Concepções de saúde e atuação do Movimento Negro no Brasil em torno de uma política de saúde

Conceptions of health and action of the Black Movement in Brazil in a health policy

Marcos Vinícius Ribeiro de Araújo Carmen Fontes de Souza Teixeira Sobre os autores

Resumo

Os marcos institucionais que culminaram na Política Nacional de Saúde da População Negra (PNSIPN), documentados na literatura acadêmica, citam o Movimento Negro (MN) como um ator político fundamental. Entretanto, a participação desse ator coletivo, heterogêneo e diversificado, leva-nos a indagar acerca de suas concepções, reivindicações e atuação política na saúde, problematizando tanto sua aproximação quanto seu distanciamento com o Movimento da Reforma Sanitária (MRSB). Dessa forma, o objetivo desse artigo é analisar as concepções e a atuação política das organizações do MN no processo de formulação da PNSIPN. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com lideranças e analisados o conteúdo dos documentos publicados nos sites oficiais das organizações. Os resultados apontam que as lideranças desenvolveram concepções sobre o processo saúde-doença a partir da noção de racismo estrutural, o que orientou a elaboração de uma agenda política, a definição e articulação das alianças estratégicas e as formas de atuação na esfera pública. Em nenhum desses processos foi referida aproximações com entidades do MRSB, embora as práticas políticas do MN no enfrentamento ao Racismo na Saúde indicam possibilidades de estreitamento das relações entre o Movimento Negro e o MRSB.

Palavras-chaves:
Participação Social; Grupo com Ancestrais no Continente Africano; Racismo; Saúde Pública; Democracia.

Abstract

The institutional frameworks that culminated in the National Health Policy for the Black Population (PNSIPN), documented in the literature, cite the Black Movement (MN) as a key political actor. However, the participation of this collective actor, heterogeneous and diverse, leads us to inquire about their conceptions, claims and political action in health care, problematizing both their closeness and distance from the Health Reform Movement (MRSB). Thus, this study analyzes the conceptions and political action of the MN organizations in the process of elaborating the PNSIPN. Semi-structured interviews were conducted with leaders, and the content of documents published on the organizations’ official websites were analyzed. Results show that the leaders developed conceptions about the health-disease process based on the notion of structural racism, which guided the development of the political agenda, the definition and articulation of strategic alliances and forms of action in the public sphere. None of these processes mentioned articulations with MRSB entities, although the MN’s political practices in combating racism in health care suggest closer relations between the Black Movement and the MRSB.

Keywords:
Social Participation; African Continental Ancestry Group; Racism; Public Health; Democracy.

Introdução

A conjuntura política e social brasileira, do final dos anos 1970, foi marcada por mobilizações cuja centralidade era a luta pelo fim da Ditadura Militar e o resgate do Estado Democrático de Direito. Nesse processo, destacamos o Movimento da Reforma Sanitária (MRSB) na luta pelo processo de democratização da saúde e o reaparecimento, na cena pública nacional, de entidades orgânicas do Movimento Negro (MN) na luta antirracista. Esses atores coletivos desempenharam papel destacado na demarcação de questões, como direito à saúde e combate ao racismo na Constituição Federal de 1988 que fundamentou, nas décadas posteriores, a formulação e a implementação de políticas públicas governamentais voltadas à saúde da população negra.

O MN é caracterizado por ser um movimento social (Gohn, 2011GOHN, M. G. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2011.) que não se constitui apenas por um grupo de pessoas com interesses comuns, uma vez que dispõe de uma identidade coletiva decorrente de um princípio solidário construída no desenvolvimento das ações empreendidas em um universo de forças sociais em conflito. Nessa perspectiva, abarca um conjunto de ações políticas realizadas por sujeitos, organizações e entidades políticas, sindicais, culturais, associativas, assistenciais e religiosas da sociedade civil, identificadas com a história de luta contra a desigualdade a que foram e estão submetidas a população negra, a fim de enfrentar seus problemas na sociedade, em particular os provenientes do racismo, preconceito e discriminações raciais, que a marginaliza do acesso aos bens de consumo e direitos sociais (Pinto, 2013PINTO, R. P. O movimento negro em São Paulo: luta e identidade. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2013.).

Domingues (2007DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007. DOI:10.1590/S1413-77042007000200007
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), ao resgatar a trajetória do MN durante a República organiza sua análise em três grandes fases: “da Primeira República ao Estado Novo”, marcado pela predominância das agremiações negras, atos cívicos e publicação em jornais; “da segunda República ao Regime Militar”, caracterizada pelas diversificadas estratégias de sensibilização dos brancos em relação à questão racial; e “do início de redemocratização à Nova República”, período marcado por manifestações públicas e formação de um movimento negro nacional.

É no início desta “terceira fase”, que surge o Movimento Negro Unificado (MNU), a partir de 1978, apresentando um programa de combate ao racismo na sociedade, que incluiu demandas por direitos sociais, como educação, emprego, fim da violência contra a mulher e o fim do genocídio da juventude negra (Rios, 2012RIOS, F. O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010). Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 85, p. 41-79, 2012. DOI:10.1590/S0102-64452012000100003
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). Neste momento, nenhuma reivindicação específica sobre o setor da saúde ganhou visibilidade, fato que somente seria desenvolvido a partir da emergência do chamado feminismo negro. De fato, é a partir dos anos de 1980, que o Movimento de Mulheres Negras (MMN) aparece na cena pública, denunciando as práticas racistas evidenciadas nas políticas de controle natalista, falta de oferta na rede pública de variados métodos contraceptivos e a não implantação da Política Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), reivindicando, entre outras demandas, a criação de uma lei específica com o objetivo da regularização da esterilização no país. A partir dos anos 1990, parte dessas ativistas foram responsáveis pela consolidação e fundação de coletivos e Organizações Não Governamentais (ONG) de mulheres negras, fortalecendo práticas políticas em torno do tema da saúde das mulheres negras, que influenciará na conformação do chamado “campo da Saúde da População Negra.” (Damasco, 2012DAMASCO, M. S.; MAIO, M. C.; MONTEIRO, S. Feminismo negro: raça, identidade e saúde reprodutiva no Brasil (1975-1993). Revista Estudos Feministas, Santa Catarina, v. 20, n. 1, p. 133-151, 2012. DOI:10.1590/S0104-026X2012000100008
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).

Ainda na década de 1990, mobilizações políticas e de rua foram responsáveis por aglutinar o MN em torno de uma agenda antirracista de direitos para a comunidade negra, que incluiu demandas direcionadas ao setor saúde, com destaque para a Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, a mobilização de preparação para a Conferência de Durban, em 2001, e o desenvolvimento da Agenda de Compromissos Internacionais da qual o Estado brasileiro se tornou signatário no chamado “pós-Durban” (Rios, 2016RIOS, F. Antirracismo, movimentos sociais e Estado (1985-2016). In: LAVALLE, A.G.; CARLOS, E.; DOWBOR, M.; SZWAKO, J. Movimentos sociais e institucionalização: políticas sociais, raça e gênero no Brasil pós-transição. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018. p. 255-283.).

Na década de 2000, a eleição do governo Lula, que contava com expressivo apoio dos principais movimentos sociais, possibilitou uma intensificação da atuação institucional do MN. A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade racial (Seppir), em 2003, articuladora dos temas raciais no âmbito do governo, as audiências e seminários envolvendo ativistas negros na Câmara dos Deputados e Senado em relação ao Estatuto da Igualdade Racial, as Conferências de Promoção da Igualdade Racial e a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial, em 2010, são alguns dos marcos que se constituíram durante os dois mandatos do governo Lula (Lima, 2010Lima, M. Desigualdades raciais e políticas públicas: ações afirmativas no governo Lula. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, n. 87, p. 77-95, 2010. DOI:10.1590/S0101-33002010000200005
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). Esse contexto político-institucional favoreceu a formulação e aprovação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) pelo Conselho Nacional de Saúde, em 2006, formalizada pela portaria 992/2009 do Ministério da Saúde e tornando-se lei no Capítulo de Saúde do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010.

Cabe destacar que, na mesma conjuntura em que se conformou a mobilização política do MN contra o racismo e em torno da questão da saúde, ocorreu a emergência e o desenvolvimento do MRSB, o qual, como apontado na literatura, foi responsável pela elaboração da proposta e do projeto político de democratização da saúde, que culminou com a incorporação do direito à saúde na Constituição Federal de 1988 e no processo político-institucional de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) (Paim, 2019PAIM, J. S. Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 5, p. 15-28, 2019. DOI:10.1590/0103-11042019S502
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), processo marcado por avanços e retrocessos com relação ao disposto na legislação (Teixeira; Paim, 2018TEIXEIRA, C. F. de S.; PAIM, J. S. A crise mundial de 2008 e o golpe do capital na política de saúde no Brasil. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. 2, 2018, p. 11-21. DOI:10.1590/0103-11042018S201
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).

Embora o MRSB tenha colocado, em sua agenda, desde o início, a questão das desigualdades sociais e a necessidade de garantir o acesso universal e equitativo à ações e serviços de saúde por parte dos diversos grupos sociais, a problemática específica da saúde da população negra não é mencionada nos documentos e nos debates que marcaram a trajetória do processo de elaboração de propostas de políticas e programas, somente ganhando visibilidade com a atuação do MN que se constituiu originalmente em torno de outras demandas.

Configura-se, assim, uma questão que merece investigação, ou seja, até que ponto o processo de formulação e implementação da PNSIPN se articulou - ou não - com o conjunto de atores e forças sociais envolvidas no processo de luta pela Reforma Sanitária Brasileira no período de 2000 a 2011, delimitado em função da realização dos Seminários de Articulação Pré-Durban; I Seminário Nacional de Saúde da População Negra; Comitê de Organização Zumbi+10; II Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida; e mobilizações em torno do Estatuto da Igualdade Racial.

Portanto, o objetivo deste artigo é analisar as concepções e práticas políticas das organizações do MN no Brasil que atuaram no processo de formulação e implementação da PNSIPN, buscando problematizar, no período de 2000 a 2011, sua aproximação e seu distanciamento do MRSB.

Metodologia

Este artigo é um estudo centrado na produção e análise de informações qualitativas acerca das concepções e ações de lideranças de movimentos negros que atuam politicamente no setor saúde. Fizeram parte deste estudo lideranças de entidades e organizações do MN (ONG, religiosas, políticas, associações etc.) que desenvolveram ações políticas relacionadas ao que vem sendo denominado campo de saúde da população negra, no âmbito da sociedade civil e das instituições públicas do Governo Federal.

Inicialmente, foi feito um levantamento exploratório na internet para identificar entidades e organizações do MN que participaram dos principais eventos nacionais relacionados, direta e indiretamente, com a formulação da PNSIPN, entre os anos de 2001 a 2011, identificando-se 11 entidades: União Nacional dos Negros pela Igualdade (Unegro), Federação Nacional de Associações de Doença Falciforme (Fenafal), Crioula, Geledés, Maria Mulher, Fala Preta!, Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (Renafro), Associação Cultural de Mulheres Negras (Acmun), Coordenação Nacional Quilombolas de Articulação de Quilombolas (Conaq); Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen).

Em seguida, foi realizado o contato com um informante-chave, isto é, uma liderança reconhecida pelos movimentos no âmbito da saúde da população negra, cujo nome integrava alguma das 11 entidades listadas e, por meio da técnica da bola de neve e, posteriormente, pela comparação dessa lista, chegou-se a um conjunto final de nove pessoas, das quais uma não se sentiu apta a abordar o tema e outras duas não retornaram o contato.

Este conjunto de participantes é composto por: cinco mulheres e um homem, com idades entre 40 e 65 anos, autodeclaradas “mulheres negras” e “negro”, sendo três com graduação na área de saúde: psicologia, medicina, odontologia; uma com formação técnica em enfermagem, porém com graduação em administração; outra graduada na área de ciências exatas: ciências contábeis e pós-graduada em saúde pública; e uma com graduação em comunicação social, na área de ciências humanas.

Cada uma dessas lideranças pertence a uma organização diferente: Acmun11Disponível em: www.acmun.org.br ; Geledés Instituto da Mulher Negra22Disponível em: www.geledes.org.br ; Criola33Disponível em: www.criola.org.br ; Fenafal44Disponível em: www.fenefal.worpress.com ; Unegro55Disponível em: www.unegro.org.br e Renafro66Disponível em: www.renafrosaudecom.wordpress.com .

Os dados foram produzidos entre os meses de abril e agosto de 2014, por meio de entrevistas utilizando um roteiro semiestruturado cujo conteúdo contemplava a inserção no âmbito do setor saúde, as concepções sobre raça, racismo e saúde, as agendas e as ações desenvolvidas pela organização. Complementar à entrevista, foi realizada uma pesquisa, no mesmo período, em sites e redes sociais (Facebook) oficiais de cada organização a qual estavam vinculados os entrevistados, em busca de notícias, declarações, documentos, cartas abertas e demais informações adicionais acerca da visão de cada entidade sobre as questões relacionadas à saúde.

As entrevistas foram gravadas e transcritas e, assim como as informações obtidas na internet, trechos do conteúdo foram organizados em matrizes de análises. Para investigação dos dados foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (Bauer, 2002BAUER, M. W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Ed.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 189-217.), por meio da elaboração de três matrizes com base nas categorias pré-estabelecidas.

O plano de análise tomou como referência a proposta teórico-metodológica elaborada por Gohn (2011GOHN, M. G. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2011., p. 242), e levou em conta as seguintes categorias: (1) concepções de saúde, subcategorias: concepções de saúde e compreensão da relação raça, racismo e saúde; (2) repertório de ações coletivas, subcategorias: demandas; método de construção da agenda; (3) práticas políticas no âmbito do setor saúde, subcategorias: ações comunitárias assistenciais, práticas políticas na sociedade civil e práticas políticas no âmbito das instituições governamentais.

O projeto que deu origem a esta pesquisa foi submetido e aprovado no Comitê de Ética do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, sob no 648.028, em conformidade com a Resolução 466/2012 e 510/16 Conep/CNS. As participantes foram orientadas quanto à natureza e os objetivos da pesquisa, e aceitaram participar da entrevista assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo que sua identificação pessoal foi substituída pelo nome da organização a qual pertencem na apresentação dos resultados.

Resultados

Visando apreender a “Práxis Negra” (Oliveira, 2011OLIVEIRA, F. N. Modernidade, Política e Práxis Negra no pensamento de Clóvis Moura. Plural, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 45-64, 2011. DOI:10.11606/issn.2176-8099.pcso.2011.74521
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) desses atores coletivos no processo de formulação e implementação da PNSIPN, destacamos três aspectos: concepções de saúde que unificam esses atores, o elenco de demandas e reivindicações que compõem sua agenda e as principais ações políticas empreendidas, incluindo aproximações e distanciamentos com o MRSB.

Concepções de saúde das lideranças das organizações

Inicialmente, as lideranças traziam, de forma genérica, algumas noções de saúde: “estar bem fisicamente e psicologicamente” (Acmun); “é tudo […] qualidade de vida” (Unegro); “Vida!” (Fenafal); “bem-estar […] cuidado” (Criola); “felicidade” (Renafro), “direito de todos e dever do estado, serve ?!” (Geledés). Ao complementar a ideia inicial, contudo, refutam a restrição da noção de saúde à ausência de doença: “não só associada à doença” (Geledés) “quero falar primeiro de saúde mesmo, não quero falar em doença” (Unegro); “mas também é ausência de doença” (Criola).

Ao aparecer, no discurso dos entrevistados, a menção à categoria “racismo”, torna-se nítida a relação que estabelecem entre racismo, saúde e doença, conforme apontam o racismo como elemento gerador de iniquidades em saúde, que determina que a população negra “vivencie certas coisas diferentes da população branca” (Acmun); que estabelece a “negação a direito” (Renafro) e até mesmo que identifica “a não saúde” (Unegro).

Assim é a partir da compreensão sobre racismo, como um elemento que estrutura as relações vigentes na sociedade brasileira, que expressam, consensualmente, suas visões de mundo e, implicitamente, suas percepções sobre os determinantes do processo saúde-doença:

[…] é a demarcação de diferenças humanas para hierarquizar e para basicamente inferiorizar determinados grupos, no nosso caso no Brasil, somos nós negros, indígenas e ciganos, que temos a principal experiência, mas temos que admitir que judeus também tem, árabes também tem [experiência] com o racismo, então, tá aqui pra muita gente. (Criola)

É uma sustentação do status quo da burguesia branca […] um pilar do capitalismo. (Unegro)

Ele é institucional, ele é não institucional, mas ele é racismo. É ele que faz com que você, com que um grupo tenha privilégios e que você fica a parte, apartado de tudo, né? […] racismo é uma ideologia, você tem que mudar a mente e mudar isso não é só fazer uma campanha às vezes como as pessoas faz, né, de combate ao racismo. Teria que mudar muitas outras coisas, né? (Renafro)

uma população] que vive em péssimas condições de vida, vivendo toda a questão do racismo ambiental, do racismo institucional, a discriminação, o racismo patriarcal, essa coisa associada […] a prática do racismo determina a qualidade de vida e a saúde, ou não, da população negra […] (Geledés)

Reivindicações em saúde

Majoritariamente, temas relacionados às políticas públicas de saúde não foram pautas destacadas pelo conjunto de organizações dos MN. Apenas um pequeno grupo, em comparação ao todo, dedicou parte ou quase toda sua atuação e formulação política ao tema da saúde da população negra. Esse lugar secundário da saúde na agenda política do MN fica nítido em alguns trechos das falas dos entrevistados:

Os movimentos negros nunca abraçaram a questão da bandeira da saúde, como uma bandeira […] (Unegro)

O tema da saúde sempre teve vinculadas as mulheres, as mulheres! Durante muito tempo foi uma pauta de mulheres. Inclusive, das mulheres, mulheres profissionais de saúde, ou mulheres líderes comunitárias, mulheres que viam o tema da saúde mais urgente. Mulheres na agenda de direitos sexuais e reprodutivos que tá dentro da área da saúde também e então sempre foi uma pauta de mulheres. (Criola)

Entretanto, esse conjunto de entidades, ao longo das décadas de 1990 e 2000, incorporaram novos temas a sua agenda. Elas foram influenciadas pela agenda internacional de direitos humanos, pela atuação em instâncias governamentais do setor saúde e pelas experiências políticas em comunidades, segundo as quais a principal demanda da população negra era o acesso à assistência e aos serviços públicos de saúde com qualidade, tal como se depreende do discurso de algumas dessas lideranças:

ter um acesso com qualidade mesmo ao serviço de saúde né?! […] questão mesmo do atendimento, do tempo de atendimento, da qualidade do teu atendimento. (Acmun)

[…] o SUS ele teria que respeitar os princípios né?! que é… a equidade, que é que tenha mais quem precisa mais. Eu acho que a população negra teria que ter o tratamento digno que merece […] (Fenafal)

Além disso, algumas organizações sugerem que as produções acadêmicas sobre a situação de saúde da população negra, bem como os dados sobre a situação de vida dessa população produzidas por instituições governamentais como Ministério da Saúde, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e organismos internacionais não governamentais, como Unifem/ONU, contribuíram para a ampliação da pauta de reivindicações, conforme a natureza e a estrutura organizativa de cada uma.

Assim, ONG de natureza assistencial, de estrutura mais simples e com sua diretoria variando entre dois e seis membros (Acmun, Crioula e Geledés) elencam, discutem e definem os itens da sua agenda política no âmbito das reuniões corporativas. Conforme as lideranças, as pautas são construídas a partir das contribuições da participação das ONG em fóruns, seminários, reuniões da sociedade civil e dos encontros nacionais e internacionais.

As organizações de natureza associativa (Fenafal, Renafro) têm um modelo federativo que reúne organizações autônomas, bem como sujeitos individuais de diferentes cidades e estados do Brasil. Além da contribuição dos espaços da sociedade civil, fóruns e redes de articulação, essas organizações também constroem suas pautas por meio dos seus próprios seminários, planejamento estratégico, fóruns temáticos, sendo sua agenda discutida e elaborada por um conjunto mais amplo de sujeitos e com uma estrutura de decisão que passa por espaços locais e nacionais.

Apenas uma dessas organizações é de natureza orgânica (Unegro), pois tem um modelo centralizado, uma vez que suas organizações locais se configuram como seções da entidade nacional. Nessa entidade, a elaboração se dá em diferentes instâncias da organização. Segundo a entrevistada, a Diretoria de Saúde apresenta uma proposta que é discutida nos seminários temáticos internos e, depois, apresentada no Congresso. Por fim, uma vez votada, a proposta passa a ser a diretriz política da entidade a ser executada pela Diretoria Geral da organização.

Tanto entre as organizações que têm atuação central no setor saúde (Acmun, Fenafal e Renafro) quanto entre as que atuam diretamente sobre a questão da Mulher Negra (Criola, Geledés) e sobre pautas políticas mais gerais de interesse da comunidade negra (Unegro) há em comum o combate ao racismo na sociedade e, em particular, na saúde. Também são compartilhadas em maior ou menor grau, conforme a entidade, o combate à discriminação da mulher negra, o preconceito à cultura afro-brasileira e o preconceito à comunidade LGBTQIA+.

Em relação às pautas específicas do setor saúde são referidas: a redução de prevalência de Infecções Sexualmente Transmissíveis/síndrome da imunodeficiência humana (IST/aids) entre as mulheres negras (Acmun, Crioula, Geledés); garantia de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras (Crioula, Geledés); reconhecimento das tradições das religiões afro-brasileiras no cuidado à saúde (Renafro) e melhoria da qualidade de vida das pessoas com anemia falciforme (Fenafal).

Além disso, defendem a efetividade da gestão e assistência do SUS como sistema público de saúde, o fortalecimento dos conselhos de saúde (Unegro, Crioula), a garantia do acesso da população negra a todos os níveis de assistência com ampliação dos serviços de urgência e emergência para as pessoas com doença falciforme, bem como o fim da discriminação racial no atendimento e na produção de conhecimento de saúde em relação à situação de saúde da população negra (Fenafal, Unegro).

Atuação política no âmbito do setor saúde

As práticas desenvolvidas pelas diversas organizações do MN no setor da saúde incluem ações comunitárias, de caráter assistencial e atuação política em espaços governamentais do setor saúde.

As primeiras, geralmente são realizadas com recursos captados, por meio de projetos aprovados em editais públicos de governos (estaduais, federais) ou organizações internacionais (agências de cooperação), em regiões periféricas de grandes centros urbanos do país, como Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Essas ações estão fundamentadas sobre dois eixos principais: educação em saúde, na perspectiva da cidadania, e orientações em relação à prevenção e cuidado de patologias e agravos.

No caso da educação em saúde, incluem oficinas sobre diversos temas, por exemplo de sexualidade, gênero, identidade racial, direitos reprodutivos com foco na mulher negra (Geledés, Acmun, Crioula), bem como a produção de cartilhas sobre essas temáticas (Crioula), cursos de formação em advocacy (Criola e Geledés), formação de lideranças comunitárias para atuar em prevenção e educação em saúde na própria comunidade (Crioula, Geledés, Acmun) e encaminhamento de usuários dos serviços públicos de saúde para outros pontos da rede assistencial (Fenafal, Geledés). Também desenvolvem, em diferentes espaços comunitários (terreiros, escolas, igrejas), orientações em relação às patologias prevalentes, informando e ensinando sobre modos de prevenção e/ou cuidados de doenças, como, IST, aids, hepatites virais em grupos específicos de mulheres jovens negras e de baixa renda (Acmun, Geledés, Crioula), e doença falciforme (Fenafal). Além disso, também orientam em casos de violência doméstica sofrida por mulheres em comunidades periféricas.

Outras organizações que não têm como foco ações comunitárias assistenciais também desenvolvem ações locais, pontuais, sem foco em uma comunidade específica, orientando grupos de pessoas sobre hipertensão, diabetes e obesidades em feiras, escolas públicas, terreiros (Unegro), por meio de palestras ou mesmo campanhas de prevenção de IST/aids, algumas delas elaboradas pelo Ministério da Saúde (Unegro, Renafro). Também são desenvolvidas ações para o processo de formação de lideranças para atuação em conselhos de saúde de diferentes esferas governamentais (Renafro).

Em relação à participação política nas instâncias decisórias, as organizações atuam em duas frentes principais: na articulação com outras organizações políticas da sociedade civil e nas instituições governamentais do setor saúde.

Algumas organizações fazem parte de redes nacionais e transnacionais que articulam diversas organizações, pesquisadores e lideranças comunitárias, em torno de temas como racismo, gênero e saúde, o que cumpre o papel de qualificar suas intervenções em espaços governamentais. Das redes nacionais, os entrevistados citam a Rede Lai Lai Apejo (Acmun; Crioula; Geledés e outras organizações); Articulação de ONG de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) (Acmun; Crioula; Geledés); Rede Nacional de Controle Social em Saúde da População Negra (Acmun; Crioula; Geledés; Renafro). Em relação aos espaços internacionais, citam a rede latino-americana de direitos sexuais e direitos reprodutivos (Geledés). Vale destacar que a Geledés possui o status de membro consultivo na Organização dos Estados Americanos (OEA), embora o motivo seja sua atuação na agenda dos Direitos Humanos e não especificamente na área de políticas de saúde.

No Brasil, as organizações participam do Conselho Nacional de Saúde (CNS) na vaga do segmento de usuários, sendo que a Unegro atuou como titular e a Acmun (por meio da AMNB, que congrega Geledés e Crioula) como suplente, no período de 2012 a 2015, já a Fenafal atuou pela representação das Entidades Nacionais de Defesa dos Portadores de Patologias e Deficiências, durante o mesmo período. Ainda, no CNS, há a Comissão Intersetorial de Saúde da População Negra, que presta assessoria ao órgão sobre o tema, em que, além das entidades membros do conselho já citadas, a Renafro também participa como suplente. Essas organizações desenvolvem ações de acompanhamento, monitoramento e fiscalização da implementação de políticas de saúde voltadas para a população negra.

Atuam também em espaços de gestão, como o Comitê Técnico de Saúde da População Negra (Crioula), instância de assessoramento do Ministério da Saúde em relação à implantação da PNSIPN e na Comissão de Articulação de Movimentos Sociais do Departamento de IST/aids e hepatites virais do Ministério da Saúde (Acmun), na qual debatem a formulação das políticas públicas e a resolução de problemas de curto, médio e longo prazo das populações vulneráveis e dos soropositivos em geral.

Chama atenção que, embora as lideranças refiram forte atuação no CNS, na formação de Conselheiros de Saúde e nas Conferências Nacionais de Saúde, não há nenhuma menção sobre articulações em fóruns, reuniões ou mobilizações, direta ou indiretamente com entidades do MRSB, a exemplo do Centro de Estudos Brasileiro de Saúde (Cebes) e Associação Brasileira de Graduação e Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Nem mesmo é referido, por esses sujeitos, textos, fóruns, elaboração de manifestos conjuntamente com estas entidades, ainda que seus discursos sejam marcados por questões como democratização da saúde, direito à saúde, defesa do SUS público, universal, equânime e com participação social, sendo essa uma agenda central do MRSB.

Discussão

Em função da heterogeneidade das organizações que analisamos, consideramos pertinente usar o plural movimentos negros, sem perder de vista o combate ao racismo antinegro como aglutinador e mobilizador das entidades e organizações da sociedade civil forjadas pela população negra. Assim, as práticas políticas desses movimentos na área de saúde e as concepções que os orientam, revelam uma complexa dinâmica de especificidades, unidade e transversalidade.

As concepções iniciais apresentadas pelas lideranças se distanciam de conceitos estruturados academicamente e podem parecer, em um primeiro momento, pouco objetivas na direção de proposições de mudanças do modelo de saúde hegemônico. Ao contrário do setor da educação, em que se destacaram professores e intelectuais negros vinculados aos movimentos negros e que produziram reflexões acadêmicas e proposições sobre o tema (Gomes, 2012Gomes, N. L. Movimento negro e educação: ressignificando e politizando a raça. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744, 2012, DOI: 10.1590/S0101-73302012000300005
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), no setor da saúde esse não foi um fenômeno evidenciado até então.

A histórica ocupação dos cursos de saúde, sobretudo os de medicina, pelas elites brancas brasileiras e as barreiras de acesso ao ensino superior - antes da implantação das políticas de ações afirmativas na década de 2000 - dificultaram o acesso de negras e negros a esses espaços, sobretudo em posições de intelectuais e de produção científica na área da saúde (Souza et al, 2020SOUZA, P. G. A. et al. Socio-Economic and racial profile of Medical Students from a Public University in Rio de Janeiro, Brazil. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 44, n. 03, p. 1-11, 2020. DOI:10.1590/1981-5271v44.3-20190111
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). Mesmo no final dos anos de 1970, quando o MRSB questionava a política de saúde vigente e o MNU emergia nacionalmente denunciando a falsa democracia racial, não são identificados registros de formulação conjunta de proposições para um novo sistema de saúde.

Contudo, saúde é um termo polissêmico que, para além de uma definição acadêmica, carrega em suas expressões conceituais uma diversificação de valores, crenças e ideais (Almeida Filho, 2011ALMEIDA-FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.) cuja produção e reprodução acabam por se relacionar com as práticas políticas dos movimentos negros que atuam na esfera da saúde. Assim, os termos utilizados inicialmente pelas lideranças, expõem, de algum modo, o que nas palavras de Gohn seria “uma utopia coletiva, ou seja, uma reinvenção da realidade, com um ideal a atingir, que busca ir além do possível a ser feito” (Gohn, 2011GOHN, M. G. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. São Paulo: Loyola, 2011., p. 256). Essa utopia encontra referência por meio das resistências e insubordinações da população negra diante das disparidades raciais e sociais.

A reinvenção dessa realidade sanitária, caracterizada pelas disparidades raciais nos indicadores de saúde, não se reduz a um desejo abstrato. Além da mudança no perfil epidemiológico de doenças prevalentes na população negra, das quais muitas já foram superadas na população branca, busca-se uma realidade socio sanitária, em que características fenotípicas não sirvam de suporte para políticas econômicas e sociais discriminatórias que conformam um ambiente promotor de adoecimentos e óbitos. Portanto, as concepções de saúde explicitadas expressam de algum modo a utopia de uma sociedade (e um Estado) de direitos na qual o negro possa viver material e simbolicamente de forma plena.

Ao situar os processos saúde-doença em uma relação integrada com as dinâmicas históricas, políticas, econômicas, culturais das estruturas sociais, essas concepções de saúde, de algum modo, encontram convergência com a noção de determinação social do processo saúde-doença, cunhado pelo campo acadêmico da saúde coletiva e parte central da elaboração política do MRSB (Garbois et al, 2017Garbois, J. A., Sodré F., Dalbello-Araujo M. Da noção de determinação social à de determinantes sociais da saúde. Saúde Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 112, p. 63-76, 2017. DOI:10.1590/0103-1104201711206
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).

Porém, na visão das lideranças, essa dinâmica social está fundamentada no racismo estrutural a partir da compreensão de superação da lógica do racismo, enquanto fenômeno individual, sustentado por questões éticas, psicológicas e morais, para uma análise do racismo enquanto regra, e não exceção, que historicamente, vem constituindo as relações políticas, econômicas e jurídicas, e de onde derivam comportamentos individuais e funcionamentos institucionais (Almeida, 2017ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2019.).

Assim, ao invés de um conceito definido de saúde, encontra-se uma visão sobre o processo saúde-doença que só é delineada ao incorporar o racismo como principal barreira que, por meio da produção de permanentes atos discriminatórios, inscritos em dimensão histórica, política, econômica e social, impactam negativamente as condições de saúde. Essa percepção unifica e mobiliza essas entidades, orientando a elaboração de propostas específicas e compartilhadas para a formulação de políticas de saúde voltadas para a população negra.

Desse modo, a demanda do acesso aos serviços de saúde, elemento comum identificados por todos, expressa ao mesmo tempo duas dimensões: (1) o consumo de serviços, procedimentos e insumos, dos quais a população negra vem convivendo com as limitações e ausências em seus territórios locais de moradia e fora deles; (2) o cuidado integral aos sujeitos que, em uma perspectiva ampla, demanda por equidade racial na base da prestação, distribuição e organização dos serviços de saúde.

Ao articular as carências não atendidas e o acesso assistencial com as utopias do direito de viver plenamente, mediado pelos ideais de equidade racial e promoção dos direitos humanos, os MN, atuantes no âmbito da saúde, traduzem as demandas mais imediatas em reivindicações, produzindo o que se denomina de repertórios de ações coletivas, ou seja, ações e atividades que representam interesses e objetivos compartilhados (Alonso, 2012ALONSO, A. Repertório, segundo Charles Tilly: História de um Conceito. Revista Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 21-41, 2012. DOI:10.1590/2238-38752012v232
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).

A elaboração do repertório de cada organização deste estudo não se apresentou de maneira acabada internamente, ao contrário, predomina o caráter solidário, fluído, e aberto para articulações, desde que preservando o princípio da igualdade racial. Em que pese que algumas priorizem determinadas patologias e/ou agravos e diferentes formas de ação para pressionar o estado, é o aspecto do direito cidadão, inscrito na Constituição de 1988, (direito à saúde, criminalização do racismo, direito à liberdade religiosa, a igualdade de direitos entre homens e mulheres etc.) que fundamenta e promove o compartilhamento das reivindicações.

Esse processo vai além de contatos pontuais entre as organizações o que só é possível devido a atuação em redes, que permite certo grau de flexibilidade e multiplicidade de estratégias, integrando-se sempre a agendas mais amplas que as demandas levantadas por cada organização. A doença falciforme, a violência contra a mulher, a prevenção às IST, a desvalorização dos conhecimentos tradicionais em saúde expressa de algum modo necessidades sociais mais complexas, a exemplo do enfrentamento ao racismo científico, direitos sexuais e reprodutivos para as mulheres negras, reconhecimento da interseccionalidade de raça e gênero na produção de saúde, reconhecimento das tradições e religiões de matriz africana como espaço de promoção da saúde, entre outros.

Assim, o enquadramento dessas organizações a partir da noção de redes de movimentos sociais possibilita compreender as estratégias de visibilidade e ampliação do alcance na esfera pública, mesmo com estruturas organizacionais e pesos políticos tão diferentes em relação a outros movimentos sociais. Para Scherer-Warren (2021SCHERER-WARREN, I. Redes sociais: trajetórias e fronteiras. In: DIAS, L. C.; SILVEIRA, R. L. L. (Org.). Redes, sociedades e território. 3. ed. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2021.), as redes de movimentos superam “organizações empiricamente delimitadas” e, por meio de identificações políticas, constroem processos dialógicos pretendendo um projeto para os movimentos, cuja atuação é local e global, como pode ser percebido no caso investigado. Nesse sentido, a conformação dessas redes aponta que alianças estratégicas se encontram no âmbito da agenda de políticas públicas articuladas com “raça” em interface com a “saúde”, congruente com as concepções das lideranças sobre o processo saúde-doença.

Por um lado, isso fornece pistas para entender o fato de o MRSB não ser mencionado como um ator destacado. Porém, por outro lado, Cohn e Gleriano (2020COHN, A.; GLERIANO, J. S. A urgência da reinvenção da Reforma Sanitária Brasileira em defesa do Sistema Único de Saúde. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 21, p. 1-24, 2021. DOI:10.11606/issn.2316-9044.rdisan.2021.159190
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), discorrendo uma análise crítica sobre o MRSB, apontam, dentre outros elementos, a restrição da mobilização da saúde nos últimos 30 anos ao que chama de “militantes clássicos”, sem que o MRSB garantisse, de forma sustentável, a mobilização de outros “sujeitos sociais mais coletivos”. Ambas as hipóteses podem servir de ponto de partida para a compreensão do distanciamento entre esses movimentos no período estudado.

Além da análise das aproximações e distanciamentos entre os MN e outros atores e movimentos sociais, cabe considerar os níveis e formas de encaminhamento da ação conforme aponta Scherer-Warren (2006SCHERER-WARREN, I. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 21, n. 1, p. 109-130, 2006. DOI:10.1590/S0102-69922006000100007
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, p. 110). Portanto, as ONG, as federações e entidades políticas se caracterizam, em maior ou menor grau, tanto pelo associativismo local (primeiro nível) quanto pela ação interorganizacional (segundo nível); em relação a marchas e mobilizações de ruas (terceiro nível) voltadas exclusivamente para a agenda de saúde, estas não foram identificadas, ainda que a maior parte das entidades estudadas participem de ações dessa natureza.

Cabe ainda destacar que do ponto de vista de atuação local, as ações comunitárias assistenciais remetem a uma tradição histórica dos movimentos negros desde o início da República, por meio das entidades de ajuda mútua, associações profissionais de trabalhadores negros (estivadores, marceneiros etc.) e por meio das próprias religiões de matriz africana (Domingues, 2007DOMINGUES, P. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Niterói, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007. DOI:10.1590/S1413-77042007000200007
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). O que poderia ser entendido como “ações assistencialistas”, no sentido da caridade, é uma herança afro-brasileira de organização autônoma da população negra, na busca pela resolução de suas demandas mais imediatas.

Assim, um olhar mais atento para os processos históricos e políticos que conformam a resistência negra no Brasil sugere que a organização, articulação e resolução de demandas entre a comunidade negra brasileira, majoritariamente territorializada em periferias dos grandes centros urbanos do país, guardam enorme potencial de mobilização, sem perder de vista o reconhecimento da importância de incluir suas reivindicações na agenda do Estado, o que está demonstrado pela atuação desses movimentos nos espaços governamentais, visando a formulação de políticas públicas fundamentada nos direitos sociais inscritos na Constituição Federal.

Além da diversidade de estratégias utilizadas por essas organizações, é possível notar que demandas imediatas se articulam com proposições mais estratégicas cujo horizonte é a mudança na forma de pensar o corpo, o cuidado e a cura, presente nas religiões de matriz africana, à problematização das racionalidades que sustentam a ação comunitária solidária que articula raça, classe, gênero e território como espaço de cuidado, educação, política e cultura; até às exigências ao Estado brasileiro de implementar políticas de reparação por meio de estruturas legais e econômicas direcionadas para a igualdade racial, ainda que essas noções não estejam de forma estruturada presente no discurso das lideranças desses movimentos.

Considerações finais

Este estudo demonstrou que as concepções de saúde dos MN atuantes em torno da PNSIPN apenas são evidenciadas a partir da análise da ação política desses movimentos, no enfrentamento às práticas de preconceito e discriminação racial, derivadas do racismo estrutural, que estrutura desigualdades, promove adoecimento e morte da população negra, reforçando as iniquidades sociais. Entretanto, constatou-se que a atuação das diversas organizações que compõem o MN não se limita à denúncias gerais de racismo, mas se desenvolve em torno de propostas que visam atender necessidades e demandas imediatas das comunidades em que se ancoram, buscando também, por meio da participação em instâncias decisórias no âmbito do Estado, promover a formulação e implementação de políticas que valorizem a articulação intersetorial e incidam sobre os determinantes dos problemas de saúde que afetam a população negra tendo em vista a promoção da igualdade racial.

Agradecimentos

À equipe de pesquisadores do Observatório de Análise Política em Saúde/ISC/UFBA pelo apoio no processo da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2022
  • Revisado
    12 Jul 2022
  • Aceito
    09 Ago 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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