Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado11Pesquisa financiada pelo UK Research and Innovation (UKRI) através do Medical Research Council (MRC).

Maria Paula Prates Valéria Macedo Ataíde Vilharve Gonçalves Vherá Mirim Araci da Silva Yva Mirim Sobre os autores

Resumo

Este artigo é direcionado para aspectos metodológicos implicados em uma pesquisa sobre respostas indígenas à covid-19 realizada por uma rede de pesquisadoras indígenas e não indígenas em diferentes estados brasileiros. Pretendemos compartilhar experiências e reflexões sobre limites e potencialidades de uma pesquisa realizada na pandemia e com a pandemia, já que o adoecimento experimentado nos corpos e na vida coletiva das pesquisadoras foi um agente incontornável em percursos metodológicos e analíticos, em diálogo com debates feministas sobre a tópica do cuidado.

Palavras-chave:
Pandemia; Cuidado; Pesquisa Colaborativa; Pesquisadoras Indígenas; Antropologia

Introdução

Ao longo de 2021, durante a pandemia de covid-19, trabalhamos numa pesquisa que procurou cartografar, criar e apoiar iniciativas indígenas de enfrentamento a essa doença. A Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à covid-19: arranjos sociais e saúde global (PARI-c)22Indigenous Peoples responding to Covid-19 in Brazil: social arrangements in a Global Health emergency é o nome original do projeto financiado pelo Medical Research Council (MRC), UK Research and Innovation (UKRI). fez o papel de ferramenta informacional em que veiculamos notas de pesquisa, curtas-metragens e estudos de caso33Disponível em: www.pari-c.org.. Mensalmente produzíamos publicações, semanalmente fazíamos reuniões on-line e diariamente interagíamos por dispositivos de comunicação digital com pessoas em diferentes lugares. A PARI-c foi pensada e realizada durante a pandemia e previu acesso à tecnologia digital a todas as participantes44Neste artigo empregamos predominantemente a flexão de gênero no feminino em razão da maioria dos membros da pesquisa serem mulheres.. O método híbrido de trabalho, que foi predominante remoto, teve a tônica presencial dada por pesquisadoras indígenas55Adjetivamos pesquisadoras como indígenas, a fim de marcar politicamente suas participações e modos de produzir conhecimento, indo ao encontro do modo como as próprias pesquisadoras desejam ser mencionadas.. Elas relatavam o que se passava em suas aldeias, conversavam com “parentes”66Trata-se de um modo indígena, no Brasil, de se referir a outras pessoas também indígenas, sejam ou não do mesmo povo, tendo ou não vínculos diretos de afinidade ou consanguinidade. As interlocuções de pesquisa se deram, na maior parte das vezes, nas comunidades onde viviam as pesquisadoras, mas houve também conversas e levantamentos envolvendo outras aldeias ou povos. Colocamos entre aspas esta primeira aparição do termo “parente” a fim de destacar seu caráter êmico. sobre suas experiências e reflexões, assim como dirigiam e filmavam curtas-metragens.

A PARI-c foi uma pesquisa realizada na e com a pandemia, já que o adoecimento experimentado nos corpos e na vida coletiva das pesquisadoras foi um agente incontornável em percursos metodológicos e analíticos. É sobre isso que propomos refletir neste artigo, atentando para modos de cuidado e de cuidar emergidos durante o trabalho, sob inspiração da tópica do “care” (“cuidado”), intensamente mobilizada no campo de debates feministas, a exemplo dos trabalhos de Bellacasa (2011BELLACASA, M. P. Matters of care in technoscience: assembling neglected things. Social Studies of Science, Londres, v. 41, n. 1, p. 85-106, 2011. DOI: 10.1177/0306312710380301
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, 2012BELLACASA, M. P. “Nothing comes without its world”: thinking with care. The Sociological Review, Lancaster, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
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, 2017BELLACASA, M. P. Matters of care: speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.), Laet, Driessen e Vogel (2021LAET, M.; DRIESSEN, A.; VOGEL, E. Thinking with attachments: Appreciating a generative analytic. Social Studies of Science , Londres, v. 51, n. 6, p. 799-819, 2021. DOI: 10.1177/03063127211048804
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), Haraway (1991HARAWAY, D. Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, College Park, v. 14, n. 3, p. 575-599. 1991a. DOI: 10.2307/3178066
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, 2020HARAWAY, D. Speculative fabulations for technoculture’s generations: Taking care of unexpected country. Australian Humanities Review, Canberra, v. 67, n. 1, p. 1-19, 2020. DOI: 10.1515/9780822376989-013
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), Mol (2008MOL, A. The logic of care. Health and the problem of patient choice. New York: Routledge , 2008.), Mol et al. (2010MOL, A; MOSER, I.; PIRAS, E. M.; TURRINI, M.; POLS, J.; ZANUTTO, A. Care in practice. On normativity, concepts, and boundaries. Tecnoscienza - Italian Journal of Science & Tecnologia Studies, Milão, v. 2, n. 1, p. 73-86, 2010.), Stengers (2015STENGERS, I. No Tempo das Catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015.), Tsing et al. (2017TSING, A. L.; BUBANDY, N; GAN, E; SWANSON, H. A (Org.). Arts of Living on a Damaged Planet: Ghosts and Monsters of the Anthropocene. Minneapolis: University of Minnesota Press , 2017.), entre outras.

Cuidado pode engajar sentidos amplos, desde um alerta até um investimento afetivo ou laboral. Cuidar, tomar cuidado, cuidar-se, cuidar de outros, pensar com e por meio do cuidado são ações que se mostraram cotidianas em nossa prática de pesquisa, ao longo de 14 meses. A fim de dar conta de dispositivos e disposições acerca desse tópico, propomos dois movimentos. O primeiro deles etnográfico, sustentado por narrativas e agenciamentos êmicos sobre cuidado e cuidar; e o outro, conceitual-metodológico, advindo de uma literatura contemporânea sobre a tópica do cuidado (care).

Organizamos nossa escrita em duas seções, sendo a primeira sobre dinâmicas e arranjos coletivos da PARI-c, concentrando o foco na equipe Brasil Meridional77Em termos operacionais, a PARI-c esteve organizada em 5 equipes de trabalho: (1) Meridional, (2) Central e Sul Amazônico, (3) Norte Amazônico, (4) Nordeste e (5) Co-Equipe.. A seção seguinte toma as reflexões dos pesquisadores do povo Guarani Mbya Vherá Mirim e Yva Mirim, coautores deste artigo, como exemplos de desafios, dilemas e potencialidades de um modo de pesquisa colaborativa. Atravessando ambas as seções, abordamos adoecimento e cuidados como temas e vieses metodológicos da pesquisa, bem como a participação dos dispositivos digitais na PARI-c e em outras articulações e mobilizações indígenas no período pandêmico.

De quadradinhos e atravessamentos pandêmicos

A PARI-c contou com cerca de cem pesquisadoras, indígenas e não indígenas, trabalhando em diferentes regiões do Brasil, incluindo doutoras, mestres, mestrandas e graduandas vinculadas a instituições acadêmicas e não acadêmicas. A composição antropológica predominou na equipe, mas a rede também foi composta por pesquisadoras indígenas que atuam nas áreas da saúde, educação e artes, incluindo rezadeiras, erveiras e xamãs. A formação dessa rede foi se constituindo a partir de relações preexistentes de parceria, tendo Maria Paula Prates88Maria Paula Prates coordenou a PARI-c e, juntamente com Valéria Macedo, a equipe Brasil Meridional. A Professora Christine McCourt foi a Investigadora Principal. como elo inicial. As comunidades abarcadas foram aquelas em que vivem as pesquisadoras indígenas e onde as pesquisadoras não indígenas possuem vínculos de amizade e interlocução. A equipe Brasil Meridional, particularmente, contou com dezessete pesquisadoras indígenas (oito fixas e nove esporádicas e remuneradas), 16 não indígenas e duas coordenadoras99Os participantes da equipe Sul foram: Maria Paula Prates e Valéria Macedo (coordenadoras); Ara Rete Sandra Benites; Gãh Té Iracema Nascimento; Kuaray Ariel Ortega; Kunha Takua Rokavy Ponhy Paulina Martines; Mbo’y Jegua Clara de Almeida; Vherá Mirim Ataíde Vilharve Gonçalves; Yva Talcira Gomes; Yva Mirĩ Araci Silva; Ana Letícia Schweig; Bruno Huyer; Renan Nascimento; Tatiane Klein; Amanda Signori; Eduardo Lima; Tomás Oliveira; Camila Padilha; Cauê Oliveira; Karen Villanova; Karina Corrêa; Laura Brizola; Milena Farinha; Teodora Moraes., interagindo com comunidades no Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Nelas vivem povos aparentados, como os Guarani Mbya, Ava-Guarani, Nhandewa e Kaiowá, da família linguística Tupi-Guarani, e os Kaingang, povo pertencente à família linguística Jê.

O trabalho dessa rede de pesquisadoras se efetivou em grande medida por interlocuções à distância, trocando mensagens de texto, áudio, imagens e vídeos pelo celular. Além disso, foram realizadas conversas mais longas em chamadas de vídeo por plataformas de comunicação remota. Já as pesquisadoras indígenas puderam trocar conhecimentos e experiências de modo presencial com seus co-residentes nas suas respectivas comunidades, mas também com parentes e aliados em outras aldeias, também por meio de seus celulares.

Os dispositivos digitais foram não apenas meios ou suportes para a comunicação como também partícipes nas redes sociotécnicas da pesquisa, interferindo diretamente nos modos como a produção e a circulação de conhecimento aconteceu (Rifiotis, 2016RIFIOTIS, T. Etnografia no ciberespaço como “repovoamento” e “explicação”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 85-98, 2016. DOI: 10.17666/319085-98/2016
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). Na troca de áudios por celular, por exemplo, a ausência do corpo ou da imagem do outro, seu olhar, suas reações e intervenções, na maioria das vezes resultou em falas mais pontuais, rápidas e pouco densas, mas em algumas ocasiões ensejou falas menos dirigidas e por vezes mais ricas e complexas. Não foram raras as ocasiões em que trocamos longos áudios, seja entre as pesquisadoras da equipe, seja com interlocutoras nas aldeias.

Já nos encontros síncronos, com a câmera ligada, outras disposições relacionais eram comumente ativadas. As participantes desses encontros não estavam reunidas numa aldeia com os sons, cheiros, práticas, materialidades e afetos que costumam fazer as conversas mais pulsantes do que entrevistas em espaços institucionais ou diante de uma câmera. Mas o constrangimento que a câmera pode causar e o enquadramento espaço-temporal que ela impõe também podem acionar uma maior concentração, reflexividade e densidade afetiva, sobretudo porque ali estão pessoas que já viveram experiências juntas e estão impedidas de se encontrarem presencialmente pela pandemia. Em diversas conversas pela câmera, sentimos que essa distância espacial era preenchida por uma busca concomitante de aproximação pelo compartilhamento de reflexões e experiências. Decerto, também houve conversas que não fluíram porque o constrangimento da câmera inibiu o fluxo de afetos e ideias que um encontro presencial poderia ter ensejado.

Mesmo no trabalho de campo presencial sabemos como o registro em câmera ou gravador pode tirar a espontaneidade do enunciador e travar fluxos de pensamento, incitando respostas por vezes mais previsíveis e superficiais. Mas também pode ativar, como destaca o documentarista Eduardo Coutinho (1998COUTINHO, E. Eduardo Coutinho e a câmera da dura sorte. Revista Sexta Feira - Antropologia, artes, humanidades, [S. l], v. 2, n. 1, p. 10-25, 1998.), um processo de autofabulação, em que a câmera faz com que a pessoa se coloque em perspectiva, construindo-se como personagem e autora de sua história. Algo análogo se passou com os áudios enviados por celular e as conversas em plataforma de vídeo. Em meio à diversidade de situações que vivenciamos, é certo que a internet e as plataformas digitais interviram na nossa produção de relações e conhecimento, participando inclusive de agenciamentos que envolvem relações presenciais nas aldeias. Como destaca Hine (2015HINE, C. A. Ethnography for the internet: Embedded, embodied and everyday. New York: Routledge , 2015.), dificilmente uma pesquisa é inteiramente on-line ou off-line, até porque essa dicotomização não se sustenta.

Particularmente na equipe Brasil Meridional, entrevistas ou conversas informais foram realizadas com aproximadamente 60 indígenas por plataforma digital ou, no caso das pesquisadoras indígenas, de modo presencial. Parte dessas conversas foi realizada em línguas nativas e, então, traduzidas por pesquisadoras indígenas. A maioria da equipe, com exceção das pesquisadoras elo na formação do coletivo, se conheceu no âmbito da pesquisa durante os encontros virtuais. Realizamos reuniões semanais no primeiro semestre de 2021, que passaram a ser quinzenais no segundo, em uma plataforma de comunicação remota. Esses encontros eram a ocasião de juntar nossos quadradinhos na tela do computador. Iracema Gah Té, pesquisadora do povo Kaingang, foi quem trouxe a imagem dos “quadradinhos” ao contar como descreveu nossos encontros para pessoas da sua comunidade.

Cada quadrado trazia cenários diversos em seu plano de fundo, tendo na frente pessoas com diferentes corporeidades e falas. Por vezes, a internet dificultava algumas participações, mas, em comparação com outras equipes regionais da PARI-c, em que a precariedade da rede virtual dificultava as interlocuções, geralmente conseguíamos nos comunicar. Costumávamos iniciar com uma rodada de informes ou de experiências que haviam sido marcantes durante a semana.

A covid-19 se fazia presente com frequência, seja por pessoas da equipe que haviam adoecido ou por parentes e pessoas queridas que adoeceram ou faleceram, seja pelos relatos sobre os enfrentamentos da pandemia nas comunidades. A presença da covid também se impunha na ausência daquelas em luto ou adoecidas na equipe, e pelo falecimento de Iamoni, uma de nossas colegas indígenas, em razão dessa doença1010Iamoni era do povo Mehinako, mas ela e a pesquisadora não-indígena Aline Regitano foram integradas à equipe por seu interesse na temática da gestação e parto. Iamoni inclusive era uma importante liderança e parteira em sua comunidade na Terra Indígena do Xingu (MT). Em razão de sua partida, deixamos de inserir o caso Mehinako nos estudos do grupo.. Ainda, a covid-19 estava naquilo que silenciávamos e não compartilhávamos. Em um jogo de figura-fundo, a pandemia estava sempre presente nas reuniões, seja pela imposição do distanciamento que confinava cada qual em seu quadradinho, seja no que era dito, nos silêncios e nas pausas que expressavam não memórias subterrâneas (Pollak, 1989POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.), já que eram recentes e pulsantes, mas, se assim pudermos dizer, testemunhos subterrâneos. Havia, portanto, um vínculo (attachment, no sentido de Laet, Driessen e Vogel, 2021LAET, M.; DRIESSEN, A.; VOGEL, E. Thinking with attachments: Appreciating a generative analytic. Social Studies of Science , Londres, v. 51, n. 6, p. 799-819, 2021. DOI: 10.1177/03063127211048804
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) em que ambos os silêncios e as falas adensavam informações e reflexões sobre respostas indígenas à covid, bem como iam nos ensinando sobre implicações metodológicas e éticas de uma pesquisa predominantemente virtual, multilocal, multiétnica e pandêmica. A conformação de uma rede de cuidado era parte desse trabalho conjunto que envolvia engajamentos intelectuais, mas também afetivos, de afetação, de escuta e apoios de diversas ordens.

Por essas razões, a covid se instaurava não apenas como uma questão de fato ou um assunto de interesse - no sentido em que Latour (2004LATOUR, B. Why Has critique run out of steam? From matters of fact to matters of concern. Critical Inquiry, Chicago, v. 30, n. 2, p. 225-48, 2004. DOI: 10.1086/421123
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) contrapõe matters of fact e matters of concern -, mas como uma questão de cuidado - matter of care, como propõe Bellacasa (2011BELLACASA, M. P. Matters of care in technoscience: assembling neglected things. Social Studies of Science, Londres, v. 41, n. 1, p. 85-106, 2011. DOI: 10.1177/0306312710380301
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, 2017BELLACASA, M. P. Matters of care: speculative ethics in more than human worlds. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.) ao interpelar a formulação latouriana. Particularmente, a autora propõe uma abordagem do cuidado como dissenso interno tanto à pessoa quanto à produção de conhecimento coletiva, em que intervenções heterogêneas e assimétricas propiciam a construção de uma ética específica, localizada e não normativa. No nosso caso, o engajamento intelectual que construíamos era também afetivo e atravessado pela vulnerabilidade que se impunha nos corpos pela pandemia e na pesquisa sobre a pandemia.

Nessa direção, Haraway (2000HARAWAY, D. How like a leaf. New York: Routledge , 2000.) chama a atenção para como a doença faz visível a vulnerabilidade constituinte dos corpos e as relações que os compõem, constituindo uma “mais do que metáfora” por ser a um só tempo material e semiótica. Em nossos encontros de pesquisa, as telas dos participantes mostravam materialidades diversas e desiguais, assim como nossos corpos constituem dispositivos semióticos parciais e situados (Haraway, 1991HARAWAY, D. Situated knowledges: The science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies, College Park, v. 14, n. 3, p. 575-599. 1991a. DOI: 10.2307/3178066
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). O desafio era pensar-com, inclusive com a covid, que ali se impunha como tema da pesquisa e como um imperativo metodológico de destotalização, em que algumas coisas e relações se faziam visíveis e outras não. Era preciso compor-se com outres com cuidado. Um cuidado que ensejava tanto a forma de falar e se referir a algo quanto ao quê e como transformar o conhecimento em dado a ser publicizado.

Após a rodada inicial de compartilhamento de experiências recentes, buscávamos concentrar o foco no tema de nossos estudos temáticos sobre (1) parto e nascimento durante a pandemia e (2) significados e implicações do distanciamento social. Em ambos os momentos, as pesquisadoras indígenas eram as que falavam mais vezes e mais longamente. As falas das não indígenas geralmente buscavam sistematizar os achados da equipe, já as falas das indígenas costumavam trazer reflexões mais abrangentes e aprendizados a partir de enredos singulares que tinham vivido ou ouvido de parentes, desde casos pessoais até ações coletivas, assim como sonhos e orientações de líderes espirituais.

Não eram, contudo, apenas as histórias que nos interpelavam, como também aquilo que as pesquisadoras indígenas pontuavam sobre cuidados necessários na produção e circulação de conhecimentos. Nessa direção, Vherá Mirim comentou como muitas xejaryi e xeramoῖ1111“Minha avó” e “Meu avô”, ou, de modo geral, anciãs e anciãos sábios entre os Guarani-Mbyá. podem não querer falar para os jurua (não indígenas) sobre alguns temas, ou podem não querer ter suas palavras capturadas por um gravador ou uma câmera. Já Clara Mbo’y Jegua, pesquisadora kaiowá, contou que fazer entrevistas não funcionou muito durante seu projeto de mestrado, sendo melhor uma roda de conversa, pois as perguntas diretas em entrevistas podiam “sufocar” o entrevistado. Por outro lado, ela disse também que muitas nhandesy e nhanderu1212“Nossa mãe” e “Nosso pai”, ou, de modo geral, anciãs e anciãos sábios entre os Kaiowá. gostam de ensinar e acham importante promover a circulação de conhecimentos que vinham sendo “arquivados” pelas dificuldades da vida indígena nas terras confinadas, diminutas e populosas das reservas ou nas sempre ameaçadas terras de retomada no estado do Mato Grosso do Sul.

Em meio a essas e outras falas, fizemos reflexões conjuntas sobre como a participação em uma pesquisa pode trazer o perigo de captura e fixação de conhecimentos que só existem em movimento e em relação com modos de viver e pensar específicos. Mas também como uma pesquisa pode “desarquivar” conhecimentos, tirando-os do esquecimento, descaso ou silenciamento, colocando-os em novos circuitos e conexões. Ainda, como a participação de pesquisadoras indígenas era importante para que esses novos circuitos ajudassem a reverberar as demandas e desafios enfrentados nas aldeias, incluindo formas de mobilização, de reflexão e de enfrentamento das questões postas pela pandemia.

O estudo sobre parto e nascimento, por exemplo, mobilizou as pesquisadoras indígenas a comentarem que conversas sobre a temática podem ser mais difíceis quando o pesquisador é homem. Ariel Kuaray, do povo guarani mbya, ponderou, contudo, que o nascimento de uma criança envolve muitas forças e pessoas bem antes e depois do parto, como a aproximação do nhe’ẽ1313Ser celeste que habitará o corpo que está sendo gestado na condição de sua alma. e todos os cuidados que tanto homens como mulheres precisam tomar. Ele mesmo estava vivendo essa experiência, porque sua companheira estava grávida. Outras duas pesquisadoras não indígenas da equipe também participaram do estudo grávidas, de forma que não apenas a covid era algo presente ou rondando corpos e ideias, como também a vitalidade das gestações.

No decorrer de cada reunião, nossa conversa ia transformando os quadradinhos em uma rede de experiências, pensamentos e afetos. Em um encontro, por exemplo, Gah Té mostrou pela câmera do celular o balde de pinhão que tinha colhido e encheu todo o mundo de vontade, assim como o reviró (preparo com farinha) que Vherá Mirim estava comendo em outro quadradinho. Na mesma ocasião, tanto no quadradinho de Ana (pesquisadora não indígena em Porto Alegre) quanto no de Valéria (pesquisadora não indígena em São Paulo) tinha uma cuia de ka’a (erva-mate), e a cachorrinha da Maria (pesquisadora não indígena em Londres) às vezes pulava no colo e aparecia na tela, enquanto o galo de Mbo’y Jegua cantava ao fundo.

É certo que os quadradinhos sufocavam um pouco (como as entrevistas, na expressão de Mbo’y), mas também produziam conexões sensoriais, afetivas e intelectuais. O relato de uma experiência não raro ativava a memória de outras naqueles que ouviam, ampliando possibilidades para os estudos temáticos e a produção de notas de pesquisa. Desse modo, o afastamento imposto pela pandemia trouxe a oportunidade de constituir uma rede geograficamente dispersa, mas intensamente conectada por trocas e vínculos de diversas ordens.

As temporalidades foram também se adequando à modalidade de pesquisa remota, por exemplo a troca de áudios entre Maria e Talcira Yva, que acontecia sobretudo no meio da manhã no Reino Unido e no amanhecer em uma comunidade mbya no extremo sul do Brasil. Ao acordar e se sentar para tomar mate e fumar petyngua (cachimbo com tabaco), Yva se sentia inspirada para falar sobre temas que lhe interessavam ou preocupavam no momento. Maria percebeu que não adiantava enviar perguntas prontas a qualquer hora do dia para Yva, valendo a pena estabelecer conversas abertas durante o amanhecer.

Entre as participantes de nossa equipe, aquelas que já tinham feito pesquisas em colaboração antes da pandemia ensejaram a formação de grupos menores, aos quais se somaram pesquisadoras de Iniciação Científica ou mestrado. Tais grupos tinham uma interação mais intensa ao longo da semana e dinâmicas singulares de trabalho conjunto. Dois grupos voltaram-se para comunidades no Rio Grande do Sul, um terceiro abarcou Rio Grande do Sul e Paraná, um quarto incluiu Mato Grosso do Sul e Paraná, um quinto apenas Mato Grosso do Sul e um sexto grupo em São Paulo. Entre essas equipes, uma no Rio Grande do Sul concentrou o trabalho em uma comunidade, incluindo a produção de um filme sobre uma experiência de gravidez durante a pandemia1414“Nhe’e kuery joguery teri” (Nossos espíritos seguem chegando). Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/52.. Nos demais grupos, as pesquisadoras indígenas protagonizavam, em parceria com as não indígenas, levantamentos e conversas em várias aldeias. Parte dessas conversas foram registradas em vídeo ou em áudio, quando houve consentimento. E, por vezes, as pesquisadoras indígenas produziam imagens ou apontavam a câmera do celular para compartilhar aspectos da vida e das situações que enfrentavam na ocasião. Em meio a multiplicidade e singularidade dessas configurações, na próxima seção nos aproximaremos das experiências de dois pesquisadores guarani mbya em nossa equipe, um residente no estado de São Paulo e outra no Rio Grande do Sul.

Conexões que fortalecem ou definham

Durante a pandemia, a participação de Ataíde Vherá Mirim1515Coautor deste texto, Vherá Mirim desde 2020 está cursando uma graduação em Tecnologia em Gestão Pública, sendo também uma liderança em sua comunidade, Takuari, e no conjunto de aldeias na região do Vale do Ribeira/SP. Ele é ainda um comunicador que faz parte do coletivo Mídia Mbya e, juntamente com sua esposa, pertence à Rede de Pesquisadores Indígenas das Línguas Ancestrais da Unesco/ONU. na PARI-c foi concomitante à formação ou ampliação de outras redes de informações, elaborações e ações em que tomou parte. Ele era na época presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Litoral-Sul, tendo participado de diversas reuniões em que acompanhou a situação de muitas comunidades. Por um lado, essa circulação fez com que ele contraísse covid, chegando a ficar oito dias internado no hospital. Por outro, ele relata como foi importante a oportunidade de não apenas contribuir no aprimoramento dos serviços de saúde durante o período pandêmico, como também ouvir e compartilhar sentimentos, receios, sonhos, conhecimentos e experiências com pessoas em diferentes aldeias. Essas trocas aconteciam tanto em encontros on-line como presenciais, sendo nesses últimos maximizadas pela força do petyngua (cachimbo com tabaco) e dos tarova (cantos-reza) que conectavam os presentes com as divindades nas moradas celestes e outros parentes em aldeias distantes.

Além da covid, uma preocupação crescente para Vherá Mirim e lideranças nesses encontros é uma modalidade de adoecimento que cresceu durante a pandemia, o inhakanhy, que se aproxima do que os não-indígenas chamam de doença mental1616O que os Guarani chamam de inhakanhy, traduzindo como doença mental, não se confunde com o que chamam de nhe’ mba’eaxy, que traduzem como doença espiritual. Ou melhor, a doença espiritual constitui uma categoria mais englobante, de modo que a doença mental é uma modalidade de doença espiritual. Esta diz respeito a uma alteração nos afetos da pessoa sob efeito dos espíritos, geralmente incorrendo no afastamento do nhe’ẽ do corpo da pessoa. A saudade, a tristeza, o desejo, a raiva e outros afetos que irrompem de modo desmedido são associados a nhe’ẽ mba’eaxy. No caso de inhakanhy, é ainda mais incisivo a diferença no comportamento da pessoa, que pode se machucar, ou machucar seus próprios parentes, podendo até acabar com sua própria vida ou de outros. Por isso, alguns também traduzem inhakanhy por loucura.. Um dos muitos parentes afetados foi sua sobrinha, que acabou cometendo suicídio em julho de 2021, com apenas 12 anos. Também uma importante liderança no estado foi acometida de inhakanhy e formou-se uma rede de cuidados e benzimentos de líderes espirituais que atuaram mesmo à distância de suas respectivas aldeias. Vherá Mirim foi um desses benzedores que trabalhou para que ele recobrasse a consciência e a força de existir. Neste e em outros casos, a força curativa dos cantos, pensamentos e da fumaça do petyngua seguiu operando numa rede de cuidado envolvendo tanto os que estão próximos como os distantes, em concomitância com as trocas e apoios ensejadas nas redes virtuais de comunicação.

As lideranças que estavam nas reuniões de saúde de que participara Vherá Mirim expressavam grande preocupação em relação ao adoecimento de jovens pelo excessivo “fechamento” promovido pelo celular, contrastando com a conexão que se tem nas casas de reza. Os desejos ficam capturados pelo aparelho e os jovens se fecham para a vida cerimonial na casa de reza, para o conhecimento dos mais velhos e para as práticas cotidianas com os parentes. Concomitante a esse “fechamento”, o celular pode promover uma abertura desmesurada ao mundo acessado pela internet, como as redes sociais e campeonatos de jogos on-line, principalmente de Free Fire Mobile1717Copa nas aldeias. Disponível em: https://www.espn.com.br/esports/artigo/_/id/7886877/free-fire-copa-das-aldeias-o-primeiro-campeonato-exclusivo-para-comunidade-indigena.. Sobre isso, Vherá Mirim faz o seguinte relato:

Aqui na aldeia Takuari, no comecinho da pandemia a gente fechava o portão, mas precisávamos encontrar um xondaro (guardião) para cuidar da entrada. Eu brincava assim: “quem quer ser o menino da porteira?”1818Em referência a uma música do repertório sertanejo no Brasil, “O menino da porteira”, famosa na interpretação de Sergio Reis., e os jovens falavam: “mas o que eu vou fazer na porteira o dia inteiro?”. Aí um deles disse: “minha casa é pertinho da porteira, então eu posso ficar o dia inteiro, eu levo água gelada, fico lá, mas eu quero crédito no celular, aí eu fico lá acessando”. Todo mês a gente fazia vaquinha e colocava crédito para ele, mas então outros quiseram também: “ó, é minha vez!”. Aí trocava o xondaro e ele pedia crédito. Eles ficavam jogando no celular o dia inteiro, por isso queriam crédito. E daí veio um problema junto com a pandemia, que é o fechamento dos jovens no celular. A tecnologia pode ser uma forma de conexão, mas também pode ser uma forma ruim de distanciamento que aumentou com a Covid-19. A pessoa pode se distanciar da comunidade e dela mesma, podendo ter doença mental, inhakanhy, e até alguns casos de suicídio de jovens aconteceram nesse período de pandemia.

A esposa de Vherá Mirim, Luisa Pará Xapy’a, também tematiza esse assunto e associa o que os não-indígenas chamam de depressão à tecnologia. “O jovem fica preso em um lugar, não tem muita vida social e acaba se fechando, ficando sozinho com aquele celular, vivendo um mundo que não existe e trazendo essa doença para ele”. Mas ela também diz como o celular pode ser bom para trocar conhecimentos e articular lutas no mundo que existe e precisa ser transformado. Os recursos de registro audiovisual do celular vêm sendo largamente utilizados nas aldeias para veicular campanhas, reivindicações, protestos, denúncias, artes e conhecimentos de diversas ordens.

Além da presença crescente e incisiva de lideranças indígenas em redes sociais, o uso de dispositivos de comunicação no celular também cresceu imensamente nos últimos anos e, durante a pandemia, muitos grupos se formaram articulando pessoas de diferentes aldeias ou de diversos povos e localidades. Na região em que vive Vherá Mirim, no Vale do Ribeira, as lideranças se articularam para mobilizar parceiros na obtenção de cestas básicas e materiais para plantio, tanques de peixes e criação de aves durante a pandemia. Desse modo, a suspensão do comércio de artesanato deu lugar a essas atividades. Para fazer frente ao fechamento e abertura desmesurados do celular, essas lideranças também buscaram incluir os jovens em tais atividades coletivas, como pescar, cortar lenha, capinar e trabalhar em plantios. Vherá Mirim ainda conta que lideranças das aldeias na capital paulista têm enviado alguns jovens para comunidades mais afastadas de centros urbanos para que possam se envolver nessas atividades tradicionais com a terra e a vida coletiva.

Como nota de pesquisa na PARI-c, Vherá Mirim (2021)VHERÁ MIRIM, A. V. G. Um pesadelo que quase me matou e um sonho que me curou: minha experiência com a COVID-19. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 , [S. l], v. 1, n. 10, p. 1-7, 2021. fez um denso relato de sua experiência de internação hospitalar em razão da covid. Ele aponta a ambiguidade do cuidado entre profissionais de saúde, em que alguns o olhavam como mais vulnerável por ser indígena:

Eu estava na maca, sem forças, estava tudo mole, e ouvi um enfermeiro jovem falando para os colegas dele: “ó, estou com um índio aqui e eu acho que ele vai ser mais um, hein… está aqui para morrer”. Eu acho que ele falou assim porque pensou “ah, é um índio, não entende nada…” e ao mesmo tempo me enfraqueciam de tanto sangue que tiravam e medicamentos que inseriam pelos tubos hospitalares ligados nas minhas veias. No quinto dia eu estava apavorado porque a minha saturação estava baixa e eu estava alucinado porque toda hora o pessoal tirava sangue, aplicando medicamento.

Em contrapartida, Vherá Mirim remete a um olhar por parte desses cuidadores que é exotizante - por exemplo, cantavam em tom de brincadeira para ele a composição de Cascatinha e Inhana: “índio, seus cabelos nos ombros caídos…” -, mas também marcado por curiosidade e admiração por suas histórias, por exemplo, quando relatou a ocasião em que conheceu Obama, ouviu: “Nossa, que legal! Você é viajado, conheceu até presidente dos Estados Unidos!”. Seja como for, ele aponta que não foram os cuidados biomédicos que o curaram, mas uma visita em sonho do espírito de uma liderança do Vale do Ribeira que falecera havia pouco de covid. Após essa visita, ele recuperou sua força de viver e passou a se alimentar novamente.

Além de compartilhar suas experiências e de seus parentes, Vherá Mirim transcreveu e traduziu relatos do guarani para o português. Mas sentiu-se desconfortável com alguns deles que expunham conhecimentos que Vherá Mirim achava que não deviam circular entre os não indígenas, particularmente experiências de transformação por agressão xamânica e espiritual. Os jurua não são capazes de apreender essas práticas em sua complexidade e ele tematizou a questão junto às pesquisadoras não-indígenas de sua confiança. Ademais, aqueles conhecimentos não eram individuais, e sim de seu povo como um todo, não cabendo a uma única pessoa a decisão de veiculá-los.

Para as pesquisadoras coautoras deste texto, tal interpelação trouxe à cena a dificuldade de adequação dos protocolos éticos fundamentados na premissa de existência de entidades individuais ou coletivas passíveis de autorizar ou interditar pesquisas. De um lado, há a presunção do indivíduo como entidade autônoma, de outro a comunidade como entidade englobante que opera como um supra indivíduo. Para além dos comitês de ética, como nota Strathern (2014STRATHERN, M. O conceito de sociedade está teoricamente obsoleto? In: O efeito Etnográfico. São Paulo: Cosac Naify , 2014. p. 231-240.), indivíduo e sociedade têm funcionado como polos de um pêndulo entre os quais as ciências sociais têm oscilado ao longo do século XX até hoje, mas tais entidades são alheias a socialidades indígenas e de outros povos.

Além da tradução, as entrevistas também demandaram cuidado. Vherá Mirim intermediou o agendamento de conversas com parentes, mas preferiu que as colegas não indígenas as realizassem, já que o modelo de perguntas e respostas não costuma ser o modo de compartilhamento e transmissão de conhecimentos entre os Guarani. Na mesma direção, mencionamos o comentário de Mbo’y Jegua de que entrevistas sufocam, assim como diversos Guarani em outros contextos de pesquisa apontam as limitações do modelo de perguntas e respostas (Karai Mirim, 2022KARAI MIRIM, A. S. Sonhos e conhecimentos na vida guarani. Uma experiência de pesquisa na universidade. In: GALLOIS, D. T.; MACEDO, V. (Org.). Nas redes guarani: saberes, traduções e transformações. São Paulo: Hedra, 2022. p. 65-70.; Oliveira; Santos, 2014OLIVEIRA; J. C.; SANTOS, L. K. “Perguntas demais”: Multiplicidades de modos de conhecer em uma experiência de formação de pesquisadores guarani mbya. In: CARNEIRO DA CUNHA, M.; CESARINO, P. N. (Org.). Políticas culturais e povos indígenas. São Paulo: Unesp, 2014. p. 113-133.). De todo modo, Vherá Mirim encontrou algumas ocasiões propícias para registrar relatos de parentes em sua comunidade e os compartilhou com a equipe.

Por sua vez, Araci Yva Mirim compartilhou seu desconforto com a presença de pesquisadores em sua comunidade e, quando se viu na condição de pesquisadora na PARI-c, pode perceber essa relação de outro ângulo. Ela aceitou participar da pesquisa por ter uma relação antiga e de confiança com uma das coordenadoras, que é amiga de sua mãe. Diferentemente de pessoas que chegam para “extrair” informações para depois nunca mais voltarem, Yva Mirim considerou que é possível fazer pesquisa e ser engajada na vida e nas causas de seu povo, o que faz toda a diferença na produção e nos desdobramentos do conhecimento. Yva Mirim também apontou como a posição de pesquisadora promoveu uma maior auto reflexividade em relação a suas próprias práticas e conhecimentos, por exemplo em relação ao parto hospitalar, em relação ao qual ela passou a ter uma visão mais crítica depois dos aprendizados com suas parentes e os dados que levantou.

Ela preparou com muito cuidado o trabalho de campo, a coleta de informações e a sistematização dos dados, que, além de contribuírem em notas de pesquisa e nos estudos temáticos na PARI-c, serão parte de seu Trabalho de Conclusão de Curso no curso de Enfermagem, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Yva Mirim conversou com primas sobre parto e nascimento durante a pandemia, sempre à luz dos conselhos de sua mãe Talcira Yva. Uma das contribuições de Yva Mirim foi a abordagem das episiotomias e esterilizações não consentidas entre as mulheres guarani mbya. Trata-se de um dado de difícil acesso e que a pesquisadora se dedicou a apurar, uma vez que o assunto emergiu em suas conversas com as parentes guarani.

Ao se deparar com esses relatos sobre o “corte” - termo empregado pelas interlocutoras ao se referir à incisão no períneo durante o parto, que a biomedicina nomeia episiotomia - ela passou a refletir sobre a sua própria experiência e questionar a escolha de parir no hospital. A episiotomia se mostrou uma prática recorrente nos corpos dessas mulheres e ao mesmo tempo pouco falada entre elas. Yva Mirim teve então um papel catártico de reflexão coletiva a partir da reunião de experiências até então entendidas como individuais. Isso gerou considerações importantes e permitiu o acesso a dados de difícil acesso por meio de prontuários médicos. Vale ressaltar que não estávamos à procura desses dados, mas eles emergiram pelo modo de conduzir a pesquisa de Yva Mirim. Todas as suas interlocuções foram em guarani e não foram gravadas, sendo as informações repassadas em áudio somente para a pesquisadora não indígena que Yva Mirim e sua mãe conhecem há tempos. Os longos áudios possibilitaram a elaboração de uma tabela com os dados sobre episiotomias e esterilizações, os quais serão oportunamente publicados em artigo.

A partir dos tensionamentos criativos de Yva Mirim e Vherá Mirim, aqui brevemente mencionados, somados aos das demais pesquisadoras indígenas na PARI-c, podemos praticar com cuidado modos de enunciar, guardar, articular e multiplicar conhecimentos.

Considerações finais

Em ressonância com as proposições de Bellacasa (2011BELLACASA, M. P. Matters of care in technoscience: assembling neglected things. Social Studies of Science, Londres, v. 41, n. 1, p. 85-106, 2011. DOI: 10.1177/0306312710380301
https://doi.org/10.1177/0306312710380301...
, 2012BELLACASA, M. P. “Nothing comes without its world”: thinking with care. The Sociological Review, Lancaster, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
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), pesquisadoras indígenas chamam a atenção para como intervimos nos conhecimentos que traduzimos e nos mundos que trazem consigo, demandando uma ética pragmática e localizada de cuidado. Bellacasa (2012BELLACASA, M. P. “Nothing comes without its world”: thinking with care. The Sociological Review, Lancaster, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
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) incorpora de Haraway (1997HARAWAY, D. Modest_Witness@Second_Millennium. FemaleMan©_Meets_OncoMouseTM: feminism and technoscience. New York: Routledge, 1997., p. 137) a acepção de que “nada vem sem o seu mundo” (“Nothing comes without its world”), de modo que a antropologia, tomada como exercício de tradução que intervém na formação e transformação de mundos possíveis, é sempre uma questão de cuidado. De diferentes maneiras, Yva Mirim e Vherá Mirim expressaram cuidados necessários na veiculação de experiências e conhecimentos que podem ficar suscetíveis a capturas conceituais na chave de “crenças” e “representações” aos olhos dos não indígenas ou mesmo se prestarem a usos mais perversos na conjuntura atual que é tão adversa aos direitos indígenas.

Entretanto, a PARI-c também deu corpo a alianças na diferença ou o cuidado como dissenso, tanto na produção de conhecimento como em lutas pela terra e sua vinculação incontornável com a saúde. Além de informações e reflexões sobre a covid-19 nas aldeias, durante as reuniões da equipe Brasil Meridional compartilhamos desafios, ameaças e lutas enfrentadas pelas comunidades abarcadas e pelos povos indígenas de modo geral, que se agravavam ainda mais com o quadro adverso da pandemia. Esse foi o caso do Projeto de Lei 490, que entrou na pauta do congresso nacional ameaçando os direitos originários à terra assegurados pela Constituição de 1988 (Brasil, 2007BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 490, de 20 de março de 2007. Altera a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2007. Disponível em: <Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0y3bh4fg10dwe324ez2qzetkr8598533.node0?codteor=444088&filename=PL+490/2007 >. Acesso em: 09 set. 2022.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
).

No âmbito do Poder Judiciário, foi iniciado o processo de avaliação da tese do “marco temporal” no Supremo Tribunal Federal. Segundo essa tese, povos que não estivessem nos territórios reivindicados em 1988, data da promulgação da Constituição Federal, não teriam direitos a essas terras, mesmo que lá não estivessem por terem sido expulsos ou ameaçados. Em reação a essas e outras ameaças, milhares de indígenas de todo o Brasil tomaram estradas, pegaram em câmeras e fizeram acampamentos em Brasília - como o Levante pela Terra e o Acampamento Terra Livre -, bem como marchas nessa e em outras cidades, para lutar por seus direitos em meio à pandemia.

Algumas de nossas colegas pesquisadoras participaram em Brasília e outras em suas regiões, compartilhando suas experiências na PARI-c (Signori et al,2021SIGNORI, A.; SCHWEIG, A. L. M.; HUYER, B. N.; GÃH TÉ, I.; PINNA, R.; KLEIN, T. M. “Não é só a doença que nos mata”: o levante pela terra no Brasil meridional. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 , [S. l], v. 1, n. 6, p. 1-9, 2021.; Schweig et al, 2021SCHWEIG, A. L. M.; KAINGANG, A. N. D.; GARCIA, G. M.; GÃH TÉ, I. “A terra é mãe”: as retomadas de terra kaingang e xokleng na pandemia. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 , [S. l], v. 1, n. 6, p. 1-8, 2021.; Silva et al, 2021SILVA, E. G. S.; KLEIN, T. M.; OLIVEIRA, T. “Jeguatá Karaí”. Curta-metragem. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, 2021.). Assim, a despeito dos riscos sanitários, pesquisadoras indígenas se fizeram presentes com seus cantos e corpos por uma pauta que os agredia tanto ou mais quanto os perigos da pandemia, como nos relataram. Além do que foi publicado na PARI-c, ainda latejam artigos, filmes e comunicações por vir. Este texto é um deles, e esperamos que tenha trazido consigo diferentes mundos, em arranjos cuidadosos, mas sempre perigosos em suas assimetrias e equivocações.

Agradecimentos

Agradecemos imensamente a toda equipe de pesquisadoras da PARI-c e, especialmente, a equipe Brasil Meridional, que participou intensa e generosamente dos processos que ensejam as reflexões deste artigo.

Referências

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  • 1
    Pesquisa financiada pelo UK Research and Innovation (UKRI) através do Medical Research Council (MRC).
  • 2
    Indigenous Peoples responding to Covid-19 in Brazil: social arrangements in a Global Health emergency é o nome original do projeto financiado pelo Medical Research Council (MRC), UK Research and Innovation (UKRI).
  • 3
    Disponível em: www.pari-c.org.
  • 4
    Neste artigo empregamos predominantemente a flexão de gênero no feminino em razão da maioria dos membros da pesquisa serem mulheres.
  • 5
    Adjetivamos pesquisadoras como indígenas, a fim de marcar politicamente suas participações e modos de produzir conhecimento, indo ao encontro do modo como as próprias pesquisadoras desejam ser mencionadas.
  • 6
    Trata-se de um modo indígena, no Brasil, de se referir a outras pessoas também indígenas, sejam ou não do mesmo povo, tendo ou não vínculos diretos de afinidade ou consanguinidade. As interlocuções de pesquisa se deram, na maior parte das vezes, nas comunidades onde viviam as pesquisadoras, mas houve também conversas e levantamentos envolvendo outras aldeias ou povos. Colocamos entre aspas esta primeira aparição do termo “parente” a fim de destacar seu caráter êmico.
  • 7
    Em termos operacionais, a PARI-c esteve organizada em 5 equipes de trabalho: (1) Meridional, (2) Central e Sul Amazônico, (3) Norte Amazônico, (4) Nordeste e (5) Co-Equipe.
  • 8
    Maria Paula Prates coordenou a PARI-c e, juntamente com Valéria Macedo, a equipe Brasil Meridional. A Professora Christine McCourt foi a Investigadora Principal.
  • 9
    Os participantes da equipe Sul foram: Maria Paula Prates e Valéria Macedo (coordenadoras); Ara Rete Sandra Benites; Gãh Té Iracema Nascimento; Kuaray Ariel Ortega; Kunha Takua Rokavy Ponhy Paulina Martines; Mbo’y Jegua Clara de Almeida; Vherá Mirim Ataíde Vilharve Gonçalves; Yva Talcira Gomes; Yva Mirĩ Araci Silva; Ana Letícia Schweig; Bruno Huyer; Renan Nascimento; Tatiane Klein; Amanda Signori; Eduardo Lima; Tomás Oliveira; Camila Padilha; Cauê Oliveira; Karen Villanova; Karina Corrêa; Laura Brizola; Milena Farinha; Teodora Moraes.
  • 10
    Iamoni era do povo Mehinako, mas ela e a pesquisadora não-indígena Aline Regitano foram integradas à equipe por seu interesse na temática da gestação e parto. Iamoni inclusive era uma importante liderança e parteira em sua comunidade na Terra Indígena do Xingu (MT). Em razão de sua partida, deixamos de inserir o caso Mehinako nos estudos do grupo.
  • 11
    “Minha avó” e “Meu avô”, ou, de modo geral, anciãs e anciãos sábios entre os Guarani-Mbyá.
  • 12
    “Nossa mãe” e “Nosso pai”, ou, de modo geral, anciãs e anciãos sábios entre os Kaiowá.
  • 13
    Ser celeste que habitará o corpo que está sendo gestado na condição de sua alma.
  • 14
    Nhe’e kuery joguery teri” (Nossos espíritos seguem chegando). Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/52.
  • 15
    Coautor deste texto, Vherá Mirim desde 2020 está cursando uma graduação em Tecnologia em Gestão Pública, sendo também uma liderança em sua comunidade, Takuari, e no conjunto de aldeias na região do Vale do Ribeira/SP. Ele é ainda um comunicador que faz parte do coletivo Mídia Mbya e, juntamente com sua esposa, pertence à Rede de Pesquisadores Indígenas das Línguas Ancestrais da Unesco/ONU.
  • 16
    O que os Guarani chamam de inhakanhy, traduzindo como doença mental, não se confunde com o que chamam de nhe’ mba’eaxy, que traduzem como doença espiritual. Ou melhor, a doença espiritual constitui uma categoria mais englobante, de modo que a doença mental é uma modalidade de doença espiritual. Esta diz respeito a uma alteração nos afetos da pessoa sob efeito dos espíritos, geralmente incorrendo no afastamento do nhe’ẽ do corpo da pessoa. A saudade, a tristeza, o desejo, a raiva e outros afetos que irrompem de modo desmedido são associados a nhe’ẽ mba’eaxy. No caso de inhakanhy, é ainda mais incisivo a diferença no comportamento da pessoa, que pode se machucar, ou machucar seus próprios parentes, podendo até acabar com sua própria vida ou de outros. Por isso, alguns também traduzem inhakanhy por loucura.
  • 17
    Copa nas aldeias. Disponível em: https://www.espn.com.br/esports/artigo/_/id/7886877/free-fire-copa-das-aldeias-o-primeiro-campeonato-exclusivo-para-comunidade-indigena.
  • 18
    Em referência a uma música do repertório sertanejo no Brasil, “O menino da porteira”, famosa na interpretação de Sergio Reis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2022
  • Aceito
    31 Ago 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br