Antropologia, covid-19 e respostas indígenas no Brasil: reflexões metodológicas e vitais

Bruno Marques Amanda Horta José Miguel Olivar Sobre os autores

Este dossiê foi incialmente proposto para fomentar possibilidades e desafios das condições de pesquisa qualitativa realizada por e com povos indígenas no Brasil, sobretudo em seus aspectos metodológicos, em um contexto de crise sanitária global no qual as possibilidades de deslocamentos espaciais se tornam inexistentes ou drasticamente reduzidas - atividades de pesquisas as quais usualmente recebem a designação de “remotas”, mas que guardam uma complexidade própria em função das perspectivas em jogo. Mas, como veremos a seguir, as reflexões apresentadas nos textos excedem esses limites inicialmente propostos.

As questões tratadas aqui partem de uma experiência concreta, em que estão envolvidos os propositores e participantes deste dossiê: a Plataforma Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19 (PARI-c)11Disponível no link: www.pari-c.org , resultado de um projeto de pesquisa intitulado “Respostas Indígenas à COVID-19 no Brasil: arranjos sociais e saúde global”. Trata-se de uma extensa rede de pesquisadoras e pesquisadores indígenas e não-indígenas de todas as regiões do Brasil, a partir da qual uma diversidade de estratégias metodológicas buscou dar conta das variadas condições de pesquisa colaborativa com povos indígenas e de suas experiências na pandemia da covid-19. A PARI-c contou com financiamento do Medical Research Council (MRC) e UK Research and Innovation (UKRI), sendo realizada através da cooperação entre a Universidade de Londres (City University), a Universidade de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), a Universidade do Sul da Bahia (UFSB) e a Universidade de São Paulo (USP). Para a realização da pesquisa, foram organizadas quatro equipes regionais: Nordeste; Brasil Meridional; Brasil Central e Amazônia Meridional; e Norte Amazônico. Os quatro artigos que compõem este dossiê relatam algumas das experiências de pesquisa em cada uma dessas equipes, agregando, em sua soma de autores, nove indígenas e treze não-indígenas. Na PARI-c, foram produzidos sete estudos de caso, cinquenta e seis notas de pesquisa, quinze filmes e uma série de podcasts, em que podem ser encontrados variados temas relativos à pandemia da covid-19 entre povos indígenas do Brasil.

Este dossiê foi pensado, portanto, justamente para trazer à tona relatos e reflexões sobre a multiplicidade de estratégias metodológicas mobilizadas na PARI-c, respondendo às particularidades (sociais, econômicas, políticas, ambientais, sociotécnicas, culturais…) das comunidades e dos pesquisadores envolvidos. Da pesquisa, resulta tanto a descrição do vivido na pandemia, como das expectativas do porvir, seja em forma de políticas públicas de saúde que deem conta de suas realidades, seja em forma de arranjos cosmopolíticos, em que um conjunto heterogêneo de seres que excedem o “humano” adentram a arena pública do debate em torno da pandemia da covid-19. O objetivo deste dossiê é compartilhar os aprendizados no campo da pesquisa qualitativa relacionada à saúde pública no Brasil, entrelaçando questões de temporalidade, do desafio sociotécnico e das implicações ontológicas do que têm sido gerado nessas diferentes iniciativas.

Vemos nos textos a descrição da formação das quatro equipes regionais, as quais foram pensadas, desde a composição do projeto de pesquisa, no sentido de incorporar redes já existentes, em que os pesquisadores proponentes estavam inseridos. Mas, ao longo do trabalho de pesquisa propriamente dito, acabaram por gerar novas redes ou recompor as já existentes. No contexto da pandemia da covid-19, os métodos de pesquisa híbridos (offline/online, remoto/presencial, assíncrono/síncrono) buscaram dar conta de um trabalho que deveria ser realizado sem deslocamentos espaciais em um contexto de pandemia. Como se vê nos textos, reuniões periódicas online via Google Meet, o uso da plataforma WhatsApp, áudios, vídeos, ligações telefônicas, idas e vindos de textos… estabeleciam a conexão e os fluxos entre os pesquisadores, não-indígenas e indígenas, que não estavam presentes nas localidades em que os estudos estavam focados (comunidades, aldeias e bairros de cidades) e os pesquisadores indígenas que se encontravam nesses locais.

Dos textos deste dossiê, o que desenvolve uma descrição mais aprofundada destes métodos “remotos” de pesquisa é “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”. Encontramos neste artigo reflexões sobre os dispositivos digitais como “partícipes nas redes sociotécnicas da pesquisa, interferindo diretamente nos modos como a produção e a circulação de conhecimento aconteceu”, e não apenas como suportes para troca de informações à distância. Nesse sentido, é interessante notar a ambivalência do celular que os Guarani Mbya colocam em suas vidas, dispositivo digital que pode provocar um fechamento dos jovens em relação às redes de parentesco e xamânicas (havendo uma relação entre o que os não-indígenas chamam de depressão e esta tecnologia), e isolando-os. Mas que, por outro lado, pode ser uma ferramenta fundamental na relação com parentes que estão em outras aldeias e regiões, possibilitando inclusive a articulação de campanhas, protestos e trocas de conhecimentos variados. Vemos também neste texto uma descrição dos encontros síncronos à distância através da plataforma Google Meet, qualificados pela pesquisadora Kaingang Iracema Gah Té como “quadradinhos”, através dos quais, conforme nos relatam as autoras do artigo, diferentes ambiências e afetos se cruzavam pelas imagens e sons que cada “quadradinho” trazia à cena compósita da reunião da equipe Brasil Meridional, criando conexões e afecções entre os participantes. A dinâmica das conversas nessas reuniões também nos é apresentada no artigo, descrevendo como se deu a participação de indígenas e não-indígenas nestes contextos de comunicação online.

Em “Do monitoramento autônomo à pesquisa colaborativa virtual: parceria com o movimento indígena do Nordeste durante a pandemia da covid-19 como apoio ao controle Social”, vemos esta trama de dispositivos sociotécnicos, reuniões online, trocas de informação por suportes variados (“pesquisa colaborativa virtual”) no engajamento das pesquisadoras e pesquisadores indígenas e não-indígenas da equipe Nordeste, em um movimento contra desinformação sobre a covid-19 no contexto dos povos e movimentos indígenas do Nordeste do Brasil. A palavra “informação” é central para a compreensão deste texto, que nos relata os esforços do movimento indígena desta região do país desde o começo da pandemia da covid-19 para estabelecer uma extensa rede de apoio através de parcerias com pesquisadores e entidades da sociedade civil.

Os autores descrevem um contexto de subnotificação de casos de covid-19 por parte dos Distritos de Saúde Especial Indígenas (DSEIs), de falta de articulação entre diferentes órgãos e de desinformação deliberada por parte do governo federal, em que a geração de “informações gerais e de dados empíricos sobre a situação das populações indígenas constituíram uma das principais estratégias de ação” nas campanhas realizadas pelos movimentos indígenas no Nordeste com o apoio de parceiros, resultando na elaboração de boletins, mapas, estudos etc. Se no artigo anteriormente comentado temos uma descrição mais detalhada dos métodos de pesquisa dos quais a PARI-c lançou mão e suas dimensões relacionais, neste podemos ver alguns resultados e efeitos políticos possíveis na mobilização, na constituição de redes e estratégias de enfrentamento da pandemia, em uma “pesquisa colaborativa virtual”, tendo em vista o apoio ao controle social no subsistema de atenção à saúde indígena.

Na esteira desta reflexão, cabe pontuar a contribuição do artigo “Tecer outro Cesto de Conhecimentos? Pesquisa colaborativa e remota na pandemia de covid-19”, que coloca a questão da escrita como modo central. Baseado na experiência de pesquisa da PARI-c realizada na região do Alto Rio Negro (Amazonas), o texto reflete sobre as possibilidades de produção colaborativa de conhecimento com pesquisadoras indígenas, “levando em consideração a emergência sanitária, as imobilidades territoriais, as desigualdades sociais e as diferenças epistemológicas e de políticas ontológicas”. A geração de “saberes híbridos” (Giatti et al., 2021GIATTI, L. et al. Pesquisa participative reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 231-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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) é pautada em sua contribuição em contextos de crises globais ou sindemias, tendo na “escrita de mulheres” um aspecto fundamental nas reflexões apresentadas pelos autores. O artigo nos apresenta um método de produção de textos realizado nesta equipe regional (Norte Amazônico) na PARI-c, narrando a experiência da pesquisadora Elizângela Costa (povo Baré) na produção das notas de pesquisa e do estudo de caso, em colaboração direta com a pesquisadora Dulce Morais e o pesquisador José Miguel Olivar. As relações afetivas entre os três pesquisadores, seus apelidos, as relações assimétricas em contexto acadêmico e os movimentos simetrizantes são apresentados através de um “intenso processo de ida e volta de textos em Word, com cores, sublinhados, comentários à margem, propostas de desenvolvimento, perguntas, dúvidas, provocações”, tendo no horizonte a expressão textual para um público mais amplo e, como argumentam ao final, não um processo de colaboração para o “levantamento de dados”, mas a “configuração e reconfiguração textual do que pode ser um outro Cesto de Conhecimentos”.

Nas reflexões que os textos apresentam sobre as experiências de pesquisadores indígenas realizando entrevistas, temos uma inflexão importante para pontuar. É na reflexão sobre esta metodologia de pesquisa que vemos infletir uma ideia que percorre os textos: as relações de parentesco como “abertura” e as relações de pesquisa como “fechamento” (ou vice-versa), tendo implicações metodológicas nas diferentes equações que as equipes de pesquisa elaboraram nos artigos. Uma das questões que se coloca nos textos é: “como fazer entrevistas com os (meus) parentes?”. No artigo “Metodologias de vida, pesquisa e luta: a experiência panhî”, Sheila Baxy Castro Apinajé descreve que realizou entrevistas com velhos, jovens e crianças, acrescentando que, sempre que entrevistou um ancião, chamou também seus netos para escutarem a conversa, uma vez que, devido à agência da televisão, os jovens já não querem mais escutar suas palavras. Para ela, a pesquisa é “um momento de passagem, de transmissão e troca de conhecimentos”. No mesmo artigo, Julio Kamêr Ribeiro Apinajé argumenta que o pesquisador tem que fazer com que o entrevistado se sinta importante de ter o seu conhecimento, e que perguntas fechadas impossibilitam isto: “quando chega com uma pergunta pronta, é como se o pesquisador excluísse todo o conhecimento que a pessoa tem. O entrevistado vai se sentir menosprezado, pois o próprio pesquisador nem se preocupa em ouvir o que ele tem a falar”.

Em “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”, estas reflexões são colocadas diretamente em uma chave da ética de pesquisa, traçando um contraste entre o risco de captura e fixação dos conhecimentos indígenas e a possibilidade de “desarquivar” conhecimentos, “tirando-os do esquecimento, descaso ou silenciamento, colocando-os em novos circuitos e conexões”. Esta tensão se coloca mais centralmente nas reflexões de Vherá Mirim, que, no trabalho de transcrição e tradução de entrevistas, sentiu desconforto com a possibilidade de expor conhecimentos de seus parentes que, para ele, não deveriam circular entre não-indígenas. Essas questões colocadas por Vherá Mirim, assim como outros pesquisadores indígenas da PARI-c, levaram a discussões na equipe Brasil Meridonal em torno dos meios de “praticar com cuidado modos de enunciar, guardar, articular e multiplicar conhecimentos”.

Tendo em vista o propósito inicial deste dossiê voltado a uma discussão sobre “metodologia de pesquisa”, cabe destacar que as discussões colocadas pelos quatro artigos que compõem o dossiê são mais abrangentes; para dizer o mínimo, estão inscritas em algo mais próximo do que se costuma chamar de “experiência de pesquisa”. Mas, tentando seguir este excesso em relação aos propósitos originais - e na busca de descrever a afetação provocada pelos textos -, podemos ir além. Por pesquisa, método, objeto de estudo, entre outros, nos artigos a seguir, muitas vezes o que nos é apresentado é a vida. Talvez isso soe algo extravagante à primeira vista, mas, perceba: o que as pesquisadoras e pesquisadores indígenas colocam em seus relatos e reflexões sobre a experiência de pesquisa na PARI-c não é a relação genérica entre vida e pesquisa, e sim as singularidades de povos, pessoas, parentes e os modos de fazer pesquisa.

Esse excesso em relação aos propósitos originais do dossiê não é fortuito. Uma ideia transversal nos textos escritos é que o objeto inicial da pesquisa PARI-c - “as respostas indígenas à Covid-19” - não é um fenômeno alienável de um conjunto maior, que, nas reflexões colocadas, toma a forma das vidas indígenas. Assim, nos textos, encontramos reflexões sobre um “objeto” cujo contorno está sempre sendo tensionado: com o mundo, a vida, as redes de parentesco, o xamanismo, diferentes temporalidades, entre outros aspectos, sempre o atravessando. Nas reflexões, inclusive, não raro “método de pesquisa” e “resistência” ou “persistência” reverberam-se.

As reflexões apresentadas ao longo dos textos tomam termos como “objeto”, “objetivo”, “método” de pesquisa e as torcem de alguma forma. Provavelmente é a ideia de “recorte”, de “limite” que está em tensão aqui. E, para tanto, lembramos do contraste deleuziano entre limite-contorno e limite-tensão. Nos termos de Eduardo Viveiros de Castro, o limite-contorno seria como um “perímetro ou termo que constrange e define uma forma substancial”, alternativamente, o limite-tensão se daria “no sentido matemático de ponto para o qual tende uma série ou uma relação” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002. 10.1590/S0104-93132002000100005
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, p. 121). (Este contraste ressoa a última parte do texto “Metodologias de vida, pesquisa e luta: a experiência panhî”, em que os autores não-indígenas do texto, com base nas reflexões de dois pesquisadores indígenas, argumentam pela abertura das concepções de metodologia e objeto dos Apinajé, colocando que, para esses, o “objeto de pesquisa” não seria uma “força centrípeta”, mas uma “força centrífuga”, isto é, um ponto de partida, não de chegada.) Nos textos que seguem, tudo se passa como se os limites e os recortes da realidade analisada - a forma do objeto - constantemente tendessem para além de si mesmos - o fluxo da experiência de pesquisa e vida.

Neste artigo que narra a experiência de pesquisa dos Apinajé (Tocantins), “Metodologias de vida, pesquisa e luta: a experiência panhî”, esse aspecto é colocado de modo mais direto. Sheila Baxy Castro Apinajé, uma das autoras do texto, nos apresenta que o que encontraram na pesquisa não foi um objeto - “as respostas à indígenas à Covid-19” -, e sim: “vida”, “o comportamento de uma humanidade” e “resistência”, tendo como base “um modo de vida assentado na terra”. Esses parecem ser quatro aspectos de um movimento de vida e pensamento (no limite, aqui, indiscerníveis) que tensiona uma certa epistemologia moderna. Cada qual desses aspectos destaca potências neste movimento.

Se não é um “objeto” que se encontra, mas “vida”, nos leva a pensar em um movimento análogo ao que Roy Wagner (2012)WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naify, 2012. coloca sobre o objeto “cultura” - assim como “respostas indígenas à Covid-19” no caso da experiência de pesquisa na Pari-c - ocorrendo apenas do ponto de vista de um observador externo, porque, para as pessoas em questão, aquilo é “cultura” (de um certo ponto de vista alheio), para eles é a própria vida. Se não é “objeto” que se encontra, “mas o comportamento de uma humanidade” (grifo nosso), nos leva a pensar na singularidade desta vida que se encontra: nem humanidade genérica nem particularidade absoluta. O artigo indefinido e singularizante “uma” (anteposto à “humanidade”) é central aqui, e, na sequência de seu argumento, Sheila apresenta uma crítica também à ideia de “índio genérico”, nos afirmando que a experiência de pesquisa na Pari-c contribuiu “no sentido de outras pessoas observarem como é o Apinajé”. Se não é “objeto” que se encontra, mas “resistência”, nos leva a pensar que essa vida e comportamento de uma humanidade se dá em relação complexa, contrastiva e conflitante com outra(s) vida(s) de outra(s) humanidade(s) (aqui, provavelmente, essa uma humanidade que pensa sua relação com o mundo na forma do “objeto”). E, por fim, se isso tudo tem como base um “modo de vida assentado na terra”, implica que essa “territorialidade” envolve relações ontológicas também com não-humanos e outros-que-humanos.

Na sequência do artigo, Julio Kamêr Ribeiro Apinajé apresenta o ritual Ppkaàk como uma “fonte de pensamento” para elaborar questões, na medida em que a “estrutura de conhecimentos do ritual é uma metodologia de formação dos jovens, de proteção do território e de preparação da comunidade para enfrentar todo tipo de situação”. A sua experiência de pesquisa na Pari-c foi dada na atuação em uma das barreiras sanitárias, a da Aldeia Prata, formadas pelos Apinajé para a proteção do contágio da covid-19. Segundo Júlio, a experiência de atuar e pesquisar na barreira sanitária, o que envolvia a lembrança de epidemias passadas nas falas dos anciãos, no contexto de uma “nova situação de estresse” em que, ao mesmo tempo, estavam se “preparando para o futuro”, se tratava de “um momento que era três momentos simultâneos” - “durante todo esse processo eu estava entre os tempos (passado, presente, futuro)”. O ritual Ppkaàk seria justamente o eixo que possibilita articular “conhecimento passados, presentes e futuros”, estabelecendo as condições de possibilidade para pesquisadores panhî da Pari-c analisarem a situação da pandemia da covid-19.

Com isso, nós como pesquisadores estamos utilizando a metodologia e as concepções desse antigo ritual como ponto de referência, como se pegássemos a referência de algum pensador, algum teórico, como fazem os antropólogos e pesquisadores não indígenas ao referenciar seus artigos, dissertações e teses.

Tanto Sheila como Julio ressoam em suas reflexões uma ideia presente também nos outros três artigos do dossiê, colocando que “o Panhî não faz nada isolado, é sempre coletivo” e trazendo questões importantes sobre a experiência de pesquisar entre parentes. No artigo “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”, o conceito central para pensar a experiência de pesquisa na Pari-c é justamente o de “cuidado” (care, na esteira dos trabalhos de María Puig de la Bellacasa, dentre outras pesquisadoras do campo de debates feminista). Para tanto, são narradas as experiências de dois pesquisadores Guarani Mbya, que vivem em aldeias no Rio Grande do Sul e em São Paulo. O texto toma como eixo o “adoecimento experimentado nos corpos e na vida coletiva das pesquisadoras”, sendo “um agente incontornável em percursos metodológicos e analíticos”. Nesse sentido, “cuidar, tomar cuidado, se cuidar, cuidar de outros, pensar com e através do cuidado” foram “ações que se mostraram cotidianas” na prática de pesquisa ao longo dos 14 meses de duração da Pari-c.

De modo interessante, é em “Tecer outro Cesto de Conhecimentos? Pesquisa colaborativa e remota na pandemia de covid-19” que os conceitos de ritual e cuidado se cruzam na experiência de pesquisa da Pari-c. Para pensar a pesquisa, Elizângela Costa (povo Baré) desenvolveu a imagem conceitual de “Cesto de Conhecimentos”, que vem da experiência do ritual kariamã (em língua nheengatu), um “processo de formação, como se fosse uma escola”, realizado com os pajés do rio Negro. Neste “ritual da moça nova”, são repassados conhecimentos às meninas; uma parte desses é o “Cesto de Conhecimento, colocado em prática com o surgimento da pandemia em São Gabriel da Cachoeira” (município no Alto Rio Negro, Amazonas). No final do texto, Elizângela nos coloca o seguinte:

A pandemia foi vencida porque as mulheres dominavam a prática; quer dizer, todas elas sabiam fazer. Quem sabia, esse conhecimento reacendeu dentro dela, a lembrança reviveu na busca de resguardar e salvar vidas. Da minha parte, sei que sou apenas uma semente pequena cheia de persistência de querer nascer, crescer e ser cuidada por muitas escritoras ou pesquisadoras desse universo.

O Cesto de Conhecimento é a condição de possibilidade do cuidado e, consequentemente, da experiência desta pesquisa no Alto Rio Negro da PARI-c, na medida em que, a própria escrita sobre o “Cesto de Conhecimentos” das mulheres rionegrinas, foi para Elizângela - e seus aliados de escrita e atuação - mais um modo de atuação no combate à pandemia de covid-19 em sua terra. A ideia de “cosmopolíticas do cuidado” atravessa este artigo. E podemos encaminhar o encerramento desta apresentação neste sentido.

Ritual, cuidado e política. Três ideias fortes contidas nos textos deste dossiê. Sheila Baxy Castro Apinajé argumenta que “a pesquisa é um experimento, uma tentativa de criar uma coisa nova”, pois não seria apenas o registro de uma experiência, e sim “um jeito de atuar diretamente no enfrentamento da pandemia, conversando com as pessoas, com as lideranças, com as famílias, com a intenção de transformar o nosso futuro”. A relação entre pesquisa e ação - ambas práticas transformativas - é constantemente trazida ao longo dos artigos. Podemos perceber isso na geração de informação qualificada por parte do movimento indígena e seus parceiros (em “Do monitoramento autônomo à pesquisa colaborativa virtual: parceria com o movimento indígena do Nordeste durante a pandemia da COVID-19 como apoio ao controle Social”); na experiência de escrita de uma mulher indígena protagonista da campanha “Rio Negro, nós cuidamos!” e no conceito de “investigação-ação” (Tripp, 2005TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005.), trazidos em “Tecer outro Cesto de Conhecimentos? Pesquisa colaborativa e remota na pandemia de Covid-19”; na atuação de pesquisadores Apinajé nas barreiras sanitárias, vivendo e pensando múltiplas temporalidades no contexto da pandemia de covid-19 (em “Metodologias de vida, pesquisa e luta: a experiência panhî”); e nos modos de cuidado da pesquisa dos (e com os) Guarani Mbyá, em um contexto de adoecimento no qual “nada vem o seu mundo” (em “Modos imaginativos e colaborativos de fazer pesquisa: dispositivos e disposições com cuidado”).

Ritual, cuidado, política e pesquisa. Na somatória e na articulação entre os artigos do dossiê, podemos entrever o atravessamento entre esses quatro conceitos, inspirando aqui, ao menos por ora, uma última analogia. Marisol de la Cadena, em seu conhecido texto sobre a “Cosmopolítica indígena nos Andes” (2019), nos conta de Mariano Turpo, um pampamisayoq (especialista ritual) e político indígena das proximidades de Cuzco (Peru), e sua experiência de luta pela terra contra uma hacienda na década de 1960. De la Cadena (2019DE LA CADENA, M. Cosmopolítica indígena nos Andes: reflexões conceituais para além da “política”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, v. 2, 2019. DOI: 10.20396/maloca.v2i.13404
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, p. 21) descreve como esses “políticos indígenas” são seres híbridos, “participando em mais do que um, menos do que dois mundos socionaturais”. No contexto das ameaças de uma hacienda, Mariano queria “recuperar a terra” para seu ayllu, palavra na língua quéchua que, para além de um conjunto de parentes, “elicia as relações entre seres humanos e outros que humanos que interagem num território dado, marcando-o como um lugar específico” (de la Cadena, 2019DE LA CADENA, M. Cosmopolítica indígena nos Andes: reflexões conceituais para além da “política”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, v. 2, 2019. DOI: 10.20396/maloca.v2i.13404
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, p. 22). Segundo de la Cadena, Mariano, ao querer “recuperar a terra”, estabelecia uma continuidade discursivo-política com os militantes de esquerda nos anos 1960 (possibilitando uma “aliança classista-indígena”). Mas, por “terra”, Mariano também estava colocando algo mais, um excedente de sentido - “mais que um, menos que dois mundos socioculturais”. Não se tratava apenas da terra como propriedade de um ayllu, mas as próprias relações e práticas de “criação” e “cuidado” com esses outros que humanos que constituem um ayllu. “Terra” aqui era uma “equivocação”, um “termo homônimo que permitia a dois mundos parcialmente conectados lutarem conjuntamente pelo mesmo território” (de la Cadena, 2019DE LA CADENA, M. Cosmopolítica indígena nos Andes: reflexões conceituais para além da “política”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, v. 2, 2019. DOI: 10.20396/maloca.v2i.13404
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, p. 23). Para dar conta conceitualmente desses “excessos”, destas relações de termos e sentidos que conectam mundos sem necessariamente os confundir - “mais que um, menos que dois” -, Marisol de la Cadena lança mão do conceito de “cosmopolítica” de Isabelle Stengers22Nas palavras de Bruno Latour (2004, p. 3), “Stengers pretende, com seu uso de cosmopolítica, alterar o que significa “pertencer”. Ela reinventou a palavra ao representá-la como um compósito do sentido mais forte de cosmos e o sentido mais forte de política precisamente porque o sentido usual da palavra cosmopolita supõe uma certa teoria da ciência que está agora em disputa. Para ela, a força de um elemento impede o enfraquecimento da força do outro. A presença do cosmos em cosmopolítica resiste à tendência da política em significar um toma-lá-dá-cá em um conjunto exclusivamente humano. E a presença da política em cosmopolítica resiste à tendência do cosmos em significar uma lista finita de entidades que devem ser levadas em conta. O cosmos protege contra o fechamento prematuro da política, e a política protege contra o fechamento prematuro do cosmos.” (tradução nossa) (2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 442-464, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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), constituindo uma ferramenta analítica para “aberturas onto-epistmênicas” em categorias da modernidade.

Pensando nos textos deste dossiê, e neste atravessamento entre ritual, cuidado, política e pesquisa, bem como na proliferação dos sentidos de “pesquisa” que se apresentam, talvez tenhamos no horizonte algo como uma “cosmopesquisa”: em que os “objetos” têm outros limites, as “metodologias” podem ser “de luta” e a “pesquisa” se dá em interação transformativa e agentiva com a vida e o cosmos. Neste dossiê, vimos alguns exemplos de pesquisas-experimentos (no sentido colocado por Sheila Apinajé) realizados ao longo da PARI-c. Esperamos que a leitura dos artigos aqui contidos reflita, de alguma forma, uma contribuição no sentido que Linda Tuhiwai Smith (2018SMITH, L. T. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Curitiba: UFPR, 2018.) coloca em “Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas”, bem como o que Giatti e outros (2021GIATTI, L. et al. Pesquisa participative reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 231-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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) nos apresentam quanto aos “saberes híbridos” nos debates do campo sanitário, de modo a constituir melhores repostas à crise sindêmica global.

Referências

  • DE LA CADENA, M. Cosmopolítica indígena nos Andes: reflexões conceituais para além da “política”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, Campinas, v. 2, 2019. DOI: 10.20396/maloca.v2i.13404
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  • GIATTI, L. et al. Pesquisa participative reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 231-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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  • STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 442-464, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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  • VIVEIROS DE CASTRO, E. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, 2002. 10.1590/S0104-93132002000100005
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  • WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.

  • 1
    Disponível no link: www.pari-c.org
  • 2
    Nas palavras de Bruno Latour (2004LATOUR, B. Which cosmos for which cosmopolitics? Comments on Ulrich Beck’s peace proposal. Common knowledge, Baltimore, v. 10, n. 3, p. 450-462, 2004. DOI:10.1215/0961754X-10-3-450
    https://doi.org/10.1215/0961754X-10-3-45...
    , p. 3), “Stengers pretende, com seu uso de cosmopolítica, alterar o que significa “pertencer”. Ela reinventou a palavra ao representá-la como um compósito do sentido mais forte de cosmos e o sentido mais forte de política precisamente porque o sentido usual da palavra cosmopolita supõe uma certa teoria da ciência que está agora em disputa. Para ela, a força de um elemento impede o enfraquecimento da força do outro. A presença do cosmos em cosmopolítica resiste à tendência da política em significar um toma-lá-dá-cá em um conjunto exclusivamente humano. E a presença da política em cosmopolítica resiste à tendência do cosmos em significar uma lista finita de entidades que devem ser levadas em conta. O cosmos protege contra o fechamento prematuro da política, e a política protege contra o fechamento prematuro do cosmos.” (tradução nossa)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br