Resumo
As críticas ao modelo manicomial fazem frente não só à existência do hospital psiquiátrico como também, no caso da desinstitucionalização, às estruturas e lugares de poder que corroboram a desimplicação na vida e na própria dignidade do sujeito. Nesse sentido, estudos sobre os desafios do cuidado em liberdade e a produção de conhecimento advinda desse cenário se fazem indeclináveis. O artigo esmiúça a utilização de narrativas em uma pesquisa nacional multicêntrica sobre a repercussão do Programa de Volta para Casa na vida daqueles que são beneficiários há cerca de 15 anos. A partir do marco teórico-prático escolhido, a desinstitucionalização, e do próprio perfil dos pesquisados - pessoas que sofreram anos de internação -, evidenciou-se o desafio do encontro entre beneficiário e pesquisador na produção das narrativas. Realçar as contradições no próprio percurso de pesquisa trouxe sínteses de análise e intervenções para a escrita e construção dos dados. Foi possível observar que a sustentação dessa relação traz o reconhecimento de si e de um outro na autoria da vida em composição com o tecido social e coloca a importância de um questionamento do lugar de poder do pesquisador concomitante à escolha de um instrumental metodológico dentro do campo.
Palavras-chave:
Narrativa; Saúde Mental; Desinstitucionalização; Programa de Volta Para Casa; Avaliação de Programas e Projetos de Saúde
Abstract
Criticisms on the asylum model not only address the existence of the psychiatric hospital, but also, in the case of deinstitutionalization, the structures and places of power that corroborate the lack of life and dignity of the individual. Studies on the challenges of care in liberty and the production of knowledge that emerges from it become indeclinable. In this sense, the article explores the use of narratives in multicentric evaluative research on the repercussion of the De Volta para Casa Program (Back Home Program) in the lives of those who have been beneficiaries for 15 years. From the chosen theoretical-practical framework, the deinstitutionalization, and the profile of the respondents - people who suffered long years of hospitalization - the challenge of the meeting between the beneficiary and the researcher in the production of the narratives was evidenced. Highlighting the movement of contradictions in the course of research has brought to the data writing and construction syntheses of analysis and intervention. It was possible to observe the change of direction with the recognition of oneself and of another, in the authorship of life in relation to the social fabric and shows the importance of questioning the place of power of the researcher concomitant to the choice of a methodological instrumental within the field.
Keywords:
Narrative, Mental Health; Deinstitutionalization; De Volta para Casa Program (Back Home Program); Program Evaluation and Heath Projects
Introdução
São inegáveis os avanços éticos nas últimas décadas em relação ao cuidado e ao entendimento sobre a loucura. A alienação, como descrição fenomenológica e direção terapêutica, foi confrontada nos diversos modelos críticos ao manicômio (Braga-Campos, 2000BRAGA-CAMPOS, F. C. B. O modelo da Reforma Psiquiátrica brasileira e as modelagens de São Paulo, Campinas e Santos. 2000. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.; Kinoshita, 1996KINOSHITA, R. T. Contratualidade e reabilitação psicossocial. In: PITTA, A. M. F. (Org.). Reabilitação psicossocial no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 55-59.), já que expropria o sujeito de si, causando a desimplicação na própria vida e dignidade. No entanto, a crítica ao modelo manicomial não se resolve apenas na eliminação da entrada no circuito de controle via hospital psiquiátrico, mas também no enfrentamento aos lugares de poder constitutivos do tecido social, que se coadunam ao modo de entender a minoridade unicamente como exclusão e opressão, e entendendo de maneira crítica a própria estrutura social adjacente. Discutir a situação das pessoas que continuamente são marginalizadas e das instituições que continuamente marginalizam implica uma mudança de posição e de questionamento, tanto dos excluídos como dos que detêm o poder para excluir (Basaglia, 1993BASAGLIA, F. Mario Tommasini: vida e feitos de um democrata radical. São Paulo: Hucitec, 1993.).
Nesse sentido, após 15 anos do início do Programa de Volta pra Casa e posto o desafio de analisar o efeito de uma política pública dessa magnitude, o grupo de pesquisadores passou a confrontar as escolhas do próprio percurso investigativo: como os dados seriam construídos. O processo se inicia com a preocupação incessante de pensar na participação dos próprios beneficiários, já posta, e continua para além disso, com a sustentação crítica de um questionamento acerca dos termos e normas que asseveram o fenômeno da loucura, da exclusão social e das soluções dadas para essas questões. Ou seja, torna-se necessário, com o rigor metodológico que necessitam essas questões, levar em conta as estruturas sociais determinantes da escolha do objeto de estudo, e os termos e normas que sustentam as próprias escolhas. Uma discussão antiga, mas muitas vezes ignorada em pesquisas sociais, que assume um aspecto ingênuo de adaptação ao social (Mills, 1943MILLS, C. W. The professional ideology of social pathologists. American Journal of Sociology, Chicago, v. 49, n. 2, p. 165-180, 1943.), ao invés de uma crítica às próprias estruturas. O lugar extremo de exclusão do louco, institucionalizado por anos, pode trazer consigo uma necessária contradição ao pesquisador que, em um lugar de poder técnico, se coloca a questionar a objetificação na produção de saber e a tendência de pesquisas à descrição dispersa de fenômenos sem questionamento dos próprios termos que criam o fenômeno ou que pensam soluções para ele e onde a ciência tem seu papel central.
Algumas ferramentas metodológicas participativas das ciências humanas foram utilizadas durante a pesquisa, partindo já do pressuposto de que o pesquisador não está em posição neutra suficientemente capaz de observar a situação sem distorções (Guba; Lincoln, 2011GUBA, E.; LINCOLN, Y. Avaliação de quarta geração. Campinas: Editora Unicamp, 2011.; Laperrière, 2008LAPERRIÈRE, H. O caso de uma comunidade avaliativa emergente: re-apropriação por pares-multiplicadores de apreciação e suas próprias ações preventivas e sociais contra as DST/HIV/aids, Amazonas, Brasil. Interface, Botucatu, v. 12, n. 26, p. 527-40, 2008.). Mas a crítica à neutralidade do pesquisador se coloca no âmbito desta pesquisa com força aumentada por dois motivos: (1) pelo lugar extremo de exclusão e objetificação do louco; (2) pelo cerne teórico-prático da desinstitucionalização como marco de transformação radical, que intenta a ruptura insistente do sistema coercitivo e problematiza em todos os níveis a situação geral das realidades institucionais e dos saberes (Basaglia, 1993BASAGLIA, F. Mario Tommasini: vida e feitos de um democrata radical. São Paulo: Hucitec, 1993.). No compasso das pesquisas sobre a transformação do lugar dos pesquisados, como meros objetos em políticas públicas, da desinstitucionalização e sua crítica prática, elege-se então a narrativa do encontro do pesquisador com o beneficiário como ponto nodal para a construção de dados.
Parte-se, no percurso da desinstitucionalização, do entendimento de que “o mal obscuro da Psiquiatria está em haver constituído instituições sobre a separação de um objeto fictício - a doença - da existência global, complexa e concreta do paciente e do corpo da sociedade” (Rotelli, 1990ROTELLI, F. A instituição inventada. In: ROTELLI, F. et al. (Org.). Desinstitucionalização. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990. p. 89-100., p. 90), e a aposta no uso de narrativas se coloca no sentido contrário de “uma possibilidade de reconstrução, de uma concatenação de possibilidade-probabilidade: como toda ciência moderna nos ensina diante de objetos complexos” (Rotelli, 1990, p. 90).
O sobrevivente de anos de internação psiquiátrica foi privado, além de todo o resto, da história e da memória, estas que certificam um sujeito enquanto tal (Safatle, 2015SAFATLE, V. História, memória, sofrimento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2K7M8n3 >. Acesso em: 28 abr. 2019.
https://bit.ly/2K7M8n3... ). Conjugadas, a história e a memória possibilitam a compreensão e a apreensão de si em relação com o tempo e com o tecido social. É necessário pensar, então, que o internado, instituído na literalidade do presente, forjou-se como um sujeito do esquecimento: e assim é quase impossível contar uma história. A narrativa torna-se, em ato, a consideração de que os sujeitos foram privados dessa reflexão e da marcação da passagem do tempo, e é a possibilidade da mudança para uma justa confabulação de si em relação (Santos, 1996SANTOS, M. Metrópole: a força dos fracos é seu tempo lento. In: Santos, M. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1996. p. 39-43.).
O uso da narrativa tem sido relevante no âmbito da pesquisa no campo da saúde e na formação de profissionais (Cecilio et al., 2015CECILIO, L. C. O. et al. (Org.). Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, 2015.). Ela é importante como estratégia de encontro com o sujeito alvo de políticas públicas, principalmente no que tange à educação em saúde: quando dois mundos simbolicamente afastados se encontram e se confrontam, com vistas a pensar um processo de saúde-doença.
No contexto das pesquisas avaliativas é ainda escassa a produção em que usuários de serviços de saúde mental são chamados a falar e avaliar os serviços, tratamentos e acompanhamentos. Ainda são poucos os artigos que trazem os usuários como participantes dos estudos e menos ainda aqueles específicos sobre os serviços de saúde mental que explicitam a opinião dos usuários sobre suas necessidades, como vivem ou quais desafios enfrentam no cenário de atenção de que necessitam. O que revela ainda pequena valorização da fala e da existência social dessas pessoas que vivenciam sofrimento psíquico. Nessa ausência, demarca-se a necessidade de convocar uma responsabilização e participação efetivas, ao contrário da demissão subjetiva ocasionada pelo modelo hospitalocêntrico e suas práticas.
As avaliações de serviços e ações da rede de atenção psicossocial, no Brasil, tiveram início com o convite dirigido aos usuários de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para contribuir nas avaliações destes serviços (Onocko-Campos; Furtado, 2008ONOCKO-CAMPOS, R.; FURTADO, J. P. Narrativas: apontando alguns caminhos para sua utilização na pesquisa qualitativa em saúde. In: ONOCKO-CAMPOS, R. et al. (Org.). Pesquisa avaliativa em saúde mental: desenho participativo e efeitos da narratividade. São Paulo: Hucitec, 2008. p. 321-334.). Outro estudo sobre a consolidação da Rede de Atenção Psicossocial convocou a fala das pessoas que vivem em situação de sofrimento psíquico intenso para analisar ações de saúde mental em serviços de atenção básica em uma busca por compreender a necessidade de os usuários se fazerem presentes e participarem dos debates sobre temas que os envolvem diretamente. Essa perspectiva traz à tona aspectos muito particulares e se diferencia de metodologias tradicionais de pesquisa em saúde, na medida em que os participantes dessa modalidade revelam um espaço de escuta conquistado e destacam também o desejo de inserção em espaços que possibilitem trocas de conhecimento e produções coletivas visando à compreensão das situações vividas e compartilhadas (Moreira; Onocko-Campos, 2017MOREIRA, M. I. B.; ONOCKO-CAMPOS, R. Ações de saúde mental na rede de atenção psicossocial pela perspectiva dos usuários. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 462-474, 2017.).
Há um crescente aprofundamento dos estudos narrativos nas ciências humanas, principalmente no campo da saúde mental (Braga, 2017BRAGA, C. P. Conexões na transformação da experiência do sofrimento psíquico: articulação entre memória e história. Interface, Botucatu, v. 21, n. 63, p. 823-832, 2017.; Castellanos, 2014CASTELLANOS, M. E. P. A narrativa nas pesquisas qualitativas de saúde. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1065-1076, 2014.; Onocko-Campos; Furtado, 2008), e a narrativa tem sido considerada um importante recurso, contribuindo para que histórias de pessoas invisibilizadas sejam conhecidas. A coletânea de escritos militantes organizada pelo Conselho Federal de Psicologia (2003CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (Org.). Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.) revela diferentes perspectivas narradas por pesquisadores e profissionais, somadas a olhares de diversos familiares e usuários de diferentes regiões do país. Essa é uma contribuição que projetou o trabalho e os arranjos possíveis dos serviços, articulada à mobilização dos protagonistas do movimento de luta antimanicomial para o fortalecimento do plano de cuidado em liberdade.
Para o presente artigo, abordaremos o trabalho narrativo próximo ao que nos coloca Walter Benjamin, para quem a arte narrativa está em evitar explicações que serviriam sobretudo para reduzir as possibilidades de variações e compreensões. Nosso foco é o enredo e não o fim, é instaurar uma riqueza de cenários e possibilidades. Precisaremos lembrar que a interpretação pode afunilar os sentidos, costumeiramente levando a uma relação linear de causa e efeito, um procedimento muitas vezes utilizado pela psiquiatria sobre o estado de doença, o que solapa a complexidade da situação e se distancia da condição humana e da vida concreta das pessoas.
Esse enredo, em que estamos interessados, compreende uma relação necessária. Para Benjamin, a fonte principal da narrativa é “a experiência que passa de pessoa a pessoa” e dessa forma entende-se o narrar como a “faculdade de intercambiar”. Ainda, “o narrador retira da experiência o que ele conta […] e incorpora as coisas narradas à experiência do ouvinte” (Benjamin, 1985, p. 201).
Uma consequência, ou característica, dessa riqueza de cenários que ao poucos é borbotada é a diversidade de versões que aparecem e que por sua vez acabam diferindo das versões oficiais, majoritárias - aquelas associadas ao poder constituído. É como se mudasse o meio e houvesse por isso uma refração do poder. Bosi (2003BOSI, E. O tempo e memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003.) coloca essa dissimilitude ao escrever sobre a memória da cidade de São Paulo por meio de lembranças das pessoas comuns, aqueles que aos poucos foram se tornando os migrantes urbanos da própria cidade. Um conjunto belíssimo de histórias de pessoas que viveram e partilharam o mesmo espaço e tempo e que em seus relatos instauram a diferença daquilo que se lê sobre a cidade e a vida citadina da época.
O objetivo deste artigo é apresentar um relevante encontro entre o beneficiário e o pesquisador, e também entre a desinstitucionalização, com seu papel de crítica prática e como marco teórico da pesquisa, e o uso de narrativas em pesquisa avaliativa de uma política pública em saúde mental. Ao destacar a produção das narrativas, vislumbra-se ampliar, de maneira relacional, as vozes que falam de uma compreensão das transformações ocorridas no contexto da implementação da Reforma Psiquiátrica no Brasil e colocar em questão ainda o papel do pesquisador na produção de conhecimento.
A narrativa no percurso da pesquisa e seus desdobramentos
Para esta pesquisa nacional o recorte temporal foi imprescindível. Se temos como objetivo avaliar os efeitos da política na vida de pessoas que saíram do claustro manicomial e entender as transformações que se deram durante os 15 anos que se passaram desde que receberam a primeira bolsa-auxílio, é preciso demonstrar o que mudou, como se deu a mudança na vida de cada um dos beneficiários, e como esses sujeitos e os profissionais se posicionam diante delas. É necessário entender a trama dessas histórias.
A complexidade da pesquisa se deu, então, pela amplitude geográfica, pelas etapas processuais envolvidas e pela artesania da relação com cada um dos beneficiários. Um encontro que, pelo marco teórico adotado, haveria de ter inscrito em cada passo um sentido de construção de liberdade.
A partir da primeira listagem nacional do banco de dados do Ministério da Saúde foi realizada a primeira seleção: as primeiras pessoas que passaram a receber o benefício, os incluídos no programa entre 2004 e 2006. A partir dos dados da primeira dimensão da pesquisa, foi possível mapear as cidades-sedes de hospitais psiquiátricos que foram objeto de intervenção do Ministério da Saúde, nesse mesmo período, ou municípios cujas intervenções em manicômios foram consideradas determinantes para a reforma psiquiátrica no país. Esses beneficiários estavam vivendo na Bahia, nas cidades de Salvador e Feira de Santana; em Pernambuco, nas cidades de Camaragibe e Recife; na Paraíba, em Campina Grande; em São Paulo, nas cidades de Campinas, São Paulo e Santos; em Minas Gerais, nos municípios de Barbacena e Juiz de Fora; e no Rio de Janeiro, na cidade de Paracambi. A partir dos municípios, definiu-se uma amostra de 10 pessoas por cidade.
A Figura 1 apresenta o caminho percorrido para a elaboração das narrativas, desde o primeiro encontro de construção de vínculos até a elaboração do produto final, após o processo de leitura por pesquisadores de outros campos.
Pelo grande número de pesquisadores, em diferentes estados e com diferentes percursos e alinhamentos teóricos, houve inúmeras discussões que permearam o trabalho de campo: discussões nacionais de alinhamento teórico-prático; discussões locais e nacionais sobre o campo durante sua realização; e discussões sobre a produção das narrativas - atrelada ao trabalho realizado com os beneficiários e a Linha-Guia de Campo.
A Linha-Guia de Campo foi um documento produzido posteriormente à oficina de discussão sobre o marco teórico da pesquisa - espaço onde se evidenciaram as diferenças no grupo. Houve um embate necessário das contradições entre as molduras teórico-conceituais de cada pesquisador em relação ao objeto de estudo da pesquisa e, consequentemente, ao posicionamento do pesquisador em campo quanto ao que seria coletado - ou construído com o beneficiário - e ainda sobre qual beneficiário entraria entre os 10 de cada município.
A decisão de quem seria inserido na amostra foi uma das discussões mais importantes nos momentos que antecederam o campo, suscitando questionamentos metodológicos para o andamento do estudo. Afinal, para aquele coletivo de pesquisadores tão diversos, como seria produzir uma história com um sujeito que havia sido privado de ter história? Alguém cuja experiência de mundo pode ser diametralmente oposta à dos pesquisadores e que, no afã da objetividade do estudo, acaba, então, por ser novamente excluído. A linha-guia foi construída coletivamente como um dos instrumentos para uma abertura crítica às condições de possibilidade do encontro do pesquisador com a alteridade.
Em campo, a aproximação se deu primeiramente via gestão municipal, mas também se aproximando do bairro e conhecendo o histórico sanitário da região. A cada etapa, o pequeno grupo de pesquisadores locais dos estados era acompanhado pelos pesquisadores-coordenadores regionais, tanto em ato como em encontros posteriores. Após a etapa de aproximação do contexto local, seguiu-se para a aproximação dos beneficiários, comumente realizada no serviço a que estivessem vinculados, mas também diretamente em suas moradias. Em seguida, foi possível realizar incursões pela cidade, praças, ruas, igrejas, bancos e comércios locais, dentre outros espaços públicos ou privados a que os sujeitos da pesquisa achassem por bem convidar aquele pesquisador ou que fosse possível construir e sugerir.
Correndo o risco de soar óbvio, é necessário dizer que a construção de vínculo com o beneficiário foi uma das principais ferramentas de construção da narrativa. As conversas seguiam o ritmo de cada narrador-pesquisador, a partir dos encontros e das situações que surgiram com cada narrador-beneficiário. Após os encontros, registravam-se os diários de campo e discutia-se com o grupo e com os coordenadores. Esses registros foram utilizados para a elaboração das narrativas. Os encontros do grupo de pesquisadores locais e a Linha-Guia de Campo se mostraram necessários para insistentemente reposicionar o pesquisador em relação ao seu saber e ao saber do beneficiário, o que se colocou de forma mais ou menos estilística nas narrativas.
A primeira versão do texto foi lida e debatida entre os pesquisadores locais e seguida de novos encontros em busca de enriquecer os registros e levantar novas possibilidades de abordar as histórias contadas. Após a finalização de uma primeira versão entre os pesquisadores locais, a narrativa seguiu para leitura por pesquisadores de outros campos a fim de torná-la a mais densa possível, e assim o processo seguiu até a escrita final.
A delicada tessitura da construção de histórias
A partir da experiência partilhada entre o narrador-pesquisador e o narrador-beneficiário, o usuário pôde rememorar e produzir uma história, registrá-la e torná-la coletiva ou pública. Alguns, inclusive, se colocaram a assinar a própria narrativa depois de lida: um processo de inscrição social ativa desse sujeito, uma autoria possível da própria vida.
Ao apostar no uso das narrativas, distanciou-se na pesquisa do uso de relatórios fabris em volume sobre um dado objeto porque assim seria a declinação rasa e linear de um fenômeno. Preferiu-se a delicada tessitura de um encontro para falar de uma história contada por alguém que percorreu um caminho longo até a vida em liberdade. Uma estratégia para ir contra a submissão do homem enquanto experimento social e científico:
Não acreditamos na dedução mais óbvia e fácil: de que o homem é essencialmente brutal, egoísta e estulto, como pareceria demonstrar o seu comportamento ao ruir toda a estrutura social, e que, portanto, o Häftling é somente o Homem sem inibições. Preferimos pensar que, quanto a isso, pode-se chegar apenas a uma conclusão: frente à pressão da necessidade e do sofrimento físico, muitos hábitos, muitos instintos sociais são reduzidos ao silêncio. (Levi, 1998LEVI, P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1998., p. 88)
O trabalho lento e artesanal da narrativa, com origem na tradição oral, entende a importância do encontro entre o narrador e um ouvinte atento à história que se conta e a que se faz, justamente por apostar nas transformações advindas dessa situação de troca com aquele sujeito esquecido e silenciado. É fundamentalmente uma aposta na relação com um outro enquanto potência de transformação:
Ela [a narrativa] não está interessada em transmitir “o puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (Benjamin, 1985BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 197-221., p. 205)
A ideia-força do narrador e a própria experiência do pesquisador-ouvidor se entrecruzaram e se fizeram presentes nas passagens rememoradas. Em processo constante, as cenas relatadas pelo dono da história se intercambiavam com suas reações e emoções revividas enquanto se revelava lentamente ao ouvinte que seguia em busca de outra cena, outra lembrança e mais outra experiência.
A existência se torna marca a partir de um reconhecimento social (Todorov, 1996TODOROV, T. A vida em comum: ensaios de antropologia geral. Campinas: Papirus, 1996.). Este reconhecimento é “o oxigênio do homem” e, por isso, quem é acionado para contar sua história está tendo reconhecida sua existência, extingue o tédio e ativa a lembrança, marcando a passagem do tempo. Exige-se um trabalho sobre o tempo vivido no qual interfere a cultura e as estruturas sociais subjacentes. Por isso estamos interessados no enredo, nos tipos de fios que se tecem e, à medida que se coloca a diferença entre um pesquisador e um sujeito pesquisado, em entender a estruturas que corroboram a própria rede. Narrar é, então, questionar-se também acerca das significações que tornaram aquela existência marginal, pois o tempo do outro entra em confronto com ele próprio:
É verdade, porém, que nossos ritmos temporais foram subjugados pela sociedade industrial, que dobrou o tempo a seu ritmo, ‘racionalizando’ as horas de vida. É o tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo da amizade, o familiar, o religioso… A memória os reconquista na medida em que é um trabalho sobre o tempo, abarcando também esses tempos marginais e perdidos na vertigem mercantil. (Bosi, 2003BOSI, E. O tempo e memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê, 2003., p. 53)
A narrativa encaminha-se para um espaço-tempo criado coletivamente, tal qual Walter Benjamin (1985BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 197-221.) convida a pensar. Um modo de fazer o encontro, no intento de mudar de antemão a disposição do pesquisador em campo para escutar memórias e histórias - uma também testemunha que aceita ouvir e sustentar a narração insuportável e levar adiante a transmissão simbólica e, além, quiçá inventar e esboçar um outro presente (Gagnebin, 2006GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.). Assim, desafiam-se modos de vida atuais e rígidos em determinados lugares de poder por meio da reconstrução de experiências significativas no presente - imprimem-se memória, experiência e tempo com pessoas que, pela exclusão, foram tornadas sem memória, sem tempo e sem experiência.
A técnica por si só não garante
Em campo, viam-se de um lado os pesquisadores, ávidos pela coleta de dados bem-acabados, e de outro pessoas a quem a cidadania foi negada e expropriada. Os egressos de anos de internação psiquiátrica, sobreviventes do abandono de si, com marcas desse lugar da troca zero (Nicácio, 1990NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990.), desse lugar onde o ser humano é reduzido a uma massa anômala. Alguns conseguiam testemunhar o que viveram e as mudanças, conseguiam marcar o tempo passado e o tempo presente, mas para outros a desorientação é brutal. A experiência torna-se massa bruta de indeterminação.
Aos pesquisadores havia o desafio de buscar palavras que os auxiliassem a inscrever o encontro com os beneficiários, o aspecto relacional da proximidade com uma vida tomada pelo cerceamento e, assim, pelo silenciamento. O desafio de um encontro não defensivo na prática assistencial se dá também na pesquisa em saúde, ainda mais ao pensar no perfil de beneficiários encontrados. O vivido, o expresso, tomado da relação intersubjetiva por excelência, que formaria um todo (Leclaire, 2001LECLAIRE, S. Escritos clínicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), não se ajusta bem à relação pesquisador-pesquisado usual, aquela de um objeto tomado totalmente de empréstimo das ciências naturais. E a isso foi necessário um olhar cuidadoso do grupo de pesquisadores e de cada membro, tanto no percurso nacional quanto com cada beneficiário em campo. Que destino terá, na pesquisa, a memória, o tempo e a experiência daquele beneficiário que não se enquadrar num esquema narrativo de início, meio e fim?
A exclusão é a própria marca da loucura e são excluídos aqueles que têm suas falas esvaziadas, falas incompreendidas - desagregadas, desajeitadas, silenciosas e por vezes violentas. O ato de narrar, escolhido como um dos pontos nodais deste estudo, mais do que uma coleta de dados sobre o dito objeto, traz a marca do encontro, e acaba por desvelar, sob a lógica da desinstitucionalização - nos espaços de negociação da pesquisa e com o próprio beneficiário - , o desafio perene dos pesquisadores: a reprodução da exclusão e objetificação ou a produção de novos espaços de negociação (Saraceno, 1999SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Belo Horizonte: Te Cora, 1999.).
Nesse confronto de mundos entre o pesquisador e o pesquisado, com aqueles que por vezes escapam até dos arquivos dos excluídos (Agamben, 2008AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo, 2008.), o desafio deve ser maior, sem dúvida. Ao elaborar a narrativa com fim último de coleta de dados estrita, corre-se o risco de excluir da amostra dos narrados, e da própria narrativa, aquilo que não é compreendido pelo douto ouvinte: elimina-se da amostra aqueles mais difíceis, os sujeitos ou informações que não se conformam às regras de perguntas e respostas (Gilli, 1991GILLI, G. A. Uma entrevista: a negação sociológica. In: BASAGLIA, F. (Coord.). A instituição negada. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. 285-303.).
Seguindo uma construção lógica da desinstitucionalização, houve esforço do grupo de pesquisadores, em discussões amplas, para que nesses sujeitos, alijados do corpo social, fossem investidos os maiores esforços na relação. É para eles, os excluídos dentre os excluídos, com sequelas tão profundas quanto desumanizantes que, intencionalmente, investiu-se sobremaneira.
A narrativa possibilitou que os signos e sinais experienciados pelo pesquisador entrassem como construção de dados. Um confronto de si e de si com um outro, irremediavelmente outro. Foi necessário, então, um recuo do investigador enquanto, por assim dizer, apenas pesquisador. Um certo movimento de negação que não trouxe o vazio e sim um a mais. Importante colocar que esse excesso da e na pesquisa não se dá de forma irrefletida: necessitou de investimento dos pesquisadores, sem dúvidas, em intensão.
A escolha metodológica entrou em sintonia de forma interessante e, por isso, conflituosa, com esse afã interminável da desinstitucionalização, ao fomentar a criação de estratos, liames, significações inúmeras e abertas, e tentar uma ruptura com a relação de causa e efeito simples na análise, típica do aparato psiquiátrico. Uma tentativa de movimentação e discussão do poder, em relação, almejando a construção de um saber crítico, em mudança.
À época da movimentação triestina de enfrentamento institucional do manicômio, Gilli (1991GILLI, G. A. Uma entrevista: a negação sociológica. In: BASAGLIA, F. (Coord.). A instituição negada. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. 285-303.) questionou-se sobre as soluções da pesquisa social para enfrentar os vieses inerentes a tal trabalho e as relações disso com o intuito da pesquisa: de ser adaptação social, fornecendo informações úteis para o melhor funcionamento das instituições; ou de questionamento dos poderes, inclusive os do próprio pesquisador e da ciência.
O autor aponta que as pesquisas sobre a loucura tendem a ser desenvolvidas colocando como objeto a interação dos pacientes ou a adaptação ou não do doente ao ambiente hospitalar, o que faz com que os achados sirvam para modalidades de funcionamento mais eficientes ou novas formas de integração da instituição, e garantia de adesão. Considerando que a loucura é em certa medida uma das maneiras de exclusão de um grupo social, o autor atenta-se ao fato de que as pesquisas se utilizam muitas vezes de instrumentos metodológicos que servem somente aos sujeitos que se adaptam aos instrumentos, ou seja, aos “recuperados”, porque inclusos nas mesmas regras, linguísticas inclusive, que os marginalizaram. Quando há um pesquisador um pouco mais atento, resolve voltar então sua pesquisa àqueles contestadores das regras institucionais, mas isso não o livra de esbarrar em uma engenharia social sobre os marginalizados.
Este texto intenta discutir que essa escolha, seja pelos sujeitos contestadores (das regras) seja pelos adaptados (aos instrumentos), deve ser problematizada, pois esses são frutos de expressões de poderes e estruturas (Mills, 1943MILLS, C. W. The professional ideology of social pathologists. American Journal of Sociology, Chicago, v. 49, n. 2, p. 165-180, 1943.) que incluem o pesquisador e o saber no baile. Esse tipo de questionamento, que não leva em conta o cerne da questão, se faz ainda nas pesquisas atuais do campo do sofrimento psíquico.
Abrolhar a crise, também nos instrumentos metodológicos, e contestar o papel do pesquisador e do fim em si mesmo da pesquisa, se mostrou possível e profícuo com uso da narrativa, caso sejam abertas condições de possibilidade para o enfrentamento das contradições ao mesmo tempo que se torna possível o encontro com o sujeito. Profícuo, mas não tão útil a uma engenharia social acrítica, ou pouco crítica, é preciso deixar claro.
Na desinstitucionalização, as mediações e articulações para resolução de problemas precisam ser pensadas objetivando mudanças e não negociações que mantenham um modo de operação já conhecido (Capistrano Filho; Sposati, 1993CAPISTRANO FILHO, D. C.; SPOSATI, A. Apresentação da edição brasileira. In: BASAGLIA, F. Mario Tommasini: vida e feitos de um democrata radical. São Paulo: Hucitec, 1993. p. IX-XIV.) - nas condições subjetiva e sociopolítica daquela pessoa- mudando assim até o quadro próprio da doença. Também desta maneira, a narrativa, por si só, não engendra as transformações na produção de saber e conhecimento pretendidas se não pensar ativamente em uma mudança dos envolvidos, que a posteriori também transforma a própria narrativa.' E essa foi a aposta pelas negociações intentadas em todos os momentos da produção das narrativas, colocando-se a preocupação mesma de construir conhecimento sobre a condição humana e os desafios enfrentados, que confrontassem a indigência, a incompletude, as contradições e, ainda assim, construíssem a partir dela (Gagnebin, 2006GAGNEBIN, J. M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.), sem amansá-las. Um processo delicado por envolver um sujeito que passou boa parte de sua vida ante o domínio em sua forma nua (Nicácio, 1990NICÁCIO, F. (Org.). Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec, 1990.), um sujeito do esquecimento.
No Brasil, nos primeiros anos de redirecionamento da política nacional de saúde mental, considerado um período inicial da “libertação” dos internos em grandes hospitais psiquiátricos, houve um movimento de excitação diante das denúncias sobre os fatos que culminaram na abertura das portas dos hospitais. Tais exposições tornaram visíveis, inclusive, a psiquiatria iatrogênica e a indústria da loucura. A coletânea de narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental foi importante oportunidade de reconhecimento das histórias daqueles que viveram anos de internação e que encontraram espaço de fala somente em encontros de movimentos sociais. Diversos militantes do Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil tiveram suas histórias tornadas públicas, o que revelou uma vida simples de um cidadão comum. O material elaborado por Vasconcelos et al. (2005VASCONCELOS, E. M. et al. (Org.). Reinventando a vida: narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental. Rio de Janeiro: Encarte, 2005., p. 17) apresenta:
Depoimentos heroicos, de pessoas que se viraram pelo avesso, para revisitar o baú de sua história pessoal, para mostrar aos leitores e particularmente a seus colegas de caminhada e seus familiares que, por mais dura que seja a situação de crise, é possível ter esperança, é viável sonhar com uma vida diferente, ativa, participativa na comunidade e na sociedade, mesmo sem ter a ilusão de uma cura ou de superação definitiva desta condição e marca trágica colocada pelo transtorno mental grave.
De fato, pode-se afirmar que ainda há pouco investimento em dar destaque a outros modos de expressão, ou mesmo buscar histórias relatadas pelos próprios internos que apresentavam dificuldades na linguagem oral ou mesmo que utilizavam códigos diferentes de expressão por estarem institucionalizados ou os ditos cronificados institucionais. Arthur Bispo do Rosário foi um que resistiu, com sua obra, ao silenciamento imposto pelos muros e fez sua “voz” ecoar para o mundo, mesmo tendo os quatro cantos de seu quarto-forte como barreira. E sua forma de expressão artística revelou o mundo institucionalizado de um asilo, suas relações intramuros e a riqueza de seu mundo pessoal (Birman, 2017BIRMAN, J. Voz de Deus e as mãos de Bispo: arte e loucura na escrita pictórica de Arthur Bispo do Rosário. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 786-805, 2017.).
Ao longo desses anos de intensa transformação das políticas em saúde mental, apostou-se na retomada dos laços, na garantia de que a vida em liberdade garantiria a manutenção desses testemunhos no tempo e na história. Atualmente percebe-se ainda certo silenciamento das histórias dos vencidos e não se expôs, suficientemente, os destinos daqueles que viveram anos em internações.
Diante da disputa de projetos sobre os modos de cuidar da loucura, serviços foram criados e a rede expandida. As pessoas, em sua maioria, foram submetidas a novas instituições, mas muitas ainda têm dificuldades concretas de pensar o reconhecimento, a memória e o tempo dessas pessoas.
Na produção das narrativas, coloca-se em jogo uma grande preocupação com a memória, a experiência e o compartilhar desses sujeitos, que sofrem de anos apartados e mortificados. A tarefa maior de sustentar uma verdade de si que se coloca na posição de exigência de um presente que também se torna verdadeiro enquanto luta pelo direito à existência e à manutenção de sua história viva.
Com certeza essa não é uma solução definitiva, mas uma forma de abrir possibilidades para um conhecimento sobre aquele sujeito, um modo de falar de si. A narrativa abarca um pouco dessa complexidade ao lidar com as contradições abertas pelo caminho e colocar o pesquisador num lugar de questionar o seu próprio poder dentro da estrutura social e repensar a própria estrutura social. Questionar o papel do profissional como instrumento de domínio (Basaglia, 2005BASAGLIA, F. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2005.) para que nos próprios termos da questão apareçam contidos os elementos que permitam superá-la e transformá-la.
Considerações finais
A narrativa como instrumento metodológico considerou a mudança como aspecto essencial das proposições no campo, ao entender que o sujeito, por assim dizer dito objeto de estudo, é, no entanto, reflexivo e se modifica em ato. É importante frisar o lugar do encontro, do aspecto relacional da narrativa, pois também este é questão nos processos de mudança que a Reforma Psiquiátrica intenta.
Assim, as narrativas mostraram no percurso da pesquisa, em um primeiro momento, a presença de um sujeito historicamente colocado à margem e que, agora, é convidado a existir e a contar-se, em um reconhecimento de si e do outro. Num segundo momento, a compreensão do caráter produtivo da relação entre um e um outro, por meio da linguagem e visando à mudança. E, em terceiro, um imprescindível recuo do pesquisador enquanto agente de um saber absoluto, normativo e acrítico das estruturas que o produziram. Um encontro repleto de delicadezas que segue também o curso do itinerário biográfico do processo de desinstitucionalização do dito louco.
Este artigo propõe-se auxiliar no trabalho de pesquisadores que estudam e avaliam os impactos de políticas públicas em saúde mental, levando em conta os alvos da política e a intenção de tornar radical a participação em um debate que não pode prescindir da presença de quem sempre foi afetado por essas tecnologias.
A narrativa, como proposição metodológica, trouxe à tona a importância de uma problematização crescente e incessante acerca do lugar da ciência, do pesquisador e de seu saber, pois havemos de questionar tudo em pesquisa, inclusive o próprio papel do pesquisador (Gilli, 1991GILLI, G. A. Uma entrevista: a negação sociológica. In: BASAGLIA, F. (Coord.). A instituição negada. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. 285-303.) dentro de uma cultura da tutela e da opressão. Por isso, fez-se indispensável ouvi-los - os beneficiários - mesmo aquém da linguagem, e garimpar preciosidades. Fez-se necessário também interrogar os próprios pesquisadores, tanto quanto à pesquisa em si, percorrendo um caminho coletivo e comum de reconhecimento com sentido à liberdade.
Aquele que escreve sua históriaHerda a terra das palavrasE se apossa do sentidoCompletamente!Darwich (2012DARWICH, M. A terra nos é estreita e outros poemas. São Paulo: Bibliaspa, 2012.)Referências
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ERRATA
Na apresentação “Entre desafios e aberturas possíveis: vida em liberdade no contexto da desinstitucionalização brasileira”, doi 10.1590/S0104-12902019000003, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊNo artigo “O Programa de Volta para Casa na vida cotidiana dos seus beneficiários”, doi 10.1590/S0104-12902019190435, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊNo artigo “Produção compartilhada de conhecimentos em saúde mental: o Comitê de Acompanhamento de Pesquisa”, doi 10.1590/S0104-129020190436, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊNo artigo “Construindo histórias em tessitura lenta: desinstitucionalização e narrativas em pesquisa”, doi 10.1590/S0104-129020190428, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊNo artigo “Narrativas e sentidos do Programa de Volta para Casa: voltamos, e daí?”, doi 10.1590/S0104-12902019190429, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊNo artigo “A rede embala e o ritmo da gestão embola”, doi 10.1590/S0104-12902019190443, publicado no volume 28, número 3, 2019, a seção está incorreta.Onde se lia:ARTIGOSLeia-se:DOSSIÊ
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Out 2019 - Data do Fascículo
Jul-Sep 2019
Histórico
- Recebido
28 Maio 2019 - Aceito
04 Jun 2019