Resumo
A Nova Gestão Pública (NGP) pode ser definida como um conjunto de práticas e de ideias que visam importar para o setor público os métodos de trabalho do setor privado. O que acontece nesse contexto com os funcionários públicos, responsáveis pela execução das políticas públicas, aqueles cujas práticas diárias são diretamente atingidas por esse desejo de transformação? Para responder a essa pergunta, utilizamos observações, entrevistas e questionários realizados como parte de uma tese sobre os hospitais franceses na década de 2000. Mostramos que existem diferenças significativas no interior das profissões de saúde, mas que a NGP enfrenta a oposição dos segmentos dominantes, ao passo que os segmentos dominados aderem em maior número a ela, especialmente porque eles têm menos meios de resistir à NGP.
Palavras-chave:
Hospital; Profissões; Nova Gestão Pública; Emergências; Medicina; Estado Social
A Nova Gestão Pública (NGP) pode ser definida como um conjunto de práticas e de ideias que visam importar para o setor público os métodos de trabalho do setor privado. Esquematicamente nascida com as administrações Thatcher (1979) e Reagan (1981), ela conheceu diferentes transformações, diferentes variáveis, em diferentes contextos espaciais e temporais. A obra de David Osborne e Ted Gaeber (1992OSBORNE, D.; GAEBLER, T. Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. Reading: Addison-Wesley, 1992.) intitulada Réinventer l’État : comment l’esprit d’enterprise est en train de transformer le secteur public pode ser tida como um de seus manifestos. Atuando nas primeiras políticas que visaram desmantelar o Estado social (Pierson, 1994PIERSON, P. Dismantling the welfare state? Reagan, Thatcher, and the politics of retrenchment. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.) por cerca de uma década, seu emprego do presente contínuo (is transforming) exprime que uma transformação esteja em curso, enquanto uma grande parte do desafio político da questão é saber se essa ambição chega, ou não, a se concretizar.
O que acontece, nesse contexto, com os funcionários públicos, responsáveis pela execução das políticas públicas, aqueles cujas práticas diárias são diretamente atingidas por esse desejo de transformação? Na França, o debate opõe, em linhas gerais, os autores, segundo os quais haveria uma contradição clara entre as práticas dos funcionários públicos e a NGP (por exemplo, Mas et al., 2011MAS, B. et al (Ed.). L’hopital en réanimation. Bellecombe-en-Bauges : Croquant, 2011.; Pierru, 1999PIERRU, F. L’“hôpital-entreprise”: une self-fulfilling prophecy avortée. Politix, Paris, v. 46, p. 747, 1999.) e aqueles que afirmam que essas profissões se recomporiam simplesmente por manterem sua autonomia (Bezes et al., 2011BEZES, P. et al. New Public Management et professions dans l’État: au-delà des oppositions, quelles recompositions ? Sociologie du Travail, Amsterdam, v. 53, n. 3, p. 293-348, 2011. ). Gostaríamos de propor aqui uma síntese dessas abordagens, mostrando que existem diferenças significativas no interior das profissões de saúde, mas que a NGP enfrenta a oposição dos segmentos dominantes, ao passo que os segmentos dominados aderem em maior número a ela, especialmente porque eles têm menos meios de resistir a NGP.
Para chegar a essa conclusão, procedemos em três momentos. Definimos primeiramente os critérios que orientam a prática das profissões hospitalares. Em seguida, mostramos que a NGP significa uma mudança na organização desses critérios em benefício do critério da economia de recursos. Depois, observamos que os segmentos profissionais mais sensíveis a essa operação são os segmentos dominados no hospital, tradicionalmente as enfermeiras, se comparadas aos médicos. As fontes empregadas são observações, entrevistas e questionários realizados como parte de uma tese sobre os hospitais franceses na década de 2000 (Belorgey, 2009BELORGEY, N. Réformer l’hôpital, soigner les patients: une sociologie ethnographique du nouveau management public. 2009. Tese (Doutorado em Sociologia) - École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, 2009., 2010BELORGEY, N. L’hôpital sous pression: enquête sur le « nouveau management public ». Paris: La Découverte, 2010.).11Os questionários foram administrados em dois serviços de emergência, um em hospital universitário, outro em hospital geral, e obtiveram um total de 105 respostas, o que representou uma taxa de retorno de aproximadamente 2/3. Os serviços de urgência foram escolhidos por permitirem mostrar mais facilmente os fenômenos que dizem respeito ao hospital em seu conjunto, sobretudo as divergências entre as lógicas concorrentes de especialização da medicina, de atendimento a todas as populações que residem em um dado território e de limitação de seus meios de financiamento (Dodier; Camus, 1997).
Os critérios orientadores da prática dos profissionais de saúde
Sendo os hospitais, ao mesmo tempo, instituições públicas e lugares de cuidado médico, deve-se levar em conta essas duas dimensões da atividade das pessoas que trabalham neles.
Enquanto instituição pública
Christopher Hood (1991HOOD, C. A public management for all seasons? Public Administration, Hoboken, v. 69, n. 1, p. 319, 1991. ), em uma abordagem genérica da ação pública - uma vez que ela englobaria todas as épocas e todos os continentes -, distingue três critérios que orientariam o funcionamento das instituições públicas. O primeiro diz respeito à legalidade e à justiça (honesty and fairness), as quais são, ou não, comprovadas pelas instituições em seu funcionamento. Pode-se considerar que o Estado de direito e, de maneira mais geral, o modo de legitimação legal-racional correspondem a essa perspectiva. O hospital não escapa a esse critério de bom funcionamento, como ilustra a preocupação de não se discriminar os pacientes no acesso aos cuidados que podem ser observados no direito e nas práticas cotidianas dos profissionais de saúde.22Por “cuidador” entendemos todo profissional de saúde em contato com pacientes, qualquer que seja sua função, médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem etc. O segundo critério consiste em ajustar os meios aos fins investigados para evitar qualquer forma de desperdício (economy and parsimony). Podemos vê-lo ilustrado nos artigos das Declarações de direitos indicando que todo funcionário público é responsável pelos fundos do Estado e pelas inquietudes recorrentes acerca da alta das despesas de saúde em relação à riqueza das nações. O terceiro critério proposto por C. Hood para avaliar as instituições administrativas diz respeito à credibilidade destas, à sua permanência no tempo, à sua capacidade de superar as adversidades, mesmo as mais imprevisíveis (reliability, robustness, survival). Do ponto de vista da teoria política, pode-se associar esse critério às definições de Estado de inspiração hobbesiana, segundo as quais o Estado seria como uma ilha que se estabiliza em confronto com uma natureza espontaneamente caótica. No hospital, esse critério é satisfeito pela existência de dispositivos de cuidado, que permitem tratar as pessoas a qualquer momento, e uma oferta de cuidados suficientemente diversificada e bem distribuída em todo o território para permitir uma boa acessibilidade e um tratamento de todas as doenças possíveis, e até mesmo a redundância de certos serviços, já que os caminhos que levam à cura são incertos.
O segundo critério pode se chocar com os outros dois, sendo a credibilidade e a imparcialidade necessariamente mais custosas do que um Estado fluído ou que permita que as puras relações de força governem.
Enquanto lugar de cuidados
Além de instituições públicas, os hospitais são também locais de exercício da medicina. Inspirando-nos numa teoria kantiana das profissões (Champy, 2011CHAMPY, F. Nouvelle théorie sociologique des professions. Paris: PUF , 2011.), propomos aqui determinar os grandes critérios que orientam a atividade de cuidado. O primeiro parece ser a capacidade de curar um órgão doente, por exemplo, reparar a fratura de uma perna. Nesse sentido, a divisão crescente do trabalho médico entre especialidades favorece o progresso da disciplina, aprofundando o conhecimento sobre cada órgão tomado separadamente: a cardiologia para as cardiopatias, a gastroenterologia para as doenças do trato intestinal etc.
Deve-se, no entanto, adicionar imediatamente a esse movimento de especialização a vontade de tratar não apenas de um órgão, ou de um conjunto de órgãos, mas de uma pessoa como um todo, e especialmente reduzir a dor que ela pode sentir, preocupação relativamente recente na medicina ocidental (Baszanger, 1995BASZANGER, I. Douleur et médecine, la fin d’un oubli. Paris: Seuil, 1995.; Foucault, 1963FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. Paris: PUF , 1963.). Essas duas dimensões - o cuidado de órgãos isolados e a pessoa como um todo - constituem a especificidade da medicina em comparação com outras prestações de serviço. Conforme indica Erving Goffman (1961GOFFMAN, E. Asiles: études sur la condition sociale des malades mentaux et autres reclus. Paris: Minuit, 1961.) de maneira provocante, o que distingue, no fundo, um médico de um mecânico é que o primeiro trabalha sobre um “material humano”, o próprio corpo e espírito do investidor, ao invés de um simples objeto que pertence a ele. Certamente, as duas abordagens têm em comum o fato de procederem de maneira similar: primeiramente, a identificação de certos sintomas que atestem um desvio em relação ao estado considerado normal, à “boa saúde”; em seguida, o estabelecimento de um diagnóstico sobre as causas desse desvio; enfim, a determinação de um tratamento destinado a reestabelecer o “bom funcionamento”. Relações de força variáveis podem ser estabelecidas entre o médico e seu cliente, sobretudo em função do mercado e de suas respectivas posições sociais.
Mas a humanidade do “material” sobre os quais operam as profissões de saúde lhes confere uma sensibilidade particular. A cooperação do paciente é necessária para o bom desenvolvimento do ato médico, por exemplo para tomar seus medicamentos ou para controlar as reações espontâneas de seu corpo, como mostra a contrario o uso da anestesia para determinadas operações. Essa cooperação vai ao extremo, até o saber “morrer bem” (Strauss; Glaser, 1965STRAUSS, A.; GLASER, B. Awareness of dying. London: Aldine, 1965.).
O trabalho sobre o material humano também implica, para os profissionais de saúde, em um “vaivém” permanente entre, de um lado, implicação pessoal, engajamento, e, de outro, distanciamento, retirar-se para proteger-se. Esse ponto é ilustrado por essa médica plantonista, a quem o entrevistador perguntou se tem notícias de seus antigos pacientes:
Eu não tenho necessidade de saber o que se passou com meus pacientes […]. Quando eu transfiro um paciente, quando eu tenho retornos, prestações de contas de hospitalização, eu fico contente, mas se eu não tenho, isso não me incomoda. É também para me proteger […]. Você tem situações que são difíceis de suportar no plano emocional, e por eu ser sensível, eu tenho necessidade de criar uma proteção para mim. Eu quero me manter muita objetiva. A partir do momento em que eu começo a me apegar a alguém eu não sou mais objetiva, eu sequer posso cuidar do paciente […]. É como René, você o viu, ele é um alcoólatra crônico, que tem uma doença pulmonar devido ao tabaco. Eu o conheço desde que eu era residente, ele é paciente psiquiátrico, hein, ele não é limpo, ele não é morador de rua, mas quase, e ele frequenta as emergências… Faz dez anos que eu conheço René. E esse cara, no dia em que ele padecer - digo padecer porque será em condições desagradáveis -, ele não vai morrer bem, e isso me dará pena, porque eu o conheço desde que eu sou jovem. Ele é incontrolável como paciente, ele tem uma doença cardíaca muito avançada, ele não se cuida porque ele não é neurologicamente, mentalmente, capaz de se cuidar, e ele não é nem violento… Eu falei com ele, ele é um cara ao qual você se apega, que vem te ver, que te demanda todo o tempo, veja, ele é emocionante por um lado, mas incontrolável, e esse cara, ele já teve duas paradas cardíacas, eu já o entubei uma vez em parada cardíaca, o dia em que ele morrer, isso me causará um efeito estranho. E se eu não me protejo - e eu penso que essa é uma realidade para nós médicos -, se você não se protege, você é devorado por essa profissão que é difícil, que é emocionalmente bastante difícil, porque você tem pacientes que morrem, que sofrem. (Entrevista, médica plantonista, fevereiro de 2005)
Essa situação não é restrita aos serviços de emergência. Nós a encontramos por exemplo na reanimação neonatal, sobre a qual Anne Paillet (2007PAILLET, A. Sauver la vie, donner la mort: une sociologie de l’éthique en réanimation médicale. Paris: La Dispute, 2007.) fala em “apego retrátil” por parte das enfermeiras em relação às crianças das quais elas devem cuidar, mas que acabaram por morrer. A autora generaliza seu ponto para o conjunto de cuidadores, dentre os quais ela discerne um senso prático de preservação de si mesmo.
Após o cuidado destinado a um órgão em particular e a uma pessoa como um todo, uma terceira dimensão da prática cuidadora reside no desejo de tratar não só de pacientes isolados, mas de populações inteiras, ou seja, de praticar uma medicina não apenas individual, mas também pública. Essa preocupação remonta ao menos desde a época romana e permanece perfeitamente atual (Fassin, 2005FASSIN, D. Faire de la santé publique. Rennes: Editions de l’ENSP, 2005.). Sua diferença com a dimensão do tratamento individual e seu possível conflito com ela são vistos, por exemplo, na questão das vacinas contra epidemias: uma vacina sempre traz um risco para quem a toma, mas essa decisão também protege seus vizinhos de um eventual contágio, de modo que a relação benefício/risco seria mais vantajosa no nível coletivo do que no individual, no qual o interesse pela vacina às vezes é discutível.
Um quarto traço da medicina reside em sua dimensão não simplesmente curativa, como nos dois primeiros traços, mas também preventiva, que já aparece na questão da vacinação. Três grandes referências permitem ilustrá-lo novamente: primeiramente, a das figuras mitológicas de Hígia e Panaceia, filhas de Esculápio, que representam respectivamente a prevenção e a cura; em seguida a da medicina tradicional chinesa, que seria muito menos preventiva do que a ocidental (Hoizey; Hoizey, 1988HOIZEY, D.; HOIZEY, M.-J. Histoire de la médecine chinoise: des origines à nos jours. Paris: Payot, 1988.; Triadou, 2004TRIADOU, P. Médecine chinoise. In: LECOURT, D. (Ed.). Dictionnaire de la pensée médicale. Paris: PUF , 2004. p. 228-231.); enfim a grande atenção dispensada à prevenção pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que distingue três estágios dela (prevenção ligada às condições de vida, à ação dos profissionais de saúde e ao acompanhamento dos enfermos).
Essa lista das dimensões da atividade de cuidado provavelmente não está encerrada. Poderíamos provavelmente incluir nela, a exemplo da ação pública, o imperativo da economia, ou mais ainda, a limitação real de recursos disponíveis. Isso nem sempre é explícito. O Juramento de Hipócrates, por exemplo, não menciona exigência alguma da economia na prática médica, mas inscreve aquele que o pronuncia simplesmente “na medida de suas forças e de seus conhecimentos” (passagem que sequer foi retomada na atualização proposta pela Ordem dos Médicos no final do século XX: Hoerni, 1996HOERNI, B. Serment d’Hippocrate réactualisé. Bulletin de l’Ordre des Médecins, Paris, n. 4, 1996.). Cotidianamente, observa-se a limitação dos recursos de variadas formas, desde as filas de espera até as demoras para se obter uma consulta ou uma hospitalização, passando pelas constantes negociações que os cuidadores fazem de seu tempo escasso em benefício de seus diferentes pacientes.
A NGP: um desejo de mudar a hierarquia dos critérios em vigor em benefício da economia de recursos
A gerencialização observada hoje nos hospitais pode ser interpretada, no nível da prática hospitalar, como um desejo de modificar a organização dos critérios que descrevemos, revisando-os em benefício da predominância do critério econômico. Para examiná-la precisamente, deve-se 1) explicar detalhadamente no que consiste essa gerencialização; 2) mostrar como aqueles que o promovem tentam operar essa re-hierarquização.
Das orientações nacionais às incitações individuais
Dois aspectos da NGP podem ser identificados em diversos países. O primeiro é a limitação dos recursos destinados aos hospitais, sendo o pacote orçamentário global do qual eles dispõem fechado, até mesmo gradualmente reduzido (Pierru, 2011PIERRU, F. Budgétiser l’assurance maladie. In: BEZES, P.; SINE, A. Gouverner (par) les finances publiques. Paris: Presses de Sciences, 2011. p. 395-449.; Pierson, 1994PIERSON, P. Dismantling the welfare state? Reagan, Thatcher, and the politics of retrenchment. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.). O segundo é a inserção, no interior desse pacote, de sistemas de pagamento por convênio e não mais em função do custo real dos cuidados prestados. Inventada nos Estados Unidos durante a administração Reagan (Mayes; Berenson, 2006MAYES, R.; BERENSON, R. A. Medicare prospective payment and the shaping of U.S. Health Care. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2006.), a junção desses dois dispositivos foi exportada para muitos países, especialmente os europeus. Na França, ele carrega o nome de Objectif National des Dépenses d’Assurance-Maladie (ONDAM), em sua composição hospitalar, no que concerne ao orçamento global, e de Tarification à l’Activité (T2A) no que concerne ao plano de saúde. Ele deixa ao encargo dos produtores de cuidados (hospitais, profissionais de saúde etc.) a lacuna entre o montante do convênio e o custo real do cuidado. Isso os incentiva, por um lado, a tratarem sob o menor custo possível, a serem “produtivos” ou “eficientes” conforme o vocabulário que prefiramos - logo, isso se insere no critério da economia de recursos. Mas isso os incita também a reduzirem o quanto for possível a qualidade dos cuidados, e a não se encarregarem dos pacientes mais custosos em relação ao convênio, o que contraria diretamente os critérios de credibilidade e de igualdade no acesso aos cuidados. Quando relatados esses elementos a um gestor, sua resposta imediata é que ele pode confiar seguramente que os cuidadores não maltratam os pacientes. Na verdade, significa que isso permanece como responsabilidade jurídica deles, mas as incitações estão presentes, e os cuidadores se encontram sozinhos face aos pacientes e às decisões difíceis que devem tomar na falta de recursos suficientes, o que gera um grande sofrimento de sua parte.
Como esse esquema geral se traduz no cotidiano?
Uma atenção reforçada ao critério da economia de recursos
As aporias da gerencialização nos hospitais
O antagonismo entre critério de economia de recursos e práticas de cuidados aparece em múltiplos níveis. Um primeiro exemplo pode ser fornecido pelos cuidados de enfermagem. Os cuidados “relacionais” compreendem a atenção prestada a uma pessoa em sua totalidade e são difíceis de codificar, ao passo que os cuidados “técnicos” (fazer um curativo, coletar sangue etc.) são muito mais levados em conta no referencial oficial. Segue-se a isso uma recentralização dos cuidadores em direção ao primeiro critério da prática médica que identificamos, aquele do cuidado de um órgão em particular, em oposição ao segundo, o da pessoa considerada em totalidade. Esse movimento também se choca diretamente com o engajamento do cuidador na relação com o paciente, a qual, como vimos anteriormente, constitui um elemento essencial do trabalho sobre material humano. Em outras palavras, a parte pessoal, gratuita, dada pelos cuidadores (Chanial, 2010CHANIAL, P. Le New Public Management est-il bon pour la santé? Revue du Mauss, Paris, v. 35, n. 1, p. 135-150, 2010.), mesmo que eles a retomem voltando ao seu distanciamento profissional, está ausente dos referenciais gerenciais, logo, incentivada a desaparecer dos comportamentos práticos. A fragmentação do trabalho de cuidado se opõe também ao tratamento das doenças crônicas, como a diabete e a doença de Alzheimer, que requerem, mais do que ações técnicas e pontuais, um cuidado de longa duração e pouco englobado pelo referencial oficial (Grimaldi, 2009GRIMALDI, A. L’hôpital malade de la rentabilité. Paris: Fayard, 2009.).
A oposição entre critério de economia de recursos e práticas de cuidado também aparece nos serviços de emergência (Belorgey, 2011BELORGEY, N. “Réduire le temps d’attente et de passage aux urgences”: une entreprise de “réforme” d’un service public et ses effets sociaux. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 189, p. 19-35, 2011.). A via a qual são levados pela gerencialização consiste em um desejo expresso pelos poderes públicos de reduzir o tempo de passagem dos pacientes por tais serviços, o que é politicamente útil, mas ao mesmo tempo permite sobretudo a redução do tempo de cuidado, logo os custos salariais, primeiro item de despesa dos estabelecimentos de saúde. No entanto, acelerar o ritmo do cuidado implica diretamente no prejuízo no critério de credibilidade do serviço: os pacientes, por vezes examinados apressadamente, tem suas doenças menos exploradas e, dessa forma, tornam-se mais propensos a retornar ao serviço de urgência. Os pacientes permanecem menos tempo no serviço, mas suas taxas de retorno aumentam: frequentemente eles devem retornar após uma primeira passagem, o que não é levado em conta pelo referencial gerencial. Essa baixa na credibilidade pode até mesmo causar a morte dos pacientes que não conseguem voltar a tempo, mas apenas os profissionais de saúde estão suscetíveis de serem cobrados por esses eventos, porque no estado atual das coisas, sobretudo no direito, uma falha de qualidade só pode ser imputada a um profissional, jamais aos dispositivos gerenciais.
Administração versus profissionais de saúde
Como vimos, o critério da economia de recursos está muito mais presente na ação administrativa do que no exercício da medicina. A diferença entre esses dois aspectos do cuidado hospitalar é também visível nos modos de legitimação que lhes estão associados. Em um texto clássico, a oposição entre os médicos e os administradores dos hospitais é relacionada ao tipo de autoridade que eles exercem conforme a tipologia weberiana: carismática para os primeiros, burocrática para os segundos (Smith, 1958SMITH, H. L. Two lines of authority: the hospital dilemma. In: GARTLY, J. (Ed.). Patients, physicians and illness. New York: The Free Press, 1958. p. 470-474.; sobre os médicos, Herzlich e Adam, 2001HERZLICH, C.; ADAM, P. Sociologie de la maladie et de la médecine. Paris: Nathan, 2001., acrescentam a autoridade tradicional, o que permite completar a trilogia weberiana). Esse texto, um dos primeiros a estabelecer a comparação entre hospital e empresa, evocada em uma grande posteridade, também destaca que se na segunda os produtores estão hierarquicamente submetidos aos dirigentes centrais, o mesmo não ocorre com o primeiro, no qual os médicos são igualmente os produtores de cuidados e não estão integrados em uma linha hierárquica clara. Essa descrição dos modos de exercício do poder no complexo hospitalar foi completada para dar conta da pluralidade dos atores cuidadores, mostrando que a ordem é negociada entre os médicos e todos os demais (Strauss et al., 1963STRAUSS, A. et al. The hospital and its negociated order. In: FREIDSON, E. (Ed.). The hospital in modern society. New York: The Free Press , 1963. p. 147-168.). Outros trabalhos destacam que o poder burocrático dos administradores se refere mais largamente ao poder do Estado que eles representam localmente - o hospital não é somente uma organização, mas também uma instituição pública (Steudler, 1974STEUDLER, F. L’hopital en observation. Paris: Armand Colin, 1974.).
Essa diferença de modo de legitimação é de via hierárquica, visto que os administradores caracterizam deliberadamente os cuidadores como insubordinados e irracionais, em oposição à lógica “racionalizadora” que eles próprios tentariam impulsionar. Segundo essa visão gerencial, não haveria diferença fundamental entre uma atividade industrial, conforme modelável por uma função de produção de tipo Cobb-Douglas, e aquilo que se passaria em um estabelecimento de saúde. Dessa maneira, tratar-se-ia de maximizar sempre a produtividade, ou em termos mais comunicacionais de “reduzir as ineficiências”, de “otimizar os processos” e de “eliminar os entraves à produção” etc. Essa ótica é também a de um controle exercido sobre os processos produtivos, que deveriam ser preservados de qualquer perturbação que atrapalhasse seu funcionamento máximo. Assim, um chefe de departamento representaria uma ameaça ao seu estabelecimento caso, explica um diretor de hospital, “ele não controle seus PH [práticos hospitalares]”, ou seja, ele não pode garantir que seus médicos não farão greve para apoiar suas enfermeiras no interior do conflito que atualmente as opõe contra a questão dos efetivos, excessivos para o chefe, insuficientes para elas (Discussão informal, Paris, novembro de 2006). Em um relato próximo, um diretor e seu adjunto lamentam a existência de “cópias” nos departamentos do hospital como causa das despesas “redundantes” em decorrência de serviços relativos à mesma especialidade médica. Quando se sabe que esses serviços exercem métodos curativos diferentes, percebe-se que suas existências correspondem àquilo que C. Hood identificou como a coexistência de práticas diversificadas para atender ao mesmo objetivo, e que permite tornar a ação estatal mais propensa a se posicionar em uma situação de informação imperfeita que, diga-se de passagem, é própria da medicina. Então, temos um típico caso de conflito entre o primeiro e o terceiro critério da ação estatal propostos pela pesquisadora britânica.
Os médicos estão muito distantes dessa visão gerencial. Para eles, tudo ocorre como se não houvesse apenas uma, mas mil maneiras de se cuidar de um paciente, como se a cura fosse sempre incerta, e a arte médica jamais fosse capaz de transferi-la para os processos mórbidos em curso. Disso decorre um funcionamento por consenso e a ausência entre eles de sanções apenas informais, como o isolamento relativo (Freidson, 1970FREIDSON, E. Profession of medicine: a study of the sociology of applied knowledge. Chicago: University of Chicago Press, 1970.). Esses elementos, já observados nos hospitais americanos dos anos 1950 e 1960, parecem perdurar hoje na França. Questionados se eles seriam “corretamente avaliados por suas hierarquias”, 62% dos médicos se abstêm ou respondem que não sabem - essa forte proporção de não respostas sinaliza a que ponto a questão faz pouco sentido para eles (cf. Tabelas 1 e 2 a seguir). De maneira análoga, mesmo que hajam querelas constantes entre eles, os médicos continuam expondo um grande respeito pela prática de seus colegas. “Os médicos nunca entram em discussão a respeito das práticas. Jamais alguém dirá: ‘eu não trabalho com Fulano porque ele é um mau cirurgião’. Nunca. Ele vai dizer: ‘porque eu tenho outros parceiros’” (Entrevista, médico, Paris, abril de 2005).
À essas razões para que os médicos se oponham à gerencialização de suas práticas soma-se a oposição efetiva de alguns deles. Nessa direção, há esquematicamente dois tipos de opositores: de uma parte, as oposições sindicais e políticas que poderíamos qualificar como tradicionais, por exemplo por parte dos membros da CGT; de outra, as pessoas que não se caracterizam pelo engajamento sindical ou político, porque em geral elas não são sindicalizadas ou são pouco politizadas, mas pelo forte engajamento profissional, como os médicos e enfermeiras unanimemente reconhecidos em seus departamentos por suas qualidades profissionais e, no caso dessa segunda profissão, bem vistos pela hierarquia. Sua oposição em comum à gerencialização advém do fato de que esta dificulta os critérios de um bom exercício de sua profissão.
A visão que foi dada até aqui dos cuidadores é, todavia, um tanto quanto uniformizadora. Por trás desse vocábulo se encontram de fato numerosas categorias de cuidadores, que não reagem da mesma forma às injunções gerenciais.
Segmentação profissional e sensibilidade às injunções gerenciais
A divisão do trabalho hospitalar
Os cuidadores se diferem primeiramente segundo a divisão vertical do trabalho hospitalar, ou seja, em função de suas posições hierárquicas. Essa própria hierarquia corresponde a uma gradação das tarefas das mais às menos nobres. À pergunta: “dentre aquilo que você faz, o que você prefere?”, os cuidadores de todas as categorias respondem espontaneamente citando os atos de cuidados propriamente dito (83%) - a começar pelos médicos pontuando a prescrição de diagnósticos mais do que outros aspectos de sua atividade, como o fato de trabalharem em equipe (10%). A questão simétrica (“dentre aquilo que você faz, do que você menos gosta?”) traz sem surpresa respostas relativas ao contato com matérias impuras (sangue, urina, matérias fecais etc., sobretudo para os incontinentes dos quais é preciso trocar as fraldas), a piora dos pacientes ou a morte deles (13%).
A hierarquia dos cuidados se adequa amplamente a essa gradação dos gostos e desgostos, dos trabalhos mais nobres aos menos nobres, no sentido em que as categorias superiores rejeitam o “trabalho sujo” para aquelas que lhe são subordinadas (Hughes, 1951HUGHES, E. Work and self. In: HUGHES, E. The sociological eye. New Brunswick: Transaction Books, 1951. p. 338-347.). Os médicos ocupam o topo dessa pirâmide. Sua posição dominante é expressa pelo sentido duplo do adjetivo “médico”. Em sentido estrito, ele se aplica a algo que concerne aos médicos, por exemplo quando uma enfermeira fala de um gesto “médico”, isso significa que é de competência jurídica de um médico - em outras palavras, que ela não é habilitada a fazê-lo. Em sentido amplo, esse termo designa o processo de cuidado e em geral qualquer que seja o estatuto de seus participantes, como na expressão “é um problema médico”, que se opõe a um “problema social”. Essa relativa invisibilidade dos atores que nomeamos apenas de “paramédicos” é o sinal de seu menor grau de prestígio e de sua posição subordinada. Os médicos se concentram na parte nobre do processo de cuidado: prescrição do diagnóstico e do tratamento.
Logo abaixo deles estão as enfermeiras. Elas têm direito a uma linha hierárquica própria, através dos quadros de saúde, depois a partir do quadro superior em nível do departamento ou do polo, e enfim da Diretora de enfermagem para o estabelecimento. Mas, na prática, o trabalho delas está subordinado ao dos médicos. São os médicos que em grande parte determinam, em nível nacional, o que é de competência deles ou das enfermeiras; são eles que, no cotidiano, determinam os tratamentos que as enfermeiras administram aos pacientes; elas formam enfim uma profissão menos reconhecida socialmente que a deles, especialmente em termos de remuneração. Por outro lado, o trabalho das enfermeiras se define cotidianamente não por uma lista de tarefas, mas fortemente pelo papel social delas, ou seja, por tudo aquilo que é preciso fazer complementarmente ao médico para que o processo de cuidado se desenrole bem: acolher o paciente, cuidar de suas necessidades, tranquilizá-lo etc. O caráter de pouco reconhecimento de seu trabalho é bem demonstrado por uma historiadora da profissão, ao afirmar que originalmente “elas assumem aquilo que resta de mais temido, mesmo para os médicos mais duros: os cuidados mais repugnantes, os sofrimentos irremediáveis, a angústia da agonia” (Knibiehler, 1984KNIBIEHLER, Y. Cornettes et blouses blanches: les infirmières dans la société française aujourd’hui, 1880-1980. Paris: Hachette, 1984., p. 45).
A divisão de tarefas entre médicos e enfermeiras se baseia em grande parte sobre um modelo de gênero, fazendo da condição feminina o sustentáculo de um papel subordinado. Nessa configuração, “as qualidades” das enfermeiras são há muito tempo opostas à “qualificação” dos médicos (Kergoat et al., 1992KERGOAT, D. et al. Les infirmières et leur coordination, 1988-1989. Paris: Lamarre, 1992.). O slogan “nem boas, nem freiras, nem idiotas” entoado durante a mobilização de enfermeiras de 1988 significava precisamente a recusa da confusão entre qualidades pessoais e papel profissional, a fim de reconhecer todo seu valor, sobretudo financeiro. A maioria das enfermeiras são mulheres.
Após as enfermeiras, a existência de auxiliares de enfermagem corresponde a um grau suplementar na delegação do serviço sujo de alto a baixo da hierarquia de cuidadores. Assumindo as baixas funções anteriormente preenchidas por “um pessoal mal pago, sem formação e geralmente de má reputação” (Acker; Arborio, 2004ACKER, F.; ARBORIO, A.-M. Infirmière et aide-soignante. In: LECOURT, D. (Ed.). Dictionnaire de la pensée médicale. Paris: PUF, 2004. p. 646-652.), elas iniciam sua existência enquanto categoria administrativa destinada à reclassificação do pessoal subalterno quando, nos anos 1940, o legislativo se encarrega de triar as verdadeiras enfermeiras, com Diploma de Estado (DE), dentre as muitas outras que exerciam a profissão sem diploma. A ausência de um DE significa doravante também um menor ordenado, logo, economia para as tutelas. Se as enfermeiras administram os tratamentos e exercem seu “papel próprio”, as auxiliares de enfermagem se encarregam da função de alojamento no hospital, da assistência aos pacientes em seus gestos cotidianos (como as necessidades fisiológicas, as trocas de roupa etc.) e de sua vigilância. Devido a um processo de reversão do estigma, às vezes as tarefas mais duras são as que as auxiliares de enfermagem mais valorizam para ressaltar sua contribuição e sua dignidade (Arborio, 2001ARBORIO, A.-M. Un personnel invisible: les aides-soignantes à l’hôpital. Paris: Anthropos, 2001.).
Além de vertical, a divisão do trabalho hospitalar é também horizontal, entre especialidades médicas, e portanto igualmente entre serviços: não apenas entre medicina e cirurgia, mas também no interior de cada um desses dois grandes ramos, em uma infinidade de especializações que se ramificam cada vez mais (Jaisson, 2002JAISSON, M. La mort aurait-elle mauvais genre? La structure des spécialités médicales à l’épreuve de la morphologie sociale. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 143, p. 44-52, 2002.; Pinell, 2005PINELL, P. Champ médical et processus de spécialisation. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 156-157, p. 436, 2005.). Certas especialidades são mais compatíveis com a NGP porque suas tarefas são mais delimitadas. Por exemplo, a cirurgia se adequa melhor a T2A, que define precisamente o que é tal operação, do que a psiquiatria, na qual tanto a definição da doença quanto seus tratamentos são muito mais difíceis de serem identificados e dificilmente constituem objeto de individualização. Uma cura é mais complicada do que uma apendicectomia. Mas aqui, propõe-se aprofundar o que diz respeito à divisão vertical do trabalho.
Os segmentos dominados da profissão, os mais sensíveis à gerencialização
A primeira razão é que, de acordo com sua classificação hierárquica, os cuidadores são mais ou menos expostos às demandas dos pacientes e dispõem de mais ou menos recursos para lidar com elas. Assim, a capacidade dos cuidadores de se distanciar do trabalho varia de acordo com a posição na divisão vertical do trabalho hospitalar: os médicos se protegem mais facilmente que as enfermeiras, que o fazem mais facilmente do que as auxiliares de enfermagem, que o fazem mais facilmente que os agentes periféricos de cuidados (Tabela 1).
Levemos em conta um possível mal-entendido: os médicos não são insensíveis. Lembremos da médica entrevistada anteriormente neste texto. O que distingue os agentes de acordo com seu estatuto não é sua sensibilidade, mas sua capacidade de se proteger contra ela. Enquanto os médicos se especializam na tarefa de estabelecer o diagnóstico e o tratamento, os paramédicos estão mais frequentemente em contato com os pacientes e suas famílias. Entre eles, as enfermeiras são mais qualificadas e legitimadas do que os auxiliares de enfermagem. Por exemplo, nas emergências, são elas quem realizam a triagem decisiva dos pacientes na entrada do serviço, instando os pacientes nas salas (“o médico já vem”), os repassam após administrá-los e por vezes exercem a vigilância. Nos serviços de especialidade, são elas quem estão mais frequentemente em contato com os pacientes, os quais os médicos geralmente não veem a não ser por ocasião de seus turnos. Sua insistência em seu próprio papel e sobre os cuidados relacionais reforça esse aspecto de sua atividade. Quando perguntadas sobre sua capacidade de construir uma proteção, eles respondem com mais frequência (22% contra uma média de 17%) que não querem fazer tal proteção, em outras palavras erguer uma barreira entre elas e o paciente. Elas desejam permanecer na relação e não se retirar dela, em consonância com seu papel profissional que implica em certa proximidade com os pacientes. Assim como elas são as mais numerosas a “levar o problema para casa” quando um paciente as comoveu ou irritou: 44% dentre elas contra 33% dentre os médicos, por exemplo. Ademais, as enfermeiras dispõem de menos recursos do que os médicos para enfrentar as demandas dos pacientes. Elas não podem se apoiar sobre a autoridade da ciência, geralmente são mulheres, mais jovens e pertencem a uma classe social menos elevada do que os médicos.
Portanto não é surpreendente, nessas condições, que as enfermeiras sejam mais sensíveis do que os médicos ao tema do tempo de passagem, e consequentemente de espera, diante das urgências da lógica gerencial, como discutido anteriormente. Com efeito, a despeito de sua forte desconexão com a realidade da profissão de enfermeira, esse indicador expressa melhor, ou menos mal, o trabalho das enfermeiras do que aquele dos médicos. Se em média apenas 11% dos cuidadores consideram que esses números descrevem bem o seu trabalho, essa proporção é ligeiramente maior para as enfermeiras (17%). Também são elas que mais declaram que o tempo de espera dos pacientes seria um problema essencial: 71%, contra 43% dos médicos.
Essa maior vulnerabilidade dos cuidadores hierarquicamente dominados, sobretudo as enfermeiras, diante das demandas dos pacientes, implica em uma intensidade particular quando estes são violentos. Essa violência, especialmente nas emergências, não é apenas um tema recorrente nas memórias de estudantes-enfermeiras e da imprensa, especializada ou do grande público; ela corresponde igualmente a uma realidade bastante palpável. A memória dos serviços de emergência é assim permeada de eventos violentos mais ou menos graves, como a história dessa auxiliar de enfermagem agredida por um paciente e que um ano depois ainda está afastada por doença, porque ela voltou a trabalhar aqui mas ela foi tomada pelo medo, ela não conseguia mais olhar para a cara das pessoas. Ela passa por uma psicoterapia, até mesmo nos supermercados ela sentia medo (CHU, 2006). Muitas enfermeiras deixam o serviço, até mesmo a profissão, em decorrência de episódios semelhantes, o que contribui para sua relativamente frágil “duração de vida” profissional, de em média dez anos (Kergoat et al., 1992KERGOAT, D. et al. Les infirmières et leur coordination, 1988-1989. Paris: Lamarre, 1992.).
A violência nas urgências atinge sobretudo aqueles que parecem frágeis fisicamente, de acordo com seu gênero masculino ou feminino, enfim: em termos de estatura. São sobretudo as jovens, as enfermeiras e as auxiliares de enfermagem - estas ainda mais -, uma vez que são as mais frequentemente encarregadas do trabalho “sujo” de contenção dos pacientes, e que suscitam portanto a ira deles. Assim, cerca de três quartos das auxiliares de enfermagem declaram serem constantemente insultadas pelos pacientes, contra 42% das enfermeiras e apenas 3% dos médicos. Em termos de agressão física, essas proporções são respectivamente 41%, 9% e… 0%. Imobilizar um paciente é também um trabalho naturalmente atribuído aos homens, sejam enfermeiros, auxiliares de enfermagem ou agentes de serviço. Entre os entrevistados, 19% das mulheres contra 3% dos homens nunca imobilizam um paciente. Assim, mais expostas às demandas dos pacientes e ao risco de sua violência, as categorias socioprofissionais dominadas no hospital, sobretudo as enfermeiras, são também mais sensíveis à temática gerencial do tempo de espera. Os pacientes que esperam menos tempo são mais fáceis de gerenciar e oferecem menos risco de se tornarem violentos.
***
Considerada globalmente, a NGP nos hospitais se opõe às lógicas de cuidado, sobretudo por limitar os recursos dos quais os cuidadores dispõem para realizar seu ofício. As lógicas de cuidado são, no entanto, objeto de certa apropriação pelos agentes que ocupam uma posição relativamente dominada na divisão do trabalho hospitalar, como os paramédicos, mais do que os médicos. Particularmente, no que concerne às urgências, as enfermeiras, mais expostas às queixas dos (im)pacientes que os médicos, são mais sensíveis ao tema da “redução do tempo de espera”, que significa de fato o aumento das cadências no ritmo de trabalho.
A aplicação da NGP nos hospitais significa portanto uma revalorização do critério de economia de recursos, e correlativamente uma desvalorização de todos os outros, sobretudo o da credibilidade do serviço prestado e o da acessibilidade desse serviço a todos. As diferentes profissões hospitalares se apropriam da NGP de maneira diferenciada, em particular de acordo com a posição elas ocupam na divisão vertical do trabalho. As profissões dominadas estão menos equipadas para resistir a ela.
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- 1Os questionários foram administrados em dois serviços de emergência, um em hospital universitário, outro em hospital geral, e obtiveram um total de 105 respostas, o que representou uma taxa de retorno de aproximadamente 2/3. Os serviços de urgência foram escolhidos por permitirem mostrar mais facilmente os fenômenos que dizem respeito ao hospital em seu conjunto, sobretudo as divergências entre as lógicas concorrentes de especialização da medicina, de atendimento a todas as populações que residem em um dado território e de limitação de seus meios de financiamento (Dodier; Camus, 1997DODIER, N.; CAMUS, A. L’admission des malades: histoire et pragmatique de l’accueil à l’hôpital. Annales HSS, Paris, v. 52, n. 4, p. 733-763, 1997.).
- 2Por “cuidador” entendemos todo profissional de saúde em contato com pacientes, qualquer que seja sua função, médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem etc.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2018
Histórico
- Recebido
09 Jul 2018 - Aceito
08 Ago 2018