Avaliação das pesquisas nos cenários da atenção primária à saúde: produção, disseminação e utilização dos resultados

Jamine Borges Morais Maria Salete Bessa Jorge Indara Cavalcante Bezerra Milena Lima de Paula Ana Paula Cavalcante Ramalho Brilhante Sobre os autores

Resumo

O artigo discorre acerca das implicações da pesquisa em saúde nos cenários da atenção primária à saúde (APS). Analisa o modo como o conhecimento produzido pela investigação científica repercute no cotidiano dos serviços da APS, dando ênfase aos processos de produção, disseminação e utilização dos resultados. Para tanto, realizou-se um estudo avaliativo participativo do tipo estudo de caso, ancorado na teoria construtivista. Participaram da pesquisa profissionais de saúde da APS e gestores e técnicos da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará e da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. Para a coleta das informações, utilizou-se a técnica do círculo hermenêutico-dialético e a análise do material empírico tomou como base a hermenêutica crítica. Nos resultados, são discutidos aspectos relacionados à escolha dos temas de pesquisa, à relevância das investigações e à utilização dos resultados para a tomada de decisão informada. Para superar os obstáculos encontrados para produção, disseminação e utilização dos resultados das pesquisas, sugere-se a elaboração de uma agenda de prioridades em pesquisa, em âmbito municipal, a partir da qual os problemas da APS seriam elencados, priorizados e investigados a partir de uma metodologia participativa, capaz de envolver todos os implicados.

Palavras-chave:
Pesquisa; Política de Pesquisa em Saúde; Agenda de Pesquisa em Saúde; Gestão do Conhecimento para a Pesquisa em Saúde; Avaliação da Pesquisa em Saúde

Introdução

No Brasil, a construção de processos participativos na saúde, tanto no âmbito da gestão dos serviços como na pesquisa em saúde, vem democratizando os processos decisórios, o que resultou na construção da Política Nacional de Saúde (PNS) e da Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (PNCTIS) e na elaboração da Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde (ANPPS). Como consequência dessas políticas, tem-se o aumento do financiamento governamental para pesquisas e para a capacitação humana e seu desenvolvimento. Em razão desses investimentos, houve a ampliação da produção científica brasileira (Packer, 2015PACKER, A. L. Indicadores de centralidade nacional da pesquisa comunicada pelos periódicos de saúde coletiva editados no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 7, p. 1983-1995, 2015.; Vargas; Britto, 2016VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Scientific and technological capabilities in health-related areas: opportunities, challenges, and interactions with the industrial sector. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, e00185214, 2016. Suplemento 2.).

Porém, a despeito de todo o conhecimento produzido, do financiamento dessas pesquisas e do envolvimento dos pesquisadores, existe um vácuo entre a produção e a utilização dos resultados das investigações realizadas nos serviços públicos de saúde. Diante dessa realidade, questiona-se a relevância dessas pesquisas que geram resultados que não são utilizados, pois, de acordo com Patton (1997PATTON, M. Q. Utilization-focused evaluation: the new century text. Thousand Oaks: Sage Publications, 1997.), o mérito de uma avaliação é equivalente à sua utilização. Uma vez que todo estudo científico também se propõe a avaliar o contexto estudado, a pesquisa deve contribuir, de alguma forma, para a melhoria da atenção em saúde.

O sistema público de saúde brasileiro tem como um de seus componentes a atenção primária à saúde (APS), que corresponde ao primeiro nível de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS). É responsável pela coordenação e pela organização do cuidado, sendo capaz de resolver a maioria dos problemas de saúde da população. É por meio da estratégia saúde da família (ESF) que a APS se constitui e é efetivada na comunidade (Paim, 2012PAIM, J. S. Atenção primária à saúde: uma receita para todas as estações? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 94, p. 343-347, 2012.; Starfield, 2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidade de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco: Ministério da Saúde, 2002.).

Contudo, devido à sua inserção em cenários complexos e diversificados, permeados por interesses políticos, econômicos e sociais, algumas das potencialidades da APS podem ser minimizadas, o que tem trazido questionamentos quanto à sua credibilidade como ordenadora e coordenadora de serviços e ações de saúde (Arantes; Shimizu; Merchan-Hamann, 2016ARANTES, L. J.; SHIMIZU, H. E.; MERCHAN-HAMANN, E. Contribuições e desafios da Estratégia Saúde da Família na atenção primária à saúde no Brasil: revisão da literatura. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1499-1510, 2016.).

Na literatura, os principais desafios à APS referem-se ao financiamento insuficiente, à formação profissional em desarmonia com o modelo de atenção requerido, à precarização do vínculo profissional com as instituições e ao desalinhamento de ações intersetoriais. Têm-se ainda fragilidades no planejamento e na participação social (Arantes; Shimizu; Merchan-Hamann, 2016ARANTES, L. J.; SHIMIZU, H. E.; MERCHAN-HAMANN, E. Contribuições e desafios da Estratégia Saúde da Família na atenção primária à saúde no Brasil: revisão da literatura. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1499-1510, 2016.).

Dessa forma, investir em estratégias que fortaleçam os serviços e os processos de trabalho da APS e que contribuam na tomada de decisão tende a melhorar o status da saúde e reduzir os custos. Enfatiza-se, portanto, a pesquisa como estratégia que pode contribuir para identificar problemas e propor soluções relevantes, capazes de resultar no aperfeiçoamento das ações e dos serviços de saúde (Lau et al., 2016LAU, R. et al. Achieving change in primary care-causes of the evidence to practice gap: systematic reviews of reviews. Implementation Science, London, v. 11, n. 40, 2016.).

Com efeito, a resolutividade dos problemas sociais e de saúde de uma população requer que as diretrizes norteadoras das ações estejam pautadas por evidências científicas. O estudo Estabelecendo Prioridades para o Desenvolvimento da Comunidade (ELECT - Establishing Leads for Community Development) elaborou, junto a especialistas (gestores, trabalhadores e pesquisadores) e usuários do SUS, uma lista dos principais obstáculos ao fortalecimento da APS e, em consequência, foram levantados os temas prioritários de pesquisa para essa área no estado de São de Paulo. A investigação objetivou, dessa forma, definir uma agenda de prioridades em pesquisa com elevado potencial de fortalecer a APS, com intuito de promover a saúde e o desenvolvimento social das comunidades. Convém lembrar que já existe uma agenda nacional; entretanto, esta não aborda questões específicas da APS (Orlandin et al., 2017ORLANDIN, E. A. S. et al. Uma agenda de pesquisa para a atenção primária à saúde no estado de São Paulo, Brasil: o estudo ELECT. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 61, p. 349-361, 2017.).

Considerar a pesquisa como um importante recurso para a geração de informações que iluminem o ambiente de tomada de decisão pode gerar conhecimentos aplicáveis, capazes de promover melhorias nos serviços da APS. Entretanto, para isso é necessário fortalecer o vínculo entre academia e serviços de saúde, contribuindo para aproximar pesquisadores comprometidos com os temas prioritários e gestores sensibilizados à incorporação dos resultados dos estudos na formulação de políticas e nas intervenções em saúde, sobretudo, nos serviços de saúde do SUS.

Diante do exposto, questiona-se: os sujeitos envolvidos percebem a pesquisa em saúde como ferramenta estratégica para tomada de decisão, transformação e inovação na APS? Quais os desafios para a incorporação dos resultados das pesquisas às práticas dos serviços de saúde?

Assim, esta investigação fez uso da avaliação participativa, tendo em vista que essa abordagem pode se constituir em instrumento de aprendizagem para os atores locais envolvidos (Almeida; Tanaka, 2016ALMEIDA, C. A. L.; TANAKA, O. Y. Avaliação em saúde: metodologia participativa e envolvimento de gestores municipais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, n. 45, p. 1-10, 2016.) na medida em que fornece subsídios para mudanças e transformações a partir das informações geradas pela participação dos sujeitos implicados. Isso propicia, também, a capacitação das pessoas envolvidas na avaliação, a fim de aumentar seu potencial de análise e de autoanálise para se constituírem sujeitos no processo de mudança.

Dessa forma, este artigo tem como objetivo analisar as implicações da pesquisa em saúde nos cenários da APS, ou seja, o modo como o conhecimento produzido pela investigação científica repercute no cotidiano dos serviços da APS, dando ênfase aos processos de produção, disseminação e utilização dos resultados.

Método

Trata-se de um estudo avaliativo participativo do tipo estudo de caso (Yin, 2015YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.). Dentre os diferentes caminhos existentes para realizar uma investigação com abordagem qualitativa, optou-se pelo método participativo, tendo em vista a possibilidade de envolver os diversos interessados ao estabelecer uma relação horizontal entre estes e os pesquisadores envolvidos, produzindo em conjunto um conhecimento científico (Almeida; Tanaka, 2016ALMEIDA, C. A. L.; TANAKA, O. Y. Avaliação em saúde: metodologia participativa e envolvimento de gestores municipais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, n. 45, p. 1-10, 2016.).

A investigação teve como cenário a APS do município de Fortaleza/CE. O modelo de atenção que vem sendo implantado no município se operacionaliza a partir do conceito de condições de saúde, baseado na proposta de Redes de Atenção à Saúde. Fundamenta-se na compreensão da APS como primeiro nível de atenção, enfatizando a função resolutiva dos cuidados primários sobre os problemas mais comuns de saúde e a partir do qual se realiza e coordena o cuidado em todos os pontos de atenção (Fortaleza, 2014FORTALEZA. Plano municipal de saúde de Fortaleza: 2014-2017. Fortaleza: Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, 2014.) Segundo consulta feita ao Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. e-Gestor: cobertura da atenção básica. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2Ls6DLp >. Acesso em: 16 maio 2017.
http://bit.ly/2Ls6DLp...
), a rede de serviços de atenção primária no município conta com 112 centros de saúde/unidades básicas, denominados de Unidades de Atenção Primária à Saúde. De acordo com o sítio eletrônico do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, em março de 2018 a cobertura populacional estimada por equipes da ESF em Fortaleza foi de 47,38%, com 361 equipes de saúde da família11BRASIL. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <http://bit.ly/2AalGFc>. Acesso em: 16 maio 2017. (Brasil, s.d.).

Optou-se em incluir como participantes dois técnicos do Núcleo de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (Nucit) vinculados à Coordenadoria da Gestão da Educação Permanente em Saúde (Cgeps) da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa); sete técnicos da Coordenadoria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (Cogtes) vinculados à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Fortaleza; seis articuladores regionais da célula de APS; e seis representantes dos profissionais de saúde do Conselho Municipal de Saúde de Fortaleza. Portanto, o estudo incluiu um total de 21 participantes.

A Cgeps, por meio do Nucit, e a Cogtes são responsáveis pela condução da política de pesquisa nas redes estadual e municipal, respectivamente, e atuam como instituições coparticipantes, cujos técnicos são responsáveis por julgar a relevância social da pesquisa, bem como por propiciar espaços de discussão entre gestores, trabalhadores e pesquisadores, com vistas a favorecer a incorporação dos resultados das pesquisas nas ações e nos serviços do SUS e fornecer subsídios para a tomada de decisão. Os articuladores regionais da APS auxiliam os gestores municipais na identificação de problemas e na formulação de estratégias para o desenvolvimento dessa área, tendo a organização do processo de trabalho nas unidades de APS como principal atividade. Os profissionais de saúde selecionados compõem a ESF e representam os trabalhadores no Conselho Municipal de Saúde. Para todos os participantes foi requisitado, como critério de seleção para a pesquisa, estarem no cargo ou função por um período mínimo de um ano. Foram excluídos aqueles que estavam de férias ou licença no período da coleta das informações.

Para a obtenção das informações, recorreu-se à entrevista aberta, partindo de uma temática disparadora: “Comente sobre a incorporação do conhecimento científico produzido pelas pesquisas à sua prática de trabalho”. Dessa forma, as primeiras entrevistas não tinham um roteiro previamente estruturado. Contudo, na medida em que foram realizadas as interlocuções, procedia-se à sua análise, o que permitiu identificar outras questões mais aprofundadas sobre o tema, as quais foram incorporadas aos questionamentos anteriores, produzindo novas perguntas para as entrevistas seguintes. Com efeito, as entrevistas tornaram-se mais estruturadas a cada passo, o que permitiu uma aproximação com a técnica do “círculo hermenêutico-dialético”, fundamentada por Guba e Lincoln (2011GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora Unicamp, 2011.).

As sínteses das informações extraídas das entrevistas foram apresentadas aos participantes da pesquisa de maneira que estes tivessem acesso à totalidade das informações e pudessem desfrutar da oportunidade de modificá-las até afirmar a sua credibilidade, a partir de uma discussão coletiva acerca das análises produzidas pelos relatos. Essa etapa de validação e síntese do material empírico foi realizada mediante a utilização da técnica grupal e contou com a participação da maioria dos entrevistados e dos pesquisadores.

As entrevistas e os grupos de discussão foram realizados nos locais de trabalho dos participantes, durante os meses de junho a setembro de 2015. Os relatos foram gravados em um dispositivo eletrônico de áudio, mediante autorização dos participantes, e, em seguida, transcritos na íntegra, sendo identificados e codificados pelas siglas TE, TM, GM e PS, representando, respectivamente, técnico estadual (Nucit), técnico municipal (Cogtes), gestor municipal (articulador regional da APS) e profissional de saúde.

A trajetória analítica do material empírico tomou como base a hermenêutica crítica, conforme sugerem Minayo (2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.) e Assis e Jorge (2010ASSIS, M. M. A.; JORGE, M. S. B. Métodos de análise em pesquisa qualitativa. In: SANTANA, J. S. S.; NASCIMENTO, M. A. A. (Org.). Pesquisa: métodos e técnicas de conhecimento da realidade social. Feira de Santana: Editora da UEFS, 2010. v. 1. p. 139-160.), seguindo, desse modo, a sistemática de ordenação, classificação e análise final das informações.

Este estudo é um destaque da pesquisa denominada Avaliação das pesquisas em saúde e enfermagem: olhares plurais sobre a contribuição para as políticas, organização dos serviços e assistência na interface com a produção do cuidado na atenção primária, que recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual do Ceará.

Em síntese, os preceitos éticos foram respeitados, em consonância com o que determina a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, referente à pesquisa com seres humanos (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jun. 2013.).

Resultados e discussões

Produção do conhecimento

Na atualidade, duas perspectivas de ciência são confrontadas cotidianamente nos espaços da gestão de políticas públicas em saúde e da academia. De um lado, a ciência produzida para a inovação e para a tecnologia - que, embora contribua para a melhoria da qualidade de vida da população, não tem a superação das desigualdades como bandeira de luta. Por outro, tem-se a atuação política como fim precípuo da produção científica; nesse contexto, a pesquisa deve contribuir para a transformação social, reduzindo as desigualdades.

Diante dos discursos dos profissionais de saúde, observa-se severa distorção entre o que se espera que uma pesquisa ofereça - subsídios para mudança e melhoria das práticas em saúde, implantação de novas tecnologias, formulação de políticas, redução das desigualdades sociais, enfim, identificar e lidar com questões de saúde da população - e o que, de fato, ela proporciona - título ao pesquisador e prestígio perante a comunidade científica.

O relato de que Algumas pesquisas servem para pessoas fazerem seus trabalhos finais (PS) reflete a realidade das universidades brasileiras, geralmente desvinculadas de um compromisso ético e profissional que teria potencial de transformar o sistema de saúde e as práticas nele desenvolvidas, repercutindo na melhoria da qualidade de vida e saúde da população. Ressalta-se que a universidade tem a finalidade de garantir que a pesquisa contribua para o desenvolvimento social, econômico e cultural de uma sociedade e, assim, possibilitar a melhoria das condições de vida de uma população (Delgado-Bravo et al., 2014DELGADO-BRAVO, A. I. et al. Tendencias de investigación en salud: análisis y reflexiones. Aquichán, Bogotá, v. 14, n. 2, p. 237-250, 2014.).

Contudo, a mercantilização do conhecimento deu novas razão e função social à universidade pública, que passou a se adequar à lógica empresarial e acabou por substituir qualidade por produtividade (Rodriguez; Martins, 2005RODRIGUEZ, M. V.; MARTINS, L. G. A. As políticas de privatização e interiorização do ensino superior: massificação ou democratização da educação brasileira. Revista de Educação, Campinas, v. 8, n. 8, p. 41-52, 2005.). Nessa lógica, as universidades passaram a ocupar um lugar de produção científica. É nessa ótica que o gestor da APS percebe a pesquisa. Segundo ele, o que se gasta em ciência e tecnologia, no Brasil, e o que se gera, por exemplo, em patente, registro de produto, é ínfimo, então é um problema de ordem estrutural (GM).

Propala-se a ideia de que o produto da ciência é o invento ou a inovação tecnológica e que para o progresso do país deve-se inventar e inovar mais, pois no Brasil, o pesquisador trabalha dentro do estado da arte, dentro de uma visão conceitual e teórica, quando, na verdade, o que precisamos é de pesquisa aplicada (GM). Entretanto, sabe-se que os problemas do Brasil ainda são de ordem social. A desigualdade social não é consequência da falta de investimento em tecnologia, o que leva a crer que direcionar a produção científica para a inovação tecnológica não resolveria os problemas de saúde da população brasileira.

Ademais, um estudo realizado por Silva e Caetano (2011SILVA, R. M.; CAETANO, R. Um exame dos fluxos financeiros do Ministério da Saúde em pesquisa e desenvolvimento (2003-2005), segundo a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 687-700, 2011.) aponta que dos R$ 409,7 milhões aplicados pelo Ministério da Saúde em pesquisa e desenvolvimento em saúde entre 2003 e 2005, R$ 233,9 milhões foram investidos em pesquisa aplicada (57,1%), R$ 79,6 milhões em desenvolvimento experimental (19,4%) e apenas R$ 15 milhões (3,7%) em pesquisa básica. Dessa forma, percebe-se que, embora o montante geral de investimento em pesquisa em saúde no Brasil ainda seja escasso, a maior parte dos recursos é destinada às pesquisas aplicadas, seguidas pelas pesquisas de desenvolvimento experimental, sendo estas capazes de gerar produtos e inovações tecnológicas.

De todo modo, além da contribuição das pesquisas aplicadas e experimentais para o desenvolvimento de tecnologias e inovação, as pesquisas básicas também apresentam forte interação com o campo das inovações em saúde (Vargas; Britto, 2016VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Scientific and technological capabilities in health-related areas: opportunities, challenges, and interactions with the industrial sector. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, e00185214, 2016. Suplemento 2.).

É inegável o fato de que a infraestrutura de pesquisa do Brasil contribuiu, sobremaneira, para aumento no número de publicações científicas e a internacionalização da ciência. Por outro lado, o mesmo sistema […] valoriza a publicação, e não a aplicação, então, quanto mais o pesquisador publicar, mais o MEC [Ministério da Educação] reconhece que aquele pesquisador é um grande pesquisador (TE).

De acordo com Iriart et al. (2015IRIART, J. A. B. et al. A avaliação da produção científica nas subáreas da saúde coletiva: limites do atual modelo e contribuições para o debate. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 10, p. 2137-2147, 2015.), a produtividade científica corresponde a 35% da nota na avaliação dos programas de pós-graduação em saúde cole­tiva, baseando-se fundamentalmente em critérios quantitativos - o que, por sua vez, impulsiona os pesquisadores a produzir cada vez mais sem, contudo, considerar a qualidade do que está sendo feito. Dessa forma, os autores ressaltam o quão danosa é a corrida desenfreada pela publicação, tornando cada vez mais difícil a obtenção de financiamento de pesquisas para as áreas que pontuam menos.

Nesse cenário, o que se observa é uma produção de conhecimento voltada para a publicação. São pesquisas com resultados “fatiados”, a fim de gerar o maior número possível de publicações. A produção científica vem, progressivamente, se transformado em força produtiva do capitalismo, acentuando as desigualdades quando, na verdade, deveria reduzi-las, o que repercute negativamente nas condições de vida e saúde das populações mais vulneráveis (Ferreira; Rigotto, 2014FERREIRA, M. J. M.; RIGOTTO, R. M. Contribuições epistemológicas/metodológicas para o fortalecimento de uma (cons)ciência emancipadora. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 10, p. 4103-4111, 2014.).

Muito se tem discutido e publicado acerca do compromisso ético e da responsabilidade do pesquisador diante dos recursos oferecidos pelo governo para o financiamento de pesquisas (Carvalho et al., 2016CARVALHO, R. R. S. et al. Programa Pesquisa para o SUS: desafios para aplicabilidade na gestão e serviços de saúde do Ceará. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 53-63, 2016.; Celino et al., 2013CELINO, S. D. M. et al. Programa Pesquisa para o SUS: a contribuição para gestão e serviços de saúde na Paraíba, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 203-212, 2013.; Santos et al., 2010SANTOS, L. M. P. et al. O papel da pesquisa na consolidação do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 9, p. 1666-1667, 2010.). Contudo, pouco se tem argumentado acerca da responsabilidade ética desses pesquisadores (incluindo aqui estudantes de pós-graduação) em desenvolver suas pesquisas em áreas prioritárias e comprometerem-se com temas que tenham relevância para a sociedade, pois o que se tem observado são temas sempre muito repetitivos, assuntos que já foram pesquisados de maneira muito semelhante por outros pesquisadores (TE) e raras são as vezes que vejo pesquisas inovadoras que tenham uma relevância para o sistema de saúde (TM).

É preciso considerar que a escolha de temas a serem estudados não está isenta dos interesses pessoais de cada pesquisador, devido às linhas em que já estão habituados a investigar (Bourdieu, 2004BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.). Nessa perspectiva, Celino et al. (2013CELINO, S. D. M. et al. Programa Pesquisa para o SUS: a contribuição para gestão e serviços de saúde na Paraíba, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 203-212, 2013.) advertem que os conhecimentos produzidos cientificamente se apoiam muito nos interesses do próprio pesquisador, cuja intenção nem sempre é contribuir para a resolução dos problemas prioritários de saúde da população.

Na tentativa de alinhar o desenvolvimento de pesquisas às temáticas prioritárias para a saúde da população, foi implementada a ANPPS para induzir a produção científica no setor de saúde com enfoque em temas prioritários, orientando o fomento no âmbito do SUS e servindo de diretriz para as agências de fomento científico e tecnológico. Sua elaboração de forma participativa, contando com a colaboração de pesquisadores, gestores, trabalhadores de saúde e usuários, possibilitou que os temas das subagendas representassem, com a maior proximidade possível, as necessidades de saúde (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2008.).

Percebe-se que pesquisas financiadas são direcionadas pelos temas da ANPPS; contudo, no Ceará, não existe uma agenda que considere as características epidemiológicas e culturais próprias do estado. Dessa forma, o que se tem são pesquisas descontextualizadas e motivadas por uma curiosidade pessoal do pesquisador (TM). Mesmo o Programa Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde (PPSUS), cujos temas prioritários devem ser elencados por meio de oficina participativa, não contam com a participação do Conselho de Saúde, mas tão somente de pesquisadores e técnicos da Secretaria Estadual de Saúde (Carvalho et al., 2016CARVALHO, R. R. S. et al. Programa Pesquisa para o SUS: desafios para aplicabilidade na gestão e serviços de saúde do Ceará. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 53-63, 2016.).

Nesse contexto, o primeiro passo para o desenvolvimento de uma pesquisa já se encontra comprometido e, possivelmente, a utilização dos resultados não acontecerá, pois, de acordo com as ideias de Patton (1997PATTON, M. Q. Utilization-focused evaluation: the new century text. Thousand Oaks: Sage Publications, 1997.), o interesse nos resultados das pesquisas é condição necessária para a sua utilização. Contudo, tendo em vista a falta de interesse dos gestores e da sociedade pelos temas pesquisados, torna-se inviável qualquer tipo de impacto nas práticas em saúde. Uma maior interação entre a academia e os serviços de saúde resultaria em pesquisas mais bem direcionadas, tendo em vista que os problemas de pesquisa emergem do cotidiano dos serviços de saúde aos quais os resultados poderão ser incorporados.

A escassez de financiamento às investigações em âmbito municipal não é empecilho para a criação de uma agenda que elenque as prioridades de pesquisa, que é construída coletivamente, com a participação de gestores, pesquisadores e conselheiros de saúde, e discutida nas conferências de saúde para servir de instrumento consultivo a pesquisadores na elaboração de seus projetos de pesquisa.

Disseminação dos achados

A Constituição brasileira define como uma das atribuições do sistema de saúde “incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico” (Brasil, 1988BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988., inciso V, artigo 200), bem como estimular a transferência entre universidades e institutos de pesquisa e os serviços de saúde e empresas nacionais (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990) (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cdAJNK >. Acesso em: 23 jul. 2018.
https://bit.ly/2cdAJNK...
). Para tanto, é necessário contar com uma gama de elementos decisivos no processo de produzir, comunicar e utilizar resultados de estudos. Dentre eles, sobressai o compromisso de construir conhecimento em áreas prioritárias e sociabilizar os resultados, além da vontade do gestor de fazer uso dessas pesquisas.

Inúmeros obstáculos precisam ser superados para a construção de um projeto de pesquisa cuja temática seja de interesse não apenas de pesquisadores, mas também de gestores, trabalhadores de saúde e usuários, sendo capaz de repercutir nos serviços da APS. Superados os desafios da produção do conhecimento, a socialização dos resultados emerge como o próximo passo para que a pesquisa possa propiciar a internalização do conhecimento e influenciar sua utilização.

No que diz respeito à disseminação dos resultados das pesquisas, os profissionais de saúde percebem a importância de um espaço para a apresentação e a discussão dessas investigações: se ela [a pesquisa] foi feita na regional, ela deveria ser apresentada aos conselhos regionais em uma plenária, juntamente com técnicos da secretaria, que pudesse emitir um parecer para o Conselho Municipal (PS).

As formas tradicionais de divulgação dos resultados da investigação entre os cientistas não são adequadas, tornando-se necessárias estratégias inovadoras para promover o acesso aos resultados e às recomendações para o sistema de saúde (Angulo-Tuesta; Santos; Natalizi, 2016ANGULO-TUESTA, A.; SANTOS, L. M. P.; NATALIZI, D. A. L. Impact of health research on advances in knowledge, research capacity-building and evidence-informed policies: a case study on maternal mortality and morbidity in Brazil. São Paulo Medical Journal, São Paulo, v. 134, n. 2, p. 153-162, 2016.). Nesse contexto, a APS tem nos conselhos locais e regionais de saúde espaços prioritários de participação da população, os quais possuem a capacidade de mobilizar gestores, trabalhadores e usuários, sendo, dessa forma, locais ideais para socialização dos resultados das investigações.

É necessário que os pesquisadores tenham o compromisso ético de democratizar os resultados de suas pesquisas, mas é preciso considerar que tal ação deve contar com o apoio da gestão. Porém, nas palavras do trabalhador de saúde, ela aparece como um elo frágil dentro do processo de investigação, no qual:

a própria gestão não dá espaço construtivo para que esses detalhes sejam discutidos dentro dos planos de saúde […], se pudéssemos discutir os resultados delas [das pesquisas] dentro dos planos de saúde, aí sim, elas teriam como produzir efeitos na estrutura do sistema. (PS)

Como instituição coparticipante nas pesquisas realizadas nos serviços da APS, a Cogtes é o órgão responsável por viabilizar a disseminação dos achados. Durante dois anos, realizou fóruns de apresentação de trabalhos realizados na APS. Nas ocasiões, eram convidados a participar gestores, trabalhadores e pesquisadores, mas a participação dos gestores era mínima (TM), e hoje, pela pouca sensibilidade da gestão para a questão das pesquisas, o fórum não acontece mais (TM).

Para Guimarães (2004GUIMARÃES, J. A. A pesquisa médica e biomédica no Brasil: comparações com o desempenho científico brasileiro e mundial. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 303-327, 2004.), a socialização de resultados de pesquisas com gestores deve considerar os diferentes significados que a linguagem dos pesquisadores pode suscitar. Para o autor, a tradução de respostas científicas em conhecimento útil aos gestores se estabelece por um processo de apreensão cognitiva dos conceitos científicos, e isso não significa dizer que os relatórios de pesquisa devem falar a linguagem do gestor (TM), mas que devem, sobretudo, ser capazes de elucidar estratégias para a tomada de decisão quanto à condução dos serviços de saúde: o importante é que sejam obtidos resultados relevantes e que a partir daquele resultado, ele [o gestor] faça inferências acerca do que é mais adequado fazer (TE).

O fortalecimento do sistema nacional de pesquisa em saúde requer esforços para que os resultados sejam disseminados, de modo que os atores implicados tenham acesso e possam, a partir das reflexões, operacionalizar sua utilização, tendo em vista que conhecendo os resultados de uma pesquisa, poderíamos trabalhar para que as estratégias elencadas fossem implementadas […] agora, de outra forma, não tem como (GM). Dessa maneira, fica claro que não é possível que as pesquisas retroalimentem os serviços da APS sem que haja uma ampla divulgação dos seus achados. Se nós não discutimos resultados e não tiramos das discussões posicionamentos, nós não temos como mudar esse modelo de saúde que tá aí (PS).

Utilização do conhecimento

Embora a pesquisa em saúde tenha avançado no Brasil, alguns componentes do sistema de pesquisa, como a incorporação dos resultados da investigação e a avaliação do seu impacto, são pouco estruturados e desenvolvidos, não só pelas instituições e agências públicas, mas pelos próprios pesquisadores (Angulo-Tuesta; Santos; Natalizi, 2016ANGULO-TUESTA, A.; SANTOS, L. M. P.; NATALIZI, D. A. L. Impact of health research on advances in knowledge, research capacity-building and evidence-informed policies: a case study on maternal mortality and morbidity in Brazil. São Paulo Medical Journal, São Paulo, v. 134, n. 2, p. 153-162, 2016.).

Conforme explicita a PNCTIS, o Estado deve atuar como regulador dos fluxos de pesquisas, desde a sua produção até a incorporação dos resultados. Partindo dessa prerrogativa, o Ministério da Saúde, por intermédio do Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégico (Sctie), promoveu a descentralização do fomento à pesquisa por meio da criação do PPSUS, com o propósito de financiar pesquisas que atendam às necessidades regionais e à redução das desigualdades, favorecendo a aproximação dos sistemas de saúde, ciência e tecnologia locais e promovendo a equidade (Brasil, 2008BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2008.). A expectativa do PPSUS é que a produção científica gerada contribua para a promoção de conhecimento e a melhoria das ações e políticas de saúde nos âmbitos local, regional e nacional.

O programa envolve parcerias entre as esferas federal, por intermédio do Ministério da Saúde, e estadual, pelas Fundações de Amparo à Pesquisa (FAP). No Ceará, o agente executor desse programa tem sido a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap), juntamente com a Sesa, sendo operacionalizado pelo Nucit.

Embora o programa represente um avanço no desenvolvimento de pesquisas, por considerar as singularidades de cada região, sua condução apresenta fragilidades que comprometem a incorporação dos resultados alcançados aos serviços de saúde. Os desafios apresentam-se ainda na fase de organização da oficina de prioridades de pesquisa em saúde, que contam tão somente com a participação de pesquisadores e técnicos da Sesa, pois representantes dos trabalhadores afirmam que o conselho nunca foi convidado a participar (PS) quando, na verdade, tanto o Conselho de Saúde como os gestores deveriam ter ampla participação, conforme é estabelecido pela PNCTIS.

De acordo com TE, um dos motivos para a não utilização dos resultados das pesquisas financiadas pelo PPSUS é exatamente porque os temas estão desconectados das prioridades da secretaria, problema que, por sua vez, poderia ser superado na etapa de seleção de prioridades se a secretaria contasse com a efetiva participação dos gestores e do Conselho de Saúde, pois, como defende Patton (1997PATTON, M. Q. Utilization-focused evaluation: the new century text. Thousand Oaks: Sage Publications, 1997.), somente com a ampla participação dos atores envolvidos é que se pode almejar a utilização dos resultados.

Outro ponto crucial diz respeito à socialização dos achados, que se dá no seminário de apresentação dos estudos, quando os investigadores apresentam os resultados das pesquisas que, por sua vez, são avaliadas por especialistas externos. Esse formato dificulta a aplicabilidade destas, pois não envolve a secretaria, envolve pessoas de fora […] especialistas que nem sempre conhecem a realidade local (TE). Além disso, os gestores, principais atores no processo de incorporação das pesquisas, não comparecem ao seminário: poucos decisores acabam participando, quase nenhum decisor realmente participa (TE).

Vale ressaltar que, por mais que o tema escolhido seja de interesse dos gestores e que os achados sejam disseminados nos mais diversos meios, é possível que os resultados das pesquisas não sejam incorporados. Por creditar que a parceria entre pesquisador e gestor é elemento crucial para a utilização do conhecimento científico, ressalta-se a necessidade da criação de canais de comunicação (Weiss, 1988WEISS, C. H. Evaluation for decisions: is anybody there? Does anybody care? Evaluation Practice, Amsterdam, v. 1, p. 5-19, 1988.) e de que os gestores tenham sua capacidade receptiva ampliada, por meio de treinamentos favorecidos pela interface entre academia e gestão (Hanney et al., 2003HANNEY, S. R. et al. The utilisation of health research in policy-making: concepts, examples and methods of assessment. Health Research Policy and Systems, London, v. 1, p. 2, 2003.).

De acordo com o técnico do Nucit, a expectativa é de aproximar mais os gestores das pessoas que estão desenvolvendo essas pesquisas, para tentar fazer com que essas pesquisas tenham mais aplicabilidade na prática (TE). Considera-se esta uma estratégia importante para incorporação de pesquisas; contudo, o mesmo técnico que assume essa estratégia também considera que o conselho não tem ainda um despertamento para essa área [pesquisa] (TE), embora a fala do representante dos trabalhadores de saúde seja a de que existe uma linha de discussão dentro do próprio conselho, sobre ciência e tecnologia, que por, sua vez, são também discutidas nas conferências de saúde (PS). Considerando que Conselho de Saúde representa usuários e trabalhadores que vivenciam o cotidiano dos serviços e, portanto, conhecem de perto os problemas que os envolvem, infere-se que a participação desse instituto é condição sine qua non para a elaboração de temas de pesquisa que impactem na realidade da APS.

Quanto ao papel desenvolvido pelo município, este deve articular o sistema de pesquisa aos serviços de saúde. Dessa forma, o desafio da Cogtes é traduzir o conhecimento produzido em intervenções que melhorem o desempenho da APS. Contudo, não existe uma sistematização das investigações realizadas no município e os resultados das pesquisas não chegam até a coordenadoria (TM), de modo que a função da Cogtes passa a reduzir-se tão somente à burocratização do processo de investigação científica, sem contribuir com a disseminação e a utilização do conhecimento.

É necessário o compromisso do pesquisador em devolver os resultados das pesquisas, por meio da apresentação destas nos cenários em que foram realizadas e da entrega do relatório à Cogtes, conforme escrito na carta de anuência que o investigador recebe dessa coordenadoria, só que eles se esquecem dessa questão, e a gente não tem uma ferramenta, um meio para entrar em contato com esse pessoal, de maneira a cobrar essa devolução (TM). Considerando a falha de comunicação relatada, recomenda-se a criação de um sistema de comunicação e informação capaz de articular as necessidades da APS aos centros de pesquisas e às universidades, fortalecendo a parceria entre estes últimos e os gestores, de modo que a apropriação do conhecimento seja possível.

Ressalta-se que a responsabilidade pela utilização dos resultados não é apenas do pesquisador, pois, como destaca Brousselle (2009BROUSSELLE, A. L’evaluation: concepts et méthodes. Montréal: Les Presses de l’Université de Montréal, 2009.), esse trabalho deve ser articulado entre pesquisadores e gestores. Contudo, na ótica dos gestores, as pesquisas desenvolvidas na APS estão em nível teórico, com uma linguagem científica difícil de ser compreendida (GM). Argumentam ainda que a gestão precisa de pesquisas com aplicação prática, porque no dia a dia não tem como ficar analisando possibilidades, probabilidades, novos caminhos […] tem que vir um produto mais ou menos completo para que possa ser aplicado (GM).

No entanto, Brousselle (2009BROUSSELLE, A. L’evaluation: concepts et méthodes. Montréal: Les Presses de l’Université de Montréal, 2009.) ressalta que o pesquisador não precisa, necessariamente, expor em seus relatórios de pesquisa todas as estratégias e ferramentas das quais o gestor deve fazer uso para implementar uma política ou introduzir mudanças na organização dos serviços de saúde. O gestor também deve compreender, minimamente, os termos e conceitos relacionados à sua área de atuação para poder aplicar os resultados. Dessa forma, ambos devem estar conscientes de que as investigações científicas não oferecem respostas definitivas e aplicáveis universalmente, mas são capazes de elucidar conceitos que permitem o conhecimento profundo de uma realidade (Souza; Contandriopoulos, 2004SOUZA, L. E. P. F.; CONTANDRIOPOULOS, A. P. O uso de pesquisas na formulação de políticas de saúde: obstáculos e estratégias. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 546-554, 2004.).

Na tentativa de solucionar essa problemática, elencam-se alguns fatores que podem determinar a utilização do conhecimento científico, pautados em disponibilidade (envolver os gestores na definição dos temas prioritários), acessibilidade (utilizar escrita clara e promover ampla divulgação, não se restringindo aos meios acadêmicos) e validade (as pesquisas devem ter seus aspectos metodológicos e epistemológicos descritos de forma clara e explícita) (Souza; Contandriopoulos, 2004SOUZA, L. E. P. F.; CONTANDRIOPOULOS, A. P. O uso de pesquisas na formulação de políticas de saúde: obstáculos e estratégias. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 546-554, 2004.). Dessa forma, a pesquisa deve chamar atenção para determinadas situações e gerar uma linha de pensamento para a tomada de decisão.

É necessário ressaltar que, além de produção, disseminação e utilização das pesquisas, a avaliação também se constitui um instrumento essencial de apoio à gestão, devido à sua capacidade de melhorar a qualidade da tomada de decisão. Pesquisas de cunho avaliativo são capazes de conduzir a decisões adequadas e de tornar viável a implementação dos resultados, tendo em vista que envolvem a todos os interessados (Tanaka; Tamaki, 2012TANAKA, O. Y.; TAMAKI, E. M. O papel da avaliação para a tomada de decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 821-828, 2012.). Apesar disso, percebe-se o uso ainda incipiente da avaliação na gestão de serviços de saúde.

Considerações finais

Diante do exposto, observa-se um descompasso entre o mundo da academia - centrado na produção científica - e o mundo das políticas e serviços de saúde - organizado por normativas, protocolos e manuais de cunho generalista, incapaz de atingir as especificidades dos sujeitos e dos territórios. As universidades e os serviços da APS trabalham de forma isolada; desse modo, a construção do conhecimento científico parece obedecer apenas à lógica acadêmica, impossibilitando a incorporação de seus achados. Por outro lado, os gestores mostram-se pouco implicados com o processo de produção e utilização do conhecimento, tendo em vista as fragilidades encontradas na Cogtes e no Nucit.

A elaboração de uma agenda de prioridades em pesquisa em âmbito municipal emerge como uma estratégia de aproximação entre academia, serviços de saúde e gestão, a partir da qual os problemas da APS seriam elencados, priorizados e investigados com base em uma metodologia participativa, capaz de envolver todos os implicados.

Referências

  • ALMEIDA, C. A. L.; TANAKA, O. Y. Avaliação em saúde: metodologia participativa e envolvimento de gestores municipais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, n. 45, p. 1-10, 2016.
  • ANGULO-TUESTA, A.; SANTOS, L. M. P.; NATALIZI, D. A. L. Impact of health research on advances in knowledge, research capacity-building and evidence-informed policies: a case study on maternal mortality and morbidity in Brazil. São Paulo Medical Journal, São Paulo, v. 134, n. 2, p. 153-162, 2016.
  • ARANTES, L. J.; SHIMIZU, H. E.; MERCHAN-HAMANN, E. Contribuições e desafios da Estratégia Saúde da Família na atenção primária à saúde no Brasil: revisão da literatura. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1499-1510, 2016.
  • ASSIS, M. M. A.; JORGE, M. S. B. Métodos de análise em pesquisa qualitativa. In: SANTANA, J. S. S.; NASCIMENTO, M. A. A. (Org.). Pesquisa: métodos e técnicas de conhecimento da realidade social. Feira de Santana: Editora da UEFS, 2010. v. 1. p. 139-160.
  • BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.
  • BRASIL. Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
  • BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área de saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2cdAJNK >. Acesso em: 23 jul. 2018.
    » https://bit.ly/2cdAJNK
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde. 2. ed. Brasília, DF, 2008.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jun. 2013.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. e-Gestor: cobertura da atenção básica. Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/2Ls6DLp >. Acesso em: 16 maio 2017.
    » http://bit.ly/2Ls6DLp
  • BROUSSELLE, A. L’evaluation: concepts et méthodes. Montréal: Les Presses de l’Université de Montréal, 2009.
  • CARVALHO, R. R. S. et al. Programa Pesquisa para o SUS: desafios para aplicabilidade na gestão e serviços de saúde do Ceará. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 53-63, 2016.
  • CELINO, S. D. M. et al. Programa Pesquisa para o SUS: a contribuição para gestão e serviços de saúde na Paraíba, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 203-212, 2013.
  • DELGADO-BRAVO, A. I. et al. Tendencias de investigación en salud: análisis y reflexiones. Aquichán, Bogotá, v. 14, n. 2, p. 237-250, 2014.
  • FERREIRA, M. J. M.; RIGOTTO, R. M. Contribuições epistemológicas/metodológicas para o fortalecimento de uma (cons)ciência emancipadora. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 10, p. 4103-4111, 2014.
  • FORTALEZA. Plano municipal de saúde de Fortaleza: 2014-2017. Fortaleza: Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, 2014.
  • GUBA, E. G.; LINCOLN, Y. S. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
  • GUIMARÃES, J. A. A pesquisa médica e biomédica no Brasil: comparações com o desempenho científico brasileiro e mundial. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 303-327, 2004.
  • HANNEY, S. R. et al. The utilisation of health research in policy-making: concepts, examples and methods of assessment. Health Research Policy and Systems, London, v. 1, p. 2, 2003.
  • IRIART, J. A. B. et al. A avaliação da produção científica nas subáreas da saúde coletiva: limites do atual modelo e contribuições para o debate. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 31, n. 10, p. 2137-2147, 2015.
  • LAU, R. et al. Achieving change in primary care-causes of the evidence to practice gap: systematic reviews of reviews. Implementation Science, London, v. 11, n. 40, 2016.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
  • ORLANDIN, E. A. S. et al. Uma agenda de pesquisa para a atenção primária à saúde no estado de São Paulo, Brasil: o estudo ELECT. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 21, n. 61, p. 349-361, 2017.
  • PACKER, A. L. Indicadores de centralidade nacional da pesquisa comunicada pelos periódicos de saúde coletiva editados no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 7, p. 1983-1995, 2015.
  • PAIM, J. S. Atenção primária à saúde: uma receita para todas as estações? Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 94, p. 343-347, 2012.
  • PATTON, M. Q. Utilization-focused evaluation: the new century text. Thousand Oaks: Sage Publications, 1997.
  • RODRIGUEZ, M. V.; MARTINS, L. G. A. As políticas de privatização e interiorização do ensino superior: massificação ou democratização da educação brasileira. Revista de Educação, Campinas, v. 8, n. 8, p. 41-52, 2005.
  • SANTOS, L. M. P. et al. O papel da pesquisa na consolidação do Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 9, p. 1666-1667, 2010.
  • SILVA, R. M.; CAETANO, R. Um exame dos fluxos financeiros do Ministério da Saúde em pesquisa e desenvolvimento (2003-2005), segundo a Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 687-700, 2011.
  • SOUZA, L. E. P. F.; CONTANDRIOPOULOS, A. P. O uso de pesquisas na formulação de políticas de saúde: obstáculos e estratégias. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 546-554, 2004.
  • STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidade de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco: Ministério da Saúde, 2002.
  • TANAKA, O. Y.; TAMAKI, E. M. O papel da avaliação para a tomada de decisão na gestão de serviços de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 821-828, 2012.
  • VARGAS, M. A.; BRITTO, J. Scientific and technological capabilities in health-related areas: opportunities, challenges, and interactions with the industrial sector. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, e00185214, 2016. Suplemento 2.
  • WEISS, C. H. Evaluation for decisions: is anybody there? Does anybody care? Evaluation Practice, Amsterdam, v. 1, p. 5-19, 1988.
  • YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.

  • 1
    BRASIL. Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: <http://bit.ly/2AalGFc>. Acesso em: 16 maio 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2018
  • Revisado
    23 Maio 2018
  • Aceito
    14 Jun 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br