Resumo
Este artigo traz um breve relato e um comentário acerca de uma experiência em curso na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais. Desde 2014, esse programa tem promovido o diálogo entre os saberes dos povos afro-brasileiros e indígenas e o conhecimento acadêmico. Tendo como mote inicial a caracterização do modo de vida quilombola feito por Maria Luiza Marcelino, Zeladora do Centro Espírita Caboclo Pena Branca, em Ubá (MG), descrevemos como se deu esse encontro interepistêmico que colocou em diálogo o conhecimento científico e os saberes orientados pelas entidades espirituais da Umbanda (caboclos, pretas e pretos velhos). As noções de cura e adoecimento, muito além do horizonte delimitado pela biomedicina, permearam a interlocução entre esses dois universos.
Palavras-chave:
Encontros interepistêmicos; Quilombos; Umbanda
Abstract
This article brings a brief report and comment about an ongoing experience at the Federal University of Minas Gerais (UFMG), within the Transversal Program in Traditional Knowledge. Since 2014, this program has promoted dialogue between the knowledge of Afro-Brazilian and indigenous peoples and the academic knowledge. Taking as our starting point the characterization of the quilombola way of life by Maria Luiza Marcelino, caretaker of the Caboclo Pena Branca Spiritist Center in Ubá (MG), we describe how this inter-epistemic encounter took place, which brought into dialogue scientific knowledge and the knowledge guided by the Umbanda spiritual entities (caboclos, pretas and pretos velhos). The notions of healing and illness, far beyond the horizon delimited by biomedicine, permeated the interlocution between these two universes.
Keywords:
Inter-epistemic encounters; Quilombos; Umbanda
Acolher os saberes tradicionais na universidade
Em 2014, com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) coordenado pelo professor José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) deu início a uma iniciativa que se consolidaria dois anos mais tarde, sob a denominação de Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais. Esse programa permite que estudantes de graduação e de pós-graduação se aproximem dos saberes das comunidades tradicionais (de matriz afrodescendente, indígena e popular).11O professor José Jorge de Carvalho criou o Encontro dos Saberes na Universidade de Brasília em 2010, colocando em diálogo os saberes acadêmicos e os tradicionais. Disponível em: https://inctinclusao.com.br/encontro-de-saberes/encontro-de-saberes. Acesso em: 2 jun. 2022.
Até 2022, o Programa recebeu mais de setenta mestres e mestras, que fomentaram práticas pluriepistêmicas de ensino, aprendizagem e pesquisa.22Todas as informações sobre os cursos encontram-se disponíveis em: https://www.saberestradicionais.org. Acesso em: 2 jun. 2022. A Pró-Reitoria de Graduação garante os recursos para o pleno acolhimento dos mestres convidados e atende às diferentes demandas dos cursos. Os eventos acontecem sobretudo em espaços propícios às interações e aos modos de transmissão oral intrínsecos aos saberes tradicionais, bem como à realização de atividades que envolvem cantos, danças, construção arquitetônica e criação de diferentes artefatos (tambores, pífanos, miçangas e objetos de cerâmica). A iniciativa conta especialmente com duas casas indígenas situadas no Jardim Mandala, na Faculdade de Educação da UMFG (uma construída pelas mestras Xakriabá, outra pelos Maxakali) e espaços ao ar livre na Estação Ecológica da UFMG, incluindo sua mata - que já abrigou um curso oferecido por mães e pais de santo do candomblé e zeladores da umbanda em torno do reconhecimento das espécies ali existentes e presentes na vida dos terreiros.
Mais de cinco mil estudantes já passaram pelas nove formações transversais da UFMG. No âmbito dos Saberes Tradicionais, no período de 2016 a 2021 foram oferecidas 24 disciplinas que tiveram 1.125 alunos matriculados. Para sustentar essa oferta tão ampla e diversificada, contamos com uma rede de professores parceiros provenientes de diferentes departamentos. Desde sua criação, o Programa teve a participação de 31 docentes de áreas de conhecimento variadas e distribuídos em 12 unidades (Arquitetura; Belas Artes; Ciências Biológicas; Ciência da Informação; Educação; Educação Física, Fisioterapia e Terapia Educacional; Enfermagem; Engenharia; Filosofia e Ciências Humanas; Geociências; Letras; Música). Quanto aos alunos, parte significativa se origina das áreas de Ciências Humanas, Educação, Letras e Artes, mas nos dois últimos anos notamos um aumento da participação de alunos de outros cursos, como o de Ciências Socioambientais e Biológicas.
O professor parceiro tem o papel de iniciar concretamente o protocolo interepistêmico - sempre particular e situado - que inaugura uma dimensão transdisciplinar para as novas práticas de ensino-aprendizagem que serão instauradas. Como escreveram José Jorge de Carvalho e Letícia Costa Rodrigues Vianna, além de estabelecer a interface entre os mestres (em sua maioria polímatas, detentores de saberes diversos) e o conhecimento acadêmico especializado, o professor parceiro se engaja em uma inovadora relação triádica:
A transmissão mais óbvia é a do mestre para os estudantes: lançando mão de sua pedagogia específica, o mestre transmite o seu saber, de acordo com a ementa que foi construída com a ajuda do professor parceiro. O segundo nível de transmissão ocorre, de um modo menos perceptível e formalizado, entre o professor parceiro e o mestre. Este foi convidado a ensinar um saber desconhecido na academia e ao fazê-lo exercita a polimatia, princípio de articulação do conhecimento que pode ser tomado como equivalente, na academia, da formação transdisciplinar. Como em um processo análogo a uma iniciação, o professor parceiro tem a chance rara de interagir com alguém que trilhou o caminho integrador do conhecimento a que damos o nome de transdisciplinaridade. Sintetizando, podemos dizer que, para os estudantes, o mestre realiza uma transmissão temática; para o professor parceiro ele oferece uma transmissão epistemológica (Carvalho; Vianna, 2020CARVALHO, J. J. de; VIANNA, L. C. R. O Encontro de Saberes nas universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos. Mundaú , n. 9, p. 23-49, 2020., p. 43).
Para os efeitos deste artigo, vamos nos deter em um dos encontros que tivemos com Maria Luiza Marcelino, liderança do quilombo Namastê e Zeladora do Centro Espírita Caboclo Pena Branca, em Ubá (MG).33Este artigo insere-se no âmbito da pesquisa “Imagens e saberes contra-coloniais”, desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de Bolsa de Produtividade. Ao adotar o ponto de vista do professor parceiro, não nos cabe desenvolver nenhum tipo de interpretação ou sobrecodificação do saber apresentado pela mestra que viesse a recobri-lo com termos habitualmente manejados pela academia. O desafio para o professor parceiro consiste em escapar da grade disciplinar e se lançar em uma prática pedagógica transdisciplinar e descolonizadora (não mais regida pela “mono-episteme” eurocêntrica). Hoje, as universidades que sustentam os encontros de saberes promovem uma inclusão que é étnico-racial, política, pedagógica, administrativa-institucional e epistêmica (Carvalho; Vianna, 2020CARVALHO, J. J. de; VIANNA, L. C. R. O Encontro de Saberes nas universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos. Mundaú , n. 9, p. 23-49, 2020.).
Ao apresentarem o dossiê que a revista Mundaú dedicou aos Encontros de Saberes realizados por diferentes universidades brasileiras, Edgar Barbosa Neto, Isabel de Rose e Marcio Goldman (2020BARBOSA NETO, E. R.; ROSE, I. S. de; GOLDMAN, M. Encontros com o “Encontro de Saberes”. Mundaú , Maceió, n. 9, p. 12-22, 2020.) retomaram a reivindicação de Isabelle Stengers (2017STENGERS, I. Reativar o animismo. Chão da Feira , Belo Horizonte, Caderno de Leituras n. 62, 2017.) em torno da reativação do animismo. A filósofa afirma que, mesmo consciente de estar situada no domínio daqueles que um dia fizeram a divisão entre os que vivem isolados em um “mundo mudo, cego, mas cognoscível” e os “Outros” (os que vivem em companhia das divindades e dos espíritos) ela busca, ainda, estabelecer pontes entre sujeitos e mundos heterogêneos (Stengers, 2017STENGERS, I. Reativar o animismo. Chão da Feira , Belo Horizonte, Caderno de Leituras n. 62, 2017., p. 3). Os organizadores do dossiê alertam, contudo, que o empenho em fazer conexões não está livre de desequilíbrios e tensões quando se propõe encontros entre o conhecimento científico e os saberes tradicionais. Aqueles “Outros” a quem queremos acolher podem perfeitamente questionar as razões e as condições que dispomos para promover tal encontro (Barbosa Neto; Rose; Goldman, 2020BARBOSA NETO, E. R.; ROSE, I. S. de; GOLDMAN, M. Encontros com o “Encontro de Saberes”. Mundaú , Maceió, n. 9, p. 12-22, 2020.). Entretanto, isso não impede que a divisão entre “Nós” e “Eles” possa ser transformada em um “contraste ativo, com poder de afetar, de produzir pensamento e sentimento” (Stengers, 2017STENGERS, I. Reativar o animismo. Chão da Feira , Belo Horizonte, Caderno de Leituras n. 62, 2017., p. 1).
Do relato autobiográfico à aula no Jardim Mandala
Maria Luiza Marcelino esteve conosco pela primeira vez em 2017, no curso “Confluências quilombolas contra a colonização”, ao lado dos mestres Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo), do quilombo Saco Curtume, e Arnaldo de Lima, do quilombo Custaneiras (ambos no Piauí). Desse primeiro encontro resultou o convite para nossa visita ao Centro Espírita Caboclo Pena Branca, que levou à realização do documentário Nas giras do vento (2020). No segundo semestre de 2021, ela participou do curso “Do seio ao solo: vivenciar os saberes das matriarcas quilombolas”, concebido e coordenado por Makota Kidoiale, do quilombo urbano Manzo Ngunzo Kaiango, em Belo Horizonte.
Quando tomamos conhecimento da história de Maria Luiza Marcelino - a partir do seu relato autobiográfico Quilombola: lamento de um povo negro (2015MARCELINO, M. L. Quilombola: lamento de um povo negro. Ubá, 2015. Edição da autora.) - pareceu-nos que estávamos diante da sobrevivência de uma comunidade que se situava na ponta mais vulnerável do longo e violento processo de destruição e invisibilização que recai sobre os povos negros da Zona da Mata mineira desde o início do século XIX. Ao acompanharmos suas aulas, vimos de perto como ela trazia consigo, entrelaçadas, a força da resistência política e a singularidade de um saber que remontava às formas de vida e de pensamento das populações afro-brasileiras, destacando, em especial, a maneira como as práticas religiosas da Umbanda se ofereciam tanto como modos simbólicos de elaboração da experiência histórica como artes de cura e de cuidado, conduzidas principalmente por mulheres.
Em sua narrativa, Maria Luiza Marcelino retorna ao tempo de sua tataravó, Luz Divina, benzedeira e parteira, que morreu picada pela jaracuçu tapete quando trabalhava na lavoura de café. Origina-se daí o conhecimento das plantas que Maria Luiza herdou de seus ancestrais. Manoela, filha de Luz Divina, ao receber - mediunicamente - as instruções da mãe acerca das ervas, passou a cuidar das doenças e dos muitos sofrimentos que a escravização trouxe para o seu povo. Em uma linha de parentesco que vai ziguezagueando entre violências sofridas pelas famílias (desde os abusos cometidos pelos senhores e sinhozinhos até o roubo de terras) e revelações trazidas pelas entidades espirituais (Oxalá, Iansã, Vovó Maria Conga e o caboclo Pena Branca), Maria Luiza situa sua história mais recente na Fazenda Liberdade - hoje em ruínas - onde nasceu sua bisavó, Deija, que, orientada pelos Guias de Luz desde muito cedo, se tornou benzedeira e veio a fundar o Centro Espírita Caboclo Pena Branca, em meio a uma trajetória de muita peleja e sofrimento com os seis filhos, desde que tivera suas terras roubadas por um fazendeiro, logo após a morte do marido.
Na primeira aula do curso, Maria Luiza abordou a saúde do povo quilombola. Ela relacionou a tuberculose, a hipertensão e o infarto às mudanças no modo de vida e ao consumo de alimentos processados, em contraste com a alimentação outrora presente no cotidiano das comunidades tradicionais - o inhame, a mandioca e o jiló, além da carne de porco, a canjiquinha, a língua de boi, a feijoada, os miúdos de porco e a tripa -, alimentos originários das culturas afro-brasileiras e que foram parar na mesa dos brancos (ela enfatizou).
Porém, a conversa sobre as peculiaridades da alimentação quilombola e o contraste entre os tempos antigos e a atualidade foi cedendo lugar a outros temas, associados às funções políticas e espirituais que Maria Luiza desempenha à frente do Centro Espírita Caboclo Pena Branca. O que poderia ser uma conversa movida pela curiosidade dos alunos em torno de receitas da chamada medicina popular - sem dúvida, apenas uma projeção nossa, sinal de nosso desconhecimento sobre o universo que Maria Luiza nos apresentava -, tomou outra perspectiva. Enquanto falava do emplastro de ovo de pato batido e breu para cuidar de fraturas, das propriedades digestivas de uma planta como o mané-magro ou do poder anti-inflamatório da bonina, por exemplo, ela sempre situava o uso e a eficácia em um contexto específico, acompanhado, muitas vezes, de uma história vivida (algum doente que chegara ao terreiro pedindo ajuda ou um caso que ocorrera na sua família). E, embora alguns alunos se arriscassem a pedir indicações para uma ou outra situação de saúde, logo foi percebido que Maria Luiza preferia cuidar de um caso de cada vez, recusando-se a indicar procedimentos ou remédios que tivessem, pretensamente, uma validade universal.
Sabemos que atualmente há um número crescente de estudos acadêmicos (marcadamente no domínio da farmacologia) que se põem a identificar os princípios ativos das ervas medicinais utilizadas pelas comunidades tradicionais e, certamente, um trabalho como esse poderia perfeitamente ser desenvolvido a partir dos conhecimentos que Maria Luiza detém acerca das plantas. Nosso intuito, no entanto, é outro: gostaríamos de delinear o quadro epistêmico mais amplo em que a Zeladora do Centro Espírita Caboclo Pena estabeleceu relações entre adoecimento e cura no âmbito do modo de vida quilombola, destacando especialmente seu vínculo tanto com os princípios cosmológicos da Umbanda, quanto com os elementos históricos da formação da sociedade brasileira - em particular, os traumas provocados pelo genocídio dos povos ameríndios e pela escravização dos povos africanos.
Esses exemplos, aqui comentados brevemente, indicam como funciona metodologicamente o encontro entre saberes tradicionais e acadêmicos. Um protocolo de diálogo - nunca estabelecido a priori - vai se estabelecendo entre mestres, alunos e professores, de modo imanente à interação e às trocas que se fazem no espaço e na duração da aula. Esse protocolo é variável, indeterminado e aberto, configurado processualmente a partir da relação que se cria entre a presença dos mestres - com tudo o que é singular em seu modo de transmitir o saber (a enunciação, a performance, a maneira de se dirigir aos interlocutores) - e o engajamento dos alunos e professores na escuta. O regime comunicativo que aí predomina ultrapassa largamente o domínio da informação, de tal maneira que a interação entre os sujeitos envolvidos, adensada em ritmos e intensidades variáveis, ao sabor das trocas em jogo - não apenas estritamente linguísticas, pois solicitam igualmente o corpo e os cinco sentidos - fazem da aprendizagem um acontecimento, e não somente uma aquisição de conhecimento externo a quem o transmite. Para não barrar a possibilidade desse acontecimento chegar, os professores parceiros se afastam de toda metalinguagem explicativa que poderia vir a recobrir, nos termos do conhecimento acadêmico, o que os mestres dizem e trazem consigo.
No simpósio Tramas y Mingas (2021TRAMAS y Mingas, encuentro binacional de saberes. Popayán, [s. n.]. 2021. 1 vídeo (179 min). Publicado pelo canal Universidad del Cauca. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas >. Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJs... ), dedicado ao tema do encontro de saberes, o antropólogo colombiano Arturo Escobar resumiu os principais traços que opõem a Forma-Homem-da-Vida (antropocêntrica) à Forma-Terra-da-Vida (comunal).44O evento foi organizado conjuntamente pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa da Universidade de Brasília e pelos Programas de Doutorado em Etno-biologia e Estudos Bio-culturais; e de Mestrado em Estudos Interculturais do Desenvolvimento das Universidades de Cauca e Nariño, na Colômbia. A palestra de Arturo Escobar está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas. Acesso em 2 jun. 2022. As duas coexistem conflituosamente em relações de disputa e de poder. Enquanto a primeira é orientada por um ponto de vista único, firmada nas modalidades do Estado, do Direito e da verdade da Ciência, centrada no indivíduo e conduzida pelos imperativos do mercado e pelas práticas políticas masculinas, a segunda, ao fazer valer a existência de muitos mundos e realidades interdependentes (a pluriversidade), firma-se nas territorialidades e nas modalidades de produção autônomas do comum e da vida em comunidade. Esse segundo caso trata-se de uma “cosmovisão emergente”, resultado da interface entre o ativismo (vindo de diferentes movimentos latino-americanos, sobretudo indígenas e feministas) e a teoria social (Tramas, 2021TRAMAS y Mingas, encuentro binacional de saberes. Popayán, [s. n.]. 2021. 1 vídeo (179 min). Publicado pelo canal Universidad del Cauca. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas >. Acesso em: 14 jan. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJs... ). Além disso, a Forma-Terra-da-Vida se move principalmente pelas práticas políticas no feminino, dedicadas ao cuidado e à criação de modos de vida em comum como alternativas ao tecido social (hoje continuamente rasgado ou dilacerado). São esses aspectos que nos permitem reexistir, isto é, reinventar nossas existências na atualidade. Com efeito, como veremos a seguir, no caso dos quilombos o protagonismo das mulheres tem sido destacado pelas ativistas e pesquisadoras quilombolas.
Selma dos Santos Dealdina (2020DEALDINA, S. dos S. (Org). Apresentação. In: DEALDINA, S. dos S. Mulheres quilombolas: territórios de existências femininas. São Paulo: Jandaíra, 2020. p. 13-20.), liderança quilombola do Território do Sapê do Norte (ES), argumenta que, embora do ponto de vista normativo a territorialidade e o uso coletivo da terra tenham sido juridicamente reconhecidos como elementos estruturais da existência quilombola (Brasil, 2003BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 nov. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm > Acesso em: 14 jan. 2022.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec... ), o poder Executivo, ainda assim, não se empenha em garantir a demarcação dos territórios:
Os quilombos resistem há séculos à violência racista do Estado brasileiro e de agentes privados detentores do poder. A luta negra quilombola está representada nos quilombos que até hoje lutam por igualdade social, racial e de gênero. Acesso à terra, à água, à moradia, à educação, valorização da agricultura tradicional, proteção de defensores e defensoras de direitos humanos e salvaguarda das sementes e do meio ambiente são algumas das pautas das lutas dos quilombos. (Dealdina, 2020DEALDINA, S. dos S. (Org). Apresentação. In: DEALDINA, S. dos S. Mulheres quilombolas: territórios de existências femininas. São Paulo: Jandaíra, 2020. p. 13-20., p. 31-32).
Como destaca Givânia Maria da Silva, liderança e educadora quilombola de Conceição das Crioulas (PE), as mulheres desempenham funções fundamentais na constituição e na manutenção da vida política e cultural dos quilombos:
As mulheres quilombolas atuam como um acervo da memória coletiva; com elas estão registradas as estratégias de luta e resistência nos quilombos, os conhecimentos guardados e repassados de geração em geração. São diferentes formas de produção do conhecimento através de uma diversidade de saberes, incluindo conhecimentos tradicionais e científicos. Dentre os papéis que desempenham está o de guardiãs da pluralidade de conhecimentos que emergem e são praticados nos territórios quilombolas. (Silva, 2020SILVA, G. M. da. Mulheres quilombolas: afirmando o território na luta, resistência e insurgência negra feminina. In: DEALDINA, S. dos S. (Org). Mulheres quilombolas: territórios de existências femininas. São Paulo: Jandaíra , 2020. p. 51-58., p. 54).
No caso de Maria Luiza Marcelino, há uma maneira muito peculiar de estabelecer as articulações complexas entre o adoecimento, a luta pela terra quilombola e a cura. Como dissemos anteriormente, sendo o protocolo de diálogo com as mestras e mestres dos saberes tradicionais regido pela imanência dos encontros, no transcorrer das interações pode assumir uma dinâmica que desloca acentuadamente o modo que nós, professores e alunos, imaginamos inicialmente o teor da interação e das trocas que ali ocorreriam. Foi o que aconteceu na primeira aula que tivemos com Maria Luiza, numa tarde no Jardim Mandala, na Faculdade de Educação da UFMG.55Aula disponível em: https://www.saberestradicionais.org/filmes/. Acesso em: 2 jun. 2022.
Os caboclos nos convocam
Incumbida pelas entidades espirituais a levar adiante a luta dos quilombolas que a precederam, Maria Luiza afirma que nós - professores e alunos - estávamos sendo “engolidos” por uma força que nos tomava. Para explicar isso, ela evoca a história do caboclo Marunguinho, o dono das ervas, que aparecera para sua avó um dia, no rio, depois que ela tinha “feito o santo”. Buscando não quebrar o encadeamento da argumentação e procurando manter o ritmo e a fluidez das associações feitas por Maria Luiza durante a aula, optamos por citar um trecho mais extenso de sua fala:
Qualquer pessoa que é umbandista vai saber quem é o Marunguinho, que veio para salvar os negros […] Ele sabia que isso ia ser assim, que ia virar uma bola de neve, e como está sendo, eu estou sendo o instrumento (….) Isso me dá muito trabalho, me dá problema, eu corro até risco de vida, porque quilombo não é um trabalho à toa; tem várias pessoas que podem te matar, te assassinar, por causa de terra, por causa de eu estar mexendo com dinheiro. Por que eu não poderia estar na minha casa, sossegada, gente? Trabalhando, fazendo meus negocinhos ali, ficar no que era, sem saber quem é quem? Mas isso tem que vir à tona; ele [o caboclo Marunguinho] quer que essa história permaneça e que aumente […] Por que que eu tenho que insistir com a luta? […] Porque é só os quilombos, porque não pode se perder os negros; os negros estão se perdendo por falta de apoio e falta de reconhecimento […] Então, essa força que ele deu é pra todos os quilombos, tanto rurais como urbanos.
E surgiram pessoas que não tem nada a ver [com a nossa vida] e tão entrando também […] Vocês tão entrando sem saber, vocês estão sendo engolidos pelos nossos problemas; sem saber vocês estão entrando, se voltando para ajudar a fazer essa continuação […] Vocês com sua sabedoria, e nós com nosso trabalho, se expandir e criar um jeito da gente se juntar e voltar a ser o que era, que é a vida, a vida da terra, que a terra está morrendo, e o único bem que ele [Marunguinho] não quer perder é a terra, e para isso precisa dos quilombos.
Vocês estão entendendo? Agora vocês mesmos podem saber: “por que que eu estou nessa coisa?”, “Ah, é um projeto, mas por que que eu estou fazendo esse projeto?” Você não poderia estar fazendo um projeto melhor, mexendo com pessoas com dificuldade? O que vocês ganham com isso? Nem tanto, mas vocês também estão sendo um instrumento .Agora vocês tão entendendo porque vocês estão fazendo isso; vocês não estão fazendo porque vocês querem, é porque tem uma força superior que estão fazendo vocês fazer isso, que é voltar a vida na terra, que é voltar a saúde para o povo . E através dos quilombolas, que são os negros sábios que passaram por várias experiências na vida, e esses espíritos que passaram essas dores, que foram encurralados, maltratados […] é uma força que eles querem que seja continuação, que a terra seja fértil e que o homem seja fértil, que são os negros. Agora, vocês que trabalham nesses projetos de quilombo, agora vocês estão sabendo porque é que vocês fazem. Não foram vocês, mas na cabeça deles, vocês que acabaram com nós, então vocês tem que nos ressuscitar e fazer as outras pessoas nos aceitarem.
É uma corrente; então, a cada vez, vocês vão se infiltrando mais no assunto, vocês estão entrando de cabeça, sem saber o que realmente é o que que está pegando, mas vocês estão indo, igual a mim, e eu estou puxando todo mundo […]Eu sou a força de puxar, vem atrás que eu estou puxando. Eu não quero fazer isso, mas eu tenho que fazer […] é um jeito de nos resguardar da morte e salvar as nossas almas, entendeu? É isso que eles querem: serem salvos, serem respeitados e serem salvos, não um cadáver sem vida, sem reconhecimento, morrendo junto com a terra. (Maria Luiza)66Deixamos grifadas as expressões empregadas por Maria Luiza Marcelino que trazem o teor conceitual próprio do seu pensamento. A transcrição da fala da mestra é de nossa autoria.
Percebendo o quanto a audiência fora fortemente afetada pela intensidade de suas palavras, Maria Luiza decide então entoar um ponto cantado da Umbanda:
Ele é um “caboco” brutolá do fundo do grotãooi tira a pemba, risca o pontovem salvar seus irmãooi tira a pemba, risca o pontovem salvar nossa nação77Transcrevemos o ponto cantado (da Umbanda) entoado pela mestra.(Maria Luiza)Findo o canto e os toques do atabaque, ficamos imobilizados, em estado de suspensão. O acontecimento, sempre imprevisível, chegara, deixando-nos admirados.88Sob a orientação da professora Rosângela de Tugny, junto ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Leonardo Bittencourt Silva realizou, em 2020, a dissertação de mestrado intitulada “Maria Luiza Marcelino e o Lamento de um povo negro: o trabalho da memória de uma mestra dos pontos cantados de Umbanda na comunidade Namastê, Ubá, Minas Gerais”.
As relações que Maria Luiza Marcelino estabelece entre saúde e enfermidade, ao contrastar o modo de vida dos povos quilombolas (permeado pela relação vital com a terra e com as entidades espirituais da Umbanda) e o nosso (branco e urbano), ultrapassam em muito os limites da ciência biológica moderna. Conforme apontam Marco Antônio Separavich e Ana Maria Canesqui (2010SEPARAVICH, M. A; CANESQUI, A.M. Girando a lente socioantropológica sobre o corpo: uma breve reflexão. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 249-259, 2010.), as concepções em torno do corpo e da saúde não somente variaram no interior do conjunto das diferentes correntes da medicina ocidental, como receberam, de outras culturas e cosmologias religiosas, significações que dela se distinguem radicalmente. Em direções divergentes em ambos os casos, como nos revelam historiadores da medicina e antropólogos, o que se julga natural surge sempre como algo construído historicamente, a partir de determinadas instituições que configuram a vida social, sejam os hospitais, sejam as técnicas da medicina tradicional em diferentes culturas (Separavich; Canesqui, 2010SEPARAVICH, M. A; CANESQUI, A.M. Girando a lente socioantropológica sobre o corpo: uma breve reflexão. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 249-259, 2010.).
No caso de Maria Luiza Marcelino, a originalidade de sua crítica àquilo que é nocivo no mundo dos brancos, bem como o que garante a saúde dos povos quilombolas, aparece em uma correlação intrincada que envolve a violência das relações étnico-raciais (tanto no período da escravização, quanto na continuação das formas de racismo na atualidade), a expropriação da terra e a atuação das entidades espirituais da Umbanda, tal como os caboclos e as pretas velhas e pretos velhos. Em um artigo dedicado ao processo de criação do filme Nas giras do vento, protagonizado por Maria Luiza Marcelino e realizado dois anos após o nosso primeiro encontro, tentamos compreender o que aconteceu naquela aula no Jardim Mandala.99O filme Nas giras do vento (25’, 2020) foi realizado pelos professores César Guimarães, Pedro Aspahan e os alunos matriculados na disciplina “Criação em documentário”, oferecida no segundo semestre de 2019, no curso de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
As entidades - em especial o caboclo Marunguinho - nos convocavam para ressuscitar a terra, que está morrendo. Mas esse possível encontro entre os nossos projetos e o trabalho espiritual que ela faz, ao nos puxar para a luta deles - não se faz sem levar em conta o que também nos separa: vocês, que acabaram com nós, vocês tem que nos ressuscitar (é o que os espíritos pensam na cabeça deles, ela ressalta). Quem nos atraíra para esse encontro foram os negros sábios, os espíritos daqueles que foram maltratados e encurralados. Eles guiavam nossa conversa naquela tarde. Aqueles que um dia foram escravizados e perseguidos querem voltar, estão voltando, e nós somos instrumentos para essa volta que - somente ela - pode trazer a vida de volta à terra. Eles, que foram mortos violentamente, não querem que a terra morra também, ela enfatiza. Nós, da universidade, estamos “entrando de cabeça” nessa relação, mas sem saber do que se trata. (Aspahan; Brasil; Guimarães, 2020ASPAHAN, P.; BRASIL, A.; GUIMARÃES, C. Pedagogias do vento. Mundaú, Maceió, n. 9, p. 120-145, 2020., p. 4-5, grifo do autor)
Como escutamos de Maria Luiza, ela está nas mãos dos espíritos que nos tornaram - professores e alunos - como instrumentos para ressuscitar a terra. Segundo ela, quando os povos indígenas tiveram suas terras roubadas pelos brancos, os caboclos ficaram flutuando, perdidos, entristecidos. Foram os povos quilombolas que deram abrigo a eles e compartilharam com eles as técnicas de plantio e cuidado com a terra, além de se dedicarem a curar os doentes e os que sofriam. Para Maria Luiza, trazer a vida de volta à terra, curando-a, é a tarefa para qual os caboclos nos convocaram. Nota-se aqui como não estamos mais no domínio estrito dos cuidados com o corpo, mesmo já distanciados - em muito - dos preceitos da biomedicina. Parece-nos que a fala de Maria Luiza ganhou um endereçamento distinto, vindo a abarcar outra dimensão do encontro conosco, para além daquela abordagem inicial dos cuidados que dispensava às enfermidades (guiada pelo que aprendeu com seus ancestrais e com as entidades espirituais que a orientam em seu cotidiano).
Recorrendo à expressão que Isabelle Stengers utilizou para caracterizar a escuta que o etnopsiquiatra Tobie Nathan concedeu aos relatos e às teorias que lhe traziam os imigrantes africanos no Centre George-Devereux (Universidade Paris 8), os “mundos da cura” envolvem o arranjo sempre singular e situado de componentes heterogêneos (Stengers, 2001STENGERS, I. Le laboratoire de ethnopsychiatrie. In: NATHAN, T. Nous ne sommes pas seuls au monde : les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris: La Découverte, 2001. Préface., p. 36). Eles são conjuntos complexos de procedimentos, objetos, seres, narrativas e enunciados que se oferecem como dispositivos que permitem aos sujeitos conceder uma significação ao seu sofrimento e se engajar no tratamento. Aqueles que se engajam no dispositivo terapêutico inventado por Nathan ou - pensando em nosso contexto - procuram a zeladora de um centro espírita fazem uma “aposta no devir, na metamorfose possível” que o tratamento procurado pode lhe trazer (Stengers, 2001STENGERS, I. Le laboratoire de ethnopsychiatrie. In: NATHAN, T. Nous ne sommes pas seuls au monde : les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris: La Découverte, 2001. Préface., p. 35). O lugar do sujeito que se envolve no processo de cura é o de um parceiro e jamais poderia ser assimilado àquela testemunha confiável eleita pelas ciências experimentais, ressalta Stengers (2001)STENGERS, I. Le laboratoire de ethnopsychiatrie. In: NATHAN, T. Nous ne sommes pas seuls au monde : les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris: La Découverte, 2001. Préface..
Fazendo uma analogia - e sem superestimar o seu alcance - podemos imaginar que Maria Luiza, ao se endereçar a nós, professores e alunos, gostaria de nos ter como parceiros de um processo de cura em uma acepção mais ampla, que alcança as relações sociais adoecidas entre o povo quilombola e os brancos, assentados em seus privilégios (materiais e simbólicos) e mantenedores do racismo. Podemos avançar um pouco mais e afirmar que, nesse encontro que tivemos com Maria Luiza, para além do tema da saúde e da enfermidade, o que está em jogo é a possibilidade de uma cura epistêmica da própria universidade, que se vê radicalmente interpelada quanto aos parâmetros epistêmicos que elegeu para definir o que os outros sabem ou não e distinguir, separar e hierarquizar a relação entre os que se veem como sujeitos do saber e os que são tomados - pelos primeiros - com objetos do saber.
Assinalemos aqui uma diferença fundamental entre os saberes dos quais as mulheres são portadoras, como nos lembra Sílvia Federici (2017FEDERICI, S. Caça às bruxas, passado e presente e o medo do poder das mulheres. Chão da Feira, Belo Horizonte; n. 63, 2017. Caderno de Leituras.): enquanto as mulheres europeias foram expropriadas de seus conhecimentos acerca das plantas e das medicinas tradicionais, acusadas de bruxaria e arrastadas pela força das transformações advindas da passagem do modo de acumulação primitiva para o capitalismo, com a destruição dos laços comunitários, em outros contextos, como na África e nas Américas (mesmo sob a violência da diáspora), as mulheres negras continuaram a desempenhar um papel fundamental nas artes do cuidado e das curas no seio da vida coletiva, com destaque, no Brasil, para a presença central nas comunidades quilombolas e naquelas referenciadas em torno dos terreiros de Umbanda e de candomblé, em suas diferentes matrizes.
É da periferia da pequena cidade de Ubá, em Minas Gerais - outrora cercada por fazendas de café escravocratas - que Maria Luiza Marcelino traça sua genealogia e constitui a memória comunitária do seu povo. Assim, ela encontra seu lugar na linhagem dos narradores que, ao nomearem os personagens marcantes e os eventos decisivos da sua história, fazem do gesto de rememorar um testemunho. Não poucas vezes esse gesto vem acompanhado pelos signos da destruição ou das ameaças que rondam o presente. Não é o caso, entretanto, de abordar o quilombo como uma forma histórica que desapareceu, e sim de ressaltar sua continuidade sob formas renovadas, tendo à frente novos protagonistas, como reivindicou Beatriz Nascimento:
[…] o quilombo forma uma comunidade ou uma civilização, vamos dizer assim, dentro da História do Brasil, paralela à história que se desenrola dentro do processo da escravidão. Por isso é que minha preocupação é que ele não pode se terminar com a Abolição, não pode terminar simplesmente pelo fato de que a Abolição liberou a mão de obra escrava, porque ele sempre foi independente do processo de escravização, não o quilombo especificamente de Palmares, ou especificamente o de Guandú, mas o quilombo como movimento geral de longa duração no Brasil. (Nascimento, 2018aNASCIMENTO, M. B. Historiografia do quilombo. In: NASCIMENTO, M. B. Quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Filhos da África, 2018a. p. 125-165., p. 134).
A rememoração conduzida por Maria Luiza Marcelino (seja em seu livro, seja em suas aulas), ao contrastar o antigamente e o atual, mistura diferentes temporalidades: ela entreabre, no presente do relato que se faz, a remissão ao passado histórico (nomeando eventos, personagens e antepassados) e também ao seu fundo ancestral, que se atualiza e sobrevive no presente. Recuperando elementos que caracterizam a errância forçada, imposta à população negra de Ubá após a declaração da Abolição da Escravatura, e religando-os aos embates atuais de sua comunidade, Maria Luiza fez do Centro Espírita Caboclo Pena Branca um território de invenção de potentes formas de vida, em cotidiana e incessante relação com as entidades espirituais que o sustentam, como escreveu Dénètem Touam Bona (2020BONA, D. T. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.). A maneira como esse refúgio é criado, sua poiésis (ao combinar práticas materiais, simbólicas e imaginação política) só se dá porque os quilombolas sustentam um vínculo essencial com a terra, como enfatiza Beatriz Nascimento:
Os quilombos, principalmente os de Minas, são também locais de concentração de muitos recursos naturais, como fontes de água ou minérios, ou zonas de fertilidade, o que mostra a grande ligação do africano com a terra. É esse espaço, que não é geográfico, mas vital, que os negros procuram reproduzir nos centros urbanos. Nas favelas do Rio, que se situam em morros, há sempre um certo verde e se cultivam determinados tipos de plantas utilizadas em cerimônias religiosas. Por isso, acho que os quilombos surgiram, não só como resultado de uma situação negativa, de fuga da escravidão, mas como uma ação positiva para recriar a ligação com a terra. A terra não como propriedade, mas como elemento indispensável ao conjunto da vida humana, em seu significado espiritual. (Nascimento, 2018bNASCIMENTO, M. B. Volta à Terra da memória. In: NASCIMENTO, M. B. Quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Filhos da África , 2018b. p. 208-210., p. 209-210).
Compreendemos, então, como, para Maria Luiza Marcelino, a noção abrangente de saúde, bem como os procedimentos de cura (sempre particulares e contextualizados) implicam em uma lógica que não desvincula a relação com os espíritos dos processos históricos em que imperam a violência, o racismo, a exploração econômica da população negra e o adoecimento, que alcança tanto as pessoas quanto a própria terra. Em dado momento da aula, ela lembra que os jovens quilombolas de sua comunidade estão aprisionados nas fábricas de móveis da cidade de Ubá - muitas delas, provavelmente, hoje nas mãos dos descendentes das famílias proprietárias das antigas fazendas cafeeiras.
Na condição de liderança política, benzedeira, curandeira e zeladora de um terreiro de Umbanda, Maria Luiza Marcelino é uma franqueadora de passagens e vias inesperadas entre domínios que, aos nossos olhos, aparecem separados: o mundo histórico e social e o mundo espiritual. Mas, para ela, desde que Marunguinho, o caboclo dono das ervas, apareceu para sua bisavó Deija na beira do rio, nunca mais deixou-se de trabalhar para que a terra ressuscitasse, e as pessoas de sua comunidade recobrassem a saúde e a fertilidade.
Referências
- ASPAHAN, P.; BRASIL, A.; GUIMARÃES, C. Pedagogias do vento. Mundaú, Maceió, n. 9, p. 120-145, 2020.
- BONA, D. T. Cosmopoéticas do refúgio. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2020.
- BRASIL. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 nov. 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm > Acesso em: 14 jan. 2022.
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm - CARVALHO, J. J. de; VIANNA, L. C. R. O Encontro de Saberes nas universidades. Uma síntese dos dez primeiros anos. Mundaú , n. 9, p. 23-49, 2020.
- DEALDINA, S. dos S. (Org). Apresentação. In: DEALDINA, S. dos S. Mulheres quilombolas: territórios de existências femininas. São Paulo: Jandaíra, 2020. p. 13-20.
- FEDERICI, S. Caça às bruxas, passado e presente e o medo do poder das mulheres. Chão da Feira, Belo Horizonte; n. 63, 2017. Caderno de Leituras.
- MARCELINO, M. L. Quilombola: lamento de um povo negro. Ubá, 2015. Edição da autora.
- NASCIMENTO, M. B. Historiografia do quilombo. In: NASCIMENTO, M. B. Quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Filhos da África, 2018a. p. 125-165.
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- BARBOSA NETO, E. R.; ROSE, I. S. de; GOLDMAN, M. Encontros com o “Encontro de Saberes”. Mundaú , Maceió, n. 9, p. 12-22, 2020.
- SEPARAVICH, M. A; CANESQUI, A.M. Girando a lente socioantropológica sobre o corpo: uma breve reflexão. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 249-259, 2010.
- SILVA, G. M. da. Mulheres quilombolas: afirmando o território na luta, resistência e insurgência negra feminina. In: DEALDINA, S. dos S. (Org). Mulheres quilombolas: territórios de existências femininas. São Paulo: Jandaíra , 2020. p. 51-58.
- STENGERS, I. Le laboratoire de ethnopsychiatrie. In: NATHAN, T. Nous ne sommes pas seuls au monde : les enjeux de l’ethnopsychiatrie. Paris: La Découverte, 2001. Préface.
- STENGERS, I. Reativar o animismo. Chão da Feira , Belo Horizonte, Caderno de Leituras n. 62, 2017.
- TRAMAS y Mingas, encuentro binacional de saberes. Popayán, [s. n.]. 2021. 1 vídeo (179 min). Publicado pelo canal Universidad del Cauca. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas >. Acesso em: 14 jan. 2022.
» https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas
- 1O professor José Jorge de Carvalho criou o Encontro dos Saberes na Universidade de Brasília em 2010, colocando em diálogo os saberes acadêmicos e os tradicionais. Disponível em: https://inctinclusao.com.br/encontro-de-saberes/encontro-de-saberes. Acesso em: 2 jun. 2022.
- 2Todas as informações sobre os cursos encontram-se disponíveis em: https://www.saberestradicionais.org. Acesso em: 2 jun. 2022.
- 3Este artigo insere-se no âmbito da pesquisa “Imagens e saberes contra-coloniais”, desenvolvida com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio de Bolsa de Produtividade.
- 4O evento foi organizado conjuntamente pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa da Universidade de Brasília e pelos Programas de Doutorado em Etno-biologia e Estudos Bio-culturais; e de Mestrado em Estudos Interculturais do Desenvolvimento das Universidades de Cauca e Nariño, na Colômbia. A palestra de Arturo Escobar está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZH3k_SJsCas. Acesso em 2 jun. 2022.
- 5Aula disponível em: https://www.saberestradicionais.org/filmes/. Acesso em: 2 jun. 2022.
- 6Deixamos grifadas as expressões empregadas por Maria Luiza Marcelino que trazem o teor conceitual próprio do seu pensamento. A transcrição da fala da mestra é de nossa autoria.
- 7Transcrevemos o ponto cantado (da Umbanda) entoado pela mestra.
- 8Sob a orientação da professora Rosângela de Tugny, junto ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais, Leonardo Bittencourt Silva realizou, em 2020, a dissertação de mestrado intitulada “Maria Luiza Marcelino e o Lamento de um povo negro: o trabalho da memória de uma mestra dos pontos cantados de Umbanda na comunidade Namastê, Ubá, Minas Gerais”.
- 9O filme Nas giras do vento (25’, 2020) foi realizado pelos professores César Guimarães, Pedro Aspahan e os alunos matriculados na disciplina “Criação em documentário”, oferecida no segundo semestre de 2019, no curso de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 - Data do Fascículo
2022
Histórico
- Recebido
05 Maio 2022 - Aceito
24 Maio 2022