Produção científica em saúde da população LGBTQIA+: uma análise crítica do conteúdo da literatura

Luiz Eduardo de Almeida Julicristie Machado de Oliveira Valéria de Oliveira Fábio Luiz Mialhe Sobre os autores

Resumo

Esta pesquisa traz em seu escopo a análise do potencial estigmatizador do conteúdo de estudos direcionados à população LGBTQIA+ indexados na plataforma PubMed. Por meio de uma ampla e sistemática pesquisa bibliográfica foram identificados e incluídos, respectivamente, 821 e 334 (40,68%) artigos, dos quais foram extraídos 1838 descritores. Da análise dos dados coletados foram identificados as maiores prevalências dos descritores “men having sex with man” (192 repetições) e “HIV” (98 repetições). Sendo assim, o percurso analítico das informações levantadas refletiu que a população LGBTQIA+ é essencialmente designada como “homens que fazem sexo com outros homens e soropositivos”. Este estudo traz, portanto, a presença de características estigmatizantes nos estudos direcionados à população LGBTQIA+. Contudo, cabe destacar que o resultado encontrado é subsídio para o fortalecimento de uma perspectiva crítica de um fazer científico mais humanizado e direcionado às especificidades e necessidades da população LGBTQIA+.

Palavras-chave:
Minorias Sexuais e de Gênero; Preconceito; Estigma Social; Indicadores de Produção Científica; Descritores

Introdução

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Panamericana da Saúde (Opas) estruturaram, em 2013, o documento Addressing the causes of disparities in health service access and utilization for lesbian, gay, bisexual and trans (LGBT) (WHO, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Addressing the causes of disparities in health service access and utilization for lesbian, gay, bisexual and trans (LGBT) persons. Washington, DC: World Health Organization, 2013.). Nele foi evidenciado o importante trabalho das américas em proverem políticas públicas direcionadas às necessidades de saúde da vulnerável população LGBTQIA+ (Lésbicas; Gays; Bissexuais; Travestis/Transexuais/Transgêneros; Queer/Não binariedade; Intersexo; Assexuado; +/Outras orientações de gênero e/ou sexual), destacando como imprescindíveis o aperfeiçoamento no acesso à atenção de saúde relacionadas ao processo de melhora dos indicadores gerais desses indivíduos (WHO, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Addressing the causes of disparities in health service access and utilization for lesbian, gay, bisexual and trans (LGBT) persons. Washington, DC: World Health Organization, 2013.).

No cenário nacional, por meio de intensas lutas embasadas pelos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, foi instituída, com auxílio da Portaria nº 2.836, de 01 de dezembro de 2011, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, denominada de PNSI-LGBT (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.).

Em linhas gerais, a PNSI-LGBT apresenta, entre suas diretrizes e objetivos, o tema da diversidade sexual e de gênero no cotidiano dos processos de trabalho do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.). Para isso, enfatiza-se a implementação de alguns avanços, como a inclusão dos campos: nome social, orientação sexual e identidade de gênero na ficha de cadastro individual do e-SUS, bem como na ficha de notificação de violência no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.).

Contudo, para que não seja transformado em um instrumento cuja efetividade é fragilizada, tão ou mais importante que a própria política é a certeza de sua aplicação junto à recursos humanos em saúde que acreditem nela, implantem e consolidem essa política por meio de práticas direcionadas às múltiplas realidades dos sujeitos (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.). Um círculo virtuoso fruto de profissionais adequadamente formados e aptos a assistirem integralmente as demandas em saúde da população LGBTQIA+ (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.). A PNSI-LGBT inclusive sugere alguns caminhos:

Incluir os temas orientação sexual e identidade de gênero nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde e no exercício do controle social (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013., p. 28)

Inserção da temática LGBT no Módulo de Educação a Distância (EAD), para cursos de formação voltados para profissionais de saúde e UnaSUS. (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013., p. 30)

Articulação para garantir que estratégias como o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde (Portaria Interministerial MS/MEC nº 3.019, de 26 de novembro de 2007), o Programa Telessaúde Brasil - Telessaúde (Portaria nº 2.546, de 27 de outubro de 2011) e o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde - PET Saúde (Portaria Interministerial MS/MEC nº 421, de 3 de março de 2010) considerem as questões desta política. (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013., p. 30)

Dessa forma, torna-se fundamental sensibilizar, formar e/ou capacitar profissionais de saúde alinhados ao cuidado integral, afinal

Sem ensino específico sobre temas da saúde LGBTQIA+, profissionais de saúde se formam sem as competências adequadas para responder às necessidades de saúde da população LGBTQIA+, desde o acolhimento, passando pela anamnese e pelo exame físico, até o tratamento e orientações relacionadas às suas demandas. (Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021., p. 513)

Entretanto, o processo formativo em saúde está fundamentalmente relacionado ao protagonismo da produção científica das ciências biomédicas, essencialmente guiadas - mesmo que neguem essa influência por meio de seus utópicos discursos higienistas e “a-políticos” - pelos interesses e ditames do contexto sociopolítico e econômico hegemônico no qual estão inseridas (Canguilhem, 2020CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2020.; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.; Rosa, 2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171).

E é justamente desse cenário que, evidenciado em estudos mais recentes - revisões integrativas e sistemática -, emergiu um discurso médico-científico que endossou e segue reforçando a segmentação da população LGBTQIA+ (Bueno et al., 2020BUENO, N. S.; GOMES, A. J. R.; CARVALHO, C. S.; TANIMITSU, L. Y. R.; GRACIANO, M. V. V.; OLIVEIRA, S. R. R.; ZANI, H. P. Os desafios no acesso à saúde da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais no Brasil: uma revisão integrativa. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 3, n. 4, p. 8524-8538, 2020. DOI: 10.34119/bjhrv3n4-104
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; Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
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; Morris et al., 2019MORRIS, M.; COOPER, R. L.; RAMESH, A.; TABATABAI, M.; ARCURY, T. A.; SHINN, M.; IM, W.; JUAREZ, P.; MATTHEWS-JUAREZ, P. Training to reduce LGBTQ-related bias among medical, nursing, and dental students and providers: a systematic review. BMC Medical Education, Londres, v. 19, n. 1, p. 1-13, 2019. DOI: 10.1186/s12909-019-1727-3
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).

Utilizando-se de uma perspectiva predominantemente positivista e, portanto, “biologicista”, “a-histórica” e “a-social”, desenvolveram mensurações e/ou intervenções essencialmente patologizantes perante quaisquer condições de sexo, gênero e sexualidade que não se coadunem com a hegemonia cisheteronormativa (Bueno et al., 2020BUENO, N. S.; GOMES, A. J. R.; CARVALHO, C. S.; TANIMITSU, L. Y. R.; GRACIANO, M. V. V.; OLIVEIRA, S. R. R.; ZANI, H. P. Os desafios no acesso à saúde da comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais no Brasil: uma revisão integrativa. Brazilian Journal of Health Review, Curitiba, v. 3, n. 4, p. 8524-8538, 2020. DOI: 10.34119/bjhrv3n4-104
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; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.; Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
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; Canguilhem, 2020CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2020.; Morris et al., 2019MORRIS, M.; COOPER, R. L.; RAMESH, A.; TABATABAI, M.; ARCURY, T. A.; SHINN, M.; IM, W.; JUAREZ, P.; MATTHEWS-JUAREZ, P. Training to reduce LGBTQ-related bias among medical, nursing, and dental students and providers: a systematic review. BMC Medical Education, Londres, v. 19, n. 1, p. 1-13, 2019. DOI: 10.1186/s12909-019-1727-3
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; Rosa, 2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171).

De acordo com Abade et al. (2020ABADE, E. A. F.; CHAVES, S. C. L.; SILVA, G. C. O. Saúde da população LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de um espaço de produção científica emergente. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 1-31, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300418
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) e Bezerra et al. (2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
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), o resultado dessa lógica, fundamentalmente calcada em inferências hipotéticas sobre a população LGBTQIA+, materializou-se em uma produção científica insuficiente tanto em qualidade quanto em quantidade.

Fragilidade essa que vai ao encontro de alguns achados da revisão sistemática de Abade et al. (2020ABADE, E. A. F.; CHAVES, S. C. L.; SILVA, G. C. O. Saúde da população LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de um espaço de produção científica emergente. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 1-31, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300418
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202030...
). Segundo os autores (Abade ., 2020ABADE, E. A. F.; CHAVES, S. C. L.; SILVA, G. C. O. Saúde da população LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de um espaço de produção científica emergente. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 1-31, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300418
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202030...
, p. 2), apesar de se perceber uma recente tendência na ampliação da produção científica em saúde da população LGBTQIA+ - maior em cenário internacional quando comparada à literatura nacional e latino-americana -, vê-se a verticalização de seu conteúdo por meio da “existência de três fases: a dos estudos de homossexualidade como doença até 1972; a fase dos estudos da homofobia e suas consequências individuais; e a partir dos anos 1990, um enfoque sobre instituições escolares, de saúde e militares”.

Por fim, atrelado ao que foi mencionado anteriormente, este trabalho, guiado pela hipótese, do conteúdo estigmatizador da literatura científica em saúde junto à população LGBTQIA+, estruturou seu objetivo de analisar, por meio de uma investigação crítica, a presença de um possível viés ideologicamente “LGBTQIA+fóbico” no conteúdo dos estudos mais recentes na área da saúde e disponíveis em “uma das mais importantes e conhecidas bases de dados bibliográficos do mundo”, o “PubMed/Medline” (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021., p. 49). E sob esse pressuposto, alicerçou-se a justificativa dessa pesquisa, pautando tanto na capacidade do enviesamento advindo da própria cisheteronormatividade quanto na ausência de conteúdos junto à literatura científica que contemplassem a temática aqui levantada.

Metodologia

Foi executada uma busca ativa pelo método avançado (“advanced”) no PubMed, desenvolvida pelo National Center for Biotechnology Information (NCBI). Essa plataforma foi escolhida por ser considerada uma das principais fontes de conteúdo científico em saúde publicado em língua inglesa com ampla indexação e alto controle de qualidade (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.).

Para compor a estratégia de busca, foram utilizados o descritor “Sexual and Gender Minorities (Minorias Sexuais e de Gênero)” e seus “Termos alternativos/Entry Terms”, “Previous Indexing” e “See Also”, interconectados por meio da aplicação do operador booleano “OR”, conforme apresentada no Apêndice I (BVS, 2009BVS - BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE Biblioteca Virtual em Saúde - Tutorial de Pesquisa Bibliográfica. São Paulo: Bireme, 2009.).

Para a construção da referida estratégia de busca - entendida como uma linguagem de programação - deu-se em um “bloco de notas” (Bloco de notas/Windows ® ), visto que alguns caracteres, quando oriundos de outros processadores de texto, podem não ser corretamente interpretados nas plataformas de pesquisa, prejudicando o processo de identificação e coleta de dados (BVS, 2009BVS - BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE Biblioteca Virtual em Saúde - Tutorial de Pesquisa Bibliográfica. São Paulo: Bireme, 2009.).

Dessa forma, mais especificamente no dia 12 de setembro de 2021, foi executada a pesquisa na plataforma PubMed. Inicialmente foram encontrados 25.984 trabalhos. Utilizando-se da estratégia de busca mais frequente e eficiente, isto é, que prioriza pela busca de artigos de maior rigor científico e integralmente disponíveis, foram aplicados os filtros “Text Availability (Free full text)” e “Article Type (Clinical Trial; Meta-Analysis; Randomized Controlled Trial; Review; Systematic Review)” (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.). Processo que resultou em 821 artigos exportados sob o formato “PubMed” (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.).

Posteriormente, houve a seleção dos trabalhos. O arquivo anteriormente exportado foi submetido na plataforma de seleção Rayyan (Rayyan®/QCRI/web app) (Ouzzani et al., 2016OUZZANI, M.; HAMMADY, H.; FEDOROWICZ, Z.; ELMAGARMID, A. Rayyan - a web and mobile app for systematic reviews. Systematic Reviews, Oxford, v. 5, p. 2-10, 2016. DOI: 10.1186/s13643-016-0384-4
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). Esse período foi guiado por critérios de inclusão (“possuir título e/ou resumo e/ou descritores que façam alusão à população LGBTQIA+”; “recorte temporal que reflita a contemporaneidade do conteúdo científico a ser analisado, mais precisamente os últimos quinze anos do século XXI - 2006 a 2021”) e exclusão (“retirar trabalhos que não possuam pelo menos um descritor em língua inglesa”; “desconsiderar trabalhos que não sejam artigos, por exemplo, editoriais, resenhas, textos jornalísticos, notas técnicas e outros”) previamente definidos.

Vale destacar que o processo de elegibilidade foi desenvolvido de forma independente por dois dos autores do trabalho contemplando duas fases: a leitura do título e do resumo e a extração dos descritores (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.). Nos casos de discrepâncias, os revisores conseguiram solucioná-las, por meio de duas reuniões de consenso, em que eram realizadas a leitura integral dos trabalhos, dispensando a necessidade de um terceiro avaliador (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.).

Junto a esses processos, deu-se a extração dos dados dos artigos incluídos, sendo eles precisados em um total de 334 (aproximadamente 40,7% de todos os trabalhos levantados no período de pesquisa), delimitando-se o intervalo de publicação entre os anos de 2006 e 2021. O fruto desse percurso se consubstanciou em uma planilha (Excel/Windows ® ) estruturada sob três aspectos: “Título do trabalho”, “Ano de publicação” e “Descritor(es) utilizados”.

Em seguida, passou-se para o processo analítico do trabalho (Honório,;Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.). Nesse período, proveu-se o tratamento estatístico dos dados no software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires © ) (Camargo, Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018), em que foram realizadas duas análises, uma descritiva e outra inferencial (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018). Na primeira foram aferidos o número de descritores diferentes encontrados, bem como a frequência (absoluta e relativa) de suas repetições (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018). Já na outra análise, por meio de três testes (“diagrama de Zipf”, “Análise de similitude” e “Nuvem de palavra”), foram mensuradas as potências (comportamento das frequências das palavras) e as possíveis interconexões entre os descritores levantados no trabalho (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018).

Sob o enfoque argumentativo, o período de discussão do trabalho contemplou a análise das informações criteriosamente levantadas (Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.).

Por fim, por não envolver seres humanos, esta pesquisa não teve seu desenvolvimento condicionado à apreciação e liberação por um Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos.

Resultados

Dos 334 artigos incluídos no estudo foram extraídos um total de 1838 descritores. Contudo, previamente à análise dos dados coletados, foi executada a padronização textual, uma vez que algumas palavras, explicitadas no Apêndice II, apesar de trazerem o mesmo significado, estavam grafadas de formas similares e/ou abreviadas, o que poderia comprometer a qualidade do processo analítico (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018).

Na análise descritiva, em linhas gerais, dos 1838 vocábulos encontrados (“Number of occurrences”) 859 (46,74%) eram diferentes entre si (“Number of forms”) e 662 (36,02%) apareceram uma vez (“Número de hapax”). Para cada estudo, houve uma média de 5,5 descritores (“Média de ocorrências por texto”) (Camargo, Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018) - Figura 1.

Figura 1
Resumo (Iramuteq®)

Seguindo com a descrição, as formas mais utilizadas (“Actives forms”) foram “men having sex with man/MSM (homens que fazem sexo com homens/HSH)” e “HIV (Human Immunodeficiency Vírus / Vírus da Imunodeficiência Humana)”, respectivamente, 192 e 98 vezes. Vale destacar o grande salto da frequência desses descritores quando comparado com o terceiro mais prevalente (“prep” cuja frequência foi de 38 vezes), respectiva e aproximadamente, 5,0 e 2,6 vezes maior - Figura 2.

Figura 2
“Actives forms” (Iramuteq®)

O período inferencial se iniciou com o “diagrama de Zipf”, uma análise lexicográfica que apresenta o comportamento das frequências das palavras por meio de um gráfico ilustrativo, que traz em seu eixo vertical (y) a posição das frequências das palavras por ordem decrescente, e no eixo horizontal (x) as frequências das formas, ambas em escalas logarítmicas (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018). Assim, a partir desse recurso visual, ficou evidente a potência de alguns descritores junto ao banco de dados das palavras coletadas neste estudo - Figura 3.

Figura 3
Diagrama de Zipf (Iramuteq®)

A partir de então, na intenção de se descobrir o grau de potencialidade dos vocábulos mais prevalentes, seguiu-se para a “Análise de similitude” (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018). Daqui depreendeu-se que os descritores “men having sex with man” e “HIV” formaram uma forte interconexão de dois nós críticos, nos quais hierarquicamente desembocaram as demais palavras-chave levantadas no estudo - Figura 4.

Figura 4
Análise de similitude (Iramuteq®)

Complementando, por meio da “Nuvem de palavra”, registrou-se a maior latência do nó crítico formado pelo descritor “men having sex with man”, vista maior complexidade de suas interconexões internas (Camargo; Justo, 2018CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Santa Catarina: Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição, 2018) - Figura 5.

Figura 5
Nuvem de palavra (Iramuteq®)

Percebe-se, portanto, a partir da análise dos descritores utilizados pelos artigos, que a população LGBTQIA+ é essencialmente designada pela literatura científica, como “homens que fazem sexo com outros homens e soropositivos”.

Discussão

Este estudo demonstrou que há um viés estigmatizador na produção científica da área da saúde direcionado à população LGBTQIA+.

Sobre a metodologia utilizada, é fundamental justificar a utilização de descritores no processo analítico deste estudo, pois eles são os principais componentes para a indexação de publicações científicas (Brandau; Monteiro; Braile, 2005BRANDAU, R.; MONTEIRO, R.; BRAILE, D. M. Importância do uso correto dos descritores nos artigos científicos. Brazil Journal of Cardiovascular Surgery, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 7-9, 2005. DOI: 10.1590/S0102-76382005000100004
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; Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.). Além disso, há evidências de que o uso de um vocabulário bem estruturado aumenta as chances de serem encontradas informações científicas de qualidade (Brandau; Monteiro; Baile, 2005BRANDAU, R.; MONTEIRO, R.; BRAILE, D. M. Importância do uso correto dos descritores nos artigos científicos. Brazil Journal of Cardiovascular Surgery, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 7-9, 2005. DOI: 10.1590/S0102-76382005000100004
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; Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.). Brandau, Monteiro e Braile (2005BRANDAU, R.; MONTEIRO, R.; BRAILE, D. M. Importância do uso correto dos descritores nos artigos científicos. Brazil Journal of Cardiovascular Surgery, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 7-9, 2005. DOI: 10.1590/S0102-76382005000100004
https://doi.org/10.1590/S0102-7638200500...
, p. 9) ainda complementam,

A aplicação destes descritores não se resume apenas na busca de artigos que possam embasar a redação de artigos científicos ou possam ser usados na sustentação de opiniões. Muito pelo contrário, eles têm uma aplicação muito mais ampla e devem ser incorporados à prática clínica diária. O processo de encontrar resposta apropriada a uma dúvida surgida durante o atendimento ao paciente depende de como estruturamos a pergunta. Alguns grupos têm adotado a metodologia proposta pela Universidade de Oxford, onde toda a pergunta é estruturada com base nos descritores. Esta metodologia pode ser sintetizada pelo acrônimo P.I.C.O., onde o P corresponde ao paciente ou população, I de intervenção, C de comparação ou controle e O de “outcome” ou desfecho clínico.

Logo, em relação ao descritor utilizado na estratégia de busca do conteúdo bibliográfico deste estudo - Sexual and Gender Minorities (Minorias Sexuais e de Gênero), localizado na categoria “Persons category” e subcategoria “Persons” -, algumas questões merecem discussão.

Primeiro, o surgimento do termo Minorias Sexuais e de Gênero, que não se deu de forma espontânea e/ou unilateral, pelo contrário, é resultado do encontro de interesses entre a ciência e o percurso histórico da luta LGBTQIA+, a qual ganhou força e destaque a partir da década de 1980, em prol de direitos civis, entre eles o direito à saúde - afinal, à época, tinha-se como pano de fundo a eclosão da epidemia do HIV/aids (Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
; Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.).

Fato esse ratificado nas ponderações de Ayres, Castellanos e Baptista (2018AYRES, J. R.; CASTELLANOS, M. E. P.; BAPTISTA, T. W. F. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 51-60, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018000002
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201800...
, p. 52),

Ao mesmo tempo em que a aids se configurava como um problema de saúde pública, uma parte da população que estava sendo atingida por aquele problema inicialmente, a comunidade gay organizada, muito mobilizada, pôde ter uma interação com a área técnica e científica da saúde relativamente inédita, porque fazia tempo que a gente não tinha uma interação tão estreita entre um grupo populacional afetado por um problema de saúde e técnicos tentando buscar juntos uma solução para ele.

Assim, sob esse contexto, que o referido descritor, conforme “nota de escopo dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/MeSH)”, “foi cunhado nos anos 1990 por alguns epidemiologistas que estudaram a disseminação de infecções sexualmente transmissíveis em homens que, independentemente de sua identidade sexual, faziam sexo com homens” (BVS, 2017BVS - BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE. Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/MESH). Sexual and Gender Minorities. Bireme, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=56859&filter=ths_termall&q=Sexual%20and%20Gender%20Minorities >. Acesso em: 1 set. 2021.
https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?i...
).

Contudo, quando confrontado com o seu percurso histórico, pode-se firmar o paradoxo experimentado pelo termo Sexual and Gender Minorities. Inicialmente, uma importante conquista materializada no protagonismo de uma vasta e importante produção científica sobre a epidemia de HIV/aids - que refletiu, e segue refletindo, diretamente no provimento de políticas públicas de saúde direcionadas ao enfretamento e controle dessa epidemia (Abade et al., 2020ABADE, E. A. F.; CHAVES, S. C. L.; SILVA, G. C. O. Saúde da população LGBT: uma análise dos agentes, dos objetos de interesse e das disputas de um espaço de produção científica emergente. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 4, p. 1-31, 2020. DOI: 10.1590/S0103-73312020300418
https://doi.org/10.1590/S0103-7331202030...
; Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.).

Já por outro lado, o referido termo também carrega, bem como instrumentaliza, um olhar descontextualizado das ciências da saúde junto à população LGBTQIA+. Uma reflexão que se torna irrefutável com o escopo dado ao descritor, revisado em 2017, pela plataforma DeCS/MeSH,

Minorias Sexuais e de Gênero (Sexual and Gender Minorities): 1. Indivíduos incluindo lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, pessoas com gênero em não-conformidade, e outras populações cuja orientação sexual ou IDENTIDADE DE GÊNERO e o desenvolvimento reprodutivo são considerados fora das normas culturais, sociais, ou fisiológicas. 2. HSH, ou em inglês MSM: […] Atualmente, o uso das siglas MSM e HSM é frequente na literatura médica e na pesquisa social para descrever esses casos, com um grupo de pesquisas que não levam em consideração as questões de orientação sexual. (BVS, 2017BVS - BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE. Descritores em Ciências da Saúde (DeCS/MESH). Sexual and Gender Minorities. Bireme, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?id=56859&filter=ths_termall&q=Sexual%20and%20Gender%20Minorities >. Acesso em: 1 set. 2021.
https://decs.bvsalud.org/ths/resource/?i...
, p. 1)

Uma designação que, essencialmente guiada pela dicotomia normal-patológico, aponta para um possível caminho de patologização do ser pessoa LGBTQIA+. Uma realidade que se fragiliza com as ponderações de Canguilhem (2020CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2020.), afinal, a frequente positividade adotada pelas ciências da saúde do que vem a ser “normal” ou “patológico” seria uma análise minimalista diante da infinidade de possibilidades fisiológicas e contextuais de se experienciar a vida. O autor, sob os preceitos de Max Weber, ainda complementa, estabelecer uma norma para que se possa afirmar a existência de saúde ou doença apenas transforma esses conceitos em um tipo ideal, portanto, vago, inalcançável e alheio ao processo de vida das pessoas, além de contemplarem de forma estática apenas os extremos do processo saúde-doença, portanto, desconsiderando a continuidade de seus inúmeros estágios intermediários (Canguilhem, 2020CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2020.).

Ademais, Louro (2001LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. DOI: 10.1590/S0104-026X2001000200012
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) e Sodré (2005SODRÉ, M. Por um conceito de minoria. In: Paiva R; Barbalho A. (Org.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.) exprimem, em suas reflexões, a necessidade do termo “minorias sexuais” ser substituído por “maiorias silenciadas”. Essa lógica, segundo os pesquisadores, tensionaria a contradição entre a questionável limitação numérica com o necessário empoderamento de reivindicações no espectro das instituições políticas, vista a “minorização” do ser LGBTQIA+ não estar atrelada ao seu aspecto quantitativo e sim ao aspecto qualitativo do biopoder de suas existências no cenário social (Louro, 2001LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. DOI: 10.1590/S0104-026X2001000200012
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200100...
; Sodré, 2005SODRÉ, M. Por um conceito de minoria. In: Paiva R; Barbalho A. (Org.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.).

Outra fragilidade do descritor Sexual and Gender Minorities se dá pelo fato de não ser evidenciado a vulnerabilidade, inclusive em saúde, da população LGBTQIA+ (Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.; WHO, 2013WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Addressing the causes of disparities in health service access and utilization for lesbian, gay, bisexual and trans (LGBT) persons. Washington, DC: World Health Organization, 2013.; Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013.).

E a compreensão do estado de vulnerabilidade - uma condição socialmente criada e/ou imposta - da população LGBTQIA+ vai ao encontro com o preconizado por Ayres, Castellanos e Baptista (2018AYRES, J. R.; CASTELLANOS, M. E. P.; BAPTISTA, T. W. F. Entrevista com José Ricardo Ayres. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 51-60, 2018. DOI: 10.1590/S0104-12902018000002
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201800...
, p. 54):

uma das características constitutivas do quadro conceitual da vulnerabilidade é justamente ser dinâmico, não ser uma estrutura conceitual que cristaliza a realidade, mas basear-se no pressuposto de que a ciência e a técnica só podem ser entendidas como parte de processos de trabalho em saúde concretamente operados e, enquanto tal, parte do movimento social e político, com todas as suas forças atuando, inclusive, muitas vezes, [de formas] contraditórias.

É somado a isso que a utilização do termo generaliza as identidades que compõem a população LGBTQIA+, por conseguinte, desconsiderando a dinamicidade dos percursos existenciais de suas respectivas vidas. Consideração essa que se alinha ao que foi defendido por Albernaz e Kauss (2015ALBERNAZ, R. O.; KAUSS, B. S. Reconhecimento, igualdade complexa e luta por direitos à população LGBT através das decisões dos tribunais superiores no Brasil. Revista Psicologia Política, Florianópolis, v. 15, n. 34, p. 547-561, 2015., p. 552),

Essas pessoas envolvem, atualmente, várias identidades às quais não se encerram num grupo, pois a cada interlocução estabelecida com os demais, elas acabam por se reinventar e se transformar, além da própria heterogeneidade que seus grupos possuem.

Assim, torna-se fundamental destacar que o percurso histórico-social desses indivíduos são bem distintos de outras populações, uma vez que a população LGBA, essencialmente cisgênera, concentra grande parte de seus esforços na criminalização do preconceito e, principalmente, na legitimação de suas composições familiares, incluindo o reconhecimento de suas relações homoafetivas (casamento) e a concepção e/ou adoção de filhos (Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.). Já os indivíduos em transição, TQI+, ainda lutam por direitos básicos que cerceiam suas existencialidades, destacando nesse processo a despatologização e aceitabilidade coletiva de suas identidades (Ciasca ., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.).

Imerso a isso, considera-se a atenção em saúde para a população LGBTQIA+ em conformidade com Cardoso e Ferro (2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2012. DOI: 10.1590/S1414-98932012000300003
https://doi.org/10.1590/S1414-9893201200...
, p. 557) “a discussão sobre o processo de adoecimento da população LGBT também requer a especificação dos conceitos de identidade sexual e identidade de gênero. Apesar de todos passarem por um processo de adoecimento, o percurso é diferente em cada caso”. Diante disso, os mesmos autores evidenciam “a necessidade iminente da formação profissional dos agentes em saúde para ações frente às especificidades da população LGBT” (Cardoso; Ferro, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2012. DOI: 10.1590/S1414-98932012000300003
https://doi.org/10.1590/S1414-9893201200...
, p. 554).

Não obstante, já no âmbito das políticas públicas em saúde, Bezerra et al. (p. 306, 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
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) evidenciam pontos fundamentais para que elas se tornem instrumentos efetivos, destacando-se:

o reconhecimento da orientação sexual e identidade de gênero como determinante social da saúde; o direito ao uso do nome social; e o acesso ao Processo Transexualizador (PrTr) no serviço público de saúde, que se constituíram estratégias para ampliar o acesso da população LGBT aos serviços de saúde.

Para encerrar esse momento, muito longe da concepção de um possível delineamento ideal e/ou final do termo Sexual and Gender Minorities, evidencia-se o potencial da “teoria queer” (Butler, 2019BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.; Louro, 2001LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. DOI: 10.1590/S0104-026X2001000200012
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) como agente indutor e direcionador para se alcançá-lo. Afinal, o movimento queer, pautado na contínua organização da vida social e cultural, traz em seu percurso dialético a necessidade em se prover a passagem (“passabilidade”) de práticas de vidas questionadoras do caráter uníssono da cisheteronormatividade, consecutivamente, contemplando a compreensão e o pertencimento da diversidade das resistentes identidades LGBTQIA+, portanto, rompendo com quaisquer perspectivas de naturalidade, de normalidade e de patologização (Butler, 2019BUTLER, J. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.; Louro, 2001LOURO, G. L. Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 541-553, 2001. DOI: 10.1590/S0104-026X2001000200012
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).

Seguindo com a discussão, agora particularizando a interconexão entre os descritores mais prevalentes e potentes levantados neste estudo, “men having sex with man/MSM (homens que fazem sexo com homens/HSH)” e “HIV (human immunodeficiency vírus / vírus da imunodeficiência humana)”, Lima (2014LIMA, D. J. M.; PAULA, P. F.; AQUINO, P. S.; LESSA, P. R. A.; MORAES, M. L. C.; CUNHA, D. F. F.; PINHEIRO, A. K. B. Comportamentos e práticas sexuais de homens que fazem sexo com homens. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 67, n. 6, p. 886-890, 2014. DOI: 10.1590/0034-7167.2014670604
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201467...
, p. 887) explicaram que há um contexto nítido para sua aplicação,

a categoria HSH vem sendo amplamente utilizada para designar homossexuais, bissexuais e outros homens que assumem tal prática, mas que podem sentir dificuldade em se definirem como homossexuais. Essa terminologia tem sido adotada por grande parte dos estudos de saúde coletiva, que concentram esforços para a compreensão da dinâmica da epidemia de AIDS nessa população.

Entretanto, conforme os estudos de Knauth et al. (2020KNAUTH, D. R.; HENTGES, B.; MACEDO, J. L.; PILECCO, F. B.; TEIXEIRA, L. B.; LEAL, A. F. O diagnóstico do HIV/aids em homens heterossexuais: a surpresa permanece mesmo após mais de 30 anos de epidemia. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 6, p. 1-11, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00170118
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), os quais fizeram algumas inferências sobre o último Boletim Epidemiológico HIV/aids de 2018, esse direcionamento estigmatizador, ainda guiado pelo vivenciado no início da epidemia do HIV, perdeu seu sentido. Por exemplo, em relação às categorias de exposição, os homens heterossexuais já são maioria, representando 49% entre os casos, seguidos dos homossexuais (38%) e dos bissexuais (9,1%) (Knauth ., 2020KNAUTH, D. R.; HENTGES, B.; MACEDO, J. L.; PILECCO, F. B.; TEIXEIRA, L. B.; LEAL, A. F. O diagnóstico do HIV/aids em homens heterossexuais: a surpresa permanece mesmo após mais de 30 anos de epidemia. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 6, p. 1-11, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00170118
https://doi.org/10.1590/0102-311X0017011...
).

De acordo com os autores, o preconceito contra alguns e a invisibilidade a favor de outros indivíduos pode ser a principal explicação para o atual cenário,

Assim, por não serem percebidos como grupo com risco para a infecção pelo HIV, os homens heterossexuais ficaram subsumidos na categoria de “população geral” nas análises de vigilância epidemiológica, não recebendo destaque em políticas ou ações de prevenção. (Knauth et al., 2020KNAUTH, D. R.; HENTGES, B.; MACEDO, J. L.; PILECCO, F. B.; TEIXEIRA, L. B.; LEAL, A. F. O diagnóstico do HIV/aids em homens heterossexuais: a surpresa permanece mesmo após mais de 30 anos de epidemia. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 6, p. 1-11, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00170118
https://doi.org/10.1590/0102-311X0017011...
, p. 2)

Na prática, essa relação quase simbiótica entre os termos “men having sex with man/MSM “ e “HIV” podem trazer impactos na assistência à saúde da população LGBTQIA+, cujas necessidades, especificidades e demandas são prevalentemente pré-definidas por meio dos objetos das pesquisas e, por conseguinte, em sua reprodução - de outra forma: precedem a reflexão crítica da própria relação entre causa-consequência e o próprio encontro entre o indivíduo e o profissional da saúde (Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
; Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.; Cardoso; Ferro, 2012CARDOSO, M. R.; FERRO, L. F. Saúde e população LGBT: demandas e especificidades em questão. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, DF, v. 32, n. 3, p. 552-563, 2012. DOI: 10.1590/S1414-98932012000300003
https://doi.org/10.1590/S1414-9893201200...
; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.; Luiz; Struchiner, 2002LUIZ, R. R.; STRUCHINER, C. J. Inferência causal em epidemiologia: o modelo de respostas potenciais. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.).

Essa perspectiva é descrita por Rios e Adrião (2022RIOS, L. F.; ADRIÃO, K. G. Sobre descrições, retificações e objetividade científica: reflexões metodológicas a partir de uma pesquisa sobre condutas sexuais e HIV/aids entre homens com práticas homossexuais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 1-13, 2022. DOI: 10.1590/S0104-12902022210427
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202221...
, p. 4) que a definem como “a priori”, a qual rompe com o objetivo do conhecimento científico, que “advém da ação de enfrentar analiticamente os obstáculos que vão se fazendo ao longo do processo de conhecer”. Os mesmos autores (Rios; Adrião, 2022RIOS, L. F.; ADRIÃO, K. G. Sobre descrições, retificações e objetividade científica: reflexões metodológicas a partir de uma pesquisa sobre condutas sexuais e HIV/aids entre homens com práticas homossexuais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 1-13, 2022. DOI: 10.1590/S0104-12902022210427
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202221...
, p. 4) ainda descrevem a experiência científica “como um exercício de retificação de erros do próprio processo, uma reflexão sobre o caminho, uma discussão propriamente metodológica, onde a simples apresentação dos procedimentos da pesquisa é insuficiente para garantir a cientificidade”.

Assim, torna-se fundamental passar por um processo de ressignificação e ampliação da produção científica em saúde da população LGBTQIA+ para além do HIV/aids - não prescindindo desse importante problema de saúde pública, mas levando em consideração outas demandas científicas (Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
; Brasil, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de Prevenção das DST/Aids e Cidadania para Homossexuais. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002.; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.).

E esse percurso de mudança, segundo Bezerra et al. 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
, p. 320, atrela-se à “premência em instigar a construção de um novo paradigma no processo de ensino nos cursos de saúde, que contemple uma formação acadêmica capaz de discutir a diversidade de gênero como questão social atinente ao processo de cuidado em saúde” - e para a concepção desse movimento, os autores levantam intrigantes questionamentos:

[…] algumas questões que podem suscitar reflexões e produções futuras: o que determina a hierarquização de temas? Por que determinadas temáticas têm maior penetração nessa ou naquela área de concentração da saúde coletiva? Por que, em determinados periódicos, não se discutem questões relacionadas com a população LGBT para além das IST e HIV/Aids? Quais as possíveis barreiras ou impedimentos para a entrada dessa produção científica? (Bezerra et al., 2019BEZERRA, M. V. R.; MORENO, C. A.; PRADO, N. M. B. L.; SANTOS, A. M. Política de saúde LGBT e sua invisibilidade nas publicações em saúde coletiva. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 305-323, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S822
https://doi.org/10.1590/0103-11042019S82...
, p. 320)

Além disso, é crucial reforçar que os descritores encontrados neste trabalho não foram elaborados ao acaso, pois são produtos de uma ciência guiada, consciente ou inconscientemente, pelos interesses e ditames do contexto sociopolítico e econômico no qual estão inseridas (Canguilhem, 2020CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2020.; Ciasca et al., 2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021.; Rosa, 2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171).

E os descritores, segundo Foucault (2016FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.), não apenas designam, como também imprimem e, até mesmo, impõem os percursos de como os seres humanos seguirão suas próprias existências,

No momento em que a linguagem, como palavra disseminada, se torna objeto de conhecimento, eis que reaparece sob uma modalidade estritamente oposta: silenciosa, cautelosa deposição da palavra sobre a brancura de um papel, onde ela não pode ter nem sonoridade, nem interlocutor, onde nada mais tem a dizer sendo a si própria, nada mais a fazer senão cintilar no esplendor do seu ser. (Foucault, 2016FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016., p. 416)

Em razão disso, debruçando-se sobre as ideias desenvolvidas anteriormente, este estudo faz um importante apontamento: a necessidade em se discutir possíveis caminhos para coibir a essencialidade dos estigmas presentes na literatura científica em saúde direcionada à população LGBTQIA+.

É óbvio que não há uma solução precisa para superar esse obstáculo, contudo, o ponto de partida está em uma necessária mudança epistemológica, tirando os participantes dos estudos da condição de “coisa” e os situando como “cidadãos” no delineamento das pesquisas (Turato, 2013TURATO, E. R. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2013.).

Complementando, junto a esse novo processo de construção do conhecimento científico, outro ponto sine qua non é a ideia de representatividade - afinal, conforme Rosa (2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171), a cisheteronorma se faz presente em todas as instituições e, entre a diversidade de lugares, a autora distinguiu os espaços da pesquisa científica, fundamentalmente ocupados por pesquisadores e pesquisadoras heterossexuais, brancos e cisgêneros - uma sistemática que produz conteúdos científicos inerentemente discriminatórios cuja

[…] ‘verdade’ (aquela dita e pesquisada por homens cisgêneros, brancos em posições privilegiadas) também se aprimorou no discurso da conformação e normatização dos corpos, resultando num cenário em que as estruturas de controle não regrediram significativamente até o início do século XXI. (Rosa, 2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171, p. 63)

[…] a ciência, ao dicotomizar a anatomia humana e patologizar formas biológicas distintas; a lei, ao assegurar o registro civil num sexo determinado ao recém-nascido com base na mesma dicotomia científica; a religião, ao categorizar como naturais (por supostamente terem origem divina) a cisgeneridade, a heterossexualidade e a monogamia; e novamente a lei, assegurando que essas formas naturalizadas sejam legalmente aceitas, são instrumentos que marginalizam aqueles corpos e experiências que as questionam, criando um ambiente propício para a reprodução em escala global dos discursos heteronormativos e cisnormativos, que, ciclicamente, se reafirmam como verdade por já terem um discurso e uma linguagem bem desenvolvidos para, a partir daí, criarem mais verdades que continuem sustentando tal sistema. (Rosa, 2020ROSA, E. B. P. R. Cisheteronormatividade como instituição total. Petfilo, Florianópolis, v. 18, n. 3, p. 59-103, 2020. DOI: 10.5380/petfilo.v18i2.68171, p. 65-66)

Fragilidade ratificada por Ciasca et al. (2021CIASCA, S. V.; HERCOWITZ, A.; LOPES-JUNIOR, A. Saúde LGBTQIA+: Práticas de cuidado transdisciplinar. Santana de Parnaíba: Manole, 2021., p. 509-510),

Algumas estratégias para mudar essa situação são ampliar a participação da presença de pessoas LGBTQIA+ na equipe de pesquisa durante todas as etapas do seu processo, ou seja, como agentes e não apenas como objetos de estudo. O pesquisador deve estar familiarizado e apropriado com a linguagem e os valores do segmento em questão. Além disso, o rigor científico é de fundamental importância para quem deseja fazer a pesquisa, o que inclui a competência cultural necessária no desenho de estudo e permissão para a elaboração de instrumentos de pesquisa para acesso, identificação e manejo dos participantes, somados à capacidade de se adaptar às peculiaridades da população LGBTQIA+.

Quanto às limitações deste estudo, duas considerações se destacaram. A primeira evidencia o fato de não ter analisado integralmente o conteúdo dos artigos. Porém, como previamente mencionado, os descritores carregam consigo a essencialidade de suas pesquisas científicas, distinguindo-se pontos fundamentais, como as populações e os desfechos dos estudos (Brandau; Monteiro; Braile, 2005BRANDAU, R.; MONTEIRO, R.; BRAILE, D. M. Importância do uso correto dos descritores nos artigos científicos. Brazil Journal of Cardiovascular Surgery, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 7-9, 2005. DOI: 10.1590/S0102-76382005000100004
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; Honório; Santiago-Júnior, 2021HONÓRIO, H. M., SANTIAGO-JÚNIOR, J. F. Fundamentos das Revisões Sistemáticas em Saúde. São Paulo: Santos Publicações, 2021.).

Já a segunda vai ao encontro com o processo de seleção das fontes de informação, cujo levantamento de trabalhos deu-se nas bases de dados do PubMed. Uma seleção que traz em sua essência um recorte analítico de estudos ocorridos em países e/ou regiões desenvolvidos. Desse modo não contextualizando a fenomenologia estudada em interface com outros contextos socioeconômico culturais.

Contudo, apesar de sua viabilidade em estudos futuros, bastando acessar os conteúdos publicados em outras bases e/ou plataformas, como por exemplo a Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), a Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e a Biblioteca Virtual da Saúde (BVS), não se acredita que seriam encontrados resultados distintos dos aqui mencionados, uma vez que, apesar de crescente sua produção, a pesquisa em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento é fortemente influenciada pelas diretrizes das produções científicas de centros de excelência, majoritariamente localizados em regiões mais desenvolvidas e ricas (SciELO, 2014SCIELO - SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE. A bibliometria do mundo em desenvolvimento - Publicado originalmente na newsletter da Elsevier “Research Trends Issue 35: Developing Research in Developing Countries”. SciELO em Perspectiva, 2014.).

Encerra-se com o paradoxo vivenciado pelos autores quanto ao percurso metodológico do trabalho. De um lado, refutar os complexos e valorizados delineamentos metodológicos, que provavelmente reforçariam o viés “LGBTQIA+fóbico” dos estudos em saúde. Do outro, escolher pela concepção de uma pesquisa que busque honrar as subjetividades atreladas à produção do conhecimento, portanto mais humanizada e direcionada às reais necessidades do ser LGBTQIA+. Conflito esse que se coaduna com as proposições de Turato (2013TURATO, E. R. Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas. Petrópolis: Vozes, 2013., p. 25),

[…] o pesquisador terá que estar envolvido, emocionalmente também, com seu objeto de estudo. Terá que misturar-se com ele, identificar-se, “ser ele”. A subjetividade do pesquisador terá uma importância capital, ao contrário do que se postula nas chamadas ciências duras.

Considerações Finais

Por meio do confronto entre o objetivo deste artigo com os dados coletados e analisados, confirmou-se a essência de um viés ideologicamente “LGBTIA+fóbico” no conteúdo dos estudos produzidos e indexados na base de dados “PubMed/Medline”.

Por fim, esta pesquisa não traz o propósito de negar ou renunciar a ciência, pelo contrário, anseia por pesquisas de qualidade, humanizadas e direcionadas às especificidades e necessidades da população LGBTQIA+, consubstanciadas em políticas públicas que consagrem o aperfeiçoamento no acesso à atenção e o melhoramento nos indicadores gerais de saúde desses indivíduos.

Agradecimentos

Mais que agradecimentos, dedicamos o trabalho às resistentes e/ou resilientes existências LGBTQIA+.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2022
  • Aceito
    09 Ago 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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