutir e ver como podemos estar resolvendo como uma equipe. (Nutricionista da UBS)

A procura por outros profissionais pode ser vista como indicativa do reconhecimento da incorporação de novas necessidades pela população usuária e resultado da efetiva oferta de atendimento multiprofissional.

Estabelece-se assim um tensionamento claro entre as iniciativas de intersetorialidade e trabalho multiprofissional, e mesmo interdisciplinar denotado no esforço de construção em equipe de alternativas de respostas para os casos, e a secundarização dessas práticas em função do tempo demandado para a “consultação”, nos termos definidos por Schraiber, Nemes e Mendes-Gonçalves (2000SCHRAIBER, L. B.; NEMES, M. I. B.; MENDES-GONÇALVES, R. B. (Org.). Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec, 2000.).

Os agentes comunitários são o elo entre equipe e comunidade, enfrentam problemas complexos e encontram dificuldades ampliadas quando não conseguem ter uma integração orgânica com a equipe

Tem que saber trabalhar em equipe, não pode impor as coisas, tem que pedir opinião de todos. Aqui não fica centrado só no médico, se ficasse não teria o acompanhamento do agente comunitário. Esses agentes, por exemplo, na maioria das vezes eu sei que o paciente não está bem pelas informações deles. (Médico da Família)

Um terceiro núcleo de significação que ilustra os determinantes de qualidade da APS atribuídos pelos profissionais refere-se aos atendimentos realizados pelos ACS, pois esses profissionais são apontados como o principal elo entre a realidade social e familiar dos pacientes e a equipe, dada a proximidade com a comunidade definida por seu trabalho.

O ACS é apresentado como mediador entre o serviço e a comunidade e entre os diferentes saberes. Por meio da mediação, o papel do ACS é valorizado pelos usuários do SUS, pois é construído um vínculo igualitário pelo qual o usuário demonstra facilidade para discorrer sobre sua vida (Placideli; Ruiz, 2015PLACIDELI, N.; RUIZ, T. Educação continuada em gerontologia para agentes comunitários de saúde. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 10, n. 36, p. 1-10, 2015.; Queirós; Lima, 2012QUEIRÓS, A. A. L.; LIMA, L. P. A institucionalização do trabalho do agente comunitário de saúde. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 257-281, 2012.).

Nas duas unidades estudadas, a presença de ACS é valorizada como fator que agrega qualidade às ações realizadas e como um dos determinantes para descentrar o trabalho do núcleo biomédico.

Os entrevistados enfatizaram que o ACS possibilita aos demais profissionais de saúde conhecer o local onde mora o usuário, como as famílias sobrevivem e suas dificuldades relacionais, emocionais e sociais. A equipe técnica revela que o ACS traz os problemas encontrados no domicílio para discussão e participa das decisões, apresentando sugestões estratégicas de atuação na comunidade no sentido de trazer melhorias e criar cenários de superação.

Os profissionais da equipe médica da USF valorizam mais os ACS. Há interação cotidiana entre eles e maior sentimento de pertencimento a uma mesma equipe. Na UBS tradicional, alguns membros da equipe apresentam mais dificuldade no entendimento do papel desse profissional, mas mesmo assim acreditam que as intervenções nas famílias provocam mudanças positivas na vida das pessoas, embora não se sintam partícipes desse processo.

É apontado que pelo fato de o ACS realizar visitas aos domicílios e viver na região, ele tem maior proximidade com a realidade em que vive a população de sua área de abrangência, o que viabiliza uma maior ligação entre o serviço de saúde e o contexto de vida dos usuários.

Apesar de os ACS exercerem o papel de mediador entre o serviço de saúde e a população usuária, muitas vezes eles sentem-se frustrados por não conseguirem realizar todas as funções propostas para o seu trabalho. Identificam problemas complexos que procuram “resolver” da melhor forma possível.

Tudo que a gente vê na residência, a gente tem reunião de equipe semanalmente, e passamos para equipe para tentar resolver. Às vezes você sabe que é usuário de drogas, que tem HIV, mas a pessoa não fala, então você tenta ganhar confiança da família e elas acabam contando. Quando ela dá essa abertura, aí você vê o que pode ser feito. […] Às vezes eu me sinto desestimulada, quando eu não consigo resolver um problema. (ACS da Família)

Trabalho em equipe e gerenciamento democrático como atributos que ampliam a capacidade de resposta às necessidades e promovem mudanças no trabalho e no cuidado

Outro diferencial é a autonomia da equipe. Toda a equipe decide, todos dão opiniões e sugestões. (Enfermeira da UBS)

O quarto núcleo de significação presente na fala de praticamente todos os entrevistados é o trabalho em equipe - caracterizado como capaz de resolver problemas apresentados pelos usuários e ter autonomia para sugerir mudanças, de modo muito interligado com o gerenciamento democrático e horizontalizado, enquanto viabilizador da integração nas relações de trabalho.

Sempre todo mundo junto tenta resolver o problema do paciente, um sabe o que o outro faz. Toda semana a gente tem a reunião da equipe mínima, e nessa equipe mínima todo mundo passa o que está acontecendo, o que o paciente está precisando, e temos como melhorar a vida dele. […] Sempre todo mundo interage bastante, isso é legal. O dentista não fica isolado no seu consultório, você para de ver o paciente como um dente, consegue enxergar outros problemas. (Dentista da USF)

Então sempre que eu preciso eu estou ali junto com a enfermeira discutindo, pedindo ajuda. Mesmo com o médico, temos uma relação muito boa; a gente pode ter esse acesso, discutindo o caso do paciente como um todo. Um sabe o que o outro faz e às vezes a gente senta para discutir um caso. Dependendo do caso que aparece, eu recorro ao médico, ao enfermeiro, ao assistente social para estar discutindo e ver como a gente pode estar resolvendo como uma equipe. (Nutricionista da UBS)

Os entrevistados tanto da UBS como da USF enfatizaram a importância do trabalho em equipe, referindo-se a ele como trabalho interdisciplinar e que deve ser focado no usuário.

Entretanto, tanto nas falas como nas observações, percebemos que na UBS o trabalho está organizado de um modo que favorece a fragmentação e dificulta a integração desejada. Cada profissional fica em uma sala, atendendo, e quando necessário há encaminhamento para outro profissional. Os casos difíceis são discutidos sem um espaço formal para isso - rapidamente em uma sala e/ou corredor da unidade de saúde. Não são realizadas reuniões periódicas de equipe com a finalidade de discutir casos e elaborar projetos articulados de atuação, ainda que os entrevistados refiram a grande integração da equipe.

Na USF as reuniões de equipe ocorrem semanalmente, em período planejado, com a participação de enfermeiras, gerente e coordenação geral das Unidades de Saúde da Família, sendo abordados nessas reuniões assuntos como organização do acolhimento, criação de projetos, realização de bazar de roupas usadas para arrecadação de recursos financeiros, Bolsa Família e discussão de casos difíceis, entre outros, sendo também enfatizado que o consultório/sala não é do médico, mas sim da equipe.

É apontado que, para conseguir bons resultados e interferir diretamente na qualidade dos serviços prestados, o trabalho em equipe requer o exercício da autonomia dos profissionais, cujos limites são dados pelo projeto comum que os integra. Assim, o trabalho em equipe é apontado como indispensável à qualidade da assistência, mas sua viabilidade está diretamente vinculada a um gerenciamento local integrador.

Conclusões

A utilização do referencial vigotskiano permitiu identificar núcleos de significação social sobre a qualidade da atenção primária atribuídos por profissionais de saúde diretamente responsáveis pelo desenvolvimento das ações de cuidado no cotidiano dos serviços.

A análise do material possibilitou a leitura e o entendimento dos núcleos de significação, com base na abordagem da psicologia socio-histórica, em diálogo com a teoria da organização do trabalho em saúde. Por meio de observação em campo, grupos focais e entrevistas foram realizados, e tensões e contradições foram identificadas nas concepções dos agentes, que representam significações sociais, retratando o movimento em curso nas práticas de saúde na atenção primária. O tensionamento surge a partir do momento em que o profissional de saúde apresenta uma fala com conhecimento técnico científico atualizado, mas realiza no cotidiano atividades contrárias.

As práticas dos profissionais da APS encontram-se intimamente relacionadas com acúmulos anteriores representados pelos aspectos da formação e experiência precedentes, formais e informais, em constante transformação pelo cotidiano das ações e sua inserção histórica e social. As ações desenvolvidas pelos profissionais muitas vezes estão automatizadas, estabelecendo um hiato entre elas e os conceitos sociais e culturalmente aceitos em relação à qualidade incorporados na fala, expressando contradições e tensões.

A abordagem utilizada demonstra que se, por um lado, a qualidade das ações na APS depende das políticas de apoio e incentivo, que são também definidoras do modelo assistencial vigente, não se pode subestimar, por outro, o poder de determinação do processo de trabalho concretamente operado nos serviços como resultado do “trabalho vivo em ato” e dos significados sociais incorporados pelos seus agentes.

Retomando as questões inicialmente postas, pode-se identificar na fala dos profissionais tanto da USF como da UBS um discurso coerente com as diretrizes do SUS e da Política Nacional da Atenção Básica (Brasil, 2012BRASIL. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2012.) sobre qualidade, com pontos contraditórios distintos entre elas e relacionados à organização concreta das ações. O “discurso oficial” que atribui à ESF e à APS o papel de principal estratégia para a reorganização da prática assistencial em novas bases precisa ser aprofundado, tanto em termos políticos como tecnológicos. A observação das experiências indica uma defasagem entre o “discurso” já incorporado pelos serviços e as práticas assistenciais que implementam, que no mais das vezes não têm conseguido realizar a “missão prometida”.

Num primeiro plano, para os sujeitos entrevistados qualidade está relacionada com a maneira como o serviço realiza o acolhimento do usuário, como é organizado o processo de trabalho, o desenvolvimento do trabalho em equipe, o entendimento da realidade vivida pelo usuário e a realização de um “gerenciamento horizontal”, no qual todos os profissionais são considerados importantes e capazes de promover mudanças no trabalho e na vida das pessoas. Os limites de implementação da qualidade assim definida se expressam nas próprias falas, com diferenças entre os serviços estudados.

A USF tende a apresentar uma organização do processo de trabalho que permite maior proximidade com os princípios ético-normativos do SUS do que a existente na UBS. Ou seja, a USF busca realizar ações que avançam na integralidade por meio de um trabalho em equipe que valoriza a proximidade com a comunidade e que tem autonomia local para a definição das melhores estratégias de cuidado para a população adscrita.

Ainda que os núcleos identificados estejam socializados entre os profissionais como significado de qualidade, os tensionamentos e as contradições entre o legitimado como “desejável” e o instituído como prática representam limites concretos de efetivação do “dever ser”, não só de natureza político-institucional como também definidas pelos sentidos que os agentes de fato internalizam e reproduzem em práticas de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2017
  • Revisado
    22 Maio 2017
  • Aceito
    26 Mar 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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