Territorialidade, desenvolvimento local e promoção da saúde: estudo de caso em uma vila histórica de Santo André, São Paulo

Territoriality, local development, and health promotion: a case study in a historical village of Santo André, São Paulo, Brazil

Elaine Cristina da Silva Colin Maria Cecília Focesi Pelicioni Sobre os autores

Resumo

Este estudo visa identificar e analisar as ações voltadas ao desenvolvimento local da Vila de Paranapiacaba, localizada no município de Santo André, São Paulo, e as formas pelas quais os moradores locais estiveram inseridos nestes processos, verificando em que medida essas ações fortaleceram a territorialidade e a promoção da saúde. A metodologia qualitativa utilizada teve como instrumentos a análise documental e história oral. Os sujeitos foram adultos de ambos os sexos indicados pela técnica do snowball sampling. Os principais resultados mostraram que os processos educativos e de inclusão social promovidos pelo poder público, quando realizados de forma contínua e participativa, reforçaram a ação comunitária. Por outro lado, a descontinuidade na gestão pública enfraqueceu a participação e desencadeou um processo de desapropriação do espaço social, pois a comunidade não conseguiu se organizar e se empoderar. Concluiu-se que os processos educativos contínuos são fundamentais na construção da territorialidade e do empoderamento, assim como o engajamento social e a negociação são essenciais para o exercício da autonomia, a fim de que a comunidade protagonize sua própria história na construção de políticas públicas voltadas à promoção da saúde.

Palavras-chave:
Promoção da Saúde; Territorialidade; Educação; Desenvolvimento Local

Abstract

This study aims at identifying and analyzing actions concerning local development of the village of Paranapiacaba, located in the municipality of Santo André, São Paulo, Brazil, and the ways in which the local inhabitants were inserted in these processes, verifying to what extent these actions strengthened the territoriality and health promotion. The qualitative method employed used as instruments the documentary analysis and oral history. The subjects were adults of both sexes indicated by the snowball sampling technique. The main results showed that the educational and social inclusion processes promoted by the public power, when carried out in a continuous and participative way, favored community action. On the other hand, the discontinuity in public management has weakened the participation and unleashed a process of expropriation of the social space, because the community could not organize itself and be empowered. It was concluded that continuous educational processes are fundamental in the construction of territoriality and empowerment, just as social engagement and negotiation are essential for the exercise of autonomy, so that the community is protagonist of its own history in the construction of public policies for the promotion of health.

Keywords:
Health Promotion; Territoriality; Education; Local Development

Introdução

A promoção da saúde envolve a capacitação das comunidades para maior controle e autonomia sobre sua vida e saúde e possui, como principais estratégias, o desenvolvimento de habilidades pessoais, a criação de ambientes favoráveis à saúde, o reforço à ação comunitária, a reorientação dos serviços de saúde e a construção de políticas públicas saudáveis. Para que estas ações sejam efetivas, uma das questões fundamentais é o espaço geográfico em que a população habita e suas relações com este território.

No que se refere à questão do território no campo da saúde, nos últimos anos há um interesse maior na aproximação entre alguns conceitos da área de geografia e da saúde, sobretudo no Brasil. Por volta da década de 1970, com o surgimento da epidemiologia social, a questão do espaço geográfico passou a ser considerada de forma mais ampla, incluindo as relações sociais nos estudos de situação de saúde. Um conceito que contribuiu significativamente para isso foi o de “território usado”, de Milton Santos, em que segundo o autor (2003SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 96) o território é o “chão mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence… é a base do trabalho, das trocas materiais e espirituais e da vida”. Ou seja, o território não é o espaço geográfico em si, mas são objetos e ações, o espaço humano, habitado, e neste entendimento o território usado permite uma visão mais ampla das causas e efeitos do processo socioterritorial. Ele é portanto um campo privilegiado de análise, pois ao entender as relações entre a sociedade como ator, o território como objeto de ação e vice-versa, este enfoque propicia uma intervenção de acordo com o que a maior parte da população necessita (Santos, 2000SANTOS, M. O papel ativo da geografia, um manifesto. Revista Território, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 103-109, 2000., Santos; Silveira, 2011SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no inicio do século XXI. 15. ed. Rio de Janeiro: Record , 2011.). Esta definição contribuiu para que os processos saúde-doença fossem entendidos além dos aspectos biológicos, pois passou a considerar as dinâmicas sociais que envolviam o território não só físico, mas também “vivo” e rico em relações sociais.

A adoção do espaço geográfico na saúde pública veio ao encontro de um desejo de transformação social e demonstração dos efeitos das desigualdades sociais na saúde das populações, numa espécie de reação às concepções da epidemiologia clássica. Apesar desse avanço, o interesse pelo território na saúde é recente e oriundo de um processo histórico que impulsionou essa relação entre a saúde coletiva e a geografia, tendo a reforma sanitária brasileira e a implantação do Sistema Único de Saúde papéis fundamentais, uma vez que discutiram o funcionamento dos serviços sob o ponto de vista de sua base territorial (Monken et al., 2008MONKEN, M. et al. O território na saúde: construindo referências para análise em saúde e ambiente. In: MIRANDA, A. C. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2008. p. 23-41.).

Barcellos (2008BARCELLOS, C. Problemas emergentes da saúde coletiva e a revalorização do espaço geográfico. In: MIRANDA, A. C. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. 43-55.) destaca a importância de todo o histórico do entendimento do processo saúde-doença nos espaços geográficos, mas afirma que o trabalho da saúde considerando o território, ou seja, a interação dos grupos sociais, sua cultura, suas relações com o ambiente e modos de vida, ainda é um desafio, porém fundamental para compreender os processos que os tornam vulneráveis. Sob este prisma, além do território como base para os trabalhos no campo da saúde, torna-se necessário considerar também a territorialidade.

De acordo com Little (2002LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília, DF: Editora UnB, 2002.), a territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico. ou seja, o sujeito se apropria, territorializa o espaço. Assim, o sujeito se sente pertencente àquele território, envolvendo não só as relações no e com o ambiente, mas também os significados que seus habitantes atribuem a este lugar.

Para Dematteis (2008DEMATTEIS, G. Sistema local territorial: um instrumento para representar, ler e transformar o território. In: ALVES, A. F.; CORRIJO, B. R.; CANDIONOTTO, L. Z. P. (Org.). Desenvolvimento territorial e agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 33-44.), a territorialidade deve englobar ações coletivas e se fundamentar em estratégias de inclusão, e sob esta perspectiva o autor propõe um modelo de sistema local territorial (Slot) composto por quatro elementos fundamentais:

  • A rede local de sujeitos: que envolve a rede de interações entre os atores sociais de forma individual e coletiva;

  • O milieu local: que engloba o conjunto de condições favoráveis ao desenvolvimento local no contexto territorial;

  • A interação entre a rede local de sujeitos, o milieu e os ecossistemas locais: que gera os processos de transformação simbólica e material do ambiente;

  • A interatividade entre as redes locais e globais.

Tal modelo envolve as relações dinâmicas entre as pessoas, a economia, a cultura, as instituições e o ambiente, que são “próprios do território onde se habita, se vive e produz” (Dematteis, 2008DEMATTEIS, G. Sistema local territorial: um instrumento para representar, ler e transformar o território. In: ALVES, A. F.; CORRIJO, B. R.; CANDIONOTTO, L. Z. P. (Org.). Desenvolvimento territorial e agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 33-44., p. 34), e foi utilizado para embasar parte da análise de dados obtidos neste estudo.

Além dos aspectos citados, as políticas que verdadeiramente emanam do território são ricas em processos de participação, em que os indivíduos e grupos sociais se identificam como os próprios gestores, copartícipes na formulação, no desenvolvimento e na avaliação dos processos e resultados, possibilitando maior sustentabilidade das políticas e a melhora da qualidade de vida (Sacardo; Gonçalves, 2007SACARDO, D. P. S.; GONÇALVES, C. C. M. Território: potencialidades na construção de sujeitos. In: FERNANDES, J. C. A.; MENDES, R. (Org.). Promoção da saúde e gestão local. São Paulo: Hucitec , 2007. p. 111-129.). Portanto, a territorialidade, assim como a proteção ao meio ambiente e a promoção à saúde não dependem apenas dos sujeitos em si, mas também de políticas públicas transparentes e efetivas que valorizem a participação social.

Sob este prisma, este artigo descreve os principais resultados obtidos na Vila de Paranapiacaba, localizada no munícipio de Santo André, São Paulo. O local é considerado patrimônio cultural e ambiental, e as formas de participação da comunidade na gestão local estão vinculadas diretamente às experiências de vida de cada indivíduo e à territorialidade, ou seja, à forma pela qual as dimensões objetivas (características gerais do local, serviços públicos prestados, oportunidades de trabalho e renda, educação, entre outros) se relacionam com as subjetivas (aspirações, afetividade, a relação com as demais pessoas da comunidade).

A Vila de Paranapiacaba é uma vila ferroviária fundada em 1867, sendo por muitos anos administrada pela Rede Ferroviária Federal (RFFSA), até que em 2002 foi comprada pela Prefeitura de Santo André. O local é cercado por uma Unidade de Conservação, o Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba. As principais atividades econômicas existentes estão voltadas ao turismo - desta forma, o modo pelo qual a comunidade está inserida no desenvolvimento local também interfere diretamente na territorialidade e consequentemente na proteção da área e na saúde da comunidade residente na Vila.

Falar sobre desenvolvimento local não é apenas enfatizar a questão espacial. Em outras palavras, “o desenvolvimento local não é ‘mais local’ quando a referência é um bairro ou um pequeno município. O ‘tamanho do lugar’ é decorrência de acúmulos e de densidades sociais que o constroem como referência, o que não caberia em qualquer escala prefixada” (Silveira, 2010SILVEIRA, C. Desenvolvimento local e novos arranjos socioinstitucionais: algumas referências para a questão da governança. In: DOWBOR, L.; POCHMANN, M. (Org.). Políticas para o desenvolvimento local. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010. p. 41-66., p. 45). Portanto, o local não é algo dado, mas sim fruto de uma construção social, “na qual a população se constitui em sujeito ativo que desenha o território” (2010, p. 49).

Segundo Gallichio e Winchester (2003GALLICHIO, E.; WINCHESTER, L. Territorio local y desarrollo. In: ______. (Ed.). Territorio local y desarrollo: experiencias en Chile y Uruguay. Santiago de Chile: Ediciones SUR; CLAEH, 2003. p. 15-24., p. 18), a multidimensionalidade do desenvolvimento local deve considerar quatro dimensões básicas:

  • Econômica: relacionada à criação, acumulação e distribuição de riqueza;

  • Social e cultural: referente à qualidade de vida, equidade e integração social;

  • Ambiental: envolve os recursos naturais e a sustentabilidade a médio e longo prazo;

  • Política: vinculada à governabilidade do território e à definição de um projeto coletivo específico, autônomo e sustentado pelos próprios atores locais.

Buarque (2004BUARQUE, S. C. Construindo o desenvolvimento local sustentável: metodologia e planejamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2004., p. 25) compartilha desta caracterização de desenvolvimento local, ao defini-lo como “um processo endógeno de mudança, que leva ao dinamismo econômico e à melhoria da qualidade de vida da população”. Para o autor, este tipo de desenvolvimento deve considerar as potencialidades locais, colaborar com a elevação das oportunidades sociais e a economia local, e assegurar a conservação ambiental. Nestas conceituações, há dois aspectos importantes: a ideia de sustentabilidade e a característica endógena do processo.

Quanto à tríade social-econômico-ambiental, essa ideia vai ao encontro das premissas do método de Desenvolvimento Local Integrado Sustentável (Dlis), um modelo desenvolvido a partir da Agenda 21 Global, documento resultante da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada em junho de 1992, no Rio de Janeiro. De acordo com a Agenda 21, o desenvolvimento sustentável deve envolver diversos atores sociais na execução de ações integradas em nível local. A característica endógena do desenvolvimento local define que o processo deve se dar de dentro para fora e de baixo para cima, pois como afirma Boisier (2004BOISIER, S. Desarrollo territorial y descentralización: el desarrollo en el lugar y en las manos de la gente. Eure, Santiago de Chile, v. 30, n. 90, p. 27-40, 2004.), a endogeneidade deve ser entendida como uma crescente capacidade territorial para optar por estilos de desenvolvimento próprios, capazes de modificar qualitativamente seu funcionamento. Sob este prisma, o autor enfatiza que a endogeneidade só é possível no contexto de uma cultura produtora de identidade territorial.

Depreende-se, portanto, que a saúde tem impacto sobre o desenvolvimento socioeconômico, assim como as condições sociais, econômicas, políticas e a interação social se refletem na saúde. Nesse contexto, para que o desenvolvimento local colabore efetivamente para a promoção da saúde, os processos educativos, a participação, a territorialidade, a formação de capital social e o empoderamento devem estar conjugados e vinculados a políticas públicas inclusivas e intersetoriais.

Assim, esta pesquisa teve os seguintes objetivos: identificar e analisar as ações voltadas ao desenvolvimento local da Vila de Paranapiacaba e as formas pelas quais os moradores locais estiveram inseridos nestes processos, verificando em que medida essas ações colaboraram para fortalecer a territorialidade e a promoção da saúde.

Metodologia

Adotou-se, uma abordagem metodológica qualitativa por meio da análise documental (relatórios de gestão pública, atas de reuniões e matérias de jornais) e de entrevistas com base em história oral temática.

A história oral em pesquisas qualitativas corresponde a um importante instrumento para “descoberta, exploração e a avaliação de como as pessoas compreendem seu passado, vinculam sua experiência individual a seu contexto social, interpretam-na e lhes dão significado, a partir do momento presente” (Minayo, 2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec , 2010., p. 158).

Segundo Alberti (1990ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1990., p. 52), a história oral é “um método de pesquisa que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam acontecimentos, como forma de se aproximar do objeto de estudo”. Este método permite ao pesquisador analisar não apenas a conjuntura de fatos passados, mas também dos atuais. Para Hareven (1984HAREVEN, T. K. Tempo de família e tempo histórico. História: Questões e Debates, Curitiba, v. 5, n. 8, p. 3-26, 1984.), a pesquisa histórica pode dar visibilidade tanto às transformações ocorridas, propondo modelos para mudanças futuras, quanto identificar problemas atuais.

A história oral possui modalidades diferentes e não deve ser confundida com a história de vida, que por sua vez envolve “a descrição minuciosa de determinadas realidades sociais e do conhecimento indireto de experiências pessoais” (Fernandes; Gattás, 1956FERNANDES, F.; GATTÁS, R. A história de vida na investigação sociológica: a seleção dos sujeitos e suas implicações. Sociologia, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 123-140, 1956.). Tendo em vista os objetivos deste estudo, foram focadas as experiências pessoais dos sujeitos entrevistados, mas não sob um ponto de vista puramente biográfico, pois foram considerados eventos e temas específicos relacionados ao contexto em que suas vivências e percepções estavam inseridas. Deste modo, foram utilizadas entrevistas abertas com elementos de história oral temática.

Esta abordagem não abrange necessariamente a totalidade da existência do indivíduo, permitindo, dessa forma, colher depoimentos específicos mais numerosos. Neste caso, o uso do roteiro de entrevista é fundamental para explicitar os detalhes procurados (Freitas, 2006FREITAS, S. M. História oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo: Humanitas, 2006.). Para detectar possíveis falhas na redação das perguntas das entrevistas, foi feito um pré-teste no próprio local de estudo.

De acordo com o levantamento histórico realizado sobre a Vila de Paranapiacaba, percebeu-se dois momentos distintos que foram considerados durante a pesquisa de campo: o período anterior e posterior à compra da Vila pela Prefeitura de Santo André. O recorte histórico escolhido foi apenas o período após a compra da Vila Ferroviária, tendo como referência duas distintas gestões públicas municipais: uma de 2000 a 2008 e outra de 2009 a 2012. Dessa forma, a investigação foi feita com moradores que habitavam o local há pelo menos 5 anos anteriores a 2000, acompanharam a mudança de gestão de 2009 até 2012 e tinham uma participação mais ativa na gestão local.

Existiam na Vila grupos diferenciados segundo sua atuação e trabalho na área de estudo: monitores ambientais e culturais e empreendedores de gastronomia, hospedagem e alimentação.

Na comunidade, a primeira entrevista se deu com um monitor ambiental local, a partir da análise da frequência/assiduidade e forma de participação nas reuniões da Comissão de Monitores Ambientais e Culturais da Vila de Paranapiacaba. Quanto à forma de participação, foram consideradas as contribuições oferecidas ao grupo, postura proativa, proposição de soluções para os problemas enfrentados e realização de intervenções fora das reuniões com os demais monitores, com outros membros da comunidade ou ainda com o poder público.

Após a identificação do primeiro participante, os outros foram definidos por meio da técnica de amostragem da “bola de neve”, ou snowball sampling, que utiliza cadeias de referência. A amostra se caracteriza pela identificação dos casos de interesse a partir da própria população pesquisada, ou seja, “os participantes iniciais de um estudo indicam novos participantes, que por sua vez indicam novos participantes e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto” (Baldin; Munhoz, 2011BALDIN, N.; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (bola de neve): uma técnica metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 10.; SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO, 1., 2011, Curitiba. Anais… Curitiba: PUC-PR, 2011. p. 329-341., p. 332). Dessa forma, durante a coleta de dados foi solicitado aos entrevistados que indicassem outras pessoas com perfil participativo para serem entrevistadas, favorecendo a abordagem e a receptividade dos participantes. Foi solicitado aos entrevistados duas indicações, sendo pelo menos uma de alguém com ocupação diferente da exercida pelo entrevistado. Este procedimento foi necessário por conta de a técnica snowball sampling ser não probabilística, não permitindo que se determine a probabilidade de seleção de cada participante na amostra. Por outro lado, as cadeias de referência facilitam a identificação dos sujeitos de pesquisa (Albuquerque, 2009ALBUQUERQUE, E. M. Avaliação da técnica de amostragem “Respondent-driven Sampling” na estimação de prevalências de doenças transmissíveis em populações organizadas em redes complexas. 2009. 99 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2009.).

A seguir é apresentada uma figura esquemática quanto à ordem das entrevistas a partir da técnica snowball sampling, evidenciando as indicações feitas de acordo com a ocupação de cada entrevistado.

Figura 1
Sequência de entrevistas realizadas com uso da técnica snowball sampling com destaque às ocupações dos entrevistados

O grupo de entrevistados foi heterogêneo, característica importante por assegurar que a pesquisa aborde a realidade considerando certas variações, seja dos sujeitos ou das situações de estudo (Guerra, 2006GUERRA, I. C. Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo: sentidos e formas de uso. Parede: Principia, 2006.). Neste trabalho, a seleção dos sujeitos se pautou na diversificação externa, ou seja, considerou-se certa variabilidade de atores no contexto pesquisado.

O número de entrevistas necessárias às pesquisas que utilizam a história oral não é definido, pois dependerá do que se pretende investigar. Neste tipo de estudo a escolha dos entrevistados já segue algum critério qualitativo, portanto a quantidade de entrevistados não é o fator de maior relevância. De acordo com Minayo (2010MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec , 2010.), o número de entrevistados depende dos objetivos da pesquisa, dos critérios de saturação e do tipo de história oral adotados. A autora exemplifica que em histórias orais temáticas podem ser utilizadas várias narrativas.

Alberti (2005ALBERTI, V. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2005., p. 36) explica que “o número de entrevistados de uma pesquisa de história oral deve ser suficientemente significativo para viabilizar certo grau de generalização dos resultados do trabalho”. Sendo assim, não há como definir a amostra sem que se vá a campo. A amostra se define conforme a pesquisa avança.

O encerramento das entrevistas se deu ao se perceber um padrão nas respostas dadas, ou seja, por saturação teórica - quando os dados obtidos começam a apresentar repetição ou redundância. Este processo é resultante de um balanço feito pelo pesquisador a fim de valorizar, no conjunto das informações obtidas, as diferenças ou, em contraposição, o que se repete (Fontanella, 2008FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.).

Os resultados foram analisados pela triangulação dos dados do levantamento de notícias publicadas, de relatórios de gestão referentes ao período de 2000 a 2012 e relatos das entrevistas com os participantes da pesquisa. Neste estudo, algumas falas foram destacadas para justificar e compreender os aspectos de maior relevância referentes ao objeto de estudo. Foram analisadas tanto as informações que se repetem quanto as que representam diferenças diante da percepção dos entrevistados, compilando-se ao final os resultados, com base na relação entre as características dos Sistemas Locais Territoriais (Dematteis, 2008DEMATTEIS, G. Sistema local territorial: um instrumento para representar, ler e transformar o território. In: ALVES, A. F.; CORRIJO, B. R.; CANDIONOTTO, L. Z. P. (Org.). Desenvolvimento territorial e agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 33-44.), as dimensões do desenvolvimento local (Gallichio; Winchester, 2003GALLICHIO, E.; WINCHESTER, L. Territorio local y desarrollo. In: ______. (Ed.). Territorio local y desarrollo: experiencias en Chile y Uruguay. Santiago de Chile: Ediciones SUR; CLAEH, 2003. p. 15-24.) e as estratégias para a promoção da saúde conforme a Carta de Ottawa (Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. As cartas da promoção da saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.).

Análise e discussão dos resultados

A Vila de Paranapiacaba abriga 0,2% da população total do município de Santo André, com 1.418 habitantes (Santo André, 2007SANTO ANDRÉ. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs): diagnóstico do município de Santo André-SP. Santo André: PMSA, 2007.), é um patrimônio histórico e natural nas instâncias federal, estadual e municipal e está inserida na Área de Proteção e Recuperação aos Mananciais do Reservatório Billings, na região metropolitana do estado de São Paulo (Figura 2). A localidade passou por um longo processo de degradação iniciado com a queda de importância do transporte ferroviário nos anos 1950. Considerando sua área de entorno, antes da criação do Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba, em 2003, era comum a prática do turismo predatório, que causava impactos consideráveis na área.

Figura 2
Localização da Vila de Paranapiacaba

Em termos de desenvolvimento social, a principal questão que atingia essa região antes de sua compra pela Prefeitura, em 2002, era a desigualdade social em relação ao restante do município, com uma alta incidência de moradores com baixa renda e em situação de baixa mobilidade, devido à distância física do centro da cidade - consequentemente, havia maior dificuldade para conseguir emprego e acessar os serviços públicos, inclusive de saúde (Santo André, 2007SANTO ANDRÉ. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs): diagnóstico do município de Santo André-SP. Santo André: PMSA, 2007.).

A implantação de um Projeto de Desenvolvimento Local pelo poder público se constituiu como uma importante estratégia para reversão desse quadro, pois estimulou o turismo de base comunitária. Houve investimento em infraestrutura, estudos e planos, e priorizou-se a formação da comunidade para atuação nas áreas de monitoria, alimentação, hospedagem e recepção ao turista. Durante o período de estudo havia cerca de 71 empreendimentos abertos, sendo 33 da área de alimentação, 17 estabelecimentos para hospedagem, 12 de arte e artesanato, 4 de serviços e 5 de monitoria.

Tendo em vista os objetivos desta pesquisa, os resultados foram agrupados em dois blocos de análise:

  • Percepções sobre o período de 2001 a 2008: evidenciou as experiências dos sujeitos quanto às ações decorrentes da gestão pública, incluindo a identificação das ações educativas desenvolvidas no território, instâncias participativas e sua influência sobre o desenvolvimento local e a territorialidade.

  • Percepções sobre o período de 2009 a 2012: apresentou as percepções dos sujeitos quanto às ações desenvolvidas pelo poder público numa situação de descontinuidade de gestão.

Percepções sobre o período de 2001 a 2008

Por meio da análise dos relatos dos sujeitos, o período de maior identificação com o território e apropriação local compreendeu os anos de 2001 a 2008. Nessa época, as principais políticas públicas de saúde se relacionavam às ações do Programa Saúde da Família (presença de equipe multiprofissional atendendo a comunidade no posto de saúde local, com realização de ações específicas porta a porta ou em grupos de orientação à saúde). Já as políticas públicas de meio ambiente eram pautadas pela Política de Gestão e Saneamento Ambiental de Santo André (Lei nº 7.733/1998) e envolviam programas e ações de planejamento, licenciamento, controle, fiscalização e educação ambiental.

Durante as entrevistas, as características citadas como as mais importantes relativas ao período em questão foram: a compra da Vila de Paranapiacaba pelo Poder Público Municipal; a descentralização administrativa com a criação de uma Subprefeitura; o incentivo ao turismo de base comunitária; a qualificação dos moradores em diversos segmentos por meio da educação em saúde, ambiental e patrimonial; a diminuição do turismo predatório e a relação dialógica entre comunidade e poder público (criação de instâncias participativas).

A seguir, são destacados alguns depoimentos que ratificam alguns destes resultados:

e eles valorizaram a comunidade quando abriram os Portas Abertas, […] fizeram com que as pessoas se sentissem importantes , olha o que a senhora faz não é cafona, é arte, né? Então assim… valorizou aquela pessoa que fazia um fuxico [tipo de artesanato feito com tecido], deu importância pra ela e abriu um universo na mente destas pessoas… Alguém quer dormir na minha casa e comer da minha comida… alguém quer ouvir a minha história… As pessoas pagam para vir na minha Vila . (Entrevistada 3)

em São Paulo ninguém consegue encostar no Prefeito, aqui a gente encostava nos gestores. De certa forma, o poder público estava mais próximo, a gente podia falar dos mais variados assuntos, esse tipo de convivência, próximo sabe? Naquela época, nós tínhamos uma satisfação pessoal . (Entrevistado 10)

Há uns anos atrás eu comecei o curso de monitores, por incrível que pareça eu não sabia a história da Vila […], eu não sabia o valor das matas, por exemplo, meu pai ia muito pro mato, era palmiteiro, caçava, você entendeu? Matava um monte de bicho para consumo, o palmito também era pra consumo, eu não sabia o valor das coisas . (Entrevistado 16)

Tais relatos se referiam às ações educativas vinculadas às políticas públicas que envolviam a educação ambiental como o Programa de Jovens, Meio Ambiente e Integração Social (focado na educação ecoprofissional e formação de adolescentes entre 15 e 21 anos de idade) e o Programa de Qualificação dos Serviços Turísticos locais (envolvia ações de formação e qualificação contínuos, voltados para todos os moradores interessados em atuar direta e indiretamente com o turismo nos segmentos de gastronomia, artesanato, hospedagem, monitoria cultural e monitoria ambiental). Estes depoimentos denotam a importância dos processos educativos, da participação e da valorização da comunidade na construção do desenvolvimento local e da territorialidade, reforçando a identidade individual e coletiva.

Castiel (2007CASTIEL, L. D. Identidades sob risco ou risco como identidade? a saúde dos jovens e a vida contemporânea. Interthesis, Florianópolis, v. 4, n. 2, p. 2-16, 2007.), ao discutir sobre a interface entre identidade e saúde, menciona que os sentimentos de desenraizamento e redução das percepções e da familiaridade com o local em que se vive afetam a saúde pela perda da noção do cuidado de si e do ambiente. É o sentimento de pertencimento que produz a identidade territorial e, consequentemente, a apropriação local. Desse modo, promover a saúde é também conhecer a territorialidade em seu aspecto simbólico, é compreender esta identidade e fortalecer a noção de pertencimento.

Para Albagli (2004ALBAGLI, S. Território e territorialidade. In: BRAGA, C.; MORELLI, G.; LAGES, V. (Org.). Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção competitiva. Brasília, DF: Sebrae, 2004. p. 23-70., p. 64), uma das formas de fortalecimento da territorialidade e da apropriação local se associa ao estímulo à criação de “laços de identidade e cooperação baseados no interesse comum de proteger, valorizar e capitalizar aquilo que um dado território tem de seu”, ou seja, suas especificidades culturais, ambientais, práticas produtivas e potencialidades econômicas.

Durante o período de 2000 a 2008 houve na Vila de Paranapiacaba um processo de valorização da população local, pela realização de ações educativas e criação de instâncias participativas. Quanto às ações educativas realizadas na área de estudo, predominaram os relatos dos processos de educação ambiental e patrimonial desenvolvidos pelo poder público como parte da qualificação dos serviços turísticos que alavancaram o desenvolvimento local. Estas ações, atreladas aos benefícios econômicos trazidos pelo turismo, colaboraram para que a comunidade se identificasse mais com o território, gerando maior apropriação local - isto é, os sujeitos da pesquisa passaram a se sentir pertencentes àquele território. Os entrevistados passaram a cuidar tanto dos imóveis quanto da área natural no entorno da Vila de Paranapiacaba, beneficiando assim tanto a conservação do ambiente local quanto a saúde da comunidade, além do empoderamento individual.

No tocante à participação social e às relações da comunidade com o território, ficou explícito que ambas tiveram influência dos conhecimentos construídos durante os processos de educação ambiental e patrimonial dos quais participaram. Segundo Fernandez e Mendes (2007FERNANDEZ, J. C. A.; MENDES, R. Gestão local e políticas públicas para a qualidade de vida. In: ______. (Org.). Promoção da saúde e gestão local. São Paulo: Hucitec, 2007. p. 41-60., p. 58), tão importante quanto entender o território e as necessidades da população que o habita é construir “uma participação social informada e solidária, em que haja clareza sobre as limitações físico-orçamentárias da gestão e certeza sobre a coautoria, ou cogestão nas experiências ou iniciativas bem sucedidas”. Por esse prisma, evidencia-se a relevância do envolvimento comunitário nos projetos desenvolvidos pelo poder público desde a concepção até a implementação, avaliação e seu monitoramento.

Um dos fatores mais importantes para o desenvolvimento local é a capacidade de constituição dos atores locais, isto é, para que se obtenham resultados positivos é imprescindível que a população participe ativamente desse processo - daí a importância de investir em capital humano e social. O capital humano se refere ao conjunto de conhecimentos e habilidades que uma pessoa possui e o social, às formas de organização que facilitam a cooperação para benefício mútuo. Ambos implicam no desenvolvimento de habilidades e o reforço à ação comunitária, princípios básicos da promoção da saúde (Boisier, 2004BOISIER, S. Desarrollo territorial y descentralización: el desarrollo en el lugar y en las manos de la gente. Eure, Santiago de Chile, v. 30, n. 90, p. 27-40, 2004., Vázquez Barquero, 2009VÁZQUEZ BARQUERO, A. Una salida territorial a la crisis: lecciones de la experiencia latinoaméricana. Eure, Santiago de Chile, v. 23, n. 105, p. 5-22, 2009.),

Segundo Silveira (2010SILVEIRA, C. Desenvolvimento local e novos arranjos socioinstitucionais: algumas referências para a questão da governança. In: DOWBOR, L.; POCHMANN, M. (Org.). Políticas para o desenvolvimento local. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010. p. 41-66., p. 102), o desenvolvimento local tem sido estimulado pelas políticas públicas como uma maneira de mobilizar o potencial local. O autor enfatiza que não “se trata de uma alternativa entre dar o peixe ou ensinar a pescar”, mas sim de criar condições para que as comunidades participem ativamente desse processo de desenvolvimento, fomentando a apropriação local. Por esse prisma, a descentralização administrativa também surge como uma forma de ampliar a transparência, a efetividade e a democratização da gestão local. Por outro lado, a lógica setorial ainda muito presente na administração pública, as diferentes características de cada gestão e dessas estruturas setoriais podem dificultar seu controle pelos atores locais.

Percepções sobre o período de 2009 a 2012

Em 2009, foi iniciada uma nova gestão pública no município de Santo André. Entre as principais benfeitorias realizadas na Vila de Paranapiacaba no período de 2009 a 2012, destacaram-se a implementação do trem turístico, saindo da Estação da Luz até a área de estudo quinzenalmente, e a finalização do Plano de Manejo Participativo do Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba, importante documento que, a partir de um diagnóstico prévio, determinou os principais programas de gestão desta Unidade de Conservação, até 2017.

De acordo com os relatos dos sujeitos da pesquisa, apesar de todas as ações realizadas na Vila de Paranapiacaba ligadas ao desenvolvimento local no período de 2000 a 2008, com a mudança de gestão a população se retraiu, pois praticamente já não havia mais o diálogo entre a comunidade e o poder público. As principais mudanças relatadas incluíram quatro aspectos principais: paralisação dos processos de formação continuada; manutenção insuficiente da infraestrutura existente; falta de conhecimento dos novos gestores sobre as limitações da Vila; e as percepções dos moradores locais e dificuldade de participação na gestão, conforme relatos a seguir:

a gente tinha uma administração e a que está agora parou no tempo e está até piorando. Pouco caso no atendimento das pessoas, até o próprio cuidado com a Vila, hoje está horrível, está largada… Não houve mais nenhuma formação… A gente se sente abandonado . (Entrevistado 15)

Quando a Vila foi comprada pela Prefeitura, a Vila […] começou a andar, muitos cursos, o pessoal despertou para o turismo, só que quando a gente achou que ia voar, caiu de novo. A gestão atual abandonou a Vila, tem coisas literalmente caindo quando vem turista, eles perguntam: Nossa! Aqui não mora ninguém? Eu me sinto mal, porque eu sou alguém, a gente tá pedindo socorro. Tem hora que eu tenho vontade de ir embora . (Entrevistado 19)

a gente vê que o poder público largou a gente e são pessoas que não tem capacidade de gestão, de ações comunitárias, me referindo a poder público eu estou a ponto de ir embora… Eu vejo que o poder público agora está perdido […]. Você não consegue administrar se não ouvir a comunidade, o cidadão tem que ter noção que ele pode participar e a gente participava, havia uma abertura, o que aconteceu com essa administração agora? Ela fechou para a população, você entendeu? (Entrevistado 7)

Pelos dados obtidos verificou-se que os problemas e a deficiência de ações do período de 2009 a 2012 contribuíram para que muitos dos entrevistados repensassem a sua permanência ou não na Vila de Paranapiacaba, mudando as relações da comunidade com o local em que moravam, ou seja, colaboraram para um processo de desterritorialização.

Segundo Haesbaert (2003HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003., p. 15), a desterritorialização pode assumir diversos sentidos de acordo com a concepção de território que se tem por referência. Para o autor, é possível distinguir duas ideias: uma relacionada ao território como “substrato material para as atividades humanas e a que vê o território como lócus de relações de poder e estratégias identitárias”. Considerando a primeira perspectiva, a desterritorialização se relaciona à desconstrução das relações sociais, ao enfraquecimento da atividade econômica e à consequente exclusão social. Quando são consideradas as relações de poder e a identidade, a desterritorialização é caracterizada pela debilidade das políticas e estruturas gestoras, pelo desenraizamento e pela perda do vínculo simbólico e afetivo com o território, assim como a identidade coletiva. Embora tenham sido apresentadas perspectivas diferentes, é importante lembrar que ambas se inter-relacionam e acontecem concomitantemente.

Apesar dos prejuízos causados pela desterritorialização, sobretudo para população que reside no território, Chelotti (2010CHELOTTI, M. C. Reterritorialização e identidade territorial. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 165-180, 2010.) lembra que este processo não é estanque, ou seja, as mudanças também podem favorecer a reterritorialização. Isto é explicado pelo autor como parte constituinte dos processos geográficos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR), que por sua vez são dinâmicos e inerentes à sociedade.

Tendo como referência os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais da territorialidade e as dimensões do desenvolvimento local apresentados na introdução deste artigo, bem como os resultados obtidos na coleta de dados, foi criada a matriz a seguir, ressaltando as principais ligações entre as características destes processos e a promoção da saúde na Vila de Paranapiacaba no período de 2000 a 2012.

Conforme demonstrado na Tabela 1, no período de 2001 a 2008 houve um fortalecimento da territorialidade na Vila de Paranapiacaba que possibilitou a criação de um ambiente favorável à saúde, a construção de habilidades pessoais e o reforço à ação comunitária. Por outro lado, os entrevistados relatam que a comunidade ainda era muito desunida e a mudança de gestão afetou significativamente a continuidade de algumas ações e canais de participação que pareciam consolidados até 2008. As únicas características do desenvolvimento local relacionadas ao fortalecimento da territorialidade mantidas de 2009 a 2012 foram a manutenção de uma relação positiva de conservação ambiental e o respeito à cultura local e sua história por parte dos entrevistados em virtude dos conhecimentos que haviam construído durante os cursos de que participaram até 2008. Esse fator não dependia da gestão pública, pois já estava arraigada em seus valores e atitudes.

Tabela 1
Matriz de integração entre territorialidade e alguns dos campos de atuação da promoção da saúde na Vila de Paranapiacaba nos períodos de 2000 a 2008 e de 2009 a 2012

De acordo com Baquero (2006BAQUERO, M. Globalização e democracia inercial: o que o capital social pode fazer na construção de uma sociedade participativa? In: BAQUERO, M.; CREMONESE, D. (Org.). Capital social: teoria e prática. Ijuí: Editora da Unijuí, 2006. p. 28-47.), a inclusão social deve envolver um efetivo empoderamento dos cidadãos para que tenham um papel protagonista na política, de modo que possam minimizar os efeitos das mudanças administrativas sobre a população. Para o autor, a formação de capital social é crucial para que se transponha a ideia de que somente quem está no poder tem condições de resolver os problemas. Essa capacidade organizativa característica do capital social é uma forma de impulsionar o poder local, sendo que é o empoderamento que possibilitará a transformação social.

Considerações finais

No que se refere às principais questões sobre a gestão da Vila de Paranapiacaba, percebeu-se pelo depoimento dos entrevistados e pela análise documental que houve três marcos históricos importantes: a privatização da rede ferroviária, a compra da Vila pela Prefeitura de Santo André e a mudança de gestão entre os anos de 2008 e 2009. Esta sucessão, ligada ao esvaziamento do local pelas famílias de ferroviários, à manutenção das edificações, à inclusão social, à abertura ou não de canais participativos e ao investimento no desenvolvimento local geraram em um primeiro momento um processo de desterritorialização, seguido de reterritorialização e um início de desterritorialização com a nova gestão pública - processos que influenciaram o vínculo dos participantes da pesquisa com o território.

Apesar do enfraquecimento da territorialidade na Vila de Paranapiacaba no período de 2009 a 2012, a gestão realizada de 2000 a 2008 trouxe importantes contribuições à promoção da saúde daquela comunidade, pois possibilitou a criação de ambientes favoráveis à saúde, maior proteção ao meio ambiente, o fomento ao desenvolvimento local, diminuição da exclusão social e reforço à ação comunitária, conforme proposição de ações prioritárias da I Conferência Internacional de Promoção da Saúde realizada em Ottawa, Canadá.

Por outro lado, o período de transição na gestão 2008-2009 foi marcado pela descontinuidade das principais ações que colaboraram com a apropriação local iniciadas na gestão anterior, evidenciando que estas não geraram sustentabilidade e, mesmo com a importância dos processos educativos promovidos, não tiveram grande contribuição para a formação de capital social e empoderamento coletivo. Tais processos poderiam se configurar como meios de garantir a continuidade de projetos voltados ao fortalecimento da territorialidade e da promoção da saúde.

Comparando as características do desenvolvimento local ao fortalecimento da territorialidade em diferentes gestões públicas (de 2001 a 2008 e de 2009 a 2012), independente da manutenção ou não da construção de capital humano, da criação de alternativas econômicas, do estímulo à participação e apropriação local no segundo período de estudo, certos valores foram mantidos, sobretudo os que dizem respeito à cultura local e à relação positiva com o ambiente, fatores relacionados aos processos educativos e do envolvimento comunitário na gestão local. Neste sentido, é importante lembrar que tais valores foram construídos em um processo de desenvolvimento local, e não simplesmente por meio de ações pontuais. O caráter processual foi fundamental para que os resultados se tornassem significativos para os entrevistados.

A transformação da realidade por meio da educação, da participação e do empoderamento das comunidades para que tenham maior autonomia sobre suas vidas sem dúvida colabora com a promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida, mas devem estar pautadas sobretudo no que a população realmente precisa e anseia.

O conjunto de experiências e percepções dos sujeitos desta pesquisa reforçou o caráter dinâmico que envolve a territorialidade, além de sua multidimensionalidade quando relacionada ao desenvolvimento local. Por este aspecto, o reconhecimento do território na escala do cotidiano é um caminho para a promoção da saúde enraizada no entendimento da complexidade e das necessidades diárias. Por este prisma, o indivíduo é visto integrado a seu contexto, como sujeito de sua transformação, sendo que os vínculos que estabelece com o território em que vive determinarão suas ações sobre ele.

O fortalecimento da territorialidade sob a égide dos princípios da criação de ambienteis favoráveis à saúde, do desenvolvimento de habilidades e reforço à participação social implica que as comunidades se apropriem não só do território em que vivem, mas sobretudo das possibilidades de intervenção na realidade inerentes à gestão local. E isso se traduz em um exercício de autonomia, construção conjunta, engajamento social e negociação, a fim de que a comunidade protagonize sua própria história na construção de políticas públicas voltadas à promoção da saúde e proteção do meio ambiente.

Assim, evidencia-se que a territorialidade e o desenvolvimento local, pautados numa relação dialógica entre poder público e comunidade, na construção de capital humano e na participação social, foram aspectos que contribuíram para a promoção da saúde na Vila de Paranapiacaba. Entretanto, apesar das ações realizadas pelo poder público na área de estudo, ainda há muitos aspectos que precisam ser revistos e melhorados, tanto por parte dos gestores locais quanto por parte da comunidade.

É natural que cada gestão pública tenha características próprias, mas tendo como base os resultados desta pesquisa, recomenda-se ao poder público municipal que:

  • desenvolva maior conhecimento sobre os projetos já realizados no local, bem como sobre suas implicações positivas e negativas para a comunidade, tanto sob o ponto de vista técnico como dos habitantes do território, mantendo as ações benéficas e aprimorando-as;

  • considere as dinâmicas de transformação do território e das pessoas que o habitam, fazendo periodicamente novas leituras do local de modo que se entenda melhor não só as peculiaridades deste território, mas também quem são seus habitantes e suas necessidades;

  • reveja os canais de participação existentes, criando mecanismos reais de deliberação e de gestão compartilhada;

  • promova processos educativos de real cunho político continuamente, de acordo com as necessidades da comunidade local;

  • mantenha uma relação dialógica e transparente com a comunidade, possibilitando a negociação entre todos os atores sociais envolvidos.

Não há fórmulas que determinem o sucesso da gestão local ou o fortalecimento da territorialidade tendo como base os princípios da promoção da saúde, pois cada realidade exigirá uma intervenção diferente, mas um aspecto fundamental se refere à real possibilidade de cogestão e autonomia dos sujeitos, para que possam se apropriar dos locais em que moram e aprendam a participar, exigir e agir em prol de seu bem-estar e de sua saúde como consequência de um empoderamento individual e coletivo, capaz de garantir a qualidade de vida e transcender os aspectos relacionados à continuidade ou descontinuidade da gestão pública.

Referências

  • ALBAGLI, S. Território e territorialidade. In: BRAGA, C.; MORELLI, G.; LAGES, V. (Org.). Territórios em movimento: cultura e identidade como estratégia de inserção competitiva. Brasília, DF: Sebrae, 2004. p. 23-70.
  • ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1990.
  • ALBERTI, V. Manual de história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV , 2005.
  • ALBUQUERQUE, E. M. Avaliação da técnica de amostragem “Respondent-driven Sampling” na estimação de prevalências de doenças transmissíveis em populações organizadas em redes complexas. 2009. 99 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Rio de Janeiro, 2009.
  • BALDIN, N.; MUNHOZ, E. M. B. Snowball (bola de neve): uma técnica metodológica para pesquisa em educação ambiental comunitária. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO, 10.; SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, SUBJETIVIDADE E EDUCAÇÃO, 1., 2011, Curitiba. Anais… Curitiba: PUC-PR, 2011. p. 329-341.
  • BAQUERO, M. Globalização e democracia inercial: o que o capital social pode fazer na construção de uma sociedade participativa? In: BAQUERO, M.; CREMONESE, D. (Org.). Capital social: teoria e prática. Ijuí: Editora da Unijuí, 2006. p. 28-47.
  • BARCELLOS, C. Problemas emergentes da saúde coletiva e a revalorização do espaço geográfico. In: MIRANDA, A. C. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. p. 43-55.
  • BOISIER, S. Desarrollo territorial y descentralización: el desarrollo en el lugar y en las manos de la gente. Eure, Santiago de Chile, v. 30, n. 90, p. 27-40, 2004.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. As cartas da promoção da saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.
  • BUARQUE, S. C. Construindo o desenvolvimento local sustentável: metodologia e planejamento. 2. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
  • CASTIEL, L. D. Identidades sob risco ou risco como identidade? a saúde dos jovens e a vida contemporânea. Interthesis, Florianópolis, v. 4, n. 2, p. 2-16, 2007.
  • CHELOTTI, M. C. Reterritorialização e identidade territorial. Sociedade & Natureza, Uberlândia, v. 22, n. 1, p. 165-180, 2010.
  • DEMATTEIS, G. Sistema local territorial: um instrumento para representar, ler e transformar o território. In: ALVES, A. F.; CORRIJO, B. R.; CANDIONOTTO, L. Z. P. (Org.). Desenvolvimento territorial e agroecologia. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 33-44.
  • FERNANDES, F.; GATTÁS, R. A história de vida na investigação sociológica: a seleção dos sujeitos e suas implicações. Sociologia, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 123-140, 1956.
  • FERNANDEZ, J. C. A.; MENDES, R. Gestão local e políticas públicas para a qualidade de vida. In: ______. (Org.). Promoção da saúde e gestão local. São Paulo: Hucitec, 2007. p. 41-60.
  • FONTANELLA, B. J. B.; RICAS, J.; TURATO, E. R. Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27, 2008.
  • FREITAS, S. M. História oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. São Paulo: Humanitas, 2006.
  • GALLICHIO, E.; WINCHESTER, L. Territorio local y desarrollo. In: ______. (Ed.). Territorio local y desarrollo: experiencias en Chile y Uruguay. Santiago de Chile: Ediciones SUR; CLAEH, 2003. p. 15-24.
  • GUERRA, I. C. Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo: sentidos e formas de uso. Parede: Principia, 2006.
  • HAESBAERT, R. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, Porto Alegre, v. 29, n. 1, p. 11-24, 2003.
  • HAREVEN, T. K. Tempo de família e tempo histórico. História: Questões e Debates, Curitiba, v. 5, n. 8, p. 3-26, 1984.
  • LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília, DF: Editora UnB, 2002.
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec , 2010.
  • MONKEN, M. et al. O território na saúde: construindo referências para análise em saúde e ambiente. In: MIRANDA, A. C. et al. (Org.). Território, ambiente e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz , 2008. p. 23-41.
  • SACARDO, D. P. S.; GONÇALVES, C. C. M. Território: potencialidades na construção de sujeitos. In: FERNANDES, J. C. A.; MENDES, R. (Org.). Promoção da saúde e gestão local. São Paulo: Hucitec , 2007. p. 111-129.
  • SANTO ANDRÉ. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs): diagnóstico do município de Santo André-SP. Santo André: PMSA, 2007.
  • SANTOS, M. O papel ativo da geografia, um manifesto. Revista Território, Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 103-109, 2000.
  • SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no inicio do século XXI. 15. ed. Rio de Janeiro: Record , 2011.
  • SILVEIRA, C. Desenvolvimento local e novos arranjos socioinstitucionais: algumas referências para a questão da governança. In: DOWBOR, L.; POCHMANN, M. (Org.). Políticas para o desenvolvimento local. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010. p. 41-66.
  • VÁZQUEZ BARQUERO, A. Una salida territorial a la crisis: lecciones de la experiencia latinoaméricana. Eure, Santiago de Chile, v. 23, n. 105, p. 5-22, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2018
  • Aceito
    16 Jul 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br