A pesquisa-intervenção como pesquisa-apoio: o caso do POP RUA

Iacã Macerata José Guilherme Neves Soares André Miranda de Oliveira Sobre os autores

Resumo

Este artigo discute a produção de conhecimento no campo da saúde pública, desenvolvendo a ideia de pesquisa-apoio como uma modulação da pesquisa-intervenção participativa no campo da saúde. A pesquisa-intervenção participativa foi usada e aperfeiçoada pelo Grupo de Pesquisa Enativos, da Universidade Federal Fluminense, envolvendo a Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no campo saúde mental. Nestas experiências os problemas do campo modularam as práticas de pesquisa, cujo sentido era produzir de autonomia e aumentar o grau de participação nas práticas de saúde. Esta pesquisa utilizou-se da mesma abordagem metodológica das pesquisas-intervenções na GAM, na interface entre atenção básica e saúde mental, em uma equipe de consultório na Rua do Rio de Janeiro, chamada POP RUA. Este artigo é um misto de relato e ensaio que analisa a transformação da pesquisa-intervenção em pesquisa-apoio com o POP RUA, propondo o apoio como método para produzir conhecimento nas pesquisas qualitativas, no escopo das pesquisas-intervenção. Tal transformação é possível pois são apoiados os processos de produção de saúde entendidos como inseparáveis de processos de produção de conhecimento e produção de cuidado.

Palavras-chave:
Pesquisa-Intervenção; Pesquisa-Apoio; Metodologia Qualitativa; Consultório na Rua

Introdução

O grupo de pesquisa Enativos: Produção de Conhecimento e Cuidado (Universidade Federal Fluminense), desde que começou a pesquisar e a propor intervenções no campo da saúde o fazia através da metodologia da pesquisa-intervenção participativa, com a temática da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), na área da saúde mental. Contudo, em 2013, abrimos uma nova frente de pesquisa, agora no campo da atenção básica em saúde. Em 2012, o Ministério da Saúde instituiu as equipes de Consultório na Rua,11O Consultório na Rua (CnR) é um serviço previsto na portaria GM/MS nº 2.488/2011 (Brasil, 2011b) que institui a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) - entendida como prioridade da Rede de Atenção à Saúde. A portaria GM/MS nº 122/2011 (Brasil, 2011a), por sua vez, define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Estas equipes integram o componente de atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial e desenvolvem ações de atenção básica à saúde, de acordo com os fundamentos e diretrizes da PNAB. As equipes devem ser multiprofissionais, com o objetivo de ampliar sua capacidade de intervenção efetiva nos diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação de rua. O trabalho deve ser realizado in loco, de forma itinerante, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas com os outros pontos de atenção à saúde, de acordo com a necessidade do usuário. Dentre as atividades a serem realizadas destacam-se a busca ativa e o cuidado aos usuários de álcool e outras drogas. serviço de atenção básica que realizava mais diretamente uma articulação entre práticas de saúde mental e atenção básica. Entendemos que nestes novos serviços havia um problema caro a nosso grupo: o cuidado da experiência e a experiência do cuidar. Iniciou-se um processo de pesquisa com a primeira equipe de Consultório na Rua da cidade do Rio de Janeiro, o POP RUA, que atuava na área programática de saúde 1.0, no centro da cidade. Fora criado em 2010 ao mesmo tempo como Equipe de Saúde da Família22Tipificação de serviço de atenção básica em saúde, que consiste em uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Essas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de pessoas (2.400 a 4 mil), localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, da prevenção, da recuperação, da reabilitação de doenças e de agravos mais frequentes e na manutenção da saúde dessa comunidade. e equipe de consultório de rua,33Projeto que consiste em uma equipe cuja função é ampliar o acolhimento, articular a rede para o acesso a usuários de drogas em situação de vulnerabilidade social. Iniciado em Salvador no final dos anos 1990, o Consultório de Rua é uma equipe volante, composta de profissionais da saúde mental, da atenção básica e pelo menos um profissional da área de assistência social, que realiza uma rotina de atividades e intervenções psicossociais e educativas na rua com os usuários de drogas. Essas equipes contam com insumos para o tratamento de situações clínicas comuns, além de preservativos, cartilhas e material instrucional, material para curativos e medicamentos de uso frequente. o que lhe conferiu características inéditas, servindo de referência para a formulação das equipes de Consultório na Rua.

O POP RUA era um serviço que reunia e articulava lógicas de cuidado da atenção básica (AB), da saúde mental (SM) e da redução de danos (RD). Identificou-se, na composição desse serviço (Macerata, 2013MACERATA, I. Experiência POP RUA: implementação do “Saúde em Movimento nas Ruas” no Rio de Janeiro, um dispositivo clínico/político na rede de saúde do Rio de Janeiro. Revista Polis e Psique, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 207-219, 2013.), um hibridismo necessário ao enfrentamento da complexidade da demanda de saúde na rua, envolvendo necessidades de ordem biológica, psicológica e social. Na composição entre AB, SM e RD, há em comum uma prática territorial, um cuidado que se faz habitando o território de vida do usuário. O cuidado no POP RUA era construído e transformado pelo território. Essa relação territorial foi necessária para construir um olhar integral de saúde, que buscava borrar as fronteiras entre mental, corporal e social, e fazer do território um espaço de cuidado, um local que promovia a autonomia do usuário em seu tratamento e o envolvimento de diversos atores no cuidado. O que ligava as práticas da AB, SM e RD no POP RUA era fazer do cuidado menos um procedimento técnico especializado e mais um efeito da rede de relações que se constroem no território (Macerata, 2015MACERATA, I. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015 .).

A pesquisa-intervenção participativa que o Enativos construiu com o POP RUA foi um processo de apoio institucional. Neste artigo trataremos da modulação da pesquisa-intervenção participativa para o que chamamos de pesquisa-apoio. Pesquisa e apoio foram dimensões de uma mesma intervenção: pesquisa sobre o cuidado realizado pela equipe, ao mesmo tempo e através do apoio institucional ao POP RUA, que cuidava do processo de trabalho. Duas operações em uma única prática: produção de conhecimento e produção de cuidado. Como se deu essa modulação de uma pesquisa-intervenção participativa para uma pesquisa-apoio? O que é apoio nesta experiência? Como esta tecnologia de gestão da saúde pública produz impacto nas metodologias de pesquisa-intervenção participativa? Este artigo desdobra a coadunação entre apoiar e pesquisar, desenvolvendo as noções de intervenção e participação, balizadas pela pista cartográfica “cartografar é habitar um território existencial” (Alvarez; Passos, 2009ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS. E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 131-149.), e contribuindo com a ampliação do sentido de apoio institucional como ferramenta, a partir do sentido de território que o POP RUA nos apresenta.

Apoio, pesquisa-intervenção participativa e perspectiva cartográfica

Por pesquisa-intervenção compreende-se um método de pesquisa qualitativa participativa. Baseada em uma inflexão brasileira do institucionalismo, a pesquisa-intervenção define seu plano de atuação entre a produção de conhecimento e a transformação da realidade, buscando aceder aos processos - não somente de sujeitos e objetos, mas processos de subjetivação e objetivação (Rossi; Passos, 2014ROSSI, A.; PASSOS, E. Análise institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista Epos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, 2014.). Constrói dispositivos de intervenção nos quais se afirma o sentido político que toda pesquisa carrega (Rodrigues; Souza, 1987RODRIGUES, H. C. B.; SOUZA, V. L. B. A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. In: KAMKHAGI, R.; SAIDON, O. (Org.). Análise institucional no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. p. 27-46.), nos quais o momento de intervenção é o momento de produção teórica e, sobretudo, da produção do objeto e do sujeito do conhecimento (Rossi; Passos, 2014ROSSI, A.; PASSOS, E. Análise institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista Epos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, 2014.).

A abordagem metodológica da pesquisa-intervenção participativa nos incita a colocar lado a lado pesquisador e pesquisado. A prática de cuidado do POP RUA deixa de ser mero objeto para interferir na pesquisa. O trabalhador deixa de ser apenas o sujeito da pesquisa para ser também produtor desta. Reconhecer atividade onde tradicionalmente se identifica apenas passividade é produzir uma alteração do campo. O objeto está na posição de sujeito e um sujeito tem perspectiva e agência, fala, pensa, cria, tem demanda, é recalcitrante. Nosso desafio, na pesquisa-apoio POP RUA, foi fazer com que o objeto participasse, ganhasse protagonismo no processo, saindo da passividade de quem sofre a ação de investigação, para uma posição de produtor de conhecimento. Assim, os pesquisadores-acadêmicos não foram a campo para coletar dados sobre um objeto definido, mas para cultivar e produzir informações com os pesquisadores-trabalhadores (Sade; Ferraz; Rocha, 2013SADE, C.; FERRAZ, G.; ROCHA, J. O ethos da confiança na pesquisa cartográfica: experiência compartilhada e aumento da potência de agir. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2013.). A pesquisa se fez por uma mudança de atitude do pesquisador e daquele que é pesquisado, o que definimos como acesso e compartilhamento da experiência (Kastrup; Passos, 2016KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2016. v. 2. p. 15-41.). O reposicionamento do trabalhador foi efeito do caráter interventivo da pesquisa-intervenção (Passos; Barros, 2009). Não se conhece para depois transformar, mas se transforma para conhecer. Transformar o trabalhador em pesquisador é correlato à transformação do pesquisador em trabalhador: aquele que pesquisa passa a apoiar o trabalho do trabalhador.

A noção de apoio é proposta por Campos (2005CAMPOS, G. W. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2005.) como método de intervenção que incide sobre as relações de poder e de saber presentes nas instituições, visando um coletivo crítico que possa produzir análises sobre estas relações e assumir compromissos conjuntos. A tarefa do apoiador consiste em acompanhar os grupos e auxiliá-los a instaurar processos de cogestão que permitam transformar os processos de trabalho. O apoio é função institucional e metodologia de intervenção (Oliveira, 2011OLIVEIRA, G. Devir apoiador: uma cartografia da função apoio. 2011. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.). Ativa espaços coletivos que propiciam a interação e a construção conjunta entre os sujeitos, reconhecendo e manejando com os afetos envolvidos as relações de poder e a multiplicidade de saberes para construção de objetivos comuns, pactuações e contratos que promovem a capacidade de análise crítica dos coletivos. Na perspectiva da Política Nacional de Humanização (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS: gestão participativa e cogestão. Brasília, DF, 2009.) a cogestão visada pelo apoio se faz por meio do método da tríplice inclusão: dos diferentes sujeitos que participam dos processos de produção de dada instituição; dos analisadores sociais que resultam da primeira inclusão e que apontam os pontos críticos da instituição; e do coletivo, como dimensão relacional e afetiva em determinada experiência coletiva. O apoiador cria lateralidade e se posiciona também em lateralidade com o coletivo apoiado, permitindo assim o aumento do grau de transversalidade (Guattari, 2004GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade. São Paulo: Ideias e Letras, 2004.), de troca, de mútua transformação entre os sujeitos envolvidos no processo. Neste sentido, o apoio ajuda a instituir, a partir da tensão entre o instituído e o instituinte (Lourau, 1993LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993.), novas práticas em saúde. O apoio opera na região limítrofe entre a clínica e a política evidenciando a inseparabilidade entre o modelo de atenção e gestão, no qual estes domínios se interferem mutuamente.

A partir da análise institucional entendemos que a participação dos diferentes sujeitos envolvidos em um processo de pesquisa é diretriz ético-metodológica para ativação de processos de transformação institucionais, de abertura a processos instituintes através da produção de análises coletivas de implicação44O conceito de implicação é trabalhado por René Lourau (1993) como um conjunto ou nódulo de relações que determinado ator tem e pelas quais é tido, quando está em relação com determinado campo, instituição ou espaço social. Implicação, nesta acepção, diferencia-se de engajamento. As implicações de um sujeito veiculam sua perspectiva em determinado espaço relacional, influenciando este espaço e ao mesmo tempo sendo influenciada por ele. (Lourau, 1993LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993.). A lateralização e a criação de um espaço coletivo de composição possibilitam o aumento de graus de abertura comunicacional intra e inter grupos (Guattari, 2004GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade. São Paulo: Ideias e Letras, 2004.), em diretrizes de cogestão e autonomia dos grupos pesquisados.

Dessa forma, apoio e pesquisa-intervenção participativa são vistos e operados por uma perspectiva cartográfica, que veicula posicionamentos éticos e políticos, e diz respeito à maneira como nos posicionamos diante da produção da realidade, visando acessar, acompanhar e mapear o plano da relação e os processos envolvidos na naturalização do que é tomado como natural, na institucionalização do que foi instituído e na subjetivação dos sujeitos. A matéria de interesse da cartografia é o processo de produção. Das pistas metodológicas da cartografia,55Ver Passos, Kastrup e Escóssia (2009) e Passos, Kastrup e Tedesco (2014). Sobre a perspectiva cartográfica ver Macerata (2015). nos interessa destacar três: toda pesquisa produz realidade, logo toda pesquisa é, de uma forma ou outra, intervenção (Passos; Barros, 2009PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método cartográfico. Porto Alegre: Sulina, 2009.); cartografar é acessar o plano comum, o plano das relações, o que implica uma atenção e uma valorização da participação dos diferentes atores em determinado campo de pesquisa (Kastrup; Passos, 2016KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2016. v. 2. p. 15-41.); toda cartografia se faz pela habitação dos territórios existenciais pesquisados (Alvarez; Passos, 2009ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS. E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 131-149.), uma certa aproximação e imersão nos territórios pesquisados.

A pesquisa no POP RUA se constituiu como intervenção ao evidenciar e interferir nas relações entre os profissionais, práticas e dispositivos envolvidos no cuidado. Isso foi feito através de um processo de habitação do território em sua múltipla natureza: (1) o território geográfico do centro da cidade do Rio de Janeiro; (2) o território sanitário de responsabilidade da equipe; (3) e o território existencial que se definia pelos processos de subjetivação dos trabalhadores, usuários e outros agentes.

A noção de território é intrínseca à prática do POP RUA. Em nossas pesquisas, vimos que ali se operava uma clínica de território (Macerata, 2015MACERATA, I. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015 .), que se fazia operação de acolhimento e invenção, através de modos de relação nas três dimensões do território. Um cuidado que opera de modo territorial: para, no, com, através, do território, e que faz do cuidado mais uma rede de relações a serem ativadas ou promovidas e menos um procedimento técnico de um ator sobre o outro. O território, e não só o profissional de saúde, cuida. Investigar o trabalho em saúde dessa equipe implicava uma prática de pesquisa que se assemelhava à prática do apoio. O apoio permitiu fazer o trânsito entre as três dimensões do território no campo pesquisado: dimensão geográfica, sanitária e existencial. Ele identificou o território geográfico com o território de cuidado sanitário; incluiu no espaço de cuidado a dimensão existencial dos trabalhadores envolvidos no processo, possibilitando seus deslocamentos subjetivos através do ethos do apoio: acompanhamento, lateralização, transversalização. A questão era pesquisar práticas de cuidado que se davam por processos de territorialização. Pesquisar e intervir passava por entender o processo de pesquisa como processo de territorialização.66Para Deleuze e Guattari (1997) o território não é mera demarcação geográfica. Não pode ser tomado como realidade dada e preexistente. Ele é a dimensão processual e qualitativa do espaço, formado por “expressões territorializantes” e “funções territorializadas”. Territorializar passa então por, em um primeiro momento, dar passagem a uma expressividade situada, que é o que forma um território, que o constitui como morada, como um lugar próprio, um mundo próprio. Só posteriormente, em uma realidade já territorializada é que surgirão as funções de determinado território, onde ocorre sua formalização ou “instituição”. O território é uma assinatura expressiva que se encarna em condutas, não podendo, no entanto, ser explicada por estas. É um ethos.

O processo da pesquisa POP RUA

Demandas-encomenda-demanda

O campo desta pesquisa foi construído no final de 2012. A partir de nosso interesse em pesquisar a prática de cuidado do POP RUA, contatamos a gerente da equipe, apresentando uma proposta que envolvia pesquisar o cuidado, e, paralelamente, fomentar o fortalecimento desta prática. Nesse momento o objetivo da pesquisa era entender como os trabalhadores acessavam a experiência subjetiva de viver na rua, tal como ela ocorre no usuário do serviço. Inicialmente o projeto de pesquisa foi montado em parceria com a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão (PNH) no Sistema Único de Saúde do Ministério da Saúde, e contava com uma divisão bem clara entre o objetivo da intervenção (feita em parceria com a PNH) e o objetivo da produção de conhecimento. Essa divisão constituiu o que chamamos, até certo ponto, de Eixo A - a parte técnica do apoio - e Eixo B - a parte acadêmica da pesquisa. Tal interesse na intervenção e na parceria com a PNH se devia ao fato de um dos autores ter sido o primeiro gerente do POP RUA e, naquele momento, atuar como consultor da PNH e também fazer a pesquisa de doutorado.

A primeira conversa com a gerente do POP RUA pretendia levantar temas de trabalho na intervenção Eixo A que a equipe julgasse importantes, pois até então a pesquisa era um efeito secundário, o Eixo B. Posteriormente conversaríamos com o coletivo da equipe para tratar dessas necessidades. Estas duas conversas faziam parte de um processo de construção da encomenda de uma intervenção institucional (Lourau, 1993LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993.), na qual um ou mais componentes de uma instituição formula uma encomenda para uma equipe de intervenção, a partir de uma seleção de demandas da instituição. No caso desta pesquisa, a gerente do serviço selecionou algumas questões que poderíamos trabalhar com a equipe do POP RUA. Entre a conversa com a gerente e com o coletivo da equipe a parceria com a PNH se desfez, levando o grupo Enativos a montar um arranjo de pesquisa com três pesquisadores de campo: um doutorando, um mestrando e um aluno de iniciação científica.

A proposta foi apresentada em assembleia geral com todos os profissionais após conversa com a gerente: uma pesquisa sobre a construção de projeto terapêutico e as estratégias de cuidado no território. Entretanto, a equipe rechaçou a proposta, justificando que muitas pesquisas já haviam sido realizadas ali, e o conhecimento produzido nunca ficava como conhecimento da própria equipe pesquisada.

Não se recusou exatamente o conteúdo da encomenda feita pela gerente. A princípio, uma das razões dessa recusa dizia respeito ao “papel” do ex-gerente e pesquisador no processo de pesquisa: o papel do pesquisador seria sobreposto pela figura do primeiro gerente? Tal sobreposição diminuiria a autonomia e o protagonismo da equipe sobre a definição e desenho de seu próprio trabalho? A recusa, que durante o processo se torna um questionamento, embora estivesse centrada na figura do primeiro gerente, era a porta de entrada para uma problemática mais ampla, que abrangia o tema da autonomia e protagonismo da equipe na definição e desenho de seu trabalho, o que diz respeito, para as pesquisas em saúde, a um modo de pesquisar que poderia ser pouco participativo. Pudemos entender a recusa como uma demanda por maior participação e protagonismo da equipe, como uma exigência de lateralização no processo de produção de conhecimento. Na assembleia geral, a pesquisa teve que negociar e abrir um espaço para a participação dos trabalhadores no desenho da própria pesquisa. Realizá-la envolveria não só intervir, mas sofrer intervenção. Era necessário criar um território da pesquisa em meio ao território da equipe, necessariamente coabitado e cogerido por pesquisadores e trabalhadores. A equipe demandava legitimidade como sujeito da experiência de produção de conhecimento. O reconhecimento e legitimação desses sujeitos foi um ponto de convergência entre o pedido da equipe, o trabalho de apoio e a abordagem metodológica da pesquisa-intervenção participativa.

Formulou-se uma segunda demanda, agora coletiva: a pesquisa ajudaria os trabalhadores a serem autores, produtores de conhecimento sobre sua própria prática. Era preciso enunciar o que fora criado pela equipe até então. A experiência de campo desmontou o desenho inicial da pesquisa e a divisão entre os eixos A e B tornou-se um falso problema, pois a pesquisa seria ao mesmo tempo pesquisa e apoio.

Alguns integrantes da equipe haviam produzido, anteriormente, 16 enunciados sobre a prática de cuidado do POP RUA. A partir disso, reformulamos a proposta: a pesquisa iria apoiar o desdobramento e sistematização de diretrizes, metodologias e dispositivos do cuidado no POP RUA, tendo como produto final um documento técnico (Equipe POP RUA 2012/2013EQUIPE POP RUA 2012/2013; GRUPO DE PESQUISA ENATIVOS. Diretrizes, metodologias e dispositivos do cuidado no POP RUA. Niterói: UFF, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/33FPTps >. Acesso em: 17 out. 2019.
https://bit.ly/33FPTps...
; Grupo de Pesquisa Enativos, 2014). Recolocamos o objetivo da pesquisa: do acesso à experiência do usuário ao acesso à experiência do trabalhador. A maneira de desenhar a pesquisa se comunicava com o modo como o cuidado do POP RUA opera: deslocando o protagonismo do pesquisador ou cuidador para o território, o espaço de relação e vida dos sujeitos. O território tem importância especial para o seguimento de práticas e para a lógica de cuidado da AB, na qual o POP RUA está incluído. O básico é o território, não como mera delimitação geográfica, mas como plano da experiência concreta dos sujeitos e coletivos (Macerata, 2015MACERATA, I. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015 .). É com este básico que se dá o trabalho da AB, mas também da SM e da RD. Os usuários em situação de rua habitam o território da cidade em condições de existencialização singulares, o que exige trabalhar com a rua como um território existencial.

Os dispositivos da pesquisa-apoio

Foi construído um dispositivo de produção de conhecimento, sistematização e avaliação da prática do POP RUA que ganhou a denominação de Grupo de Intervenção com Trabalhadores (GIT), no qual eram feitas as discussões sobre a prática e que tinha três funções: pesquisar, intervir/apoiar e registrar o produto deste processo. Reunia três pesquisadores-acadêmicos da Universidade Federal Fluminense e aproximadamente 10 trabalhadores do POP RUA. O GIT se transformava periodicamente em Grupo Narrativo (GN), no qual se apresentava aos pesquisadores-trabalhadores o que fora sistematizado pelos pesquisadores-acadêmicos a partir das discussões no GIT. O GN validava e modificava esse material, processo supervisionado no grupo de pesquisa Enativos, que reunia os três pesquisadores-acadêmicos e os demais componentes do grupo de pesquisa.

O GIT funcionou quinzenalmente de abril de 2013 a março de 2014. Dentre os trabalhadores, participaram mais diretamente77Mais de oito encontros. da pesquisa cinco agentes comunitários de saúde, dois médicos, dois enfermeiros, duas assistentes sociais, quatro psicólogos, uma gerente técnica e uma residente em saúde da família. O dispositivo era aberto aos profissionais que desejassem participar, tendo como condição o compromisso de assiduidade.

Cada encontro do GIT começava com um enunciado disparador da discussão, extraído dos enunciados formulados anteriormente pela equipe sobre seu próprio trabalho. A partir disso a discussão se desdobrava. Cada enunciado se inseria em uma ou mais temáticas sistematizadas pelos pesquisadores-acadêmicos: (1) Clínica do POP RUA: (1.1) a clínica e a dimensão subjetiva do cuidado; (1.2) a clínica e a experiência subjetiva de uso de drogas; (1.3) gestão da clínica. (2) Território: (2.1) cartografia do território existencial dos que habitam as ruas; (2.2) território de produção de saúde nas três dimensões do cuidado: assistência, prevenção e promoção; (2.3) território e intersetorialidade. (3) Produção de conhecimento: (3.1) formulação e sistematização do conhecimento; (3.2) análise e aprendizagem da prática.88Categorias de análise construídas pelos pesquisadores-acadêmicos, no espaço da supervisão da pesquisa, a partir da análise de conteúdo temática (Minayo, 2013) dos 16 enunciados construídos pela equipe do POP RUA sobre sua prática.

No GIT, os pesquisadores-acadêmicos exerciam três funções: (1) manejo, que consistia em facilitar e cogerir a discussão do grupo, com perguntas e distribuição da fala; (2) anotação do dito e visível, que consistia em tomar nota do que era relativo às diretrizes, metodologias e dispositivos; (3) observação do que estava fora do regime de visibilidade e enunciação do dispositivo, isto é, o registro daquilo que não dizia respeito diretamente a prática de cuidado da equipe, por exemplo, os movimentos, as questões políticas que atravessavam o grupo, enfim, todo o entorno da prática de cuidado. O objetivo do GIT era formular diretrizes, metodologias e dispositivos do trabalho do POP RUA. Contudo, era preciso observar outros elementos importantes para o cuidado que não estavam diretamente em seu escopo. Estas três funções, a princípio pré-definidas entre os três pesquisadores, com o tempo se distribuíram, deixando de ser funções específicas de alguém. O manejo foi distribuído, partilhado inclusive com os trabalhadores, na medida em que se intensificava a grupalidade. Após os encontros, o material registrado era transformado em memória do encontro, que era a expressão do conteúdo da discussão anotado, bem como dos movimentos do grupo observados. Cada texto de uma memória passava pela revisão de cada um dos pesquisadores de campo, de modo que fosse o mais coletiva possível.

Aproximadamente a cada seis encontros do GIT era realizado um GN. Essa devolução era feita na forma do que denominamos narrativa, que já tinha um formato de sistematização da discussão em forma de diretrizes, metodologias e dispositivos. Os GN tiveram a função de validar o que a pesquisa sistematizava e analisava. A cada GN pedia-se que o coletivo fizesse o esforço de avaliar a forma de enunciar, organizar e expressar a prática de cuidado. Ao final se construía outra memória do encontro, que registrava as intervenções dos trabalhadores sobre as narrativas e os sentidos construídos e percebidos coletivamente. As narrativas eram também discutidas e validadas no espaço da supervisão, no qual se avaliava o processo e se fazia tomadas de decisão que seriam pactuadas com a equipe.

O GIT e o GN eram espaços de intervenção de mão dupla: produziam conhecimento e transformavam o trabalho desenvolvido pelos trabalhadores, mas também as práticas e conhecimentos de investigação. Eram espaços de promoção do que chamamos devir pesquisador do trabalhador e devir trabalhador do pesquisador, já que os pesquisadores participavam da sistematização do processo de trabalho e os trabalhadores do processo de produção de conhecimento. Intervenção mútua entre pesquisa e trabalho em saúde.

A coautoria do conhecimento produzido é relevante, tanto no campo de práticas da saúde pública, quanto em relação à produção de conhecimento em saúde, o que podemos chamar porção acadêmica da saúde coletiva. A aposta na lateralização e na transversalização entre as perspectivas técnicas e acadêmicas se concretiza na maneira de montar o dispositivo de pesquisa, no modo de conduzi-lo e no produto final da pesquisa. É incomum que os sujeitos pesquisados saiam do anonimato garantido por um contrato de sigilo, o que Vinciane Despret (2011DESPRET, V. Os dispositivos experimentais. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 43-58, 2011.) chama de “efeito sem nome”, que apaga a singularidade, a força expressiva de um sujeito. Muito embora sejam os profissionais da atenção os atores em contato direto com os territórios existenciais dos usuários - foco da política pública - eles geralmente cumprem mais um papel de executores do que de criadores das políticas de saúde. Marcar a coautoria dos trabalhadores na produção de conhecimento permite ressaltar o objetivo de traçar estratégias que façam composição com as singularidades de cada território.

Assim, no processo da pesquisa no campo ocorreram as seguintes etapas: contratualização/construção do dispositivo de pesquisa; discussão no GIT; construção das memórias dos encontros; construção das narrativas; devolução e validação das narrativas no GN; sistematização do documento técnico, avaliação do processo e fechamento da pesquisa.

Processo da pesquisa-apoio

Era preciso habitar o espaço da equipe e produzir outro espaço em meio a seu território. Habitamos o território do POP RUA e fizemos o POP RUA habitar o território do grupo de pesquisa, o que produziu interferências nestes dois territórios. Influenciamos o campo e o campo nos influenciou.

No primeiro encontro do GIT a discussão ganhou consistência. Muitas pessoas falaram, dando exemplos de situações concretas que diziam respeito ao tema proposto: a aproximação na rua, na minha área é assim, com o fulano por exemplo foi assim (ACS 1). Devíamos estar atentos a quem queria falar e não falou. A experiência do trabalho ganhava expressão nas falas. A psicóloga diz: isso vai ser muito interessante, tô achando muito interessante ouvir o que as pessoas acham de uma coisa que a gente faz sem se falar muito (Psicóloga 1).99Os itálicos indicam a fala transcrita tal como os trabalhadores falaram.

Sentávamo-nos em roda, cujo centro era espaço de composição do território da pesquisa, onde se compunha e se inscrevia um processo de falas e silêncios. O grupo inicia por um silêncio que abre espaço para o enunciado disparador. Ele é a primeira posição. Quando o enunciado é dito, introduz um elemento que começa a compor a paisagem. Essa primeira posição é muito aberta: uma virtualidade de caminhos imagináveis e inimagináveis podem ser seguidos a partir do enunciado. O enunciado disparador apenas enseja temas, questões, situações, possíveis abordagens. Um segundo silêncio se faz, para reparar a posição inicial que o enunciado coloca. Como se posicionar diante dele? Que caminho seguir?

O trabalho no GIT era se posicionar frente ao enunciado em sua formulação inicial, feito anteriormente pela equipe. Não em relação a este momento anterior, mas em relação ao que ele implicava na experiência presente da prática da equipe. O que este enunciado, que tem uma história, propõe à experiência agora? Podia levar um tempo até o grupo encontrar uma segunda posição que fazia relação com a primeira posição do enunciado. Isso podia acontecer na primeira fala, ou para achar essa segunda posição, era preciso discutir mais, de modo que o grupo pudesse se posicionar, introduzir um elemento que aproximasse o enunciado inicial da experiência presente. Era só a segunda posição que começava a dar sentido à primeira. Quando o grupo introduzia uma terceira posição surgia uma composição: uma relação com a primeira relação estabelecida entre a primeira e a segunda posição. Era relação com uma relação que se iniciava, a estabilização de uma unidade sequencial e que o grupo começava a compor, produzir novos sentidos que tinham um mínimo de estabilidade para expressar algo. Assim era composto o comum.

Por exemplo, o enunciado é disparado: “considerar a rua como ferramenta de apostas clínicas”. Ele configurava a posição 1. O grupo podia tomar o tema mais abrangente perguntando-se o que era fazer da rua ferramenta de apostas clínicas; ou pegar uma fração dele: a aposta clínica. Uma experiência relacionada com o atendimento na rua era colocada: o usuário tal, estava em estado avançado da tuberculose, mas não aceitava ser internado, fizemos então as seguintes estratégias (Enfermeira 1). Esta era a posição 2. A partir destas duas posições, uma terceira era introduzida: o paciente pode ser atendido morando na rua, mas e quando o paciente está muito debilitado? Internar o paciente? (Enfermeira 2). A discussão podia considerar a internação. Todas estas possibilidades levavam à posição 3: a constituição de uma relação com outra relação. O foco do GIT era chegar à posição 3 (estabilização de uma unidade sequencial), de modo que se pudesse compor algo sem cair em uma sequência que deriva infinitamente e nada cria.

O manejo facilitava o encontro desta terceira posição, uma criação coletiva, cujo material era a experiência concreta em seus dois sentidos: o que cada trabalhador tinha de experiência vivida, e a maneira como ele sentia, experimentava cada situação presente no GIT: como foi e como é decidir por apostar construir um leito para tuberculosos graves na calçada da rua ao lado do serviço? (Pesquisador-acadêmico 1). O manejo conduzia o grupo a achar essa terceira posição: mas como é isso, pode dar um exemplo? Então o problema colocado é…? Isso implica que relação com o usuário, com a gestão? (Pesquisador-acadêmico 1). O manejo tinha o sentido de estabilizar uma unidade mínima da discussão que fosse interessante, ou seja, quando uma fala ou um debate tinha mais capacidade de mobilizar, quando as pessoas falavam com mais intensidade, ou quando ao contrário havia um silêncio. Ou ainda, quando havia discordância entre pontos de vista que parecesse importante para o cuidado. O manejo traçava o que estava sendo composto na paisagem, seu rumo e seu sentido. Podia ser feito com um silenciar, um riso, um olhar, ou escutar atentamente uma fala. Estava a serviço da experiência do grupo, e não simplesmente a serviço de um tema de interesse dos pesquisadores-acadêmicos. Nosso ponto de vista devia ser solúvel para que pudesse se misturar aos movimentos do coletivo no GIT. Não significa que fazíamos intervenções neutras. Fortalecíamos alguns sentidos e buscávamos enfraquecer outros, a partir de como víamos e sentíamos a experiência do GIT. Certamente, em alguns momentos nos equivocamos por ficar surdos ao sentido da composição. Por isso, o manejo ocorria também e primeiramente consigo mesmo. Manejar seguindo as pistas do método da cartografia requeria o aprendizado de formas de atenção para consigo próprio e com as relações no grupo.

Buscávamos conectar com o que sentíamos e entendíamos ser importante para a manutenção da experiência no GIT. Isso quer dizer que o GIT não era um espaço da equipe do POP RUA: o GIT foi se construindo como espaço de composição entre pesquisadores-trabalhadores e pesquisadores-acadêmicos. Manejávamos com objetivo de fomentar um acesso à experiência do cuidar, e de uma formulação desta experiência. O GIT era a oportunidade de fazer saber a partir da prática. Cultivo e colheita.

Eram evitadas perguntas do tipo “por que?”, “o que isso te faz pensar?”, que reforçam a tendência a formar um “meta-discurso” sobre a experiência. Buscavam-se perguntas do tipo “como?” e “e então?”, que comportam maior grau de indeterminação e convidam a vagar mais amplamente pela experiência. As perguntas não deviam fomentar respostas pré-estabelecidas, mas a movimentação e coletivização das questões investigadas e a criação de novos sentidos e ideias ao produzir diferenciações, traçando novas linhas de conversa, promovendo novos agenciamentos.

O comum que buscávamos no GIT não era igual a produzir consenso. Era fazer com que a discussão fosse partilhada em partes singulares pelos trabalhadores. Ou seja, fazer cada um se sentir parte na discussão, mesmo havendo discordâncias e dissensos. Aproximar-se da experiência de cuidado e a partir daí formular diretrizes não exigia que se pensasse no ideal, ou se escondesse as falhas no trabalho, mas que se pensasse a partir dos êxitos e fracassos. A chave para sustentar o comum mesmo no dissenso era não buscar a resolução imediata de determinado impasse, mas sustentá-lo, deixá-lo em aberto, acompanhá-lo.

Dos efeitos da pesquisa-apoio

A última etapa da pesquisa foi a avaliação do processo e fechamento. Um coletivo emergiu deste território da pesquisa-apoio: o território da pesquisa habitado por trabalhadores-pesquisadores e pesquisadores-trabalhadores. O exercício coletivo de dizer, discutir e desenhar o cuidado se constituiu também como espaço de cuidado daqueles que cuidavam. Criou agenciamento coletivo de enunciação1010Um agenciamento é a articulação entre elementos heterogêneos, a partir da qual algo é criado e algo é modificado nos termos envolvidos. Nele a expressão torna-se um sistema semiótico, um regime de signos, e o seu conteúdo, um sistema pragmático de ações e paixões (Deleuze; Guattari, 1997). Toda enunciação é sempre expressão de um agenciamento, em suas dimensões de conteúdo e expressão, e é sempre coletiva: sempre feita a partir da articulação de uma diversidade de elementos, materiais e imateriais, sujeitos e objetos, regimes semióticos, técnicos etc. Na pesquisa-apoio POP RUA isso fica evidente: o enunciado é muito evidentemente produzido em um coletivo, uma experiência coletiva que permite a articulação de uma diversidade de fatores: vivenciais, técnicos, de história pessoal, lugares profissionais etc. e promoveu transformações nos trabalhadores.

Em alguns encontros do GIT não se discutiram os enunciados que diziam respeito diretamente à prática de cuidado, mas a situações complicadas que a equipe vivia com a gestão (saída em massa da equipe de saúde mental, atraso de salários e vales-transportes, troca de gerência). Na maioria dos encontros se discutiu mais do que o POP RUA: as violências da rede de saúde com os trabalhadores e usuários; a dor de ver usuários morrendo por doença ou assassinados; as ocasiões de extermínio.

O único espaço que a gente pode contar é com essa rua mesmo, com estes atores que estão lá […] quando a gente pede ajuda para o poder estabelecido… inclusive da própria secretaria… ninguém se propôs a pegar o paciente e colocar no carro… a parceria acaba sendo o estranho, o cara da banca de jornal. A gente precisa de um espaço para falar disso, a gente precisa disso. (ACS 2)

A pesquisa-intervenção participativa, atravessada por uma perspectiva cartográfica, não pode senão incluir a política e as afecções.1111Afecção aqui se diferencia de ser afetuoso, carinhoso, como ocorre no senso comum. Tem o sentido espinosano de movimento de atração e repulsa que determinado corpo sofre e que incide na relação com outros corpos. O afecto é matéria mesma da relação. A inclusão de analisadores, das discordâncias e conflitos criava condições para que o grupo se constituísse como território de expressão e formulação de problemas de toda ordem, pois o próprio problema do cuidado com o território existencial da rua é um problema de várias ordens de complexidade. Construir sentidos para o vivido, acessar a experiência, enunciar, discutir, reformular, foram a um só tempo práticas de produção de conhecimento e cuidado com e no trabalho, que tinham por efeito cuidar do trabalhador.

As situações-problemas construídas no GIT eram expressão da multivetorialidade das situações na rua. Muitos vetores presentes, muitas intensidades: alegria, dor, violência, tensão, atenção, tesão, maravilha, júbilo. Os trabalhadores lidavam com essa multivetorialidade, e enunciar o manejo no cuidado no espaço do GIT fazia com que um manejo similar devesse ocorrer no território da pesquisa-apoio: articular os vetores presentes, construir sentidos. Na avaliação do processo foi validado o efeito de cuidado da pesquisa-apoio:

Foi muito importante que nestes momentos em que não discutimos diretrizes […] vocês permitiram que a gente colocasse nossa insatisfação, o que a gente estava vivendo… nos foi permitido. (ACS 2)

Esse espaço do GIT pra mim foi para além de discutir as diretrizes. Foi um espaço onde eu consegui perceber a gente enquanto equipe, e quão importante é… Com esse trabalho da pesquisa existe um documento que respalda o que eu estou falando… é uma coisa que foi construída para além da gente. (Enfermeira 2)

A própria implicação do pesquisador, como ex-gerente, não foi impeditiva - pois ele não seria neutro o suficiente - e nem foi negligenciada - como se não fizesse parte do processo. Ter analisado esta implicação serviu para fazer dela material de trabalho da pesquisa, como chave de leitura e construção do problema: protagonismo da equipe na produção de conhecimento de seu trabalho; protagonismo do território da pesquisa, no processo de pesquisar.

Durante o período da pesquisa ocorreu uma flutuação da presença das pessoas da equipe no dispositivo de pesquisa. Contudo, o processo do grupo continuou, de maneira que era sensível seu funcionamento e os efeitos produtivos. As interrupções na continuidade da participação não se tornaram interrupções no processo. O processo ocorreu, certamente, porque houve sempre um número mínimo de pessoas da equipe, embora não tenham sido exatamente sempre as mesmas. Contudo, havia uma presença no GIT que não se confundia com o somatório das pessoas. Havia “um para aquém e além dos sujeitos” que era o índice da construção de um território existencial da própria pesquisa: neste tempo que passou por tanta mudança isso pôde se manter, e isso foi importante, e este espaço permitiu a gente poder encontrar um ponto comum (Médica 1).

Da pesquisa-apoio

A pesquisa-apoio produziu conhecimento e cuidado sobre e com a prática de trabalho da equipe. Quando a pesquisa-intervenção se dá nos processos de trabalho em saúde, o que é apoiado é o território existencial da equipe. O apoio, como propusemos em trabalho anterior (Macerata; Soares; Ramos, 2014MACERATA, I.; SOARES, J. G. N.; RAMOS, J. F. C. Apoio como cuidado de territórios existenciais: atenção básica e a rua. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, p. 919-930, 2014. Suplemento 1. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/32pQSKa >. Acesso em: 17 out. 2019.
https://bit.ly/32pQSKa...
), passa sempre por um cuidado com territórios existenciais, porque ele não visa somente e diretamente os sujeitos individuados, as representações, as formas provisórias de determinado campo de intervenção. Visa primeiramente os processos de trabalho que são também processos de subjetivação que constituem os sujeitos: pesquisadores, trabalhadores, usuários.

Se inicialmente o apoio figurava como um processo paralelo à pesquisa, logo percebemos que ele se transformou em um modo da pesquisa-intervenção no campo da saúde que qualificava a dimensão interventiva da pesquisa: um compromisso com a instituição e, mais especificamente, com a dimensão instituinte das instituições de saúde. Um método de cuidado das condições de produção do trabalho em saúde.

A ideia do apoio como ação de um especialista se enfraquece com essa experiência. Temáticas especiais podem ser trabalhadas, mas a especificidade demandada deve advir da relação com o coletivo apoiado, que se concretiza como território, ou seja, como experiência coletiva situada. A pesquisa-apoio nunca se inicia por um projeto que se manterá igual. A maneira como ela se desenha vai se fazendo no próprio processo de apoiar, sempre a partir de uma composição com o território onde intervém.

Na relação entre pesquisa e campo se cria, através de uma composição com o território existencial pesquisado, outro território que se faz plano de coemergência de pesquisador e pesquisado, sujeito e objeto. Este é o sentido da participação que ganha relevo na pesquisa-apoio: constituir um território de relação no qual participam pesquisadores e trabalhadores que passam a ter suas perspectivas e práticas transversalizadas. Composição não é soma ou simetria entre dois elementos. Composição é relação com relação, o que desloca o protagonismo dos sujeitos (nesse caso, pesquisadores ou trabalhadores) e transfere o protagonismo para a experiência comum em um espaço de relação.

O apoio, como modo de produzir saúde, é também um modo de produzir conhecimento. No campo da saúde, pesquisa-intervenção é pesquisa-apoio: porque apoia processos de produção de saúde, cuidando dos territórios existenciais onde habitam os atores envolvidos. Na pesquisa com o POP RUA, o apoio foi transformado em modo de operar da pesquisa. Modo que atualiza o sentido interventivo e participativo da pesquisa no campo da saúde.

Contaminada pelo campo, onde o cuidado era cuidado de territórios existenciais, a pesquisa produziu conhecimento apoiando o território existencial do POP RUA. Assim, apoio não é só ferramenta de gestão, mas ferramenta de produção de conhecimento e cuidado de coletivos da saúde. Apoia-se processos de trabalho, mas o processo de trabalho na saúde, seja na gestão ou na atenção, é processo de cuidado. Em cartografia temos a diretriz de não representar a realidade, mas de acessar a experiência da realidade pesquisada por quem a vive. Na pesquisa-apoio é preciso habitar e cuidar de territórios existenciais. Habitar o território, e por consequência coproduzir o território, é a via régia de acesso à experiência dos sujeitos envolvidos, pois todo acesso à experiência do outro ocorre através de minha própria experiência. Não há experiência independente de nossos modos de acesso a ela.

Referências

  • ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS. E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 131-149.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS: gestão participativa e cogestão. Brasília, DF, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jan.2011a.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 2.488, de 21 de fevereiro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out.2011b.
  • CAMPOS, G. W. Um método para análise e cogestão de coletivos: a constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2005.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 4.
  • DESPRET, V. Os dispositivos experimentais. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 43-58, 2011.
  • EQUIPE POP RUA 2012/2013; GRUPO DE PESQUISA ENATIVOS. Diretrizes, metodologias e dispositivos do cuidado no POP RUA. Niterói: UFF, 2014. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/33FPTps >. Acesso em: 17 out. 2019.
    » https://bit.ly/33FPTps
  • GUATTARI, F. Psicanálise e transversalidade. São Paulo: Ideias e Letras, 2004.
  • KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2016. v. 2. p. 15-41.
  • LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993.
  • MACERATA, I. Experiência POP RUA: implementação do “Saúde em Movimento nas Ruas” no Rio de Janeiro, um dispositivo clínico/político na rede de saúde do Rio de Janeiro. Revista Polis e Psique, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 207-219, 2013.
  • MACERATA, I. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015 .
  • MACERATA, I.; SOARES, J. G. N.; RAMOS, J. F. C. Apoio como cuidado de territórios existenciais: atenção básica e a rua. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 18, p. 919-930, 2014. Suplemento 1. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/32pQSKa >. Acesso em: 17 out. 2019.
    » https://bit.ly/32pQSKa
  • MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.
  • OLIVEIRA, G. Devir apoiador: uma cartografia da função apoio. 2011. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.
  • PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 17-31.
  • PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método cartográfico. Porto Alegre: Sulina, 2009.
  • PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. v. 2.
  • RODRIGUES, H. C. B.; SOUZA, V. L. B. A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. In: KAMKHAGI, R.; SAIDON, O. (Org.). Análise institucional no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. p. 27-46.
  • ROSSI, A.; PASSOS, E. Análise institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista Epos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, 2014.
  • SADE, C.; FERRAZ, G.; ROCHA, J. O ethos da confiança na pesquisa cartográfica: experiência compartilhada e aumento da potência de agir. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2013.

  • 1
    O Consultório na Rua (CnR) é um serviço previsto na portaria GM/MS nº 2.488/2011 (Brasil, 2011bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 2.488, de 21 de fevereiro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 out.2011b.) que institui a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) - entendida como prioridade da Rede de Atenção à Saúde. A portaria GM/MS nº 122/2011 (Brasil, 2011aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jan.2011a.), por sua vez, define as diretrizes de organização e funcionamento das Equipes de Consultório na Rua. Estas equipes integram o componente de atenção básica da Rede de Atenção Psicossocial e desenvolvem ações de atenção básica à saúde, de acordo com os fundamentos e diretrizes da PNAB. As equipes devem ser multiprofissionais, com o objetivo de ampliar sua capacidade de intervenção efetiva nos diferentes problemas e necessidades de saúde da população em situação de rua. O trabalho deve ser realizado in loco, de forma itinerante, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas com os outros pontos de atenção à saúde, de acordo com a necessidade do usuário. Dentre as atividades a serem realizadas destacam-se a busca ativa e o cuidado aos usuários de álcool e outras drogas.
  • 2
    Tipificação de serviço de atenção básica em saúde, que consiste em uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizada mediante a implantação de equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde. Essas equipes são responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de pessoas (2.400 a 4 mil), localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, da prevenção, da recuperação, da reabilitação de doenças e de agravos mais frequentes e na manutenção da saúde dessa comunidade.
  • 3
    Projeto que consiste em uma equipe cuja função é ampliar o acolhimento, articular a rede para o acesso a usuários de drogas em situação de vulnerabilidade social. Iniciado em Salvador no final dos anos 1990, o Consultório de Rua é uma equipe volante, composta de profissionais da saúde mental, da atenção básica e pelo menos um profissional da área de assistência social, que realiza uma rotina de atividades e intervenções psicossociais e educativas na rua com os usuários de drogas. Essas equipes contam com insumos para o tratamento de situações clínicas comuns, além de preservativos, cartilhas e material instrucional, material para curativos e medicamentos de uso frequente.
  • 4
    O conceito de implicação é trabalhado por René Lourau (1993)LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993. como um conjunto ou nódulo de relações que determinado ator tem e pelas quais é tido, quando está em relação com determinado campo, instituição ou espaço social. Implicação, nesta acepção, diferencia-se de engajamento. As implicações de um sujeito veiculam sua perspectiva em determinado espaço relacional, influenciando este espaço e ao mesmo tempo sendo influenciada por ele.
  • 5
    Ver Passos, Kastrup e Escóssia (2009)PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método cartográfico. Porto Alegre: Sulina, 2009. e Passos, Kastrup e Tedesco (2014)PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (Org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina, 2014. v. 2.. Sobre a perspectiva cartográfica ver Macerata (2015)MACERATA, I. Traços de uma clínica de território: intervenção clínico-política na atenção básica com a rua. 2015. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015 ..
  • 6
    Para Deleuze e Guattari (1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 4. o território não é mera demarcação geográfica. Não pode ser tomado como realidade dada e preexistente. Ele é a dimensão processual e qualitativa do espaço, formado por “expressões territorializantes” e “funções territorializadas”. Territorializar passa então por, em um primeiro momento, dar passagem a uma expressividade situada, que é o que forma um território, que o constitui como morada, como um lugar próprio, um mundo próprio. Só posteriormente, em uma realidade já territorializada é que surgirão as funções de determinado território, onde ocorre sua formalização ou “instituição”. O território é uma assinatura expressiva que se encarna em condutas, não podendo, no entanto, ser explicada por estas. É um ethos.
  • 7
    Mais de oito encontros.
  • 8
    Categorias de análise construídas pelos pesquisadores-acadêmicos, no espaço da supervisão da pesquisa, a partir da análise de conteúdo temática (Minayo, 2013MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2013.) dos 16 enunciados construídos pela equipe do POP RUA sobre sua prática.
  • 9
    Os itálicos indicam a fala transcrita tal como os trabalhadores falaram.
  • 10
    Um agenciamento é a articulação entre elementos heterogêneos, a partir da qual algo é criado e algo é modificado nos termos envolvidos. Nele a expressão torna-se um sistema semiótico, um regime de signos, e o seu conteúdo, um sistema pragmático de ações e paixões (Deleuze; Guattari, 1997)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. v. 4.. Toda enunciação é sempre expressão de um agenciamento, em suas dimensões de conteúdo e expressão, e é sempre coletiva: sempre feita a partir da articulação de uma diversidade de elementos, materiais e imateriais, sujeitos e objetos, regimes semióticos, técnicos etc. Na pesquisa-apoio POP RUA isso fica evidente: o enunciado é muito evidentemente produzido em um coletivo, uma experiência coletiva que permite a articulação de uma diversidade de fatores: vivenciais, técnicos, de história pessoal, lugares profissionais etc.
  • 11
    Afecção aqui se diferencia de ser afetuoso, carinhoso, como ocorre no senso comum. Tem o sentido espinosano de movimento de atração e repulsa que determinado corpo sofre e que incide na relação com outros corpos. O afecto é matéria mesma da relação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2019
  • Aceito
    13 Out 2019
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br