Percepção de conselheiros de saúde acerca do tema agrotóxicos: o papel da participação social em uma sociedade que adoece

Perception of health advisors on pesticides: the role of social participation in a sick society

Marcia Maria Arenhart Soares Ana Paula Zuchi Carla Vanessa Alves Lopes Mônica de Caldas Rosa dos Anjos Sobre os autores

Resumo

Este estudo tem como objetivo conhecer a percepção de conselheiros de saúde sobre o tema dos agrotóxicos. Trata-se de um estudo exploratório com abordagem qualitativa, utilizando, para a coleta de dados, a técnica de grupo focal e, para a interpretação dos resultados, a análise de discurso de abordagem francesa. Foram realizados dois grupos com conselheiros membros de três Conselhos Locais de Saúde de Curitiba (PR). Na percepção dos grupos, o agrotóxico foi relacionado a veneno, mas também a uma necessidade econômica. Os grupos reconhecem o impacto dos agrotóxicos na saúde e no ambiente - no entanto, destacam que seu uso é necessário para garantir a produção agrícola. A temática, até o momento, não havia sido abordada em reuniões dos conselhos de saúde, e seus membros relataram não se sentir empoderados para a discussão, não se percebendo como sujeitos de transformação. Diante desse cenário, é necessário propor ações que possibilitem o debate e problematizem as situações-limite, visando a assunção dos conselheiros como sujeitos, de modo a promover a compreensão da realidade para uma atuação mais crítica e transformadora.

Palavras-chave:
Conselhos de Saúde; Participação Social; Análise de Discurso

Abstract

This study aimed to know the perception of health advisors on pesticides. This is an exploratory study with a qualitative approach, using the focal group technique for data collection and French discourse analysis for the interpretation of results. Two groups were defined with members of three Local Health Councils of Curitiba-PR. In the perception of the groups, pesticide was related to poison, but was also considered an economic necessity. The groups recognize the impact of agrochemicals on health and the environment; however, they point out that their use is necessary to ensure agricultural production. The topic of pesticides has not been addressed at the health council meetings, and its members have reported not feeling empowered enough to discuss this issue, not perceiving themselves as subjects of transformation. Given this scenario, it is necessary to propose actions that allow the debate and problematize situations-limits, aiming to assume counselors as subjects in order to promote the understanding of reality for a more critical and transformative action.

Keywords:
Health Council; Social Participation; Discourse Analysis

Introdução

A alimentação constitui um direito básico que deve ser assegurado à população. Para que seja promotora de saúde, é necessário que se alcance a segurança alimentar e nutricional, que, segundo o art. 3º da Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2016,

consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (Brasil, 2006BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 set. 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Oigrch >. Acesso em: 10 jan. 2019.
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)

A promoção da segurança alimentar e nutricional, bem como o direito humano à alimentação adequada, perpassa principalmente reflexões críticas sobre o modelo de produção e consumo de alimentos (Maluf et al., 2015MALUF, R. S. et al. Nutrition-sensitive agriculture and the promotion of food and nutrition sovereignty and security in Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 8, p. 2303-2312, 2015.).

Atualmente, predomina no mundo um modelo de produção e consumo que considera o alimento mercadoria, prevalecendo a produção em larga escala e o consumo de produtos alimentícios produzidos por indústrias a partir de matérias-primas oriundas de uma produção agrícola baseada na monocultura, com elevado uso de agrotóxicos, fertilizantes químicos e organismos geneticamente modificados (Londres, 2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.; Machado; Oliveira; Mendes, 2016MACHADO, P. P.; OLIVEIRA, N. R. F.; MENDES, A. N. O indigesto sistema do alimento mercadoria. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 2, p. 505-515, 2016.).

Este sistema agroalimentar pautado no modelo convencional hegemônico, no qual também situa-se o agronegócio, articula latifúndio, indústrias químicas e de biotecnologia, capital financeiro e mercado, e tem contribuído com o desequilíbrio do ambiente e o êxodo e desestruturação do meio rural, além de gerar uma situação de insegurança alimentar e nutricional (Maluf, 2009MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petrópolis: Vozes , 2009.; Rigotto; Rosa, 2012RIGOTTO, R. M. et al. O verde da economia no campo: desafios à pesquisa e às políticas públicas para a promoção da saúde no avanço da modernização agrícola. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 6, p. 1533-1542, 2012.).

Os agrotóxicos são um dos pilares de sustentação desse modelo de produção. Nos últimos 60 anos, o uso deles vem se difundindo intensamente, e não somente na agricultura, sendo também usados em domicílios e campanhas de saúde pública para o combate de doenças como malária e dengue. Na segunda metade do século XX, com a chamada Revolução Verde, os fertilizantes e agrotóxicos foram introduzidos com a promessa de aumentarem a produtividade no campo e, consequentemente, sanar a fome mundial por meio da utilização intensiva desses insumos químicos, além de sementes híbridas, mecanização da produção e uso extensivo de tecnologia (Londres, 2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.; Moreira, 2000MOREIRA, R. J. Críticas ambientalistas à Revolução Verde. Estudos: Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 39-52, 2000.). Sabe-se, porém, que esse problema não é resultado da forma de produção de alimentos, e sim de fatores econômicos, políticos e sociais que afetam a distribuição e o uso de alimentos (Maluf, 2009MALUF, R. S. Segurança alimentar e nutricional. Petrópolis: Vozes , 2009.).

Desde 2008, o Brasil ocupa a posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo, aumentando o uso de 2,7 quilos por hectare, no ano de 2002, para 6,9 quilos por hectare em 2012, representando um crescimento de 155%, em um espaço de dez anos (IBGE, 2015IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores de desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro, 2015.). Esse incremento tem forte relação com o modelo de produção agrícola, sendo o Brasil um importante nicho para o crescimento econômico de multinacionais produtoras de agrotóxicos devido ao predomínio da monocultura, baseada principalmente na produção de commodities, como soja, milho, algodão, cana-de-açúcar e tabaco, voltados à exportação (Carneiro et al., 2015CARNEIRO, F. F. et al. Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. São Paulo: Expressão Popular, 2015.).

O acesso a recursos e incentivos públicos para a agricultura teve papel-chave na consolidação do agronegócio. No Brasil, ele apresenta fortes bases de apoio na política e no campo científico e tecnológico. Entre outras medidas, desde 1997, o Governo Federal concede isenção de 60% no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para os agrotóxicos e isenção total do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), beneficiando a indústria química e favorecendo a manutenção do país na posição de maior consumidor desses insumos do mundo (Rigotto; Rosa, 2012RIGOTTO, R. M.; ROSA, S. F. Agrotóxicos. In: CALDART, R. et al. (Org.). Dicionário de educação do campo. São Paulo: Expressão Popular , 2012. p. 86-94.).

Além disso, o campo hegemônico tem produzido e difundido o mito de que, sem os agrotóxicos, não é possível produzir, desvalorizando e negando experiências exitosas de produção ecológica que funcionam em diversos biomas, no Brasil e no mundo. Difundem também a ideia de que é possível o uso seguro dos agrotóxicos, ou seja, que podem ser estabelecidas regras para garantir a proteção das diferentes formas de vida expostas a esses biocidas (Rigotto; Rosa, 2012RIGOTTO, R. M.; ROSA, S. F. Agrotóxicos. In: CALDART, R. et al. (Org.). Dicionário de educação do campo. São Paulo: Expressão Popular , 2012. p. 86-94.).

O impacto do uso dos agrotóxicos à saúde pública é amplo, envolvendo diferentes grupos populacionais e atingindo extensos territórios. Afetam desde a saúde humana dos trabalhadores rurais, que lidam diretamente com essas substâncias, até a saúde dos consumidores, que entram em contato com alimentos contaminados por esses químicos, além de causarem impactos negativos em todo o ecossistema, contaminando fauna, flora, ar, água e solo (Carneiro et al., 2015CARNEIRO, F. F. et al. Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. São Paulo: Expressão Popular, 2015.; Londres, 2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.; Pignati et al., 2007PIGNATI, W. et al. Acidente rural ampliado: o caso das “chuvas” de agrotóxicos sobre a cidade de Lucas do rio Verde - MT. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 299-311, 2007.).

O livro A primavera silenciosa, publicado em 1962 pela bióloga norte-americana Rachel Carson, representou um marco mundial para a consciência ambiental e ecológica, sendo um alerta aos graves efeitos nocivos dos agrotóxicos sobre a saúde humana e o ambiente (Carvalho; Nodari; Nodari, 2017CARVALHO, M. M. X.; NODARI, E. S.; NODARI, R. O. “Defensivos” ou “agrotóxicos”? História do uso e da percepção dos agrotóxicos no estado de Santa Catarina, Brasil, 1950-2002. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 24, n. 1, p. 75-91, 2017.). As consequências agudas e crônicas publicizadas englobam: alergias, distúrbios gastrintestinais, respiratórios, endócrinos, reprodutivos e neurológicos, neoplasias, mortes acidentais e suicídios (Carneiro et al., 2015CARNEIRO, F. F. et al. Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. São Paulo: Expressão Popular, 2015.).

Diante do uso intenso e difuso dos agrotóxicos no Brasil, é possível considerar que a maior parte da população esteja exposta a eles de alguma forma, seja pela aplicação desses venenos, pela proximidade com regiões de cultivo ou pelo consumo de alimentos contaminados. Dados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (Para) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa, 2016ANVISA - AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Programa de análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos: relatório de atividades. Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2J1BFsn >. Acesso em: 6 jan. 2018.
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) revelaram amostras com resíduos de agrotóxicos em quantidades acima do limite máximo permitido e com presença de ingredientes ativos não autorizados para o alimento pesquisado.

Órgãos importantes para a saúde pública brasileira, como o Instituto Nacional de Combate ao Câncer (Inca, 2006INCA - INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR. Posicionamento do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva acerca dos agrotóxicos. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1FlJrjI >. Acesso em: 14 jan. 2018.
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) já se posicionaram a favor de ações e movimentos que enfrentam o uso de agrotóxicos e apoiam a produção agrícola de base agroecológica.

O principal instrumento normativo sobre agrotóxicos no Brasil é a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, chamada de Lei dos Agrotóxicos, sendo seu regulamento previsto no Decreto nº 4.074/2002 (Brasil, 1989BRASIL. Lei nº 7.802, de 12 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 jul. 1989. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1Lf8sTR >. Acesso em: 10 jan. 2019.
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, 2002BRASIL. Decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002. Regulamenta a Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989, que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jan. 2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2IGbNh7 >. Acesso em: 10 jan. 2019.
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). Essa lei foi resultado de lutas sociais e do debate ambientalista que acontecia desde o final da década de 1980, incluindo a visibilidade dada à questão ambiental com o assassinato de Chico Mendes. Considera-se uma vitória para o movimento ambientalista e para a agricultura ecológica a utilização, dentro dela, do termo “agrotóxicos” para definir os venenos agrícolas, visto que ele explicita o grau de perigo que tais substâncias oferecem, contrariando a pressão da indústria para a utilização do termo suave “defensivos agrícolas” (Carvalho; Nodari; Nodari, 2017CARVALHO, M. M. X.; NODARI, E. S.; NODARI, R. O. “Defensivos” ou “agrotóxicos”? História do uso e da percepção dos agrotóxicos no estado de Santa Catarina, Brasil, 1950-2002. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 24, n. 1, p. 75-91, 2017.; Londres, 2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.). É importante destacar que, apesar dos riscos para a vida e da definição legal do vocábulo “agrotóxicos”, o termo “defensivos agrícolas” ainda é bastante utilizado e propagado pela indústria de venenos, por políticos, por técnicos do governo e até mesmo pelas universidades (Ferreira, 2015FERREIRA, M. L. P. C. A pulverização aérea de agrotóxicos no Brasil: cenário atual e desafios. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 18-45, 2015.).

Atualmente, existem inúmeros projetos de lei (PL) que preveem alterar a referida lei, a exemplo do PL nº 3.200/2015, que tramita em uma comissão especial da Câmara dos Deputados, com o objetivo de simplificar o registro e a autorização dos agrotóxicos, além de substituir a nomenclatura desses produtos para “defensivos fitossanitários” (Brasil, 2015BRASIL. Projeto de Lei nº 3.200, de 2015. Dispõe sobre a Política Nacional de Defensivos Fitossanitários e de Produtos de Controle Ambiental, seus Componentes e Afins, bem como sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de defensivos fitossanitários e de produtos de controle ambiental, seus componentes e afins, e dá outras providências. Câmara dos Deputados, Brasília, DF, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/1RSfbqK >. Acesso em: 5 jan. 2018.
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). A terminologia proposta retira o peso tóxico dos produtos, essencialmente biocidas, simbolizando um retrocesso.

Para Jaime Breilh (Jankoski, 2016JANKOSKI, A. “O sistema capitalista é incompatível com a saúde e a vida”, avalia epidemiologista Jaime Breilh ao falar sobre agrotóxicos em Curitiba. Observatório do Agrotóxico, Curitiba, 31 maio 2016. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/25EPC52 >. Acesso em: 14 jan. 2018.
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), é necessário entender os interesses e forças econômicas, políticas e culturais que codeterminam os modos de pensar e trabalhar, avaliando a complexidade de cada instância (geral, particular e individual) e suas relações. Trazendo para o contexto dos agrotóxicos, essa lógica pode se expressar das seguintes formas: individual - as intoxicações que ocorrem devido aos processos fisiopatológicos estabelecidos nos corpos dos indivíduos que têm contato com tais venenos -, particular - o contato com os venenos se impõe no modo de vida do trabalhador que realiza a agricultura do monocultivo com utilização de agrotóxicos - e geral - tal agricultura é determinada pela necessidade de obter maior produtividade de mercadorias, mesmo que estas sejam alimentos envenenados, deletérios à saúde, além de produzir lucro à indústria de venenos.

Rigotto et al. (2012RIGOTTO, R. M. et al. O verde da economia no campo: desafios à pesquisa e às políticas públicas para a promoção da saúde no avanço da modernização agrícola. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 6, p. 1533-1542, 2012.), analisando a relação entre agrotóxico e saúde, sugerem que ela deve ser estudada no contexto da modernização agrícola conservadora para, então, desvendar os agravos à saúde, o risco e a vulnerabilidade socioambiental, colocando como fundamental a participação da sociedade na cobrança da implantação de políticas sociais de garantia de direitos. Além disso, reforçam a importância de se fazer ciência com compromisso ético e político com os mais vulneráveis,

evidenciando os impactos do atual modelo de desenvolvimento na saúde, para abrir caminho para alternativas como a da Agroecologia, que contribuem para a construção de um mundo mais solidário e verdadeiramente sustentável. (Rigotto et al., 2012RIGOTTO, R. M. et al. O verde da economia no campo: desafios à pesquisa e às políticas públicas para a promoção da saúde no avanço da modernização agrícola. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 6, p. 1533-1542, 2012., p. 1541)

Fonseca, Duso e Hoffmann (2017FONSECA, E. M.; DUSO, L.; HOFFMANN, M. B. Discutindo a temática agrotóxicos: uma abordagem por meio das controvérsias sociocientíficas. Revista Brasileira de Educação do Campo, Tocantinópolis, v. 2, n. 3, p. 881-898, 2017.) consideram a temática dos agrotóxicos um problema ambiental e, consequentemente, de saúde pública, que ultrapassa as questões individuais, tornando-se uma questão coletiva, já que perpassa a produção, comercialização e ingestão de alimentos, interferindo tanto na saúde humana quanto no equilíbrio ambiental.

Nesse contexto, os conselhos de saúde constituem-se em um espaço importante de participação da sociedade, trazendo como pauta preocupações referentes aos impactos negativos que o uso de agrotóxicos tem gerado às populações (Londres, 2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.).

A trajetória das conquistas populares no Brasil tem sido importante para a mobilização social em defesa do direito à saúde. A década de 1980 foi marcada por representar o momento de institucionalização de práticas fundamentadas na concepção da saúde como produção social e direito. Como exemplo, há a Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que regulamenta a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e cria os Conselhos e as Conferências de Saúde (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1990. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2zAaWNh >. Acesso em: 10 jan. 2019.
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; Carvalho, 2014CARVALHO, G. C. M. Participação da comunidade na saúde. Campinas: Saberes, 2014.).

Os Conselhos Locais de Saúde foram criados no município de Curitiba - de acordo com a Resolução nº 2, de 25 de julho de 2000, do Conselho Municipal de Saúde de Curitiba, e a Resolução nº 453, de 10 de maio de 2012, do Conselho Nacional de Saúde - para atuar na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde dentro da área de abrangência das unidades de saúde (Curitiba, 2015CURITIBA. Conselho Municipal de Saúde. Minuta do regimento interno dos Conselhos Locais de Saúde. Curitiba, 2015.). Carvalho (2014CARVALHO, G. C. M. Participação da comunidade na saúde. Campinas: Saberes, 2014.) apresenta como uma das principais dificuldades presentes nos conselhos de saúde no Brasil a confusão com relação ao controle social (termo que o autor sugere substituir por “participação da comunidade”), que enfoca exclusivamente o controle, perdendo de vista as ações propositivas.

Uma das atribuições dos conselheiros locais de saúde descritas no Regimento interno dos Conselhos Locais de Saúde é “desenvolver ações junto às instituições públicas ou privadas visando à promoção da saúde” (Curitiba, 2015CURITIBA. Conselho Municipal de Saúde. Minuta do regimento interno dos Conselhos Locais de Saúde. Curitiba, 2015.).

Segundo a Carta de Ottawa (2002CARTA de Ottawa. Biblioteca Virtual em Saúde, Brasília, DF, 1 fev. 2002. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2bVDHbN >. Acesso em: 1 fev. 2017.
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), documento oriundo da I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em 1986, a promoção da saúde é um processo de capacitação dos sujeitos e coletividades para identificar os fatores e condições determinantes da saúde e exercer controle sobre eles, de modo a garantir a melhoria das condições de vida e saúde da população.

Dentro da Política Nacional de Promoção à Saúde (PNPS), de 11 de novembro de 2014, um dos seus objetivos é “fomentar discussões sobre os modos de consumo e produção que estejam em conflito de interesses com os princípios e valores da promoção da saúde e que aumentem vulnerabilidades e riscos à saúde”, sendo o uso de agrotóxicos na produção de alimentos um desses riscos (Brasil, 2014BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria MS/GM nº 2.446, de 11 de novembro de 2014. Redefine a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 nov. 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2M0SPFi >. Acesso em: 10 jan. 2019.
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).

Dessa forma, promover saúde requer articulação entre os diversos setores sociais além dessa área, de modo a garantir condições de se empoderar para o controle social na gestão de conhecimentos, recursos físicos, financeiros e humanos, voltando-os para a ação nos seus determinantes de saúde. Além disso, promover saúde perpassa a priorização de um modelo de produção alimentar ecológico, incluindo políticas de coordenação de produção, comercialização e consumo de alimentos, ao mesmo tempo em que avalia cadeias curtas de abastecimento. Essas abordagens levam a ações que promovem produção de alimentos e práticas alimentares mais saudáveis (Maluf et al., 2015MALUF, R. S. et al. Nutrition-sensitive agriculture and the promotion of food and nutrition sovereignty and security in Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 8, p. 2303-2312, 2015.).

Pensando em como essa participação pode se dar de forma mais crítica e eficaz, é preciso que ocorra uma tomada de consciência dos sujeitos, seguida de conscientização. Segundo Freire (1979FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.), quando o homem se aproxima espontaneamente do mundo, a posição comum fundamental não é crítica, mas ingênua. A conscientização implica que a esfera espontânea de apreensão da realidade seja ultrapassada, para que se alcance uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual homens e mulheres assumem posição epistemológica.

Diante desse cenário, esta pesquisa tem por objetivo conhecer a produção de sentidos de conselheiros de saúde sobre o tema dos agrotóxicos, de modo a levantar situações-limite para problematizações futuras acerca da temática.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa de campo exploratória e de abordagem qualitativa, realizada em outubro de 2017 com membros de conselhos locais de saúde vinculados a três unidades de saúde do município de Curitiba, Paraná.

Esses conselhos foram escolhidos devido à atuação de uma das pesquisadoras como nutricionista residente em saúde da família no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) que apoia essas unidades.

Inicialmente, os participantes foram convidados a participar do estudo por meio de convite formal realizado durante reuniões ordinárias de cada conselho, sendo apresentados os objetivos e procedimentos da pesquisa. Devido ao pequeno número de conselheiros presentes nessas reuniões, foi necessário contatar por telefone individualmente os demais, explicitando a pesquisa.

Conselheiros titulares e suplentes que se interessaram em participar voluntariamente da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, retornando no dia marcado para a atividade.

Os dados foram coletados utilizando a técnica de grupo focal, escolhida por possibilitar interação entre os participantes e, consequentemente, ampliar as possibilidades de apreender percepções, opiniões e sentimentos diante de um tema determinado (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014.; Trad, 2009TRAD, L. A. B. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 777-796, 2009.).

As turmas foram montadas de acordo com a disponibilidade dos conselheiros, sendo possível realizar dois grupos focais. O planejamento inicial contava com a constituição de três grupos focais com membros pertencentes ao mesmo conselho - no entanto, devido à dificuldade em conciliar dias e horários, uma nova estratégia foi utilizada, com a constituição de grupos mistos, que contaram com a participação de conselheiros oriundos dos três conselhos de saúde.

No primeiro, participaram sete conselheiros representantes dos usuários e profissionais de saúde. Já no segundo grupo, participaram seis conselheiros representantes dos usuários e da gestão. Os eventos aconteceram nos mesmos espaços onde as reuniões dos Conselhos Locais de Saúde são realizadas.

A entrevista foi conduzida por meio de um roteiro norteador - cujas questões estão apresentadas no Quadro 1 -, sendo facilitada pela moderadora e observadora. A participação de todos os integrantes foi solicitada, de modo que respondessem a cada questão. As respostas foram gravadas com a permissão dos participantes.

Quadro 1
Roteiro de questões dividido conforme os blocos de análise

Para a análise, as respostas dos grupos foram transcritas na íntegra e as falas foram corrigidas conforme a gramática da língua portuguesa. Segundo Gondim (2003GONDIM, S. M. G. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161, 2003.), a unidade de análise do grupo focal é o próprio grupo, considerando que, quando uma opinião é colocada, mesmo não sendo compartilhada por todos, para efeito de análise e interpretação dos resultados, esta é referida como do grupo.

As questões foram divididas em dois blocos de análise, de acordo com o objetivo proposto: o primeiro bloco consistiu em se aproximar da percepção dos conselheiros sobre os agrotóxicos, abordando conceito, uso, necessidade e exposição, e o segundo bloco abarcou questões que relacionavam os agrotóxicos com a saúde, os serviços de saúde e o controle social (Quadro 1).

O exame foi realizado à luz da análise de discurso - abordagem francesa, técnica selecionada -, visto que permite o aprofundamento das falas que emergem durante os grupos e a compreensão das condições de produção e apreensão dos significados do discurso. Nesta análise, pressupõe-se que o sentido de uma palavra não existe em si mesmo, pois expressa ideologias existentes no contexto sócio-histórico em que a palavra ou expressão foi produzida (Orlandi, 1999ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade Pequeno Príncipe e da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba sob protocolo nº 65847817.0.0000.5580.

Resultados e discussão

A palavra “agrotóxico”

Os grupos reconhecem a toxicidade e os impactos dos agrotóxicos para a saúde humana, percebendo-o como veneno, utilizado para controlar pragas, proteger as plantas e garantir maior produtividade. Alguns ainda utilizaram a etimologia da palavra para exprimir o que significava, com “agro” remetendo à agricultura e “tóxico” a veneno e toxinas.

Toxina nos produtos. (Grupo 1)

É um produto agropecuário e é tóxico. (Grupo 1)

Veneno, muito veneno. (Grupo 2)

Prejudica a saúde também. (Grupo 2)

Veneno que infelizmente nos dias que nós vivemos, precisa, pensando na questão econômica hoje, usa-se, mas, em contrapartida, nós, seres humanos, somos prejudicados. (Grupo 2)

Percebe-se que o termo agrotóxico foi relacionado, de forma inadequada, à função dos termos fertilizantes e adubos. Contudo, sua associação aos impactos negativos causados à saúde humana foi mantido, justificando a necessidade de manutenção do termo no lugar de “defensivo agrícola” ou “fitossanitário”.

Usados nas plantas, nas verduras, no qual às vezes modifica as verduras, faz crescer mais rápido, [muda] a cor, o sabor e também prejudica a saúde, às vezes dá até câncer. (Grupo 1)

Quando o PL nº 3.200/2015, que prevê a alteração do termo “agrotóxico” para “defensivo fitossanitário”, foi trazido para o debate, os grupos o consideraram como negativo.

Ah, agrotóxico, é veneno, ixi. Aí muda para defensivo. Ah não, é defensivo, não faz mal. (Grupo 1)

Se torna mais aceito né. (Grupo 1)

Tirar o nome agrotóxico, o tóxico já está no nome, é um negócio que não é interessante, contamina mesmo. Então, se mudar o nome, a pessoa quando vê tem uma outra visão daquilo ali. É uma questão de marketing, você muda o nome do produto para favorecer tal substância, tal produto. (Grupo 2)

É necessário compreender o que há por trás desse PL. Deve-se considerar a preocupação da indústria de agrotóxicos, representada pela bancada ruralista, em obter maiores lucros com o agronegócio, independentemente dos problemas que possam ser gerados ao ambiente e à sociedade. No entanto, em se tratando do atual modelo de sociedade, capitalista, interesses de minorias, voltados à manutenção da produtividade e do lucro, acabam interferindo na elaboração de leis, podendo afetar a qualidade de vida e saúde da população. No caso específico, esse PL, se aprovado, poderá acarretar o incremento na contaminação de alimentos e áreas produtoras, gerando problemas ao ambiente e à saúde da população produtora e consumidora.

O porque se utiliza agrotóxico

Os grupos percebem a existência de uma relação econômica que justifica a utilização do agrotóxico, revelando uma tomada de consciência em relação a questões não claras, elucidadas e transparentes, e que mantém o modelo hegemônico de produção e de sociedade.

O objetivo é capitalista mesmo, a gente sabe que é por aí, ampliar tudo isso aí, vender mais, produzir mais. (Grupo 1)

Eu acho que quando foi implantado o agrotóxico a produção subiu vertiginosamente, aumentou que um absurdo. Nós vivemos em um país capitalista e o mundo globalizado é capitalista, o que importa é o dinheiro, eles não querem saber se a saúde vai ser prejudicada ou não, pra eles não importa. (Grupo 2)

Por outro lado, os conselheiros compreendem que a produção de alimentos está atrelada ao uso de agrotóxicos, não existindo outra forma viável capaz de abastecer as necessidades da população mundial. O uso de agrotóxicos, nesse caso, é considerado um recurso necessário, cuja função é “proteger” as lavouras das pragas “daninhas”.

O inseticida é usado mais para proteção da lavoura, […] se você não usar não vai produzir tanto. (Grupo 1)

O sistema de hoje dificilmente tem condições de atender, porque a produção mundial requer muita, muita produção e se for fazer só o orgânico, dificilmente nós vamos conseguir atender toda a [população]. (Grupo 2)

É capitalismo, é aquela coisa de querer ser mais, produzir mais. A prova que nós estamos vivendo é que tudo está em crise, mas a agricultura não está em crise, mas infelizmente o que está salvando a nossa balança comercial é a agricultura, mas está sacrificando cada brasileiro, infelizmente. (Grupo 2)

No atual modelo de desenvolvimento, pautado no agronegócio, os agrotóxicos são considerados imprescindíveis na agricultura brasileira pela justificativa de garantir alta produtividade de commodities, tendo peso na balança comercial e nas negociações internacionais. Ainda, a indústria, bem como parte da comunidade científica, minimiza os riscos e insiste na necessidade do uso adequado dos agrotóxicos para sustentar seus argumentos de que não seria possível alimentar a população mundial e garantir o acesso a alimentos de baixo custo em sistemas ecológicos de produção.

Diante dessas questões, fica demonstrada a necessidade de provocar uma tomada de consciência por meio de educação permanente ou popular em saúde com conselheiros, de modo a problematizar as situações limitantes, em uma tentativa de provocar sua superação, fazendo com que percebam a manutenção do status quo, que impede a percepção de outros modelos sustentáveis de vida em sociedade, incluindo novas formas de produção de alimentos - que necessitam de incentivo para ampliar a preservação da agrobiodiversidade e a promoção da igualdade e equidade social.

Ressalta-se que a fome não é causada pela baixa produção de alimentos, mas pela desigualdade em sua distribuição e na divisão de terra e renda, gerando pobreza, má utilização dos recursos naturais para produção de alimentos e desperdício. O modelo hegemônico atual, baseado na monocultura e no uso massivo de agrotóxicos, tem ampliado as desigualdades sociais e agravado a fome.

Quanto à exposição por agrotóxicos, os conselheiros reconhecem que pode acontecer de diferentes formas, sendo por meio da ingestão de alimentos, água e ar contaminados. Como alternativa para diminuir a exposição a eles, surgiu, no Grupo 1, a questão da pequena produção, ou quintais produtivos.

Na medida do possível e nem que seja em um vasinho, uma coisa para a gente produzir, alguma coisa, porque uma folha de couve que a gente produza em casa é um pouquinho de agrotóxico que você está livrando. (Grupo 1)

Eu acho que deve partir do início, nas escolas, nas creches, para pensar no futuro precisa ensinar desde cedo, e isso vai aumentando cada vez mais, cresce um adulto mais consciente, e isso ele vai passar pro restante da família. De que forma ele pode plantar sem usar o agrotóxico, no espaço que ele tem, onde ele mora. Não precisa ter a terra, tem muitas pessoas que usam a área do apartamento, e eles tem até plantações ali. Tem que incentivar. (Grupo 1)

Considera-se essa uma boa estratégia no âmbito individual. No entanto, deve-se ter clareza de que não cabe a esta solucionar os problemas relacionados à produção de alimentos. É necessário ampliar a percepção para ações estruturais e globais, sendo o Estado o principal responsável, articulador e promotor do acesso à alimentação adequada, e o indivíduo aquele que deve exigir o cumprimento dos seus direitos.

O agrotóxico e a saúde

Quando questionados sobre a existência ou não da relação entre saúde e uso de agrotóxicos, os grupos responderam que ela existe. Contudo, o Grupo 2 relatou a existência de dificuldades no que ser refere ao consumo de alimentos produzidos sem uso de agrotóxicos, ao acesso a alimentos ecológicos e à diferença de preços entre alimentos produzidos no modelo convencional e ecológico.

Acredito que tenha relação sim, mas o que nós vamos fazer? (Grupo 2)

Os próprios governos, eles não tem interesse de diminuir isso, eles não tem o controle do uso, e quem que acaba sofrendo? Porque a gente precisa do alimento e dificilmente alguém… A não ser alguém que tenha algum terreno para produzir. Os outros [alimentos] sem agrotóxico são bem mais caros, então, as famílias mais pobres vão pelo mais barato, você encontra se você quiser, para pegar os alimentos sem agrotóxico, você encontra, mas a diferença do preço é muito grande, então a gente fica refém de ter que estar sempre consumindo os alimentos […] com agrotóxico. (Grupo 2)

Atualmente, no Brasil, existe pouco incentivo para a produção de alimentos ecológicos. Para que esse modelo seja promissor, é necessário que se inverta a ordem de prioridade dos investimentos no campo, já que, hoje, 87% (Brasil, 2017aBRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Plano Agrícola e Agropecuário 2017/2018. Brasília, DF, 2017a. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2jXQ8Ht >. Acesso em: 14 jan. 2018.
https://bit.ly/2jXQ8Ht...
) dos investimentos são destinados ao agronegócio, enquanto, para a agricultura familiar, na qual estão incluídos os incentivos à produção ecológica, destinam-se apenas 13% (Brasil, 2017bBRASIL. Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário. Plano Safra da Agricultura Familiar 2017/2020. Brasília, DF, 2017b. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2sk1cTq >. Acesso em: 14 jan. 2018.
https://bit.ly/2sk1cTq...
) dos investimentos.

Para que aconteça essa inversão, a participação social tem papel fundamental, tendo em vista que políticas públicas podem e devem ser discutidas, com propostas no âmbito do controle social, sendo necessário que os sujeitos estejam empoderados e compreendam as relações do modelo de produção atual com a promoção da saúde, de modo a cobrar mudanças estruturais.

Além disso, para a ampliação da produção de alimentos de base ecológica, é necessário ampliar o acesso à terra, aos recursos naturais, às sementes crioulas e aos subsídios, além de criar condições de moradia, educação e lazer para as populações camponesas.

Quando questionados sobre qual seria a relação dos agrotóxicos com a saúde, surgiram relações meramente biológicas, associando-os ao câncer e a doenças respiratórias e dermatológicas.

As alergias de pele, a própria rinite, sinusite também, pelo ar que a gente respira, e principalmente o câncer e as doenças respiratórias. (Grupo 1)

A gente sabe que isso [agrotóxicos] existe, que é grave e traz esses problemas de doenças. (Grupo 2)

Percebe-se uma falta de reconhecimento dos impactos sociais e culturais decorrentes do uso dos agrotóxicos, questões consideradas pilares importantes para a saúde. Essa percepção pode ser consequência do modelo biomédico, centrado apenas no biológico, não considerando os determinantes sociais da saúde, sendo esse o modelo de formação predominante na área da saúde.

O acesso às informações sobre agrotóxicos

Na questão do acesso a informações sobre agrotóxicos, os grupos relataram acessar o conhecimento por meio da mídia televisiva e de experiências vividas no meio rural. E quando questionados se acessaram informações sobre agrotóxicos em serviços de saúde, as respostas foram negativas.

Londres (2011LONDRES, F. Agrotóxicos no Brasil: um guia para ação em defesa da vida. Rio de Janeiro: Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, 2011.) fala da importância da mídia em alertar e conscientizar a sociedade e o Poder Público ao denunciar os abusos cometidos pelas indústrias e pelos agentes do agronegócio, bem como os dramas vividos pelas vítimas da contaminação pelos venenos agrícolas. Porém, observa-se hoje uma mídia conivente com os interesses do agronegócio, veiculando a ideia de que “agro é tech, agro é pop e agro é tudo”, o que contribui para a alienação e manipulação dos sujeitos. Vale ressaltar a existência de diversos movimentos e ações que têm como objetivo transparecer dados e notícias e mobilizar a sociedade sobre a questão dos agrotóxicos, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e o Fórum Nacional - e alguns Estaduais - de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, além de documentários, como O veneno está na mesa e O veneno está na mesa 2, ambos de Silvio Tendler.

Quando colocada a questão da possibilidade de tratar dessa temática nos serviços de saúde, os grupos a percebem como uma estratégia interessante, porém referem falta de interesse da comunidade e trabalhadores da saúde sobre o tema.

Acho muito bom. Até porque, se de certo modo está fazendo mal pra saúde da população, seria interessante que dentro da saúde fosse falado mais sobre isso […]. Talvez não seja de interesse para muitos, mas é de interesse, eu [trabalhadora de saúde] teria interesse de trazer mais conhecimento. (Grupo 1)

Eu acho que a partir do momento que a população tiver uma preocupação em cima disso, vai começar a questionar e automaticamente nossos gestores vão fazer alguma coisa. Mas a população tem que estar preocupada… (Grupo 1)

Eu acredito que quanto mais a informação é passada para o povo, quanto mais ele saber o que é que ele está consumindo é melhor, é melhor para todo mundo […]. É um trabalho grande para ser feito, mas eu acho importante o cidadão ficar sabendo o que ele está consumindo… (Grupo 2)

Essa falta de interesse pode ocorrer devido à desinformação provocada pelo sistema hegemônico que manipula as escolhas, as decisões e as compreensões de mundo, com o objetivo de manter o status quo. O desafio está em como incitar as discussões e devolver aos sujeitos o protagonismo e a cidadania, de modo que exijam os direitos, atualmente violados, previstos na Constituição. Segundo Paulo Freire e Adriano Nogueira (1993FREIRE, P.; NOGUEIRA, A. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1993.), é necessário desvelar as opressões que “coisificam homens e mulheres”, buscando os elementos que possibilitem como, porque e para quem ocorre essa alienação.

A questão dos agrotóxicos nos Conselhos de Saúde

Questionou-se aos conselheiros se em algum momento a temática dos agrotóxicos foi discutida nas reuniões dos conselhos locais. Segundo os grupos, essa temática nunca entrou em pauta nas reuniões ou nas discussões das conferências que participaram.

Quando indagados sobre a possibilidade de discutir essa temática nos Conselhos, ocorreu contradição em relação ao entendimento, visto que emergiu a importância de se trabalhá-la ao mesmo tempo em que os conselheiros não a percebiam como função do órgão.

Eu acho que não é viável. (Grupo 1)

Acho que não é levar o tema agrotóxico para o Conselho, mas é levar a possibilidade de desenvolver um trabalho de alguma coisa mais orgânica para evitar o agrotóxico, mas já com coisas concretas […], porque senão a gente vai chegar lá, vai ficar a reunião todinha para discutir sobre agrotóxico […] e não falar sobre a saúde. (Grupo 1)

Eu entendo assim, que o Conselho é representante de toda uma comunidade, e é um conselho de saúde. Se a gente está falando aqui que o agrotóxico leva a grandes problemas de saúde, consequências para a saúde da população e que não existe essa consciência da população em relação a isso, eu acho que a abordagem, ela é importante sim. (Grupo 1)

O Conselho é formado por cabeças pensantes, são lideranças da comunidade que têm influência sobre as pessoas que estão lá na base dele. Então é importante a gente divulgar no Conselho, para que essas cabeças pensantes pensem no que o agrotóxico faz para todo mundo. (Grupo 2)

Eu acho que a gente tem sim que levar esse assunto para ser mais aprofundado nas reuniões dos Conselhos e começar a provocar o Poder Público para isso […], mas primeiramente a gente tem que provocar a comunidade, por que a comunidade, se ela for provocada, ela abraça a causa. (Grupo 2)

Acho que isso tem que ser inserido […] como uma oficina de debate […] nas conferências locais de saúde, […] para a gente ver o que a população vai pensar daquele tema naquela conferência. Aí depois, na distrital, a gente [vai] colocar também o grupo lá para discutir nas oficinas e na conferência municipal, que vai sair um relatório para as políticas públicas no futuro. (Grupo 2)

Observa-se a necessidade de problematizar essas questões com os conselheiros, de modo a provocar tomada de consciência, bem como para que eles se percebam pertencentes ao processo de mudança, sendo, para tanto, importante a compreensão das suas funções como membros do Conselho. É necessário reconhecer ainda a importância das lutas de classe, visto que espaços dentro do controle social não seriam suficientes para a mudança desse paradigma, devido ao sistema de produção hegemônico, que visa primariamente o lucro.

Nessa direção, os conselheiros trouxeram sugestões de como trabalhar essa temática tanto nos serviços de saúde como nos conselhos de saúde. Contudo, percebera-se aproximações com o modelo convencional de educação, verticalizado e prescritivo.

Fazer uma escala e levar esses assuntos nas reuniões do Conselho, mas saindo do distrito, não de dentro de cada unidade uma pessoa para falar sobre o agrotóxico. (Grupo 1)

Acho importante ter uma cartilha dentro da unidade, um folder, essas coisas com informação, porque a mídia não vai fazer isso nunca, porque quem faz a propaganda lá é o agronegócio, é o industrial, é o laboratório. Então a gente tem que avisar a ponta lá [d]o que está acontecendo. Então eu acho que essas cabeças pensantes podem […] e devem inserir nos Conselhos. (Grupo 2)

Tem que ser uma pessoa que saiba do assunto para falar, porque não adianta […] qualquer um de nós […] ir lá falar, porque não vai adiantar… Tem que ser um que saiba. (Grupo 2)

Essas falas novamente remetem ao modelo convencional de educação, no qual acontece apenas a transmissão do conhecimento, pautado em uma prescrição que, por essa razão, torna as ações inoperantes e infrutíferas, tendo em vista que o conhecimento não é construído de modo verticalizado, mas na intersubjetividade, sendo os sujeitos mediatizados pelo mundo. Ou seja, enquanto não houver a humanização de homens e mulheres, no âmbito da assunção como sujeitos, não será possível a intersubjetividade e, consequentemente, a construção do conhecimento sobre o objeto (temática). E é assim que se deve provocar a integração dos conselheiros ao processo, de modo que, como atores sociais, sejam protagonistas, críticos e transformadores, e não meros espectadores, receptores passivos do processo de conhecer.

Considerações finais

Com a aproximação da realidade dos conselheiros, alcançada por este trabalho, será possível propor ações que possibilitem o debate sobre a temática dos agrotóxicos, visando o empoderamento, de modo a proporcionar melhor compreensão da realidade, para uma atuação mais crítica e transformadora por parte dos conselheiros. Para isso, destaca-se a relevância da preocupação com a segurança alimentar e nutricional, assim como a reestruturação dos modos de produção, para que se supere as situações-limite identificadas no decorrer desta pesquisa.

Fica demonstrada a necessidade de provocar uma tomada de consciência por meio de educação permanente ou popular em saúde nos conselheiros, principalmente quanto à existência de outras formas de se produzir alimentos mais adequadas e coerentes à Constituição brasileira no que se refere a direitos humanos.

Como proposta para uma melhor compreensão da realidade, sugere-se problematizar os modos de produção de alimentos, aprofundando a temática da produção ecológica como possibilidade de abastecimento da população brasileira, fazendo-se necessário promover uma educação “com” e não “para” os conselheiros, tendo como base a educação crítica freireana.

O conhecimento das repercussões do sistema agroalimentar dominante deve mobilizar e incentivar maneiras de produzir, viver e consumir que contribuam para uma sociedade mais saudável, socialmente mais justa e ambientalmente equilibrada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2018
  • Aceito
    16 Nov 2018
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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