Imaginário coletivo de idosos participantes da Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa

Collective imaginary of elderly people participating in the Protection and Defense Network of the Elderly Person

Roberta Elias Manna Juliana Carvalho Araújo Leite Tania Maria José Aiello-Vaisberg Sobre os autores

Resumo

A concepção de Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa (RPDI) se destaca como espaço de luta coletiva pelo direito dos idosos, por meio de reuniões sistemáticas destes com profissionais de diferentes instituições e pela articulação para a implantação de políticas públicas. Este estudo, caracterizado como pesquisa qualitativa pautada no método psicanalítico, teve o objetivo de compreender o imaginário coletivo de idosos que participam de encontros organizados pela RPDI sobre o envelhecimento. Os participantes foram convidados para entrevista coletiva, na qual foi utilizado o procedimento de desenhos-estórias com tema como recurso facilitador da comunicação emocional. A análise dos desenhos e narrativas possibilitou reconhecer dois campos de sentido afetivo-emocional denominados “velhice como desamparo” e “velhice como responsabilidade pessoal”. Os caminhos que levaram aos campos de sentido apontaram dinâmicas heterogêneas no imaginário coletivo sobre o envelhecimento, além de contradições inerentes ao ser idoso. Apesar do desamparo, da luta contínua e persistente, das fatalidades e da negação da velhice, está também presente a força que a experiência de vida lhes dá e a motivação que encontram na união com seus pares para enfrentar os desafios da vida e lutar por seus direitos.

Palavras-chave:
Envelhecimento; Pesquisa Psicanalítica; Saúde Pública

Abstract

The conception of the Protection and Defense Network of the Older Person (RPDI) stands out as a space of collective struggle for the right of the older people, through systematic meetings between them and professionals from different institutions and by articulation for the implantation of public policy. This study, characterized as qualitative research and based on the psychoanalytic method, aimed at understanding the collective imaginary of the older adults, who attend meetings on aging organized by the RPDI. The RPDI participants were invited to a collective interview, in which the Drawing-Story with Theme Procedure was used as a resource for facilitating emotional communication. The analysis of these drawings and narratives made it possible to recognize two affective-emotional meaning fields, named “Old age as helplessness” and “Old age as personal responsibility”. The paths that led to the fields of meaning indicated heterogeneous dynamics in the collective imaginary about aging, and contradictions in aging have been identified. Despite the helplessness, continuous and persistent struggle, fatalities, and the denial of old age, there is also the strength that the experience of life gives them and the motivation they find in union with their pairs to face the challenges of life and fight for their rights.

Keywords:
Aging; Qualitative Research; Public Health

Introdução

Este artigo busca compreender o imaginário coletivo11O conceito de imaginário coletivo é aqui utilizado, segundo a perspectiva da psicologia psicanalítica concreta, para designar um conjunto de manifestações de condutas, que ocorrem em âmbitos coletivos e se expressam nas áreas da mente, do corpo e da atuação no mundo externo, aí incluídos os produtos materiais das ações (Bleger, 1984). de idosos que participam de encontros organizados pela Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa (RDPI) da região Centro-Oeste da cidade de São Paulo. Inspira-se no estilo clínico Ser e Fazer22O estilo clínico Ser e Fazer nasceu em 1997, quando foi criado um espaço institucional de pesquisas e atendimento clínico denominado “Ser e Fazer: enquadres clínicos diferenciados”, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Sua face interinstitucional é o Grupo de Pesquisa USP/CNPq Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade. e deriva de pesquisa realizada pelo grupo Idoso33O PET-Saúde objetivou formar grupos de aprendizagem tutorial, sendo instrumento de qualificação em serviço dos profissionais de saúde e de iniciação do trabalho de graduandos na rede SUS. Esta pesquisa é fruto de material produzido a partir do relatório da pesquisa “O imaginário coletivo sobre o envelhecimento dos idosos participantes da Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa”, desenvolvido pelo grupo PET-Saúde do Idoso (2012-2014), que contou com a participação de Juliana Carvalho Araújo Leite (tutora e enfermeira), Roberta Elias Manna (coordenadora da pesquisa, preceptora e psicóloga), Elisa Canola Pereira (preceptora e assistente social), Gabriela de Haro Miguel Ippolito Giordano e Jorge da Silva Kawano (alunos de medicina), Raiene Talassin Barbosa Abbas, Jèzzabelle Jeanne Gisele Simon e Josiane de Assis Silva Lopes (alunas de fonoaudiologia). do Programa de Educação para o Trabalho em Saúde (PET-Saúde),da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e Coordenadoria Regional de Saúde Centro, Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, com financiamento do Fundo Nacional de Saúde do Ministério da Saúde.

A rápida transição demográfica e epidemiológica, fortemente influenciada por mudanças no estilo de vida, urbanização, inserção da mulher no mercado de trabalho, rearranjos familiares e incrementos tecnológicos têm alterado o perfil da população brasileira, que vem se tornando mais envelhecida ao longo dos anos, com prevalência de condições crônicas. Este cenário tem gerado a necessidade, tanto por parte do poder público, dos estudiosos da área do envelhecimento, como da sociedade civil organizada, de buscar alternativas para a implementação de ações que ofertem cuidado às necessidades dessa população.

Diante desta realidade, em 2009, profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) do território da Bela Vista da cidade de São Paulo articularam-se com trabalhadores da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social em reuniões locais para o enfrentamento de situações de violência contra a pessoa idosa. Estes encontros foram expandidos para toda a região central do município, com a participação de outros profissionais representantes do poder público, sociedade civil organizada, movimentos sociais, universidades, organizações não governamentais, demais munícipes interessados e, principalmente, com o protagonismo dos idosos, constituindo em 2010 a RPDI. Em 2013 esta rede foi ampliada para abarcar discussões no contexto da região Centro-Oeste de São Paulo, mantendo, assim, a mesma divisão territorial estabelecida pelo Grande Conselho Municipal do Idoso, GCMI (RPDI, 2012RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro. São Paulo, 2012.).

A RPDI é um espaço de construção coletiva de busca por melhores condições de vida no envelhecimento no âmbito de políticas públicas, atualmente mantido e promovido por idosos (RPDI, 2012RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro. São Paulo, 2012.). Os princípios da RPDI Centro-Oeste foram pautados na concepção da Rede Nacional de Defesa da Pessoa Idosa (Renadi), elaborada durante a I Conferência Nacional da Pessoa Idosa, ocorrida em 2006 para discutir os problemas enfrentados por essa população e propor ações visando à melhoria de suas condições de vida (RPDI, 2012RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro. São Paulo, 2012.). Ela segue uma forma de organização pautada nos mecanismos democráticos de discussão e tomada de decisão, de forma que todos possam ser, horizontalmente, corresponsáveis pelas ações (RPDI, 2012RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro. São Paulo, 2012.).

A rede é uma forma de organização na qual cada integrante se liga horizontalmente a todos os demais, não havendo uma coordenação ou hierarquia. Funciona com base em uma vontade coletiva de realizar o objetivo traçado de forma conjunta por todos seus participantes […] O conjunto resultante é como uma malha de múltiplos fios que pode se espalhar indefinidamente para todos os lados, sem que um de seus nós possa ser considerado principal ou central, nem representante dos demais. (RPDI, 2012RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro. São Paulo, 2012., p. 2)

O engajamento e a participação ativa dos idosos da RPDI chamam a atenção no cenário da infinidade de possibilidades para o envelhecer no mundo atual. Segundo Manna (2013MANNA, R. E. O imaginário coletivo de cuidadores de idosos na saúde pública: um estudo psicanalítico. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013., p. 20),

a velhice não é período homogêneo, definido pelo alcance de determinada idade ou pela apresentação de certos marcadores biológicos ou sociais. Não há razão para se falar numa velhice “in abstrato”, descontextualizada, retirada das condições concretas de vida da pessoa que envelhece. […] tendo em vista nosso cultivo de uma visão epistemológica que concebe que os fenômenos estão dialeticamente inter-relacionados e que sempre ocorrem de modo contextualizado.

Durante os anos de 2012 e 2014, nos quais as atividades do PET-Saúde do Idoso ocorreram, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer vários idosos, suas realidades e o trabalho de profissionais de diferentes instituições de saúde, seja da UBS, seja da Unidade de Referência à Saúde do Idoso (Ursi). Eles acompanharam a rotina dos serviços de saúde, as reuniões de equipe e com outras instituições da saúde ou da assistência social, sejam encontros territoriais, reuniões com agentes comunitários de saúde, com profissionais do Programa Acompanhante do Idoso ou da RPDI. Nas reuniões da RPDI os alunos participaram da formação de delegados, de plenárias e discutiram sobre cidadania, deveres e direitos dos idosos.

Também participaram de atendimentos, individuais ou coletivos, sob a supervisão de diferentes agentes da saúde (médico geriatra, enfermeira, terapeuta ocupacional, assistente social, psicóloga), além de campanhas de vacinação, feira da saúde ou passeios e encontros culturais e festivos com os usuários. Os estudantes tiveram a oportunidade de identificar, orientados pelas preceptoras e em trabalho conjunto com as equipes de estratégia saúde da família (ESF), grande número de idosos em situação de vulnerabilidade e as dificuldades em ser idoso na sociedade atual.

Esta diversidade de atividades oferecidas aos alunos participantes do grupo PET-Saúde do Idoso propiciou que eles se deparassem com uma ampla variedade de possibilidades para o envelhecimento na atualidade. Isto fez com que se devotassem em alcançar o que se passava com alguns idosos que os levava a evitar o contato ou apenas procurarem a consulta médica, enquanto que outros engajavam-se intensamente com atividades grupais e com a vida coletiva, como ocorria com significativa parcela dos frequentadores dos encontros da RPDI. Entre estes dois modos de envelhecer podíamos reconhecer uma ampla variedade de possibilidades.

Diante desta heterogeneidade, o grupo se interessou em compreender as concepções imaginativas dos idosos participantes da RPDI Centro-Oeste sobre o idoso. Este objetivo se justifica na medida em que, iluminando o processo que este grupo tem protagonizado, a luta por melhoria nas políticas públicas para o coletivo de velhos44Aqui optamos pela palavra “velho” seguindo as orientações de Brum (2012). da cidade de São Paulo pode contribuir para a produção de conhecimento significativo para a construção de futuras estratégias de ação.

Metodologia

Este estudo se organiza como pesquisa empírica qualitativa com método psicanalítico volta-se para a investigação dos atos humanos e seus sentidos, compreendidos como fenômenos inerentemente contextualizados a partir de um leque de opções epistemológicas e teórico-metodológicas, entre as quais o método psicanalítico de paradigma epistemológico crítico.

O método psicanalítico se enquadra em nossas investigações como forma de abordagem das condutas humanas, cuja premissa é o discernimento de que todo acontecer humano seria provido de sentido, mesmo quando aparenta ser ilógico, estranho ou bizarro (Aiello-Vaisberg, 1999aAIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. Tese (Livre-Docência em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999a.; Bercherie, 1980BERCHERIE, P. Histoire et structure du savoir psychiatrique. Paris: La Bibliothèque d’Ornicar, 1980.; Bleger, 1984BLEGER, J. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.; Politzer, 1998POLITZER, G. Crítica aos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.). Esse método é o elemento invariável a partir do qual são derivadas as diversas teorias psicanalíticas, o qual é aqui articulado com formulações teóricas conhecidas como psicologia psicanalítica concreta (Bleger, 1984BLEGER, J. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.; Politzer, 1998POLITZER, G. Crítica aos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.), mediante o uso de alguns conceitos fundamentais: conduta, campo e imaginário coletivo.

O conceito psicanalítico de conduta humana foi concebido por Bleger (1984)BLEGER, J. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984. como possibilidade de fundamentar uma psicologia como ciência em primeira pessoa (Politzer, 1998POLITZER, G. Crítica aos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.), evitando a objetivação do ser humano. O termo “conduta” é utilizado para abordar toda manifestação humana, que se dá segundo diferentes modalidades expressivas, em suas múltiplas dimensões, designadas por Bleger de áreas ou âmbitos: emocional, corporal ou de atuação sobre o mundo. Este conceito inclui desde fenômenos simbólicos, usualmente designados como pensamentos, sentimentos, fantasias ou crenças, até atos, gestos e práticas, concebidos como formas de atuação no mundo externo. Na base de toda conduta humana encontramos dimensões afetivas inconscientes, que não são modificáveis pelo aumento de informações objetivas, nem a partir da esfera cognitiva.

Quando considerada em primeira pessoa, a conduta é vista como experiência vivida, dramática, pessoal, emocional, enfim, como experiência humana. Nessa perspectiva, ela pode ser compreendida como emergente de um campo de sentido, de caráter intersubjetivo, deitando por terra a ideia de que os atos derivam da mente consciente ou inconsciente.

Podemos, deste modo, definir campos de sentido afetivo-emocional como lugares existenciais, mundos habitados ou ambientes psicológicos humanamente produzidos pelas interações entre pessoas e coletivos (Aiello-Vaisberg; Ambrósio, 2006AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; AMBRÓSIO, F. F. Imaginários coletivos como mundos transicionais. In: AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; AMBRÓSIO, F. F. (Org.). Cadernos Ser e fazer: imaginários coletivos como mundos transicionais. São Paulo: IP-USP, 2006. p. 5-8.). São regiões de sentido regidas por um conjunto de regras lógico-afetivas, sentimentos, pensamentos, crenças e valores que sustentam as condutas emergentes. Figuram como regiões intersubjetivas que estão na base das interações cotidianas entre indivíduos e coletivos (Aiello-Vaisberg, 1999aAIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. Tese (Livre-Docência em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999a.; Aiello-Vaisberg; Machado, 2008AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; MACHADO, M. C. L. Pesquisa psicanalítica de imaginários coletivos à luz da teoria dos campos. In: MONZANI, J.; MONZANI, L. R. (Org.). Olhar: Fabio Herrmann: uma viagem psicanalítica. São Carlos: Pedro e João: CECH-UFSCar, 2008. p. 311-324.).

Para finalizar, o conceito de imaginário coletivo é aqui utilizado para designar um conjunto de produções humanas coletivas que se constituem como condutas que, num movimento dialético aberto, podem consolidar-se como campos, a partir dos quais surgem outras condutas. Ele coincide com a capacidade imaginativa, em sentido amplo e não apenas como produto da subjetividade individual, não se opondo à realidade, na medida em que consideramos que a realidade social é imaginativamente produzida.

Nesta pesquisa o método psicanalítico foi operacionalizado sob quatro procedimentos investigativos: (1) de configuração do acontecer clínico; (2) de registro do material clínico; (3) de interpretação do material clínico; e (4) de interlocuções reflexivas.

Procedimentos investigativos

Configuração do acontecer clínico

O primeiro passo para a configuração do acontecer clínico se concretizou com a obtenção da concordância da RPDI Centro-Oeste para a realização da pesquisa. Após a anuência do coletivo, enviamos convites aos membros da rede para comparecerem ao encontro grupal, organizado sob a forma de entrevista para investigação da pessoalidade coletiva “idoso”. Todas as participantes, em um total de nove idosas55A RPDI é formada por pessoas de ambos os sexos, porém, neste encontro, apesar de todos terem sido convidados, compareceram apenas mulheres., assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)66Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto do Câncer da Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho, sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 25792713.8.0000.5471..

No dia proposto, após a recepção das participantes e apresentação inicial dos objetivos da pesquisa, utilizamos os “desenhos-estórias com tema”, criado por Aiello-Vaisberg (1997AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Investigação de representações sociais. In: TRINCA, W. (Org.). Formas de investigação clínica em psicologia. São Paulo: Vetor, 1997. p. 255-288., 1999aAIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. Tese (Livre-Docência em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999a.) a partir dos desenhos-estórias de Walter Trinca (1972TRINCA, W. O desenho livre como estímulo de apercepção temática. 1972. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 1972., 1976TRINCA, W. Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo de apercepção temática. Belo Horizonte: Interlivros, 1976.), como recurso mediador facilitador da comunicação emocional (Aiello-Vaisberg, 1999bAIELLO-VAISBERG, T. M. J. O uso do objeto teoria: desconstrução e mudança de representações sociais de estudantes de psicologia sobre o doente mental. Interações, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 77-97, 1999b.), vale dizer, como “rabisco brincante” (Manna; Aiello-Vaisberg, 2013MANNA, R. E.; AIELLO-VAISVERG, T. M. J. Rabiscos-brincadeiras: por uma clínica psicanalítica da transicionalidade. Rabisco, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 87-93, 2013.). Esta estratégia de investigação clínica, de cunho apresentativo-expressivo, foi utilizada com o intuito de favorecer a manifestação das participantes no encontro com os pesquisadores para além da comunicação de conteúdos propriamente conscientes, ou de intelectualizações dissociadas da experiência.

Visando compreender o imaginário do coletivo de idosos estudado a respeito do idoso, convidamos as participantes a desenharem uma pessoa idosa e escreverem uma estória sobre seu desenho. Após a realização dos desenhos e escrita das estórias, redistribuímos a produção do grupo, de forma tal que cada uma pudesse apresentar e comentar uma produção aleatória, que poderia ser ou não sua própria. Não pedimos que assinassem ou identificassem suas produções, pois nosso objetivo foi investigar a pessoalidade coletiva ou transindividual (Goldmann, 1970GOLDMANN, L. Pensée dialectique et sujet transindividuel: in la création culturelle dans la societée moderne. Paris: Colin, 1970.), do idoso participante da Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa, e não o imaginário pessoal de um indivíduo em particular.

Registro do material clínico

O registro do material clínico desta investigação se deu pela criação, pelos pesquisadores, de uma narrativa transferencial que inclui os desenhos-estórias produzidos pelas participantes. É importante ressaltar que compreendemos os desenhos e estórias como expressões narrativas (Manna, 2013MANNA, R. E. O imaginário coletivo de cuidadores de idosos na saúde pública: um estudo psicanalítico. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.), pois contam, figurativa e verbalmente, como os idosos imaginam os idosos, fazendo um recorte em uma parte significativa da dramática vivenciada (Politzer, 1998POLITZER, G. Crítica aos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.).

Cuidamos de preservar a riqueza do material produzido no encontro, ainda que entendamos que, evidentemente, nenhum registro possa dar conta do acontecer humano, que é sempre inerentemente complexo, multifacetado e dinâmico. Assim, o material produzido foi compartilhado, apreciado e comentado por todos. De forma livre e espontânea, a conversação girou em torno dos comentários e das associações que as idosas apresentaram a partir do contato com o conjunto dos desenhos-estórias.

Interpretação do material clínico

A interpretação do material clínico se deu pela interação sistemática dos pesquisadores com as narrativas e os desenhos-estórias, em um processo de interlocução grupal, buscando os vários sentidos presentes no material. Esta forma de trabalho coletivo favorece o desenvolvimento de uma experiência criativa, em uma coprodução de sentidos que envolve participantes, pesquisadores e até mesmo leitores, que podem também dialogar com as narrativas, criando/encontrando os mesmos e novos sentidos para a experiência. Entendemos que, tal qual a amplitude da experiência humana, não se trata aqui de descobrir um significado verdadeiro dos acontecimentos contidos no material obtido, mas sim de colocar em marcha a produção de sentidos afetivo-emocionais.

Interlocuções reflexivas

As interlocuções reflexivas consistiram em um fazer diverso daquele realizado nos demais procedimentos investigativos adotados neste estudo. Caracterizou-se como um tipo diferente de trabalho intelectual, ao solicitar certo distanciamento do acontecer inter-humano pesquisado, sem descartar a perspectiva dramática inerente ao encontro do pesquisador com o fenômeno humano estudado, compreendido como experiência vivida. Neste momento, lançamos luz sobre os campos de sentido afetivo-emocionais criados/encontrados, buscando novas interpretações no diálogo com teorizações eticamente convergentes com os pressupostos do método psicanalítico.

Para finalizar, cabe destacar que esta pesquisa se mantém coerente com uma metodologia intersubjetiva e profundamente compreensiva da amplitude da experiência humana, ao radicalizar a noção de rede como lugar do “entre”, no qual sentidos são construídos com abertura e comunicação.

Interpretando e refletindo sobre os campos de sentido afetivo-emocional “velhice como desamparo” e “velhice como responsabilidade pessoal”

O processo interpretativo coletivo do material foi compreendido como comunicação emocional inter-humana que possibilitou a abertura para múltiplos sentidos e olhares. Deu-se pela emergência de diversas associações livres e não pelo desvelamento de verdade única contida nos achados da pesquisa. Lidamos aqui com “verdades emocionais”, que são um tipo bastante peculiar de verdade, de caráter eminentemente paradoxal, multifacetado e mutante (Manna, 2013MANNA, R. E. O imaginário coletivo de cuidadores de idosos na saúde pública: um estudo psicanalítico. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.). De acordo com a metodologia adotada, toda interpretação deve buscar a regra, crença ou valor fundamental, ao redor do qual se organiza cada campo, porque será a partir desse fundamento que as diferentes condutas adquirirão seu sentido afetivo-emocional.

A análise dos desenhos e das narrativas possibilitou-nos reconhecer dois campos de sentido afetivo-emocional, denominados “velhice como desamparo” e “velhice como responsabilidade pessoal”. Cabe destacar que outros campos poderão ser criados/encontrados a partir da apresentação do material.

O campo “velhice como desamparo” se organiza ao redor da crença de que o idoso é um ser frágil e sem apoio, que sofre quando não recebe amparo e cuidado do outro, seja da família, da sociedade em geral ou do poder público. Apresentamos a seguir estórias criadas pelas idosas participantes da pesquisa, que ilustram bem este campo:

Ser idoso dependente de títulos e classe social deixa-nos às vezes apreensivas, pois independente[mente] da nossa história, do nosso jeito de ser e ver o mundo, ficamos com nossos sentimentos e emoções às vezes vulneráveis com tudo que acontece ao nosso redor. A falta de reconhecimento, apoio, entendimento por parte da família e das políticas públicas que não nos veem como patrimônio social desse país.

Esta narrativa comunica que o desamparo é provocado por acontecimentos que o idoso não consegue controlar, independendo de como viveu a vida, de sua história, dos títulos que possui, da classe social a que pertence, ou até mesmo da estrutura construída ao longo dos anos. Problemas de saúde que o fragilizam podem acometer qualquer um, a despeito de suas escolhas, seus atos ou seu poder aquisitivo. Na mesma linha, o segundo desenho-estória apresenta duas situações de desamparo que ilustram bem este campo: narra duas estórias, a primeira de uma mulher idosa cadeirante em situação de rua, amputada de uma perna e com feridas na outra, que o poder público, por meio da assistente social, não consegue ajudar; outra de um casal de idosos que precisam assumir sozinhos os cuidados frente o adoecimento de um deles.

Sou uma idosa de 68 anos, saudável. As doenças adquiridas com o envelhecimento ainda não me atingiram: diabetes, hipertensão etc., problemas com a coluna, devido ao excesso de peso (esta é a minha doença). Mas tenho uma preocupação muito grande com as pessoas da minha idade que não têm a estrutura que eu tenho (aposentadoria, um teto para chamar de meu e família, embora pequena). No primeiro quadro, está uma idosa cadeirante (amputação de uma perna) e com feridas na outra perna. Mesmo com a ajuda da assistente social não conseguimos tirá-la da rua. Eu me pergunto, “por que isto acontece? O poder público não deveria cuidar dessa idosa e proporcionar uma velhice digna?” No segundo quadro é a situação do idoso cuidando do idoso. O casal viveu juntos anos e anos, talvez tenha criado filhos e netos e, na sua velhice ou na doença de qualquer um, os filhos não podem cuidar, a família está muito ocupada, então um deles assume a tarefa de cuidar do outro. A idosa do primeiro caso não tem absolutamente nada, os idosos do segundo quadro não têm o amor da família.

Estas estórias comunicam a experiência de fragilidade e desamparo experimentada com o envelhecimento, o sentimento de que não há o que se possa fazer a não ser contar com ajuda, mas que esta certamente falhará. Este idoso se percebe impotente, frágil e sem apoio, seja da família, da sociedade ou do poder público, diante de situações que estão postas e em que não se vê possibilidade de mudança.

Vemos a oposição entre idoso saudável, representado pela narradora da segunda estória, e idoso doente, retratado pelos personagens, nos quais o excesso de peso, a amputação e as feridas comunicam sofrimentos que clamam por cuidados. Estes não apenas ao corpo doente e envelhecido, mas também de diferentes dores, diretamente vinculadas às relações com outras pessoas e com o ambiente em que se vive.

Este campo pode também ser bem exemplificado pela narrativa de uma das participantes que escreveu parte de sua história de vida, as dificuldades e oportunidades com as quais deparou. Apesar de ter feito muita coisa ao longo dos anos, lutado bastante, hoje com 79 anos continua lidando com muitas dificuldades. O desfecho da estória é a batalha constante, sem fim, “correndo atrás da saúde”, tendo que sobreviver com uma aposentadoria insuficiente.

As narrativas ilustram acontecimentos concretos da vida que desamparam o idoso, tanto pelas doenças que fatalmente se apresentarão como pelo abandono em momento de fragilidade. Comunicam o sofrimento vivido pela falta, carência ou insuficiência de atenção a suas necessidades nesse momento da vida, quando não recebe amparo e cuidado de um outro, capaz de amenizar sua aflição. Em uma dimensão inconsciente, não importa se esse outro é o Estado, o governo, a vizinhança, os filhos ou a mãe que já morreu há décadas. No inconsciente é o outro, que teria poder e força suficientes para transformar uma situação de dor em conforto.

Já o campo “velhice como responsabilidade pessoal” se organiza ao redor da crença de que o idoso é o responsável pelas bênçãos ou infortúnios que pontuam sua vida. Neste campo o velho é resultado do que plantou, ou seja, de como viveu sua vida e sua história. A seguir apresentaremos algumas narrativas criadas pelas participantes do estudo e que ajudam a ilustrar esse campo. Em uma delas vemos o desenho de uma árvore sem folhas, ao lado da qual podemos ler:

O idoso é uma árvore, era sim uma semente. Que depois de muito tempo se torna uma história viva de vida, com qualidade ou não. Exemplo, família, filhos, netos e bisnetos, amada ou desprezada, amarga, depende do que fez na juventude.

Em outro desenho-estória ilustrado por uma tarde no parque, com um jardim e um personagem andando de bicicleta, lemos:

O envelhecer não deve ser uma preocupação, pois é a lei natural da vida. Devemos nos preocupar sim em levar uma vida saudável, curtir o máximo a natureza, pois ela tem tudo para nos dar… procurar relacionamentos de amizade, pois eles nos tornarão mais uteis no dia a dia.

Várias histórias retrataram também o trajeto, a linha da vida, desde o nascimento, a infância, a adolescência, a fase adulta e a velhice. Nesta perspectiva da responsabilidade pessoal, a velhice surge como resultado de uma história, de como o velho viveu ao longo das diversas idades desde o nascimento, e que colhe o que plantou.

Estas narrativas apresentam uma receita do bom viver para um envelhecimento adequado, do modo correto de fazer as coisas, apontando para a ideia de que seguindo o passo a passo de boa alimentação, exercícios físicos regulares, proximidade à natureza e à família, não haverá nada a temer, o idoso será feliz, saudável e ativo. Depende apenas do que fez em sua vida, da família que construiu, das sementes que plantou, do que fez em sua juventude.

Neste campo, a pessoa que se cuidou adequadamente, seja porque a vida lhe ofereceu recursos para isso, seja por ter sido responsável, colheu os frutos que plantou e pode ter uma velhice mais tranquila, diferentemente daquela pessoa que foi descuidada. Neste contexto, a primazia do saber dos profissionais de saúde sobre o processo de envelhecimento pode assumir o lugar da verdade que determina o normal e o patológico na velhice (Cabrita; Abrahão, 2014CABRITA, B. A. C.; ABRAHÃO, A. L. O normal e o patológico na perspectiva do envelhecimento: uma revisão integrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 635-645, 2014.) e definir padrões de conduta que devem ser seguidos por todos. Separa-se a velhice bem-sucedida, ativa, funcional e saudável da fragilizada e adoecida, podendo gerar exclusão e culpabilização de grande contingente de velhos - justamente aqueles que não seguiram as orientações corretas para o bom envelhecer.

As políticas e concepções de saúde com foco no “envelhecimento ativo” (OMS, 2005OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Brasília, DF: Opas, 2005.), “capacidade funcional” (Bonardi; Azevedo e Souza; Moraes, 2007BONARDI, G.; AZEVEDO E SOUZA, V. B.; MORAES, J. F. D. Incapacidade funcional e idosos: um desafio para os profissionais de saúde. Scientia Medica, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 138-144, 2007.), “envelhecimento saudável” (Lemos; Ferreira, 2009LEMOS, C. P.; FERREIRA, S. R. S. (Org.). Promoção do envelhecimento saudável: vivendo bem, até mais que 100! Porto Alegre: Hospital Nossa Senhora da Conceição, 2009.) ou “bem-sucedido” (Teixeira; Neri, 2008TEIXEIRA, I. N. D. O.; NERI, A. L. Envelhecimento bem-sucedido: uma meta no curso da vida. Psicologia USP, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 81-94, 2008.), ao definir modos recomendados para o bom envelhecer, acabam por ditar normas de conduta que devem ser seguidas por todos, sob a pena de uma indesejável velhice adoecida. Em suas últimas consequências, esse discurso reproduzido por diferentes vozes, dos profissionais aos programas de saúde de TV, destaca uma classe bem afortunada de velhos independentes, autônomos, com tempo e recursos para usufruir dos prazeres da vida, e apresentam como ideal de boa velhice o idoso-jovem, muito distante da realidade de pessoas concretas, que sentem dores, sofrem e vivem de suas aposentadorias.

Conclui-se que o sofrimento na velhice é resultado de más escolhas feitas ao longo da vida, portanto uma responsabilidade individual da pessoa que envelhece. Tal concepção indica a meritocracia como um valor inquestionável, pois os bons e corretos serão compensados. A pessoa mais otimista que nos fala sobre receita para uma boa velhice diz exatamente a mesma coisa que aquela que adverte que a gente colhe o que planta. A primeira pode comunicar de forma mais agradável, mais afetuosa; a segunda pode ser mais obsessiva, disciplinada e ranzinza, mas suas crenças não diferem.

O campo “velhice como responsabilidade pessoal”, em sua riqueza de expressão, também se manifestou através de interessante produção, na qual vemos retratadas quatro cenas; uma com várias pessoas enfileiradas, na qual se lê “tímidos”, outra com pessoas ainda na mesma situação descritas como “isoladas”, um terceiro desenho de pessoas de mãos dadas, referidas como “unidos participativos” e, por fim, sentadas em círculo, em interação, com a denominação “discussão de direitos.

É interessante notar que o desenho retrata, primeiramente, pessoas tímidas, isoladas e dispersas, sem interação. Apesar de tímido e isolado, o velho busca o coletivo, inicia um movimento que, sustentado pelo grupo, o conduz a outra posição, de união e participação, capaz de favorecer o reconhecimento e luta por direitos. As figuras humanas vão ganhando feições, adereços e complexidade em seus traços na medida em que passam a se relacionar de forma mais ativa. Esta criação vem acompanhada da estória:

Esta inicia com a RPDI - Rede de Proteção do Idoso que chega desnorteado, sem proteção, desejando muita coisa - mas vem debilitado, tímido - entra no grupo querendo conhecer e saber a respeito dos outros, ter mais conhecimentos e saber de seus direitos - participa e quando percebe que a necessidade dele está sendo atendida, fica, porque ser idoso é participar e ser ativo.

Encontramos aqui a responsabilidade pessoal como possibilidade de fortalecer condições de enfrentamento das adversidades da vida e da própria identidade, a conquista de autonomia e o “empoderamento” do idoso. Segundo a fala de uma das participantes:

O idoso chega desnorteado, sem proteção, desejando muita coisa - passividade, espera que deem a ele, falta, precisam de muita coisa do outro. Chega debilitado, tímido e isolado - no grupo passa a saber de seus direitos, fica participativo, sai da passividade.

Esta fala comunica a potência do coletivo versus individual, a participação no comum e na luta é apresentada como uma escolha, como um modo de defrontar o isolamento, a dor e o sofrimento. O olhar para o grupo surge como fonte de enfrentamento das dificuldades da vida, na importância da união entre os idosos para a conquista de seus direitos na sociedade, marcando sua posição, função e importância no mundo; apresenta a perspectiva de que o idoso se fortalece pelas relações que estabelece. Em várias estórias encontramos a importância da família, das relações com outras pessoas, sejam jovens ou idosas, expressando a ideia de que a vida se dá em relação, em coexistência.

Como podemos ver, os desenhos-estórias criados pelas participantes da pesquisa retratam experiências de opressão, humilhação e exclusão, geradoras de sentimentos de desamparo, dor, injustiça e impotência (Aiello-Vaisberg, 2017AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Estilo clínico Ser e fazer: resposta crítico-propositiva a despersonalização e sofrimento social. Boletim da Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 37, n. 92, p. 41-62, 2017.). Ambos os campos, “velhice como desamparo” e “velhice como responsabilidade pessoal”, comunicam a experiência de vulnerabilidade vivida por grande parcela de idosos em nosso país. Segundo Goldfarb (2006GOLDFARB, D. C. Velhices fragilizadas: espaços e ações preventivas. In: SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DE SÃO PAULO. Velhices: reflexões contemporâneas. São Paulo: PUC-SP: Sesc-SP, 2006. p. 73-87., p. 77), uma maneira de enfrentar os sentimentos de desamparo se dá pela “possibilidade de realizar investimentos afetivos que permitam pensar em projetos realizáveis”. A autora salienta que para que isso seja possível, o idoso não pode estar só. É preciso “vincularidade”, possibilidade de relações permanentes, renováveis e significativas que restaurem a autoestima, contemplem os desejos, exijam o cumprimento de deveres e o exercício de direitos. Que faça, enfim, de um cidadão idoso desabilitado, um cidadão pleno (Goldfarb, 2006GOLDFARB, D. C. Velhices fragilizadas: espaços e ações preventivas. In: SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DE SÃO PAULO. Velhices: reflexões contemporâneas. São Paulo: PUC-SP: Sesc-SP, 2006. p. 73-87.).

De um lado, encontramos uma velhice desamparada, de outro, uma velhice como responsabilidade pessoal. Estas são duas faces de uma mesma moeda, experiências que se complementam e que expressam a percepção de necessidades que precisam ser atendidas e de um mundo que muitas vezes falha, seja pela dificuldade do próprio idoso em dar conta das exigências da vida, seja por dificuldades do ambiente. Para finalizar, cabe destacar algumas falas das participantes, que ocorreram espontaneamente, durante a discussão das produções do grupo:

o velho precisa falar pelo velho”, “O idoso precisa se apoderar de seu direito”, “Não somos todos iguais, cada um é diferente!”, “Não é eu, somos nós!”, “Nós idosos hoje somos arrimo de família, somos o futuro desse país!”, “Os jovens estão se afundando na droga e somos nós que vamos carregando tudo…”, “Hoje tivemos a oportunidade de ser protagonistas, poder falar!”, “Não tem nada que incomoda mais do que a gente saber. O futuro é do idoso!

A análise do conjunto do material nos permitiu apreender que os caminhos que nos levaram a estes campos de sentido apontaram dinâmicas heterogêneas e contradições inerentes ao ser idoso no imaginário coletivo dos idosos da RPDI. Apesar do desamparo, da luta contínua e persistente, das fatalidades, da negação da velhice, está também presente a força que a experiência de vida lhes dá e a motivação que encontram na união com seus pares para enfrentar os desafios da vida e conquistar seus direitos.

Entendemos que o resultado desta pesquisa pode contribuir potencialmente para a sensibilização de profissionais envolvidos na atenção ao idoso, com o desenvolvimento de um olhar humanizado, propiciando maior empatia em questões referentes às dificuldades, peculiaridades, desafios, superações e potencialidades na velhice. Poderá, também, servir de referencial para futuras estratégias de ação que visem o empoderamento dos velhos e a implementação de medidas motivadoras da participação de idosos em atividades coletivas.

Referências

  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Investigação de representações sociais. In: TRINCA, W. (Org.). Formas de investigação clínica em psicologia São Paulo: Vetor, 1997. p. 255-288.
  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Encontro com a loucura: transicionalidade e ensino de psicopatologia. 1999. Tese (Livre-Docência em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999a.
  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J. O uso do objeto teoria: desconstrução e mudança de representações sociais de estudantes de psicologia sobre o doente mental. Interações, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 77-97, 1999b.
  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J. Estilo clínico Ser e fazer: resposta crítico-propositiva a despersonalização e sofrimento social. Boletim da Academia Paulista de Psicologia, São Paulo, v. 37, n. 92, p. 41-62, 2017.
  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; AMBRÓSIO, F. F. Imaginários coletivos como mundos transicionais. In: AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; AMBRÓSIO, F. F. (Org.). Cadernos Ser e fazer: imaginários coletivos como mundos transicionais. São Paulo: IP-USP, 2006. p. 5-8.
  • AIELLO-VAISBERG, T. M. J.; MACHADO, M. C. L. Pesquisa psicanalítica de imaginários coletivos à luz da teoria dos campos. In: MONZANI, J.; MONZANI, L. R. (Org.). Olhar: Fabio Herrmann: uma viagem psicanalítica. São Carlos: Pedro e João: CECH-UFSCar, 2008. p. 311-324.
  • BERCHERIE, P. Histoire et structure du savoir psychiatrique Paris: La Bibliothèque d’Ornicar, 1980.
  • BLEGER, J. Psicologia da conduta Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
  • BONARDI, G.; AZEVEDO E SOUZA, V. B.; MORAES, J. F. D. Incapacidade funcional e idosos: um desafio para os profissionais de saúde. Scientia Medica, Porto Alegre, v. 17, n. 3, p. 138-144, 2007.
  • BRUM, E. Me chamem de velha. Revista Época, 20 fev. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://glo.bo/OSTZDP >. Acesso em: 21 nov. 2018.
    » https://glo.bo/OSTZDP
  • CABRITA, B. A. C.; ABRAHÃO, A. L. O normal e o patológico na perspectiva do envelhecimento: uma revisão integrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 102, p. 635-645, 2014.
  • GOLDFARB, D. C. Velhices fragilizadas: espaços e ações preventivas. In: SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO DE SÃO PAULO. Velhices: reflexões contemporâneas. São Paulo: PUC-SP: Sesc-SP, 2006. p. 73-87.
  • GOLDMANN, L. Pensée dialectique et sujet transindividuel: in la création culturelle dans la societée moderne. Paris: Colin, 1970.
  • LEMOS, C. P.; FERREIRA, S. R. S. (Org.). Promoção do envelhecimento saudável: vivendo bem, até mais que 100! Porto Alegre: Hospital Nossa Senhora da Conceição, 2009.
  • MANNA, R. E. O imaginário coletivo de cuidadores de idosos na saúde pública: um estudo psicanalítico. 2013. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
  • MANNA, R. E.; AIELLO-VAISVERG, T. M. J. Rabiscos-brincadeiras: por uma clínica psicanalítica da transicionalidade. Rabisco, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 87-93, 2013.
  • OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Envelhecimento ativo: uma política de saúde. Brasília, DF: Opas, 2005.
  • POLITZER, G. Crítica aos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Unimep, 1998.
  • RPDI - REDE DE PROTEÇÃO E DEFESA DA PESSOA IDOSA. Propostas elaboradas pela comissão preparatória do Primeiro Encontro da Rede Social de Defesa e Proteção da pessoa Idosa da Região Centro São Paulo, 2012.
  • TEIXEIRA, I. N. D. O.; NERI, A. L. Envelhecimento bem-sucedido: uma meta no curso da vida. Psicologia USP, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 81-94, 2008.
  • TRINCA, W. O desenho livre como estímulo de apercepção temática 1972. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade de São Paulo. São Paulo, 1972.
  • TRINCA, W. Investigação clínica da personalidade: o desenho livre como estímulo de apercepção temática. Belo Horizonte: Interlivros, 1976.

  • 1
    O conceito de imaginário coletivo é aqui utilizado, segundo a perspectiva da psicologia psicanalítica concreta, para designar um conjunto de manifestações de condutas, que ocorrem em âmbitos coletivos e se expressam nas áreas da mente, do corpo e da atuação no mundo externo, aí incluídos os produtos materiais das ações (Bleger, 1984BLEGER, J. Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.).
  • 2
    O estilo clínico Ser e Fazer nasceu em 1997, quando foi criado um espaço institucional de pesquisas e atendimento clínico denominado “Ser e Fazer: enquadres clínicos diferenciados”, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Sua face interinstitucional é o Grupo de Pesquisa USP/CNPq Psicopatologia, Psicanálise e Sociedade.
  • 3
    O PET-Saúde objetivou formar grupos de aprendizagem tutorial, sendo instrumento de qualificação em serviço dos profissionais de saúde e de iniciação do trabalho de graduandos na rede SUS. Esta pesquisa é fruto de material produzido a partir do relatório da pesquisa “O imaginário coletivo sobre o envelhecimento dos idosos participantes da Rede de Proteção e Defesa da Pessoa Idosa”, desenvolvido pelo grupo PET-Saúde do Idoso (2012-2014), que contou com a participação de Juliana Carvalho Araújo Leite (tutora e enfermeira), Roberta Elias Manna (coordenadora da pesquisa, preceptora e psicóloga), Elisa Canola Pereira (preceptora e assistente social), Gabriela de Haro Miguel Ippolito Giordano e Jorge da Silva Kawano (alunos de medicina), Raiene Talassin Barbosa Abbas, Jèzzabelle Jeanne Gisele Simon e Josiane de Assis Silva Lopes (alunas de fonoaudiologia).
  • 4
    Aqui optamos pela palavra “velho” seguindo as orientações de Brum (2012)BRUM, E. Me chamem de velha. Revista Época, 20 fev. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://glo.bo/OSTZDP >. Acesso em: 21 nov. 2018.
    https://glo.bo/OSTZDP...
    .
  • 5
    A RPDI é formada por pessoas de ambos os sexos, porém, neste encontro, apesar de todos terem sido convidados, compareceram apenas mulheres.
  • 6
    Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto do Câncer da Fundação Arnaldo Vieira de Carvalho, sob o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética nº 25792713.8.0000.5471.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2018
  • Aceito
    30 Out 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br