O comum e os desdobramentos na economia solidária a partir do saneamento ecológico

Gustavo Carvalhaes Xavier Martins Pontual Machado Tania Maria de Freitas Barros Maciel Michel Jean Marie Thiollent Sobre os autores

Resumo

Como as condições de saneamento no Brasil são precárias nas áreas rurais, é importante construir ações territorializadas que valorizem a cultura e fortaleçam o bem viver, baseadas na economia solidária para alcançar soluções sustentáveis​. Dardot e Laval veem o comum como um contraponto ao atual contexto político e econômico, em que os indivíduos assumem o papel de protagonistas em suas vidas e gerenciam os “comuns” para a comunidade da qual fazem parte. Partindo dessa abordagem, a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), por meio do Observatório dos Territórios Saudáveis e Sustentáveis de Bocaina (OTSS), constituiu pesquisa-ação de saneamento ecológico na Comunidade Caiçara da Praia do Sono, em Paraty, com envolvimento da comunidade durante todo o processo e, por meio de avaliação qualitativa, pôde-se entender a relação da comunidade com o comum. Como os construtores locais foram contratados como mobilizadores sociais, os recursos endógenos foram valorizados. Por meio dessa articulação, buscou-se a atuação conjunta junto aos órgãos públicos para fomentar ações que partissem da própria comunidade e políticas públicas inclusivas que colocam a sociedade como protagonista do processo. A partir do conceito de comum e de entrevistas semiestruturadas, esta pesquisa psicossocial tem como objetivo relatar o desdobramento da economia solidária no comum.

Palavras-chave:
Ecologia Social; Comunidades Tradicionais; Sustentabilidade; Pesquisa-Ação; Saneamento Ecológico

Introdução e estado da arte

Atualmente o acesso à água limpa e ao saneamento básico são considerados direitos humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), como garantia de que os indivíduos possam ter condições adequadas de saúde e bem viver (ONU, 2012ONU - Organización de las naciones Unidas. El futuro que queremos: el documento final de la Conferencia de las Naciones Unidas sobre el Desarrollo Sostenible. New York, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3rBvRsj > Acesso em: 30 set. 2018.
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). Assim, esse é considerado um direito comum a que todos deveriam ter acesso. Todavia, a realidade mundial revela que 665 milhões de pessoas ainda têm acesso a fontes de água inseguras e cerca de 2,4 bilhões de pessoas não têm acesso a serviços adequados de tratamento de esgoto (WHO, 2016WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. The sustainable development goals report 2016. New York, 2016.). Esse panorama ocorre normalmente nas áreas de vulnerabilidade social, apontando a desigualdade por trás dessa questão.

Outro ponto a ser considerado é a diferença no atendimento de condições básicas destes serviços entre a zona rural e a zona urbana. Historicamente, as condições da infraestrutura de saneamento nas áreas rurais são mais críticas (UNU-INWEH, 2010UNU-INWEH - United Nations University Institute for Water, Environment and Health. Sanitation as a key to Global Health: voices from the field. Hamilton, 2010. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2N34WGU >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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). Como a distância entre residências e a descentralização dos serviços encarece e traz complexidade para a manutenção da rede de saneamento, muitas vezes o Estado e contratos de privatização dão prioridade às áreas com alta densidade populacional, caracterizando a iniquidade de atendimento a esse serviço. Assim, os projetos para essas áreas muitas vezes partem de organizações não governamentais (ONGs) e comunidades que percebem sua carência e compreendem a importância do cuidado com o comum, como apontado por McKean e Ostrom (2011MCKEAN, M. A.; OSTROM, E. Regimes de propriedade comum em florestas: somente uma relíquia do passado? In: DIEGUES, A. C.; MOREIRA, A. C. C. (Org.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: Nupaub/USP, 2011. p. 79-95.). No entanto, essa autopercepção é complexa e, muitas vezes, deveria acontecer a partir de uma atuação intersetorial fomentada pelo Estado.

No Brasil, a situação do saneamento rural ainda precisa ser mais bem estruturada. Contudo, o Programa de Saneamento Brasil Rural (PSBR), publicado em 2019, traz inovações e busca fortalecer as comunidades locais por trazer como eixo a relevância do uso de tecnologias sociais, da capacitação local e da manutenção dos sistemas com participação das comunidades locais (Funasa, 2017FUNASA - FUNDAÇÃO NACIONAL DA SAÚDE. Coordenação de Comunicação Social. Programa Saneamento Brasil Rural. Brasília, DF, 25 jul. 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3evDj4H >. Acesso em: 11 mar 2021.
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). Assim se apresenta uma nova perspectiva de descentralização dos sistemas de saneamento e de participação social, que pode impulsionar em cada território novos fluxos econômicos a partir de uma abordagem de economia solidária e de novas relações com o bem comum.

As tecnologias sociais apontadas no PSBR são soluções sociotécnicas, participativas e com base nas demandas locais. São consideradas adaptadas, possuem sistemas não convencionais, apresentam uma alternativa à visão convencional e buscam promover a emancipação social (Dagnino, 2009DAGNINO, R. (Org.). Tecnologia social: ferramenta para construir outra sociedade. Campinas: Unicamp, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3tbBs9n >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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). A disseminação dessas tecnologias é enfatizada no Brasil nos movimentos sociais e, mais recentemente, como política pública (Dias, 2017DIAS, A. P. Tecnologias sociais em saneamento e educação para o enfrentamento das parasitosesintestinais no Assentamento 25 de Maio, Ceará. 2017. Tese (Doutorado em Ciências)-Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2017. ), com participação do Estado e de ONGs.

É nesta medida que a participação comunitária ganha centralidade na seleção e implementação de tecnologias sociais territorializadas em prol daquilo que é comum, tal como os recursos hídricos.

De forma alinhada às tecnologias sociais, quando pessoas de um mesmo território, negligenciadas pelo Estado, passam por problemas e por desafios econômicos e sociais, esses grupos são impelidos a buscar soluções e desenvolver propostas para a resolução dos problemas ali existentes. A partir desta dinâmica, a economia solidária se apresenta como uma possibilidade ao sistema capitalista (Pacheco, 2016PACHECO, A. S. V. Inovação social em organizações da economia solidária: as experiências de Brasil e Portugal. 2016. Tese (Doutorado em Sociologia Económica das Organizações)-Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016.). Sendo difundida desde a década de 1990, a economia solidária tem o intuito de trazer melhorias sociais para as pessoas e os territórios, e o objetivo de propor iniciativas de produtos e serviços solidários locais e que valorizem os fluxos endógenos. Ela pode ser fomentada ao se incentivar a formação de associações/cooperativas ou organizações civis autogeridas com valores solidários e bases coletivas. Assim, há diversas alternativas de gestão na economia solidária que podem ser integradas de forma híbrida, com diferentes atores: voluntários (não monetário), mercado (mercantil) e Estado (não mercantil) (Singer, 2009SINGER, P. Finanças solidárias e moeda social. In: FELTRIM, L. E.; VENTURA, E. F.; DODL, A. V. B. (Coord.). Perspectivas para a inclusão financeira no Brasil. Brasília, DF: Banco Central do Brasil, 2009. p. 69-78.).

É exatamente sobre a possibilidade de gerir recursos em comum e suas condições práticas e institucionais que Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) defende a gestão coletiva da administração do comum como um modelo alternativo ao capitalismo de mercado, por meio da formação de instituições auto-organizadas por membros do território, como uma alternativa ao poder do Estado e do mercado.

Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) discute profundamente a “tragédia dos comuns”, na qual os bens são expropriados em prol do capital. A “tragédia dos comuns” está relacionada a uma armadilha social na qual há um conflito entre os interesses individuais e o bem comum no uso de recursos finitos. Logo, o uso irrestrito de um recurso finito pela exploração predatória esgotaria o próprio recurso coletivo, o comum.

Tanto Dardot e Laval (2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.) quanto Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) criticam a visão de que as polaridades representadas pelas entidades “mercado” e “Estado” são suficientes para o funcionamento da sociedade.

Para Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.), o estudo em nível microssocial de diversos casos de gestão de recursos naturais de forma coletiva revelou a existência de certos recursos do “comum” que, por suas características e natureza, só podem ser geridos com racionalidade pelo coletivo, assim como outros recursos teriam características mais propícias para serem geridos de forma privada ou pública.

Dardot e Laval (2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.) possuem uma visão em certo sentido mais abrangente, já que percebem que a intervenção pública parte de uma falha de mercado. Esses autores desenvolvem uma linha de raciocínio a partir do entendimento de que o Estado realiza a produção de bens que não poderiam ser produzidos espontaneamente pelo mercado, uma vez que esse último só atende a interesses privados em consequência de um ato de compra voluntário. Ou seja, não são as características ou natureza do bem que o fazem ser melhor produzido e gerido pelo mercado ou pelo Estado, como vê Ostrom, mas o interesse ou não em seu aspecto comercial para ser produzido pelo mercado. Assim, o Estado ou outra organização social sem fins lucrativos acabam por endereçar os bens que são necessários ao bem-estar da população, o que justifica o fato dos bens públicos, em grande parte, serem fornecidos pelo Estado. Portanto, “o fornecimento de um bem pelo Estado ou pelo mercado está ligado não apenas a sua natureza, mas também a fatores políticos, culturais, sociais e históricos que não podem ser obliterados pela teoria, como faz a economia padrão” (Dardot; Laval, 2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 151).

A partir da compreensão de Dardot e Laval (2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.), partimos do pressuposto de que a atuação local, com pesquisa-ação e disseminação de tecnologias sociais aplicadas à temática do saneamento, pode fortalecer o comum e incentivar fluxos endógenos na comunidade por meio da economia solidária, com participação do Estado e das comunidades, em atuação intersetorial.

Neste contexto, na região de Paraty, Rio de Janeiro, um local de alta diversidade social e ambiental, com Unidades de Conservação e comunidades tradicionais habitando seus territórios, a entrada do turismo predatório, a partir de 1970, mudou drasticamente a relação das pessoas com o comum (Gallo et al., 2016GALLO, E. et al. Territorial solutions, governance and climate change: ecological sanitation at Praia do Sono, Paraty, Rio de Janeiro, Brazil. In: LEAL FILHO, W.; AZEITEIR, U. M.; ALVES, F. (Ed.). Climate change management. New York: Springer, 2016. p. 515-532.).

Com a entrada do turismo, ou seja, do mercado, a população e os comunitários passaram a ter amplo acesso ao capital, mas tiveram que oferecer seus locais de moradia e convívio como moeda de troca, gerando uma ruptura em muitas das relações que tinham com a natureza e entre si.

Com relação à saúde do ambiente, o que se percebe nas diversas comunidades do município de Paraty é uma ruptura no cuidado com o comum, especialmente com relação aos recursos hídricos. Se antes os comunitários captavam suas águas diretamente do rio, havia um cuidado intrínseco com as águas, pois sabia-se que elas abasteceriam a todos. A partir do momento que o turismo chega e a água passa a ser canalizada diretamente da nascente, essa relação com o comum muda drasticamente, influenciando as relações sociais e ambientais e trazendo uma ruptura nesse cuidado dos recursos hídricos (Machado, 2019MACHADO, G. C. X. M. P.. Saneamento ecológico: uma abordagem integral de pesquisa-ação aplicada na Comunidade Caiçara da Praia do Sono em Paraty. 2019. Tese (Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3rEU6Gg >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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).

Localmente pode-se perceber o que Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) discute na “tragédia dos comuns”, onde não se percebe o nexo causal do descarte de esgoto e resíduos inadequado e sua relação com a qualidade das águas, que dão no mar e que influenciam diretamente na pesca, no surf e no turismo, que são atualmente as formas de subsistências dos comunitários tradicionais (Machado, 2019MACHADO, G. C. X. M. P.. Saneamento ecológico: uma abordagem integral de pesquisa-ação aplicada na Comunidade Caiçara da Praia do Sono em Paraty. 2019. Tese (Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3rEU6Gg >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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).

Nesse sentido, cabe discutir quais as medidas de saneamento adequadas às áreas rurais, que sejam territorializadas e se adequem às condições locais, fortalecendo a compreensão do cuidado com a natureza e a valorização do comum a partir da atuação do ator coletivo.

Neste cenário de crise dos comuns com relação aos recursos hídricos, ambientais e sociais no Mosaico de Bocaina e com base nas demandas do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), foi estabelecida uma parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apoiada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), para a criação do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis de Bocaina (OTSS). O OTSS é um espaço tecnológico-político e territorial que gera conhecimento crítico e tecnologias inovadoras, especialmente tecnologias sociais, para promover o desenvolvimento sustentável e a saúde (Gallo et al., 2016GALLO, E. et al. Territorial solutions, governance and climate change: ecological sanitation at Praia do Sono, Paraty, Rio de Janeiro, Brazil. In: LEAL FILHO, W.; AZEITEIR, U. M.; ALVES, F. (Ed.). Climate change management. New York: Springer, 2016. p. 515-532.).

Um dos diferenciais deste trabalho é que as demandas de saneamento ecológico no campo de pesquisa na Comunidade Caiçara da Praia do Sono foram definidas pelo FCT, envolvendo o planejamento participativo com as lideranças comunitárias. Assim, este projeto é caracterizado como uma pesquisa-ação que aborda o saneamento ecológico em um território escolhido pelas próprias comunidades, com o seu envolvimento real e a contratação de membros da comunidade como pesquisadores e construtores, para propiciar o diálogo com outros atores do território ao longo de seu desenvolvimento e fortalecer os fluxos endógenos. Assim, o processo foi construído coletivamente envolvendo o FCT, a Associação de Moradores da Praia do Sono (AmaSono), a Fiocruz, a Funasa, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e os outros atores locais, com a premissa de que o ator coletivo, o comum, é capaz de gerar transformações locais que podem se expandir e fomentar ações globais (Gallo et al., 2016GALLO, E. et al. Territorial solutions, governance and climate change: ecological sanitation at Praia do Sono, Paraty, Rio de Janeiro, Brazil. In: LEAL FILHO, W.; AZEITEIR, U. M.; ALVES, F. (Ed.). Climate change management. New York: Springer, 2016. p. 515-532.).

A implementação de ações estruturais e estruturantes para o saneamento ecológico visou criar condições adequadas para fortalecer o bem viver a partir do comum nas comunidades tradicionais de Paraty e promover políticas públicas territorializadas e inclusivas que, por sua vez, colocam os membros da comunidade como protagonistas nas ações de cuidado em seu próprio território. O saneamento ecológico baseia-se nos princípios de autonomia e autogestão, descentralização de serviços, reciclagem de nutrientes e fortalecimento de uma economia solidária a partir do engajamento dos comunitários ao longo do processo para tomar as decisões e construir seus próprios sistemas.

Assim, ao atuar no campo do saneamento, de forma a envolver os comunitários, buscou-se resgatar uma forma comunitária de dialogar e gerir o comum. A seguir apresentamos como foi construída a metodologia de pesquisa-ação e de coleta de dados qualitativos.

Metodologia

A pesquisa-ação é um tipo de investigação social concebida e associada com ações concretas para a resolução de um problema coletivo com o qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (Thiollent, 2011THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011. ) em prol do comum. O desenvolvimento desta pesquisa tem o intuito de propor uma linha de ação contra-hegemônica, avessa à abordagem neoliberal de produção e consumo, atualmente enraizada na implementação de saneamento, que não considera os povos como detentores das respostas para seus próprios problemas.

Como abordado por Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.), os recursos devem ser geridos localmente a partir da coletividade e, para isso, é importante o fortalecimento da atuação local, incluindo os povos como atores/pesquisadores de seu próprio modo de bem viver e saber tradicional.

Ainda, para que brote uma consciência dos oprimidos, é primordial dar lugar às populações impactadas pela escassez de serviços e direitos públicos, para que as soluções possam emergir de um novo devir, de uma vontade social (Freire, 1983FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ).

Metodologicamente, o projeto de saneamento ecológico do OTSS baseia-se: (1) na pesquisa-ação (Thiollent, 2011THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2011. ) como modo de incluir os diversos atores no território na construção de soluções inovadoras a partir do comum; (2) na ecologia de saberes, valorizando todas as suas formas, tradicionais e acadêmicos, para favorecer um diálogo horizontal de todo o conhecimento (Santos, 2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 79, p. 71-94, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/3qyPMqH >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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); e (3) na reflexão crítica (Freire, 1983FREIRE, P. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. ), para fornecer uma práxis, uma ação consciente de dos atores de si e de seu território. Com base na necessidade de um diálogo constante, foi definido o uso da pesquisa-ação integral e sistêmica (PAIS) para construir soluções coletivamente baseadas em consenso, combinando o trabalho de pesquisadores universitários e comunitários (Morin, 2004MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropopedagogia renovada. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. ).

A PAIS foca na equipe atuante e nas experiências objetivas e subjetivas de cada indivíduo participante. Essa abordagem propicia uma modelagem que considera as vozes dos atores-pesquisadores-comunitários envolvidos ao longo do processo a partir da tomada de decisões, de forma dialógica e por consenso, pelo ator coletivo (Morin, 2004MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropopedagogia renovada. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. ). Por ser uma pesquisa-ação, o processo em si é não linear e acontece a partir das interações entre todos os atores com o comum (Dionne, 2007DIONNE, H. A. Pesquisa-ação para o desenvolvimento local. Brasília, DF: Liber Livro, 2007. (Série Pesquisa, v. 16).). A coleta de dados e a avaliação sistêmica ocorreu ciclicamente e exponencialmente ao longo de todo o processo a partir de pesquisa qualitativa com observação participante, da avaliação dos resultados por equipe multidisciplinar e da condução de entrevistas semiestruturadas com os comunitários da Comunidade Caiçara da Praia do Sono e atores locais para conhecer sua relação com a água e o saneamento (Machado; Maciel; Thiollent, 2017MACHADO, G. C. X. M. P.; MACIEL, T. M. F. B.; THIOLLENT, M. Uma metodologia de pesquisa-ação integral e sistêmica para saneamento em co-gestão com comunitários tradicionais, aplicada na Comunidade Caiçara da Praia do Sono. In: ACTION RESEARCH NETWORK OF THE AMERICAS CONFERENCE, 5., 2017, Cartagena. Proceedings… San Diego: Arna, 2017. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/3rDWcX0 >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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). A realização das entrevistas semiestruturadas aconteceu entre junho e julho de 2018 com nove entrevistados: três representantes de atores públicos locais e seis comunitários locais. Neste trabalho são apresentados resultados parciais, a partir de um olhar psicossocial, da compreensão do fortalecimento e dos desafios nas relações da comunidade, a partir da economia solidária e do comum.

A metodologia para análise dos dados foi a análise interpretativa. A partir da compreensão da necessidade de integrar as diversas narrativas, na classificação, o objetivo é extrair lições a partir de uma linguagem dinâmica, que garanta um retrato fidedigno ao comparar prática e teoria. Nesse sentido, os dados reduzidos em enunciados são apresentados através de linguagem jornalística, que tem a vantagem de conectar as diversas observações à realidade vivida, dando dinamismo a pesquisa e explicando, a partir de observações e falas, cada lição (Morin, 2004MORIN, A. Pesquisa-ação integral e sistêmica: uma antropopedagogia renovada. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. ). Como o processo integralmente se traduz como pedagógico, as conclusões partem de uma reflexão crítica de todo o processo.

Por tratar-se de pesquisa envolvendo seres humanos, realizada em Unidade de Conservação, o projeto de pesquisa foi submetido, avaliado e teve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (CEP/ENSP) com número de registro 1.527.081 e foi devidamente autorizada pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), com autorização para pesquisa científica (número 044/14).

A seguir apresentamos a comunidade, as ações realizadas e seus desdobramentos a partir de uma abordagem psicossocial, com os desafios inerentes e os aprendizados coletivos.

Resultados

Os resultados apresentados referem-se a informações obtidas a partir da observação participante e das entrevistas semiestruturadas e, por razões éticas, nossos informantes são identificados por pseudônimos. As vozes das partes interessadas demonstram a cultura do comum e as transformações que aconteceram após a dinâmica da pesquisa-ação, a partir de um olhar psicossocial. Os resultados foram introduzidos detalhadamente sob os seguintes tópicos de interação com a comunidade: (1) o território; (2) as ações conduzidas; e (3) os desdobramentos na economia solidária e no Comum. Na discussão, são apresentados os desafios do comum e da participação da comunidade.

O território

A Comunidade Caiçara da Praia do Sono faz parte da Reserva Ecológica do Estado de Juatinga (REJ/Inea) é uma área protegida com cerca de 100 quilômetros quadrados no município de Paraty, estado do Rio de Janeiro. Na comunidade tradicional, vivem 314 nativos: 177 homens e 137 mulheres. As pessoas que nasceram e cresceram na região da reserva - independentemente se viveram lá durante toda a vida ou não - são consideradas “nativos” ou “caiçaras”. Portanto, o sentimento de pertença e identidade está profundamente ligado ao território. Essas pessoas vivem de pesca artesanal, agricultura de subsistência e, mais recentemente, do turismo (Igara Consultoria em Aquicultura e Gestão Ambiental, 2011Igara Consultoria em Aquicultura e Gestão Ambiental. Definição de categoria de unidade de conservação da natureza para o espaço territorial constituído pela reserva ecológica da Juatinga e área estadual de lazer de Paraty Mirim: produto 2 - caracterização ambiental, socioeconômica e fundiária: volume I - caracterização socioeconômica e fundiária. Angra dos Reis: Igara; Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Ambiente, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3rB8MpU >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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).

Por estar em uma reserva ecológica de alta conservação ambiental desde 1970, a região passou por práticas de turismo predatório que mudaram profundamente a forma de lidar com o comum. Ações de grilagem, apropriação das terras e tentativas de remoção dos comunitários fomentaram a união da comunidade e o comum para resistir no território. No entanto, a entrada do capital também propiciou uma fragilidade das relações sociais no cuidado com a natureza e com os recursos hídricos.

A maioria das habitações na Praia do Sono tem o esgotamento doméstico separado por tubulações distintas, em esgotos provenientes das cozinhas e de limpeza (águas cinza) e outra tubulação para a parcela proveniente do banheiro, com material fecal (águas de vaso sanitário). As águas de vaso sanitário em sua maioria são conduzidas para sumidouros e infiltradas no solo. Já as águas cinza são preferencialmente conduzidas para as coleções hídricas diretamente, sem tratamento. O esgoto proveniente das cozinhas, em sua maioria, não apresenta caixa de gordura e, quando há, a manutenção não é realizada periodicamente (Machado et al., 2018MACHADO, G. C. X. M. P. et al. Ecological sanitation: a territorialized agenda for strengthening traditional communities facing climate change. In: LEAL FILHO, W.; Freitas, L. E. (Org.). Climate change adaptation in Latin America: managing vulnerability, fostering resilience. New York: Springer , 2018. v. 1. p. 103-129. ).

Como Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) aborda na “tragédia dos comuns”, com a entrada de recurso abundante por parte do turismo, a atuação comum se enfraquece em relação ao cuidado com os recursos hídricos. Dessa forma, em certos aspectos, a própria comunidade passou a se dividir em termos de atuação e distribuição de recursos. As lideranças, compreendendo essa fragilidade na fragmentação do cuidado com o comum, levantaram essa necessidade junto ao FCT para a organização do projeto de saneamento ecológico na Praia do Sono e a propagação de novas formas de atuação.

As ações conduzidas pela pesquisa-ação de saneamento ecológico

O intuito foi realizar a pesquisa-ação com o máximo de envolvimento da comunidade e dos atores locais, a partir de atuação intersetorial, para fomentar políticas públicas e ações comunitárias. Para isso, foram feitos planejamentos e ações coletivas com a participação dos comunitários e dos atores locais ao longo dos seguintes processos: (1) caracterização do território e escolha da tecnologia com a comunidade; (2) ações de educomunicação ambiental na escola; (3) construção de módulos na escola, em nove casas e na associação de moradores, com contratação dos construtores locais como mobilizadores sociais; (4) rodas de conversa e reuniões de alinhamento para acompanhamento do projeto com a comunidade e os atores locais; (5) disseminação em outros territórios com desenvolvimento de cartilha construtiva e rodas de conversa; e (6) entrevistas semiestruturadas com comunitários e atores locais.

Com relação ao saneamento ecológico, o protótipo foi desenvolvido a partir de um diálogo constante entre a engenharia sanitária e a permacultura, representando uma associação entre a técnica e a sabedoria popular de forma horizontal. Houve consenso de que as alternativas sugeridas deveriam enfatizar a autonomia da população local, promovendo a capacitação e a disseminação de uma tecnologia social facilmente reaplicável (Gallo et al., 2016GALLO, E. et al. Territorial solutions, governance and climate change: ecological sanitation at Praia do Sono, Paraty, Rio de Janeiro, Brazil. In: LEAL FILHO, W.; AZEITEIR, U. M.; ALVES, F. (Ed.). Climate change management. New York: Springer, 2016. p. 515-532.).

Assim, optou-se por atuar com o conceito de saneamento ecológico, que consiste em reconhecer as excretas e as águas residuais das casas como recurso disponível para reuso, ao contrário do saneamento convencional, que enxerga os mesmos como rejeito. Passou-se do padrão culturalmente aceito “uso-descarga-esquecimento” para o olhar de proteção dos recursos “uso e reuso”, com o envolvimento dos moradores no processo de compreensão, construção e manutenção do processo. Esses sistemas promovem o correto manuseio e uso das excretas humanas e de animais como produtos, garantindo a segurança sanitária e fechando o ciclo dos nutrientes (Machado, 2019MACHADO, G. C. X. M. P.. Saneamento ecológico: uma abordagem integral de pesquisa-ação aplicada na Comunidade Caiçara da Praia do Sono em Paraty. 2019. Tese (Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3rEU6Gg >. Acesso em: 11 mar. 2021.
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).

Como Tecnologia Social (TS) selecionada para implantação no projeto, em vez de um sistema linear, pactuou-se um sistema de ciclo fechado da água e dos nutrientes com base no saneamento ecológico. O sistema, denominado tanque de evapotranspiração, consiste de uma caixa selada e utiliza o esgoto como matéria-prima, com nutrientes e água para o solo, para gerar produtos (bananas) e retornar a água para a atmosfera via evapotranspiração, como apresentado na Figura 1:

Figura 1
Tanque de evapotranspiração

A Escola Municipal Martim de Sá da Comunidade Caiçara Praia do Sono foi escolhida na primeira fase por sua centralidade na comunidade e por seu poder simbólico, adequado para a difusão desta prática por meio da educação ambiental (Gallo et al., 2016GALLO, E. et al. Territorial solutions, governance and climate change: ecological sanitation at Praia do Sono, Paraty, Rio de Janeiro, Brazil. In: LEAL FILHO, W.; AZEITEIR, U. M.; ALVES, F. (Ed.). Climate change management. New York: Springer, 2016. p. 515-532.). A partir desse pressuposto, as ações estruturantes e estruturais para implantação do primeiro módulo de saneamento ecológico na Escola Municipal Martim de Sá, em Paraty (RJ), se deram de forma a instigar a participação por meio da inclusão dos atores interessados em cada ação para o fortalecimento da consciência coletiva.

A segunda espiral da pesquisa-ação implementou módulos de saneamento ecológico nas casas dos moradores e um módulo na associação de moradores da Praia do Sono, com discussões e intervenções de junho de 2014 a dezembro de 2018.

Verificou-se, por meio do contato com a comunidade e com os diversos atores locais, a necessidade de focar em ações estruturantes, formativas, não só para a aprendizagem da nova tecnologia social, mas também que permitissem o desenvolvimento de uma nova cultura hídrica a partir de uma mudança na relação dos indivíduos com o comum, compreendendo a relevância do uso mais sustentável da água, inclusive para manter o turismo e pesca.

Os desdobramentos na economia solidária e no comum

Durante a construção dos módulos de saneamento, os construtores comunitários foram contratados para transferir a tecnologia social por meio de uma ecologia de saberes efetiva e para serem treinados como agentes multiplicadores em construções futuras, seja como parte do projeto seja por meio de outras iniciativas, da sociedade civil e/ou do poder público.

Assim, os construtores foram envolvidos como membros participantes da equipe multidisciplinar e fizeram parte do processo de tomada de decisão na obra, de diálogo com a comunidade, de planejamento das atividades e de avaliação do processo, contribuindo com o aprendizado e com a reflexão crítica, como pode ser visualizado nas suas falas:

O legal também foi que a gente aprendeu esse negócio aí, né? (Carlos)

E agora a gente pode fazer outras fossas, né? (Roberto)

Os aprendizados são muitos. Principalmente, para mim, foi um aprendizado grande, né? De eu ser um comunitário […], e eu tá trabalhando hoje junto com uma equipe técnica. Que coisa. Então, tá sendo uma troca, né? Porque isso, isso que é coisa, porque ninguém sabe tudo, né? (Rafael).

Como Santos (2007SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 79, p. 71-94, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://bit.ly/3qyPMqH >. Acesso em: 10 mar. 2021.
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) ressalta, é a partir de uma constelação de saberes e de uma abordagem não colonizadora que podemos construir novas ações, contra-hegêmonicas, que efetivamente valorizam o diverso.

Na observação participante e nas entrevistas pôde-se captar os seguintes elementos com impactos positivos nos fluxos endógenos e na valorização da economia local: (1) incubação social, pela contratação de mão de obra local e geração de riqueza na comunidade com a formação dos construtores como multiplicadores sociais; (2) impacto no turismo local e na economia solidária, pelos módulos de saneamento ecológico passarem a fazer parte das visitas do turismo de base comunitária que têm emergido, como pode ser comprovado nas seguintes vozes dos próprios comunitários participantes: o saneamento faz parte agora do nosso roteiro (Pedro) e jamais a gente poderia imaginar que uma fossa fosse entrar no roteiro turístico de uma comunidade caiçara (Olavo); (3) na geração de alimento no território, a partir da própria tecnologia de saneamento que gera bananas e outros frutos, utilizando o esgoto como matéria-prima, como comunitário ressalta: a banana tá aí para comer. Boa, né? Você vai produzir alimento com o teu… com o teu dejeto, que você tá transformando ele em problema, ele se transforma em solução (Guilherme);e (4) na mobilização dos comunitários para construírem por si: e outras comunidades em si, né, procurando a gente, procurando para querer saber como faz, como é que é feito (Luiza), conforme fala de entrevistado publicada em Machado et al. (2018MACHADO, G. C. X. M. P. et al. Ecological sanitation: a territorialized agenda for strengthening traditional communities facing climate change. In: LEAL FILHO, W.; Freitas, L. E. (Org.). Climate change adaptation in Latin America: managing vulnerability, fostering resilience. New York: Springer , 2018. v. 1. p. 103-129. ).

Como Singer (2009SINGER, P. Finanças solidárias e moeda social. In: FELTRIM, L. E.; VENTURA, E. F.; DODL, A. V. B. (Coord.). Perspectivas para a inclusão financeira no Brasil. Brasília, DF: Banco Central do Brasil, 2009. p. 69-78.) demonstra, é a partir da valorização dos fluxos endógenos e da construção de cooperativas e associações que se pode construir possibilidades de economia solidária, como percebido pelos próprios comunitários:

Quando a gente vê, hoje, a comunidade, lá tem sete pessoas que sabem como é que funciona um saneamento, porque trabalharam com isso, né?! […] Quando acabar, se alguém quiser fazer tanto dentro da comunidade, tanto fora, eles já tão capacitados para isso […]. Se um dia a prefeitura resolver fazer, já tem quem contratar. Então isso é formação, né?! (Pedro)

Um ponto de virada, visto que o projeto teve financiamento público e apoio da prefeitura em certos momentos, foi a mudança da consciência de certos moradores sobre o cuidado com seus resíduos e esgoto, como é o caso de uma moradora dona de camping que fez uma rifa e se baseou no apoio do coletivo para construção de seu sistema, contratando construtor que foi capacitado pelo projeto: A gente fez uma rifa lá em casa, no camping, e muita gente comprou. E a gente conseguiu construir com o dinheiro da rifa, praticamente. […] A gente viu o tanto de pessoas que compravam porque gostavam da ideia (Milena).

A seguir, temos a percepção dos comunitários a partir da troca de experiência, com uma nova percepção do cuidado com os recursos hídricos e com o comum:

A maioria de nós faz fossa com tijolos, mas não tem fundo, que polui o chão, agora a gente se envergonha, porque nós aprendemos a maneira correta de tratar nosso esgoto. (Olavo)

Agora eu tenho vergonha de jogar meu esgoto no buraco, porque sei que posso fazer diferente. (Aloisio)

Da porcaria nasce o alimento, né? […] Agora que você falou é isso mesmo. Do lixão nasce uma flor. (Guilherme)

Ah, eu quero muito aprender, sabe?! Então chamou a atenção das pessoas, sabe?! Então acho que isso já é uma mudada na cabeça das pessoas (Luiza).

Com relação ao comum, McKean e Ostrom (2011MCKEAN, M. A.; OSTROM, E. Regimes de propriedade comum em florestas: somente uma relíquia do passado? In: DIEGUES, A. C.; MOREIRA, A. C. C. (Org.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: Nupaub/USP, 2011. p. 79-95.) ressalta que nem sempre a gestão coletiva acontece com facilidade e muitas vezes o grupo de indivíduos interessados em proteger um recurso em comum não sucedem no estabelecimento das regras pela simples falta de capacidade de comunicar e estabelecer confiança entre si. As condições sociais que favorecem ou não a convivência e os acordos práticos precisam ser consideradas. Contudo, é a partir dos indivíduos engajados da comunidade que novas relações coletivas podem acontecer, como ressaltado pela fala da liderança:

A gente tá transferindo a responsabilidade pra outras pessoas, né, construírem pra gente. Com isso a gente despolitiza o processo […]. E quando a gente vê que um projeto como o que a gente tem discutido, que é esse projeto nosso, o de saneamento, é um deles, tem essa lógica de a gente protagonizar […] aquela política. Isso é muito importante […]. Que seja com três, duas lideranças. […] Porque, assim, quando a gente começa um movimento, não é muito fácil. É bem difícil, né, das pessoas se empoderarem, acreditarem. (Pedro)

Considerações finais

No processo de pesquisa-ação integral e sistêmica, as discussões e atividades realizadas nas diversas reuniões e visitas propiciaram informações relevantes quanto à concepção de todos os atores sobre a problemática de saneamento na comunidade, suas causas e possíveis soluções (Machado et al., 2018MACHADO, G. C. X. M. P. et al. Ecological sanitation: a territorialized agenda for strengthening traditional communities facing climate change. In: LEAL FILHO, W.; Freitas, L. E. (Org.). Climate change adaptation in Latin America: managing vulnerability, fostering resilience. New York: Springer , 2018. v. 1. p. 103-129. ). A análise qualitativa trouxe uma percepção sistêmica sobre os desafios e uma compreensão macro e psicossocial das resistências internas na comunidade e nos atores locais.

Apesar do fomento à participação social a partir do comum, houve muitos desafios em relação à interação da comunidade ao longo de todo o processo. Além da falta de participação, houve muitas críticas ao processo, sobretudo a moradores que não iam às reuniões e que, mesmo recebendo intervenções em suas moradias, não se responsabilizaram pela manutenção, acreditando que a responsabilidade seria do projeto de pesquisa-ação. Cabe ressaltar que essa falta de engajamento também foi percebida nos atores locais.

Como Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) destaca, quando uma comunidade vislumbra implementar benefícios coletivos, os desafios se evidenciam, e se os benefícios são para todos, independentemente do esforço individual, isso pode gerar desmotivação em cooperar com as atividades em prol do comum.

Esse é um fato que vem sendo discutido especialmente com relação ao turismo predatório, pois o enriquecimento financeiro privilegia alguns, mas o comum e o território são prejudicados. Neste ponto, Dardot e Laval (2017DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2017.) ressaltam o risco da “tragédia dos comuns”. Os bens comuns são muito sensíveis e, ainda que estejam de certa forma protegidos nas mãos de comunidades tradicionais, podem a qualquer momento colapsar, uma vez que o comportamento egoísta e maximizador de lucros é um produto social, não estando essas comunidades imunes a este tipo de comportamento. Portanto, os comuns são instituições que possibilitam a gestão comum, mas isto ocorre apenas se estiverem de acordo com regras e limites de vários níveis estabelecidos pelos próprios indivíduos envolvidos na gestão coletiva. É necessário que as regras estejam bem adaptadas às necessidades e condições locais, além de estar em conformidade com os objetivos em questão.

Essa realidade se instaura e o próprio incomodo da comunidade com o acúmulo do capital, como pode ser visualizado na seguinte fala: Porque com a chegada do turismo, as pessoas ficam muito individual, né, então, não pensa mais coletivamente como era antes […]. Não tem mais aquela cooperação um do outro de um ajudar o outro, né? (Rafael).

A partir dessa abordagem, percebe-se que os bens comuns são objeto de extrema atenção, pois podem ser explorados individualmente, e há risco de diminuição ou esgotamento global se os indivíduos envolvidos na sua gestão priorizarem o benefício pessoal em detrimento do coletivo. No entanto, Ostrom (2000OSTROM, E. El gobierno de los bienes comunes: la evolución de las instituciones de acción colectiva. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2000.) coloca que esses bens geridos coletivamente podem permanecer de forma duradoura e eficiente, como realmente já foram, em alguns casos, por centenas ou milhares de anos, dependendo da organização social coletiva por detrás deles. Este é o caso da gestão feita por camponeses e comunidades tradicionais, implicada em uma ação coletiva auto-organizada e autogovernada.

Mesmo com os desafios ao longo do processo, pode-se constatar que houve ganho de consciência de membros da comunidade e atores locais; no entanto, percebe-se que existe um tempo necessário para compreensão e engajamento no processo, conforme a fala a seguir:

A partir desse projeto, começou a ter uma discussão que nunca havia sido feita, a respeito de tratamento de água, a respeito de sistema de esgoto. A gente não sabia, o pessoal daqui não sabia nada sobre isso […]. Hoje, qualquer um que mora aqui que participou das reuniões […] sabe como é que vai desenvolver uma fossa dessa. (Julia)

Esse ganho de consciência, inclusive sobre de quem é a responsabilidade para realizar o saneamento, demonstrou que grande parte dos entrevistados, após quatro anos de intervenções e diálogo, consideram que a responsabilidade é de todos, do indivíduo e do poder público, e que ambos têm que se posicionar para cuidar dos territórios, como demonstrado na seguinte fala:

Cara, eu acho que a responsabilidade é de todos nós. Porque a gente tá muito acostumado a falar que a responsabilidade é do poder público. Mas a responsabilidade é nossa. Sabe, porque… Quem gera esses dejetos? Quem gera essa coisa sou eu. Então eu tenho por obrigação cuidar disso. (Rafael)

Como o ator coletivo partilhava de muitas vozes e percepções diferenciadas, estabelecer um comum abrangente e inclusivo se mostrou um desafio e ao mesmo tempo uma oportunidade de mudança de visões sobre o saneamento, sobre a solidariedade e sobre como cuidar dos bens comuns.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2020
  • Aceito
    07 Ago 2020
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br