Trabalho e saúde do trabalhador em tempos de pandemia no Brasil: notas críticas sobre o caos11Uma versão preliminar deste ensaio, aqui revista e ampliada, foi apresentada na XXI Jornada do Trabalho, evento virtual realizado entre os dias 03 e 10 de novembro de 2021 e sediado pela Universidade Federal de Santa Maria (RS).

Work and occupational health during the pandemic in Brazil: critical notes on the chaos

Guilherme Perpetua Sobre o autor

Resumo

Como grande marco da história mundial contemporânea, a pandemia da covid-19 não constitui apenas uma crise sanitária, mas uma das mais graves crises humanitárias, desde o século passado. No Brasil, o deflagrar da pandemia impulsionou as crises econômica e política já antes em curso, engendrando uma situação de caos social de proporções inauditas, com destaque para os problemas do desemprego e da precarização do trabalho. Nesse contexto, e adotando o prisma socioespacial, este trabalho se propõe a desconstruir as narrativas que, por um lado, tratam do fenômeno como uma fatalidade biológica, naturalizando-o e, por outro, atribuem a ele a maior parte (senão todas) das mazelas enfrentadas pelos trabalhadores e trabalhadoras, no presente.

Palavras-chave:
Pandemia da covid-19; Precarização do Trabalho; Saúde do Trabalhador; Brasil

Abstract

As a major milestone in contemporary world history, the COVID-19 pandemic constituted both a sanitary crisis and one of the greatest humanitarian crises since last century. In Brazil, its outbreak enhanced the economic and political crisis already in course, creating an unprecedent scenario of social chaos which highlighted unemployment and labor precariousness issues. Based on the socio-spatial prism, this paper deconstructs narratives that, on the one hand, address the phenomenon as a biological fatality, naturalizing it, and, on the other, attribute to most (if not all) of the woes faced by Brazilian workers today.

Keywords:
COVID-19 pandemic; Labor precariousness; Occupational health; Brazil

Introdução

O apagar das luzes do ano de 2019 marcou o início de uma série de eventos insólitos que parecem ter saído das distopias literárias e cinematográficas. A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), responsável por provocar a doença denominada covid-19, teve seu primeiro caso detectado em dezembro daquele ano na cidade de Wuhan, na China, e desembarcou oficialmente no Brasil três meses depois, com a primeira ocorrência oficialmente registrada no final do mês de fevereiro do ano de 2020 (Barroso et al., 2020BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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).

Pondo em xeque a validade da afirmação de Han (2015HAN, B-C. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.), segundo a qual a época bacteriológica ou viral da humanidade teria sido superada, a nova pandemia se alastrou pelo mundo todo com uma velocidade assustadora, ceifando centenas de milhares de vidas em um curto intervalo de tempo e revelando ausência de precedentes na história contemporânea (Koh, 2020KOH, D. Occupational risks for covid-19 infection. Editorial. Occupational Medicine, Oxford, n. 70, v. 1, p. 3-5, 2020. DOI: 10.1093/occmed/kqaa036
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). De fato, a pandemia tornou-se tema onipresente e questão inadiável conforme mostrava ao mundo todo não ser apenas uma crise sanitária, mas também humanitária, testando-nos como espécie (Lima; Buss; Paes-Sousa, 2020LIMA, N. T.; BUSS, P. M.; PAES-SOUSA, R. A pandemia de COVID-19: uma crise sanitária e humanitária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. 1-4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00177020
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) e tornando ainda mais válida a assertiva de Milton Santos (2002SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2002.), segundo a qual vivemos em um mundo cada vez mais confuso e confusamente percebido.

Algumas particularidades do vírus e da doença - como a alta transmissibilidade, a grande proporção de infectados oligossintomáticos ou assintomáticos, a duração prolongada dos quadros clínicos, a inexistência inicial de vacina e de terapia medicamentosa comprovada, a insuficiente cobertura de testes e as experiências de outros países - foram decisivas para a adoção de medidas rigorosas de isolamento social em diversas partes do mundo (Jackson Filho ., 2020JACKSON FILHO, J. M.; ASSUNÇÃO, A. A.; ALGRANTI, E.; GARCIA, E. G.; SAITO, C. A.; MAENO, M. Editorial: A saúde do trabalhador e o enfrentamento da covid-19. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, n. 14, p. 1-3, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369ED0000120
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). E, malgrado os avanços realizados, a exemplo das diversas vacinas celeremente desenvolvidas por diferentes laboratórios, muitas incertezas em relação a aspectos como a dinâmica viral, o controle da transmissão e o tratamento da doença persistiram por bastante tempo (Heck et al., 2020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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).

No momento em que concluíamos a redação deste trabalho, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2021WHO. Coronavirus (COVID-19) dashboard. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://covid19.who.int > Acesso em: 15 set. 2022.
https://covid19.who.int...
), o mundo confirmava mais de 430 milhões de casos de infecção e 5,9 milhões de mortes pela doença22Os dados apresentados correspondem ao dia 28/02/2022 e estão disponíveis em: https://covid19.who.int/..

No Brasil, o deflagrar da crise sanitária impulsionou as crises econômica e política já em curso quando de seu advento, engendrando uma situação de caos social de proporções inauditas, com destaque para os problemas do desemprego e da precarização do trabalho. Nesse contexto, tanto a grande mídia quanto os governos (em seus diferentes níveis) e o senso comum quase onipresente nas redes sociais parecem ter somado esforços para reiterar algumas crenças infundadas. Uma delas concebe a pandemia, antes de tudo, como fatalidade biológica e, assim, recomenda seu enfrentamento com uma terapêutica infectológica restrita à saúde, com ênfase na prevenção e no tratamento individual. Associada a essa primeira crença, está a que situa na pandemia o início dos (ou, pelo menos, a causa principal dos) graves problemas enfrentados pelos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros.

O objetivo deste trabalho é problematizar e desconstruir tais narrativas, argumentando sobre o caráter eminentemente social da pandemia e de seus desdobramentos para os trabalhadores. Visando atingi-lo, recorremos à revisão bibliográfica narrativa e ao levantamento de dados em algumas fontes secundárias, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

O texto está estruturado em duas seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, desenvolvemos o argumento segundo o qual, para além da dimensão biológica, a pandemia possui determinações socioespaciais cuja consideração é indispensável para a compreensão do fenômeno. Na segunda, argumentamos que a pandemia não causou um grave problema para os trabalhadores brasileiros, já então fragilizados por décadas de políticas neoliberais responsáveis por alastrarem a precarização e o desemprego em larga escala muito antes do seu desastroso advento. Ademais, insistimos sobre o fato de que seus efeitos deletérios os atingem de forma muito seletiva, segundo situações específicas de trabalho e de vida.

Determinações socioespaciais da pandemia

Desde o início, as narrativas acerca da pandemia, disseminadas pela grande mídia, pelos governos e nas redes sociais, têm apresentado como pano de fundo uma concepção naturalizada33Partindo da mesma constatação, em um texto intitulado “A naturalização da pandemia no Brasil” Portella e Oliveira (2020) problematizam a naturalização de crises como a pandemia da covid-19 e desastres em geral, tratando-a como uma tendência no modo como a imaginação ocidental enfrenta esses problemas., biológica, individual e unicausal da relação saúde-doença, a qual, na verdade, já predominava no pensamento médico muito antes disso (Laurell, 1982LAURELL, A. C. La Salud-Enfermedad como proceso social. Cuadernos médico sociales, Rosario, n. 19, p. 1-11, 1982.). De modo semelhante, as medidas de enfrentamento - todas, obviamente, indispensáveis em um contexto emergencial como o atual - seguem um roteiro generalista (centrado em termos vagos como “população”), biológico (voltado para os “grupos de risco” por faixa etária e preexistência de comorbidades) e calcado no comportamento individual (adoção de medidas de etiqueta respiratória, uso de máscara, álcool gel, isolamento social, home office etc.). Minimizando ou ocultando as determinações sociais daquilo que a literatura especializada chama de processo saúde-doença (Laurell, 1982LAURELL, A. C. La Salud-Enfermedad como proceso social. Cuadernos médico sociales, Rosario, n. 19, p. 1-11, 1982.; Seligmann-Silva, 2011SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011.), a pandemia tem sido concebida e enfrentada, sobretudo, como uma fatalidade natural de ordem biológica, absolutamente casual e inevitável, tendo muito pouco a ver com a dinâmica social.

É preciso lembrar que a separação e a oposição entre sociedade e natureza, homem e meio, está na base da revolução científica da modernidade e, consequentemente, da constituição da própria geografia enquanto ciência sob os auspícios do positivismo, ainda que, paradoxalmente, a ciência geográfica tenha se proposto desde seus albores a compreender a relação entre os dois termos da referida equação (Moreira, 2006MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica. São Paulo: Contexto, 2006.). Estabeleceu-se, desde então, uma insólita dicotomia: de um lado, um homem fora da natureza e, de outro, uma natureza intocada sem o homem, ambos confrontando-se no transcurso do processo civilizatório.

Do mesmo modo, a naturalização do social constitui um expediente recorrente da ideologia burguesa e muito presente no senso comum por meio do qual converte-se aquilo que é social e histórico em natural e a-histórico. Ora, não é exagero dizer que existe muito pouco no mundo atual - se é que de fato existe algo - que não tenha sido de alguma forma modificado pela presença humana. As próprias pandemias, conforme o microbiologista francês Philippe Sansonetti (2020SANSONETTI, P. Covid-19: Chronicle of an Outbreak Foretold. [S. l]: Books and Ideas, 2020.), são “doenças do antropoceno”, pois estão fundamentalmente ligadas à intervenção humana sobre o planeta e seus impactos.

Seligmann-Silva trata da relação saúde-doença como um continuum, um processo definido pelo “encadeamento de múltiplos fenômenos, em processos que podem ser propiciadores de maior vitalidade ou maior fragilização da saúde ao longo da vida dos indivíduos inseridos em diferentes realidades sociais” (2011, p. 33). Ainda, de acordo com Laurell (1982LAURELL, A. C. La Salud-Enfermedad como proceso social. Cuadernos médico sociales, Rosario, n. 19, p. 1-11, 1982.), existe uma articulação entre o processo social e o processo saúde-doença, de maneira que este assume características diferentes conforme a inserção de cada grupo (classe) na produção e sua relação com os demais grupos sociais. Com a pandemia atual não é diferente.

A integração espacial e a aceleração dos fluxos em escala planetária, caraterísticas marcantes do período da globalização atual, potencializaram fortemente a difusão do novo coronavírus e o estabelecimento da pandemia (Heck et al., 2020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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; Harvey, 2020HARVEY, D. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. In: DAVIS, M. et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos , 2020.; Souza, 2020SOUZA, D. O. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva , Manguinhos, v. 25, p. 2469-2477, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.11532020
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). Nota-se, igualmente, que a difusão da doença apresenta padrão urbano-rodoviário, estando relacionada a determinados setores produtivos, notadamente àqueles considerados como atividades e serviços essenciais (Heck ., 2020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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).

Outra condição geográfica potencializadora é o intenso adensamento populacional urbano e, nesses espaços, a crescente desigualdade social que coloca uma grande parcela da população em condições habitacionais e sanitárias precárias (Lima; Buss; Paes-Sousa, 2020LIMA, N. T.; BUSS, P. M.; PAES-SOUSA, R. A pandemia de COVID-19: uma crise sanitária e humanitária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. 1-4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00177020
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). Enfim, a pandemia escancarou o fato de que o mundo está “[…] mais vulnerável à ocorrência e à disseminação global, tanto de doenças conhecidas, como novas” (Lima; Buss; Paes-Sousa, 2020LIMA, N. T.; BUSS, P. M.; PAES-SOUSA, R. A pandemia de COVID-19: uma crise sanitária e humanitária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. 1-4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00177020
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, p. 1).

Fica claro, portanto, que não obstante o fato do vírus em si ser um agente biológico, sua disseminação e impactos dependem muito diretamente das condições sociais postas, tanto entre sociedades distintas quanto internamente, em cada sociedade. Ou seja, aplica-se a uma epidemia ou pandemia a mesma regra que se aplica a catástrofes naturais como terremotos, tsunamis ou grandes erupções vulcânicas: sua existência não depende das condições sociais, mas seus impactos sim - não é por acaso que Davis (2020DAVIS, M. A crise do Coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. In: DAVIS, M. et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos, 2020., p. 8) trata da pandemia nos Estados Unidos como “uma versão médica do Furacão Katrina”. No dizer de Harvey (2020HARVEY, D. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. In: DAVIS, M. et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos , 2020., p. 15): “não existe um verdadeiro desastre natural. Os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação se torna uma ameaça à vida dependem das ações humanas”.

Sendo assim, se quisermos compreender a pandemia atual em sua complexidade e profundidade, ainda que não possamos prescindir das abordagens infectológica e epidemiológica, devemos extrapolá-las, investigando sua dimensão social (Souza, 2020SOUZA, D. O. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva , Manguinhos, v. 25, p. 2469-2477, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.11532020
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). Nesse sentido, a pergunta feita por Souza (2020SOUZA, D. O. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva , Manguinhos, v. 25, p. 2469-2477, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.11532020
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, p. 2470) parece-nos muito pertinente: “foi a pandemia de covid-19 que provocou uma desordem econômico-social ou o caos social intrínseco ao sistema econômico vigente que estabeleceu as bases sociais para a pandemia?”

Decerto, diante dos fatos assistidos, a segunda opção é a mais plausível, dado que o sistema do capital enfrenta uma crise estrutural que, como nos assegura Mészáros (2011MÉSZÁROS, Í. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo , 2011.), já colocava em risco a própria sobrevivência da humanidade, antes mesmo da pandemia, devido a sua incontrolabilidade e irracionalidade inerentes à lógica capitalista. A nosso ver, a incapacidade dos Estados capitalistas, especialmente daqueles que têm adotado de forma ortodoxa os postulados neoliberais44É fato que, atualmente, o termo neoliberalismo tornou-se relativamente polissêmico, dada a existência de uma série de matizes conceituais e aspectos particulares e locais oriundos das experiências concretas de sua adoção. Neste trabalho, usamos o termo no sentido de doutrina econômica que propõe a redução do Estado, no que se refere especificamente à sua função de garantidor dos direitos sociais e de regulamentador das relações de trabalho, face à primazia do mercado. Não obstante, é possível pensá-lo de forma muito mais ampla, como o fazem Dardot e Laval (2016), autores para os quais o neoliberalismo é uma racionalidade, um sistema normativo subjacente a todas as relações sociais vigentes na contemporaneidade capitalista. - com destaque para as medidas de austeridade fiscal e a consequente redução de investimentos públicos em setores como a saúde e a previdência - em promover uma coordenação em nível mundial para lidar com a pandemia e sua inépcia em contê-la internamente são evidências cabais desse fato.

Para o Brasil, autores como Souza (2020SOUZA, D. O. A pandemia de COVID-19 para além das Ciências da Saúde: reflexões sobre sua determinação social. Ciência & Saúde Coletiva , Manguinhos, v. 25, p. 2469-2477, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.11532020
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) e Lima, Buss e Paes-Sousa (2020LIMA, N. T.; BUSS, P. M.; PAES-SOUSA, R. A pandemia de COVID-19: uma crise sanitária e humanitária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. 1-4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00177020
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) apresentam alguns elementos importantes do que podemos chamar de determinação social da pandemia da covid-19: (1) a prioridade dada à esfera econômica e o atraso nas medidas de fechamento de fronteiras e isolamento social; (2) o individualismo burguês próprio do período atual e relativização da gravidade da pandemia, com resistência à adoção de medidas preventivas por parte da população; (3) a disseminação de fake news sobre a pandemia; (4) o agravamento da desigualdade social e impactos diferenciados segundo a estrutura de classes; e, por fim, (5) a fragilização dos sistemas públicos de saúde, previdência e assistência social, típica de Estados neoliberais55Lima, Buss e Paes-Sousa (2020, p. 2) acrescentam ainda a “[…] negação da gravidade do quadro, promessas tecnológicas irrealizáveis, cultura do medo, misticismo da imunidade e da cura, mercantilização do cuidado, exortação por um evitável sacrifício alheio, inépcia na gestão dos meios de combate disponíveis”..

No que se refere especificamente às medidas de fechamento de fronteiras, convém notar sua ambivalência, uma vez que de um lado, tais medidas são indispensáveis, pois visam a atender às necessidades de restrição da circulação em função da emergência sanitária, mas por outro, se tomadas de forma absoluta, podem impor restrições dramáticas à própria sobrevivência de imigrantes pobres e refugiados.

Quanto ao último ponto, é preciso considerar que a pandemia impõe uma demanda extra de estruturas, insumos e recursos humanos aos sistemas de saúde (Ribeiro et al., 2020RIBEIRO, A. P.; OLIVEIRA, G. L.; SILVA, L. S.; SOUZA, E. R. Saúde e segurança de profissionais de saúde no atendimento a pacientes no contexto da pandemia de covid-19: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , v. 45, n. 25, p. 1-12, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000013920
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). No caso brasileiro, o Sistema Único de Saúde (SUS), maior sistema público de saúde do mundo, tem sofrido um intenso processo de precarização devido à redução de investimentos, principalmente nos últimos três anos, em função do novo regime fiscal implementado por meio da Emenda Constitucional n. 95 (Lacaz et al., 2019 apud Barroso et al., 2020BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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), que congelou os investimentos públicos em setores essenciais como a saúde por duas décadas, a despeito do crescimento populacional e das já conhecidas insuficiências preexistentes.

Por último e não menos importante, cabe destacar como decisiva a catastrófica postura negacionista do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, entre outras coisas, minimizando a gravidade da pandemia, estimulando a população a não seguir as medidas de isolamento e cuidados básicos como o uso de máscara, além de recomendar o uso de medicação sem eficácia comprovada para prevenção e tratamento da doença. Muito ao contrário do que se supunha inicialmente, longe de revelar apenas incompetência e/ou negligência por parte do governo, um estudo realizado pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da USP e pela Conectas Direitos Humanos (Cepedisa; Conectas Direitos Humanos, 2021CEPEDISA; CONECTAS DIREITOS HUMANOS. Direitos na pandemia: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil. Boletim n. 10. São Paulo, 20 jan. 2021.) comprovou por meio de exaustiva análise documental que tal postura atrela-se a uma estratégia institucional e sistemática de propagação do vírus66O estudo, publicado no Boletim Direitos na Pandemia n. 10, coletou e analisou as 3.049 normas relativas à covid-19 que foram editadas em 2020 no âmbito da União e está disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-10..

Segundo dados do Painel covid-19 do Ministério da Saúde77Disponíveis em: https://covid.saude.gov.br/., no mês de abril de 2021, com o colapso do sistema de saúde consumado em vários estados, o Brasil atingiu o pior momento, desde o início da pandemia, com o registro de mais de 4.200 óbitos em um único dia. Felizmente, a partir de junho do mesmo ano, o número de novos casos e óbitos decorrentes da doença sofreu uma desaceleração em função do avanço da cobertura vacinal, inclusive com as doses complementares. Convém notar que o número de novos casos voltou a crescer no início de 2022, por conta da difusão da variante ômicron, porém sem o crescimento correspondente do número de óbitos (Figura 1).

Figura 1
"Óbitos e casos novos de COVID-19 no Brasil, por data de notificação (mar. de 2021 a fev. de 2022)"

No final de fevereiro de 2022, momento em que concluímos a revisão final deste trabalho, o Brasil totaliza 28.768.104 de casos de covid-19 e 649.134 óbitos decorrentes da doença. Os dados oficiais apresentados pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2021WHO. Coronavirus (COVID-19) dashboard. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://covid19.who.int > Acesso em: 15 set. 2022.
https://covid19.who.int...
)88Os dados correspondem ao dia 28 de fevereiro de 2022 e estão disponíveis em: https://covid19.who.int/table. colocam o Brasil na dramática condição de terceiro colocado no mundo em número de casos, pouco atrás da Índia, e segundo no número total de óbitos, apenas atrás dos Estados Unidos.

Uma bomba que explodiu entre ruinas

Na esteira dos discursos que opõem pandemia e economia, principal antagonismo defendido e reforçado pelo governo atual, houve outra ideia bastante disseminada cuja pandemia teria causado um grave problema para os trabalhadores brasileiros, parte dos quais atingidos diretamente pela doença e/ou com a perda do emprego e da renda, total ou parcialmente, em função de seus supostamente inevitáveis efeitos deletérios. Ao situar-se no presente, desconsiderando processos anteriores e ainda em curso, essa leitura da realidade pode embotar gravemente nossa percepção acerca da complexidade dos problemas vivenciados pela grande maioria dos trabalhadores.

Como uma bomba que atingiu as ruínas de uma cidade já devastada por ataques anteriores, a pandemia tem se desdobrado sobre um terreno preexistente de intenso desemprego, precarização do trabalho e ataques à saúde dos trabalhadores, o qual, posto em marcha décadas antes, ganhou forte impulso a partir do golpe jurídico-político-midiático de agosto de 2016.

O Brasil do início de 2020 já não era nenhum paraíso para o trabalhador. Precedem três décadas de políticas neoliberais - ora mais radicais, como durante os governos Collor (1990-1992) e FHC (1995-2002); ora atenuadas significativamente pelos governos progressistas e novo-desenvolvimentistas de Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016) -, reestruturação produtiva da produção e, consequentemente, intensa precarização do trabalho (Alves, 2014ALVES, G. Trabalho e Neodesenvolvimentismo: choque de capitalismo e nova degradação do trabalho no Brasil. Bauru: Práxis, 2014.; Antunes, 1999ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.).

A despeito das conhecidas limitações dos dados e informações existentes (Lourenço, 2012LOURENÇO, E. A. de S. Degradação do trabalho e agravos à saúde dos trabalhadores no setor agroindustrial canavieiro. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 13, n. 2, p. 20-45 2012. DOI: 10.33026/peg.v13i2.2025
https://doi.org/10.33026/peg.v13i2.2025...
; Pignati; Machado, 2005PIGNATI, W. A.; MACHADO, J. M. H. Riscos e agravos à saúde e à vida dos trabalhadores das indústrias madeireiras de Mato Grosso. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 961-973, 2005. DOI: 10.1590/S1413-81232005000400019
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200500...
), por sua quantidade, extensão e gravidade, historicamente os agravos do trabalho têm figurado como um verdadeiro problema de saúde pública no Brasil, fato que nos autoriza a fazer coro com Thomaz Junior (2017THOMAZ JUNIOR, A. Degradação sistêmica do trabalho no agrohidronegócio. Mercator, Fortaleza, v. 16, p. 1-20, 2017. DOI: 10.4215/rm2017.e16020
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) ao afirmar que a degradação do trabalho assume um caráter sistêmico no país. Ainda assim, a preocupação com a vigilância em saúde do trabalhador e o reconhecimento formal do vínculo entre trabalho e saúde foram incorporados tardiamente à legislação brasileira e às políticas públicas, tendo como marco a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Disfarçado de impeachment e articulado pelos parlamentares brasileiros em conluio com a grande imprensa e o poder judiciário, o golpe de Estado que destituiu a presidenta Dilma Rousseff e colocou seu vice Michel Temer na cadeira presidencial significou uma aceleração sem precedentes históricos em direção ao neoliberalismo ortodoxo e, assim, a intensificação da precarização, degradação do trabalho e do desemprego. Entre tantos outros, três marcos recentes são emblemáticos disso: a promulgação da citada Emenda Constitucional nº 95/2016, que, como dito anteriormente, estabeleceu o congelamento dos gastos públicos por 20 anos e vilipendiou direitos fundamentais previstos na Constituição Federal; e a aprovação das Leis nº 13.429/2017, que regulamenta o trabalho temporário e a terceirização, inclusive em atividades-fim, e nº 13.467/2017, conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, a qual, sob o pretexto da modernização, perpetrou retrocessos jamais registrados nos direitos trabalhistas.

Como esclarecem Marcelino e Galvão (2020MARCELINO, P.; GALVÃO, A. O sindicalismo brasileiro diante da ofensiva neoliberal restauradora. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 157-182, 2020. DOI: 0.11606/0103-2070.ts.2020.167468
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, p. 166):

A lei 13.467, aprovada em julho e em vigor a partir de novembro de 2017, desconstrói uma série de direitos e desfere um ataque contundente às instituições públicas de regulação do trabalho, especialmente à Justiça do Trabalho. Ao mesmo tempo em que legaliza uma série de práticas flexibilizadoras já existentes no mercado de trabalho, ela amplia as opções de que o capital dispõe para utilizar a força de trabalho de acordo com seus interesses.

Como se não bastasse, o governo de extrema-direita do sucessor, Jair Bolsonaro elevou a precarização do trabalho a um novo patamar, esforçando-se por cumprir à risca a promessa de que, depois de eleito, o trabalhador brasileiro deveria escolher entre emprego e direitos99Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2018/12/04/bolsonaro-trabalhador-tera-de-escolher-entre-mais-direitos-ou-emprego.ghtml.. A extinção do Ministério do Trabalho e Emprego (MP 870/2019), a promulgação da chamada “Lei da Liberdade Econômica” (Lei nº 13.874/2019), a criação do programa Verde e Amarelo1010A chamada “Lei da liberdade econômica” dispensa empresas de até vinte empregados de registro de ponto e propõe outras medidas que contribuem para a informalização ou a precarização do trabalho e o Programa Verde e Amarelo institui um contrato de duração determinada para jovens, com redução de alíquotas para o FGTS e isenção de contribuições sociais (Marcelino; Galvão, 2020). e a aprovação da Reforma Previdenciária (PEC 6/2019) são alguns dos “feitos” de Bolsonaro nessa direção. Chama atenção, ainda, a obstinação do governo atual por tornar menos “rigorosas” e/ou eliminar de vez a maioria das Normas Regulamentadoras (NR) dedicadas à garantia da segurança e da preservação da saúde dos trabalhadores.

Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais, 2020RELAÇÃO ANUAL DE INFORMAÇÕES SOCIAIS. Bases estatísticas do RAIS e CAGED. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://bi.mte.gov.br/bgcaged/ >. Acesso em: 16 mai. 2022.
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), no final de 2019, o Brasil possuía 506,5 mil vínculos formais de trabalho ativos a menos que em 2015. O total de trabalhadores admitidos entre 2015 e 2019 (Gráfico 1) despencou de 976.564 para 484.361, uma redução de 492.203 contratações (50,4%) em apenas quatro anos, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged, 2020).

Gráfico 1
Trabalhadores admitidos no Brasil, 2015-2019

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PNAD Contínua/IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro, 2020.) os trabalhadores desocupados somavam pouco mais de 9 milhões no quarto trimestre de 2015, passando a 12,8 milhões no primeiro trimestre de 2020 e elevando a taxa de desocupação em 4,3 pontos (de 7,9 para 12,2), um aumento de 42,4%. A mesma fonte revelou que, em 2019, mesmo entre os ocupados, o percentual de informalidade atingia 41,6% dos trabalhadores, com predominância de pessoas pretas e pardas (47,4%) sobre pessoas brancas (34,5%). Isso sem contar os trabalhadores em situação de trabalho intermitente, modalidade formalizada pela reforma trabalhista cujas contratações somaram 71 mil em 2018 e 155 mil em 2019.

No tocante à segurança e saúde dos trabalhadores, a situação não era menos preocupante. Entre 2009 e 2018 (último ano da série histórica), entre os trabalhadores formais do setor privado foram oficialmente registrados 6.696.614 acidentes de trabalho com emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) pelo Instituto Nacional de Segurança Social (INSS). Os casos de acidentes de trabalho fatais no mesmo período somaram 25.631. Só em 2018, foram registrados 623.786 acidentes com CAT registrada, totalizando 2.022 mortes decorrentes de acidentes de trabalho, isso sem contar a subnotificação que, segundo a própria fonte, atingiu 24,7% no mesmo ano1111Os dados de acidentes foram extraídos do Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho (OSST) e estão disponíveis em: https://smartlabbr.org/..

O início da pandemia mais aprofundou as tendências já em curso, que propriamente criou problemas. O total de pessoas empregadas no primeiro trimestre de 2020 era de pouco mais de 61,7 milhões, despencando para cerca de 54,8 milhões no terceiro trimestre do mesmo ano, uma redução de mais de 11% em apenas seis meses (PNAD Contínua/IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro, 2020.). Paralelamente, a taxa de desocupação atingiu recorde histórico no mesmo período, passando de 12,2 para 14,6 (Gráfico 2).

Gráfico 2
Taxa de desocupação no Brasil, por trimestre, em 2020

No final do terceiro trimestre daquele ano, a taxa de desocupação atingia 13,1%, os desempregados somavam 14,1 milhões de pessoas e os desalentados (aqueles que desistiram de procurar emprego e que, portanto, não entram na conta oficial dos desempregados) já somavam 5,9 milhões no Brasil (PNAD Contínua/IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro, 2020.). Um estudo realizado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) revelou que o percentual de pessoas que deixou de comprar comida por falta de recursos mais que dobrou no Brasil, passando de 6% para 13% entre julho e novembro de 2020 (Gaier, 2020GAIER, R. V. Unicef: Número de brasileiros sem dinheiro para comprar comida dobra de julho a novembro. UOL - Economia, [S l], 11 dez. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/12/11/numero-de-brasileiros-sem-dinheiro-para-comprar-comida-dobra-de-julho-a-novembro-diz-unicef.htm >. Acesso em 11 jan. 2020.
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).

O ano seguinte foi de tímida recuperação econômica e leve queda na taxa de desocupação, a qual atingiu 11,1% no quarto trimestre de 2021, fora os 4,3% de desalentados (PNAD Contínua/IBGE, 2020IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Rio de Janeiro, 2020.).

A toda essa situação de exclusão e precariedade do mercado de trabalho têm se somado os riscos e agravos à saúde dos trabalhadores decorrentes do avanço da pandemia, cujo vulto é ainda pouco dimensionado, visto que, à conhecida subnotificação dos agravos à saúde dos trabalhadores (Pignati; Machado, 2005PIGNATI, W. A.; MACHADO, J. M. H. Riscos e agravos à saúde e à vida dos trabalhadores das indústrias madeireiras de Mato Grosso. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 961-973, 2005. DOI: 10.1590/S1413-81232005000400019
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200500...
; Lourenço, 2012LOURENÇO, E. A. de S. Degradação do trabalho e agravos à saúde dos trabalhadores no setor agroindustrial canavieiro. Revista Pegada, Presidente Prudente, v. 13, n. 2, p. 20-45 2012. DOI: 10.33026/peg.v13i2.2025
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) somou-se a subnotificação dos casos da covid-19 entre trabalhadores (Barroso et al., 2020BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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).

Aqui, é preciso reforçar novamente a determinação social do processo saúde-doença, não nos esquecendo de que a covid-19 atinge mais duramente a classe trabalhadora que a população em geral (Heck ., 020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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). Quanto a isso, como apontam Barroso et al. (2020BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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, p. 1096), é revelador o fato de que “tanto no Brasil quanto na China, as primeiras mortes por covid-19 foram de trabalhadores contaminados no exercício de suas funções”.

Obviamente, dentre todos o caso dos profissionais da saúde é o mais grave por tratar-se

[…] de uma exposição que pode ser compreendida como ‘exposição biológica’ e a maioria, se não todos os profissionais de saúde, estão expostos e possuem alto risco de adquirir a doença, particularmente ao realizar procedimentos em vias aéreas ou próximos a elas. (Ribeiro et al., 2020RIBEIRO, A. P.; OLIVEIRA, G. L.; SILVA, L. S.; SOUZA, E. R. Saúde e segurança de profissionais de saúde no atendimento a pacientes no contexto da pandemia de covid-19: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , v. 45, n. 25, p. 1-12, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000013920
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, p. 2)1212Segundo os mesmos autores, “a literatura científica sobre o assunto aponta que os profissionais da área de Saúde têm três vezes mais chances de contrair o vírus do que a população em geral” (Ribeiro et al., 2020, p. 2).

Importante observar que o setor de atendimento hospitalar foi o que registrou o maior número de casos de acidente de trabalho em 2018, antes mesmo do início da pandemia, somando 378.305 ocorrências, valor correspondente a 9% do total de casos registrados por todos os setores naquele ano (INSS, 2018). A predominância histórica de mulheres nessa categoria, ao lado da predominância de pretos e pardos entre os trabalhadores informais, comprova o corte de gênero e raça dos impactos causados pela pandemia no Brasil, fato também notado por Harvey nos Estados Unidos (Harvey, 2020HARVEY, D. Política anticapitalista em tempos de Covid-19. In: DAVIS, M. et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos , 2020.).

Não obstante, a estratégia de enfrentamento da doença não pode ficar circunscrita apenas às atividades tidas como diretamente relacionadas com a covid-19, devendo abranger o campo do trabalho como um todo (Jackson Filho ., 2020JACKSON FILHO, J. M.; ASSUNÇÃO, A. A.; ALGRANTI, E.; GARCIA, E. G.; SAITO, C. A.; MAENO, M. Editorial: A saúde do trabalhador e o enfrentamento da covid-19. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, n. 14, p. 1-3, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369ED0000120
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). Mesmo porque, a pandemia revelou a enorme fragilidade das leis e normas voltadas para assegurar a saúde e segurança dos trabalhadores no Brasil (Barroso et al., 2020BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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). Desde o começo, as autoridades competentes foram impelidas à construção de um novo ordenamento normativo acerca da situação estabelecida, iniciando-se então uma disputa entre o Poder Executivo Federal, favorável à preservação do nível de atividade econômica em detrimento da preservação da vida dos trabalhadores, e outros níveis de governo (estados e municípios) e órgãos ligados à saúde.

No dia 29 de março de 2020, o Supremo Tribunal Federal suspendeu em decisão liminar dois artigos da Medida Provisória (MP) 927/2020, que autorizavam os empregadores a adotarem medidas excepcionais, considerando a covid-19 como doença ocupacional equiparada a acidente de trabalho nos serviços essenciais e autorizando os auditores fiscais do trabalho a autuarem empregadores. Com isso, os trabalhadores nos serviços essenciais acometidos não precisarão mais comprovar o nexo entre trabalho e contaminação, como estabelecia originalmente a referida MP, e poderão acessar benefícios como auxílio-doença junto ao INSS (Senado Notícias, 2020SENADO NOTÍCIAS. Para STF, Covid-19 é doença ocupacional e auditores poderão autuar empresas. 30 abr. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/30/para-stf-covid-19-e-doenca-ocupacional-e-auditores-poderao-autuar-empresas >. Acesso em 03 nov. 2020.
https://www12.senado.leg.br/noticias/mat...
).

No dia 18 de junho de 2020, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Saúde baixaram a Portaria Conjunta nº 20 (Brasil, 2020BRASIL. Secretaria Especial de Previdência e Trabalho e Ministério da Saúde. Portaria Conjunta n 20, de 18 de junho de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 jun. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.semesp.org.br/wp-content/uploads/2020/06/PORTARIA-CONJUNTA-Nr-20-DE-18-DE-JUNHO-DE-2020.pdf >. Acesso em: 6 jan. 2021.
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), que estabeleceu medidas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 nos ambientes de trabalho. As medidas estão orientadas em dois sentidos complementares: (1) estabelecimento e divulgação, por parte das organizações, das orientações e protocolos visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da covid-19 (privilegiamento do trabalho remoto, quanto possível; uso de máscara; distanciamento de um metro entre trabalhadores, quando possível; higiene das mãos e etiqueta respiratória etc.), as quais devem estar disponíveis para os trabalhadores e suas representações; (2) conduta adequada em relação a casos suspeitos e confirmados de covid-19 e seus contatantes - por exemplo, afastamento remunerado por 14 dias das atividades presenciais de casos confirmados, suspeitos e contatantes de confirmados.

Embora não deixem de ter alguma importância, dado o seu caráter emergencial, por diversos motivos as medidas estabelecidas são insuficientes. Em primeiro lugar, em função do seu caráter meramente mitigatório e generalista, baseado em protocolos comportamentais voltados para a adoção de cuidados individuais capazes de atenuar os riscos existentes e formas de lidar com os casos suspeitos e consumados, desconsiderando as condições, as relações e a organização do trabalho como um todo em cada atividade e local de trabalho (Jackson Filho ., 2020JACKSON FILHO, J. M.; ASSUNÇÃO, A. A.; ALGRANTI, E.; GARCIA, E. G.; SAITO, C. A.; MAENO, M. Editorial: A saúde do trabalhador e o enfrentamento da covid-19. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, n. 14, p. 1-3, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369ED0000120
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). E mesmo incipientes, a falta de condições objetivas de fiscalização do cumprimento das normas estabelecidas por parte dos empregadores constitui outro grave problema para a sua efetivação. Ademais, as normas previstas limitam-se apenas ao espaço do trabalho em si, desconsiderando, por exemplo, as condições de moradia e o transporte dos trabalhadores até o local de trabalho - imaginemos, por exemplo, o caso daqueles que moram em habitações precárias e precisam deslocar-se a partir das periferias das grandes cidades todos os dias em ônibus lotados até o local de trabalho.

Com efeito, é necessário ter em mente que os impactos deletérios da pandemia atingem os trabalhadores de forma seletiva, segundo situações específicas de trabalho1313Diversos especialistas utilizam a expressão “situação de trabalho” para fazer referência ao conjunto complexo que inclui as condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de trabalho; os aspectos técnicos; a organização prescrita e real das atividades e sua gestão; a característica dos canais formais de comunicação e das relações interpessoais (Seligmann-Silva, 2011, p. 255). e vida. As afirmações de Davis (2020DAVIS, M. A crise do Coronavírus é um monstro alimentado pelo capitalismo. In: DAVIS, M. et al. Coronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra sem amos, 2020., p. 9) em análise do caso dos trabalhadores estadunidenses serve muito bem para a realidade dos trabalhadores brasileiros(as) durante a pandemia:

O surto expôs instantaneamente a divisão de classes na saúde americana. Aqueles com bons planos de saúde que também podem trabalhar ou ensinar de casa estão confortavelmente isolados, desde que sigam salvaguardas prudentes. Os funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão de fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores com baixos salários, trabalhadores rurais, desempregados e sem teto estão sendo jogados aos lobos.

Mesmo para o seleto grupo dos trabalhadores que puderam optar ou tiveram suas atividades presenciais compulsoriamente convertidas em remotas, a redução do risco do contágio pelo vírus ocorre paralelamente ao crescimento dos riscos de outros tipos de adoecimento, devido a fatores como as mudanças na rotina laboral e à sobrecarga mental.

Mais do que isso, como afirmaram Heck et al. (2020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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),

Não se trata apenas de constatar os riscos presentes no ambiente de trabalho que podem ampliar o contágio e proliferação do novo coronavírus […] mas sobretudo apontar as contradições das relações sociais de produção, que degradam o trabalho e põem em risco a proteção e a segurança do/a trabalhador/a, sua saúde e vida como condição objetiva e inerente ao modo de produção capitalista. (Heck et al. 2020HECK, F. M.; NASCIMENTO JÚNIOR, L.; RUIZ, R. C.; MENEGON, F. A. Os territórios da degradação do trabalho na Região Sul e o arranjo organizado a partir da COVID-19: A centralidade dos frigoríficos na difusão espacial da doença. Metodologias e Aprendizado, Florianópolis, v. 3, p. 54-68, 2020. DOI: 10.21166/metapre.v3i0.1332
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)

Corroborando a perspectiva adotada pelos autores, recordamos aqui que o trabalho na sociedade capitalista é trabalho abstrato e alienado, explorado e dominado pelo capital, o qual, como nos explicou Marx (2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2013.), por sua própria lógica autoexpansiva inerente de funcionamento não pode ter qualquer consideração legítima com a segurança e a saúde dos trabalhadores, a menos que seja forçado pela sociedade a tê-la (Marx, 2013MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo , 2013., p. 342).

O capital não tem […] a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração. Às queixas quanto a degradação física e mental, a morte prematura, a tortura do sobretrabalho, ele responde: deveria esse martírio nos martirizar, ele que aumenta nosso gozo (o lucro)? De modo geral, no entanto, isso tampouco depende da boa ou má vontade do capitalista individual. A livre-concorrência impõe ao capitalista individual, como leis inexoráveis, as leis imanentes da produção capitalista.

É flagrante, portanto, a falsidade da oposição entre economia e pandemia. Tratam-se, na verdade, dos constrangimentos impostos pela pandemia à acumulação ampliada do capital, cujo fundamento não é (e nem pode ser) a satisfação das necessidades humanas, mas a continuidade ininterrupta da extração de mais-valia, por meio da exploração do trabalho humano.

Desse modo, sob pressão da sociedade, especialmente dos trabalhadores e suas organizações representativas de classe, no curto prazo caberia ao Estado impor limites ao capital e estabelecer medidas de compensação e reparação dos danos causados pela covid-19 aos trabalhadores e às pequenas e médias empresas, os mais afetados pela pandemia. Isso foi feito em países como a Alemanha e o Japão, cujos governos rapidamente mobilizaram-se para anunciar pacotes bilionários de ajuda para trabalhadores e empresas em dificuldade.

Entretanto, no Brasil de Jair Bolsonaro e seu Chicago boy tardio, Paulo Guedes, a ortodoxia neoliberal ditou a tônica de uma política de compensação às avessas, a qual se apressou em destinar R$ 1,2 trilhões para os bancos e, após muita pressão da oposição no Congresso Nacional, pautou um plano de Auxílio Emergencial para trabalhadores que esteve vigente entre abril e dezembro de 2020, sendo suspenso justamente na pior fase da pandemia no país1414O auxílio emergencial foi instituído pela Lei nº 13.982/2020, de 2 de abril de 2020. A proposta inicial do Governo era de conceder parcas parcelas de R$ 200,00, mas, após muita pressão da oposição no Congresso, o valor foi elevado para R$ 600,00.. Ao todo, o valor total gasto com o auxílio em 2020 (cerca de R$ 294 bilhões) representou menos de um quarto do valor generosamente destinado aos bancos, o que demonstra o compromisso de classe do governo Bolsonaro com setores da grande burguesia e, neste caso, do setor financeiro, em detrimento dos setores médio e da classe trabalhadora.

Considerações finais

Como expressão concreta do processo saúde-doença em geral, muito longe de ser apenas uma fatalidade biológica, a pandemia da covid-19 constitui também um fenômeno social, apresentando determinações cuja desconsideração faz perder de vista qualquer possibilidade de entendimento em sua complexidade. Isso implica considerar o fato de que os padrões e a velocidade de seu espalhamento, bem como a gravidade de seus impactos na saúde pública, estão diretamente relacionados à fatores como a integração espacial e a aceleração dos fluxos em escala planetária, o padrão urbano-rodoviário de dispersão, o adensamento populacional urbano e a crescente desigualdade social nas cidades, a conjuntura política e, por conseguinte, a fragilização dos sistemas de saúde pública e seguridade social.

No Brasil, desafortunadamente, acrescenta-se a tudo isso um governo cujo plano para “lidar” com a pandemia tem sido incentivar propositalmente o seu agravamento, minimizando sua gravidade, estimulando a população a não seguir os protocolos de segurança estabelecidos ou ainda, promover o uso de medicação sem eficácia comprovada para prevenção e tratamento da doença.

No mesmo sentido, cremos ter demonstrado que a situação de extrema precarização e vulnerabilidade a qual a esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros estava relegada antes mesmo do início da pandemia, sobretudo devido ao projeto ultraliberal implementado à toque de caixa pelos governos Temer e Bolsonaro, deve ser o ponto de partida para a compreensão de seus desdobramentos posteriores. Sendo assim, o caos atual não deve ser considerado senão como o acirramento dramático desses processos, com consequências nefastas para milhões de pessoas.

É imprescindível, ainda, refutar com veemência a falaciosa oposição entre economia e pandemia, como faz o governo atual com o apoio de sua base, supondo que se deva escolher entre o cuidado com a saúde dos trabalhadores e a manutenção dos empregos. Na verdade, estamos diante da vil escolha entre a vida e a acumulação ampliada do capital, cujo interesse é representado encarniçadamente por suas personificações no Estado, em tempos de crise estrutural.

Agradecimentos

Agradecemos ao Prof. Dr. Fernando Mendonça Heck (IFSP), pela leitura criteriosa e pelas críticas e sugestões ao manuscrito original.

Referências

  • ALVES, G. Trabalho e Neodesenvolvimentismo: choque de capitalismo e nova degradação do trabalho no Brasil. Bauru: Práxis, 2014.
  • ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
  • BARROSO, B. I. L.; SOUZA, M. B. C. A.; BREGALDA, M. M.; LANCMAN, S.; COSTA, V. B. B. A saúde do trabalhador em tempos de COVID-19: reflexões sobre saúde, segurança e terapia ocupacional. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 1093-1102, 2020. DOI: 10.4322/2526-8910.ctoARF2091
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  • 1
    Uma versão preliminar deste ensaio, aqui revista e ampliada, foi apresentada na XXI Jornada do Trabalho, evento virtual realizado entre os dias 03 e 10 de novembro de 2021 e sediado pela Universidade Federal de Santa Maria (RS).
  • 2
    Os dados apresentados correspondem ao dia 28/02/2022 e estão disponíveis em: https://covid19.who.int/.
  • 3
    Partindo da mesma constatação, em um texto intitulado “A naturalização da pandemia no Brasil” Portella e Oliveira (2020PORTELLA, S.; OLIVEIRA, S. S. A naturalização da pandemia no Brasil. Coimbra: Osiris, 2020.) problematizam a naturalização de crises como a pandemia da covid-19 e desastres em geral, tratando-a como uma tendência no modo como a imaginação ocidental enfrenta esses problemas.
  • 4
    É fato que, atualmente, o termo neoliberalismo tornou-se relativamente polissêmico, dada a existência de uma série de matizes conceituais e aspectos particulares e locais oriundos das experiências concretas de sua adoção. Neste trabalho, usamos o termo no sentido de doutrina econômica que propõe a redução do Estado, no que se refere especificamente à sua função de garantidor dos direitos sociais e de regulamentador das relações de trabalho, face à primazia do mercado. Não obstante, é possível pensá-lo de forma muito mais ampla, como o fazem Dardot e Laval (2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo , 2016.), autores para os quais o neoliberalismo é uma racionalidade, um sistema normativo subjacente a todas as relações sociais vigentes na contemporaneidade capitalista.
  • 5
    Lima, Buss e Paes-Sousa (2020LIMA, N. T.; BUSS, P. M.; PAES-SOUSA, R. A pandemia de COVID-19: uma crise sanitária e humanitária. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. 1-4, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00177020
    https://doi.org/10.1590/0102-311X0017702...
    , p. 2) acrescentam ainda a “[…] negação da gravidade do quadro, promessas tecnológicas irrealizáveis, cultura do medo, misticismo da imunidade e da cura, mercantilização do cuidado, exortação por um evitável sacrifício alheio, inépcia na gestão dos meios de combate disponíveis”.
  • 6
    O estudo, publicado no Boletim Direitos na Pandemia n. 10, coletou e analisou as 3.049 normas relativas à covid-19 que foram editadas em 2020 no âmbito da União e está disponível em: https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-10.
  • 7
    Disponíveis em: https://covid.saude.gov.br/.
  • 8
    Os dados correspondem ao dia 28 de fevereiro de 2022 e estão disponíveis em: https://covid19.who.int/table.
  • 9
  • 10
    A chamada “Lei da liberdade econômica” dispensa empresas de até vinte empregados de registro de ponto e propõe outras medidas que contribuem para a informalização ou a precarização do trabalho e o Programa Verde e Amarelo institui um contrato de duração determinada para jovens, com redução de alíquotas para o FGTS e isenção de contribuições sociais (Marcelino; Galvão, 2020MARCELINO, P.; GALVÃO, A. O sindicalismo brasileiro diante da ofensiva neoliberal restauradora. Tempo Social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 157-182, 2020. DOI: 0.11606/0103-2070.ts.2020.167468
    https://doi.org/0.11606/0103-2070.ts.202...
    ).
  • 11
    Os dados de acidentes foram extraídos do Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho (OSST) e estão disponíveis em: https://smartlabbr.org/.
  • 12
    Segundo os mesmos autores, “a literatura científica sobre o assunto aponta que os profissionais da área de Saúde têm três vezes mais chances de contrair o vírus do que a população em geral” (Ribeiro , 2020RIBEIRO, A. P.; OLIVEIRA, G. L.; SILVA, L. S.; SOUZA, E. R. Saúde e segurança de profissionais de saúde no atendimento a pacientes no contexto da pandemia de covid-19: revisão de literatura. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional , v. 45, n. 25, p. 1-12, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000013920
    https://doi.org/10.1590/2317-63690000139...
    , p. 2).
  • 13
    Diversos especialistas utilizam a expressão “situação de trabalho” para fazer referência ao conjunto complexo que inclui as condições físicas, químicas e biológicas do ambiente de trabalho; os aspectos técnicos; a organização prescrita e real das atividades e sua gestão; a característica dos canais formais de comunicação e das relações interpessoais (Seligmann-Silva, 2011SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011., p. 255).
  • 14
    O auxílio emergencial foi instituído pela Lei nº 13.982/2020, de 2 de abril de 2020. A proposta inicial do Governo era de conceder parcas parcelas de R$ 200,00, mas, após muita pressão da oposição no Congresso, o valor foi elevado para R$ 600,00.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    03 Jul 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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