Resumo
Este artigo objetiva caracterizar as transferências financeiras no âmbito do Bloco da Atenção Básica para os municípios do estado de São Paulo, no período entre 2011 e 2017, e sua relação com a mudança de modelo de atenção na Atenção Primária à Saúde (APS). Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, de natureza quantitativa e de corte longitudinal retrospectivo. Foram analisadas transferências ocorridas no âmbito do Piso da Atenção Básica Variável (PAB Variável), agregadas segundo vinculação com mudança de modelo. Também foram considerados cobertura de Estratégia Saúde da Família (ESF), número de visitas domiciliares e o percentual de municípios que aderiram ao Programa de Melhoria do Acesso de Qualidade da AB (PMAQ). Os resultados indicam a relevância que os Incentivos para mudança de modelo assumiram no financiamento da atenção básica no estado de São Paulo, em especial para municípios de pequeno porte, sugerindo o interesse da gestão municipal em implementar as medidas propostas. Contudo, constatam-se obstáculos para a identificação de mudança das práticas, de forma que o modelo de atenção em vigência não fica devidamente explicitado, a partir dos indicadores analisados. Conclui-se a necessidade de complementar a utilização do financiamento como dispositivo indutor de mudança de modelo com processos avaliativos voltados, especificamente, para a consolidação da APS abrangente.
Palavras-chave:
Financiamento da Saúde; Atenção Primária à Saúde; Gestão em Saúde; Política de Saúde; Sistema Único de Saúde
Introdução
O modelo de atenção à saúde refere-se à forma ou ao modo de produção nos serviços de saúde, em um determinado contexto histórico-social, a partir da sinergia de múltiplos fatores, entre eles: tecnologias, valores, práticas, marco legal, modelo de gestão e recursos financeiros e materiais, com o objetivo de construir discursos, projetos e políticas (Fertonani et al., 2015FERTONANI, H. P. et al. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, p. 1869-1878, 2015.).
Para a Atenção Básica (AB), num sistema universal como o do Brasil, o mais indicado é um modelo de atenção pautado na integralidade, tal qual Giovanella e Mendonça (2012GIOVANELLA, L.; MENDONÇA, M. H. M. Atenção primária à saúde. In: GIOVANELLA, L., et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz; Cebes, 2012. p. 493-545.) nomeiam como Atenção Primária à Saúde (APS) abrangente ou integral, dado seu maior potencial de impactar na situação de saúde, na autonomia das pessoas e nos determinantes sociais do processo saúde-doença. Este modelo se caracteriza pelos atributos de primeiro contato, longitudinalidade, abrangência ou integralidade, coordenação do cuidado, orientação para comunidade, centralidade na família e competência cultural, à semelhança do que propõe Starfield (2002STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: Unesco; Ministério da Saúde, 2002.).
Existem disputas em torno dos conceitos que fundamentam a APS abrangente, como o de promoção da saúde e de determinação social do processo saúde-doença, que teriam sido esvaziados dos seus conteúdos políticos transformadores da realidade social, ao serem incorporados à política de saúde nacional desde a década de 1980 (Mendes; Carnut; Guerra, 2018MENDES, A.; CARNUT, L.; GUERRA, L. D. da S. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 224-243, 2018.). A despeito da importância desse debate, é possível afirmar que uma determinada noção de APS abrangente se consolida a partir da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2011 (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 out. 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html >. Acesso em: 10 ago. 2022
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi... ).
A PNAB 2011 tem, na Estratégia Saúde da Família (ESF), o modelo prioritário para a concretização dessas premissas de APS abrangente, pois propõe a proximidade do território, ações na comunidade, intersetorialidade, interdisciplinaridade, longitudinalidade, vínculo, corresponsabilização e articulação entre ações de vigilância e promoção à saúde, com prevenção de agravos e tratamento à doença. Para tanto, prevê a participação de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e de profissionais do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), atuando de modo integrado a programas intersetoriais voltados ao cuidado integral, tais como o Saúde na Escola, Academia da Saúde e equipes de Consultório na Rua (Brasil, 2012bBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF, 2012b.). Todos estes programas, bem como as equipes de ESF e NASF, recebem financiamento do governo federal, mas sua execução e monitoramento ficam a cargo da gestão municipal.
As transferências de recursos federais têm sido empregadas como uma das estratégias de indução das políticas públicas em saúde. Diversos autores entendem que esse aspecto do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que não se limita apenas à AB, tende a enfraquecer a autonomia dos municípios na elaboração de políticas baseadas nas necessidades de saúde locais, contrariando o princípio da descentralização (Mendes; Carnut; Guerra, 2018MENDES, A.; CARNUT, L.; GUERRA, L. D. da S. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 224-243, 2018.; Piola, 2017PIOLA, S. F. Transferências de recursos federais do sistema único de saúde para estados, distrito federal e municípios: os desafios para a implementação dos critérios da lei complementar n. 141/2012. Brasília, DF: IPEA, 2017.; Duarte; Mendes; Louvison, 2018DUARTE, L. S.; MENDES, Á. N.; LOUVISON, M. C. P. O processo de regionalização do SUS e a autonomia municipal no uso dos recursos financeiros: uma análise do estado de São Paulo (2009-2014). Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, p. 25-37, 2018.). Mesmo não havendo consenso entre os autores do campo da Saúde Coletiva quanto à utilização deste mecanismo para a indução de políticas, é preciso assumir sua existência e ampla utilização. Sendo assim, cabe salientar que este tipo de estratégia precisa ser complementado com constante monitoramento e avaliação desses investimentos. No caso da ESF, caberia destacar o monitoramento não apenas dos indicadores de saúde resultantes dela, mas também o modelo de atenção orientador das práticas que têm promovido tais resultados.
A Estratégia Saúde da Família é amplamente reconhecida como orientadora da organização do SUS no território nacional, obtendo bons resultados nos indicadores de saúde referentes sobretudo à mortalidade materno-infantil e redução de internações por causas sensíveis à AB entre os pacientes com doenças crônicas (Morosini; Fonseca; Baptista, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.; IPEA, 2019IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Saúde. In. IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Políticas Sociais: acompanhamento e análise - n. 26. Brasília, DF, 2019. p. 85-128.; Macinko; Mendonça, 2018MACINKO, J.; MENDONÇA, C. S. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 18-37, 2018.; Pinto; Giovanella, 2018PINTO, L. F.; GIOVANELLA, L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro , v. 23, p. 1903-1914, 2018.). Contudo, estudos já têm averiguado que, muitas vezes, o modelo de atenção orientador das práticas continua sendo o biomédico (Fertonani et al., 2015FERTONANI, H. P. et al. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, p. 1869-1878, 2015.). Esses estudos sugerem que a AB permanece transitando entre o modelo ESF e o modelo assistencial hegemônico, o que reitera a importância de monitoramentos específicos a este respeito, visando o fortalecimento da APS abrangente e de um modelo mais integral (Mendes-Gonçalves, 2017MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica. In: AYRES, R. C. M.; SANTOS, L. Saúde, Sociedade e História. São Paulo: Hucitec; Porto Alegre: Rede UNIDA , 2017. p. 192-250.; Paim, 2012PAIM, J. S. Modelos de Atenção à Saúde no Brasil. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil . Rio de Janeiro : Fiocruz e Cebes, 2012. p. 459-493.).
Além do contexto desafiador referente à avaliação das práticas e do modelo de atenção a elas subjacentes, a necessidade de se investigar os investimentos para a mudança de modelo na Atenção Básica, no sentido da APS abrangente, justifica-se pelas incertezas sobre os possíveis impactos das alterações promovidas mediante aprovação da PNAB de 2017 (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436 de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília , DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html >. Acesso em: 10 ago. 2022
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi... ) e do novo financiamento proposto pelo Programa Previne Brasil em 2019. Essas medidas têm sido vistas como retrocessos ao modelo da ESF e, por conseguinte, à APS abrangente, precisaríamos, então, dispor de recursos adequados para o monitoramento referente a esse modelo de atenção (Morosini; Fonseca; Baptista, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.; Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, p. 1475-1482, 2020.).
Na avaliação do modelo de atenção, importa compreender o processo de trabalho e as práticas dele decorrentes (Mendes-Gonçalves, 2017MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica. In: AYRES, R. C. M.; SANTOS, L. Saúde, Sociedade e História. São Paulo: Hucitec; Porto Alegre: Rede UNIDA , 2017. p. 192-250.), bem como os arranjos constituídos a partir das diversidades regionais (Lima et al., 2019LIMA, L. D. de. et al. Arranjos regionais de governança do Sistema Único de Saúde: diversidade de prestadores e desigualdade espacial na provisão de serviços. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35, e00094618, 2019.; Morais et al., 2018MORAIS, H. M. M. de. et al. Organizações Sociais da Saúde: uma expressão fenomênica da privatização da saúde no Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 34, e00194916, 2018.) e das realidades de cada município (Castro; Oliveira; Cunha, 2016CASTRO, C. P.; OLIVEIRA, M. M.; CUNHA, G. T. O programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade na atenção básica sob a perspectiva de um estudo qualitativo. In: CECCIM, R. B.; et al. (Org.). Intensidade na Atenção Básica: prospecção de experiências, informes e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2016. p. 163-194.; Pinto; Giovanella, 2018PINTO, L. F.; GIOVANELLA, L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro , v. 23, p. 1903-1914, 2018.). Não se trata, portanto, de uma tarefa banal, requisitando a compilação de diferentes indicadores e de uma estratégia de análise integradora.
Assim, este estudo tem como objetivo caracterizar as transferências financeiras no âmbito do Bloco da Atenção Básica (Bloco AB) para os municípios do estado de São Paulo (SP) no período entre 2011 e 2017 e sua relação com o processo de mudança de modelo, no sentido de atingir a APS abrangente.
Adotou-se a eleição do estado de SP como locus privilegiado, pela coexistência de arranjos e modelos por vezes antagônicos, representada pela implantação de equipes ESF concomitantemente com Unidades Básicas tradicionais, o que faz com que a cobertura de Estratégia Saúde da Família da região sudeste seja menor (Miclos; Calvo; Colussi, 2017MICLOS, P. V.; CALVO, M. C. M.; COLUSSI, C. F. Avaliação do desempenho das ações e resultados em saúde da atenção básica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 86, 2017.). Em um cenário com tais características, considera-se que seria premente o monitoramento dos impactos do repasse financeiro para a mudança de modelo, em nome da ampliação de práticas condizentes com a AB abrangente.
Metodologia
Trata-se de estudo descritivo e exploratório, de natureza quantitativa e de corte longitudinal retrospectivo. Tendo em vista o objetivo deste estudo e a importância que a PNAB 2011 teve no fomento de ações e estratégias que visavam uma APS abrangente e os retrocessos apontados pela PNAB de 2017, a análise compreendeu o período de 2011 a 2017.
As informações de transferências de recursos da esfera federal para os governos municipais foram coletadas do sítio do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para os 645 municípios do estado de SP. Foram selecionados os repasses desses recursos para os Fundos Municipais de Saúde (FMS) paulistas no âmbito do Bloco Atenção Básica. Essas transferências financeiras são realizadas para dois componentes: o Piso da Atenção Básica Fixo (PAB Fixo) e o Piso da Atenção Básica Variável (PAB variável).
Dado que o valor do PAB fixo repassado no período do estudo teve como referência apenas o número de habitantes dos municípios, considera-se que os incentivos financeiros vinculados a políticas que promovem a mudança de modelo da APS ocorreram no âmbito do PAB variável. Dessa forma, os 39 registros de ações e estratégias identificados no componente Piso da Atenção Básica Variável foram agregados em categorias que permitissem discriminar os incentivos que promovem a APS abrangente. Foram propostas quatro categorias, sendo que três delas referem-se a tal discriminação: Agentes Comunitários de Saúde (ACS); Programa Saúde da Família (PSF); e Outros incentivos para mudança de modelo (Outros incentivos), sendo esse último a agregação de incentivos de menor destaque, mas que precisam ser considerados quando se objetiva a mudança de modelo. Entende-se que organizar os repasses vinculados à APS abrangente nessas três categorias permite uma melhor qualificação dos recursos repassados. A quarta e última categoria, denominada Demais ações e estratégias do PAB Variável (Demais do PAB Variável), tem como objetivo identificar os repasses que não estão vinculados à mudança de modelo. As agregações segundo as categorias escolhidas estão detalhadas no Quadro 1.
Ao considerar a importância do Programa Mais Médicos (PMM) como fator potencial de promoção da APS abrangente no período analisado, dada a necessidade de contratação de médicos para o cadastramento de novas equipes de ESF (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, p. 1475-1482, 2020.; Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa mais médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília, DF, 2015.), foi necessário estimar os valores das bolsas pagas aos profissionais vinculados a essa política nos municípios paulistas. Esses valores não puderam ser identificados nas transferências do FNS por representarem gastos diretos do governo federal. Agregar essa estimativa em cada município, no período de 2013 a 2017, aos repasses de recursos para as mesmas cidades no âmbito do Bloco AB permite identificar com maior precisão os investimentos financeiros no fortalecimento da APS abrangente realizados pelo governo federal no período analisado.
A estimativa foi a partir das informações encaminhadas pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, do Ministério da Saúde, em 21 de maio de 2018, a partir de solicitação feita pelas autoras. Dos 4.927 registros existentes na base de dados original (contratos de médicos), foram excluídos 148 registros com inconsistências nas datas de entrada e/ou saída do médico, necessárias para o cálculo do tempo de vínculo e do valor gasto. A partir da base de dados ajustada, foi possível imputar o valor de R$ 10.513, 00 para cada mês completo com presença de um médico vinculado ao PMM, estimando assim o valor total de bolsas despendido pelo governo federal em cada um dos 389 municípios do estado de SP que participaram do programa. Os resultados da estimativa foram agregados em uma quinta categoria.
Os valores das transferências do FNS para os FMS paulistas e da estimativa das bolsas dos PMM foram deflacionados utilizando-se o Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna da Fundação Getúlio Vargas, valor médio do ano, convertidos a preço de dezembro de 2017, permitindo assim a comparação na série histórica em valor real.
Tendo em conta que o PAB fixo é transferido sem exigências quanto a ações específicas por parte dos municípios; e o PAB variável, por adesão às políticas propostas pelo governo federal (Piola, 2017PIOLA, S. F. Transferências de recursos federais do sistema único de saúde para estados, distrito federal e municípios: os desafios para a implementação dos critérios da lei complementar n. 141/2012. Brasília, DF: IPEA, 2017.), entende-se que a relação entre os montantes transferidos nesses dois componentes de repasse indica a tendência da gestão municipal em se engajar em determinadas estratégias de atenção à saúde. O mesmo pode ser dito dos esforços realizados pelo município na adesão ao PMM, uma vez que, após aderirem voluntariamente ao programa, assumiram o compromisso de propiciar moradia, alimentação e deslocamento aos profissionais, de adequar o funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS), entre outros (Brasil, 2015BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Programa mais médicos - dois anos: mais saúde para os brasileiros. Brasília, DF, 2015.).
Em um segundo momento, os valores das categorias “Agentes Comunitários de Saúde (ACS)”, “Programa Saúde da Família (PSF)”, “Outros incentivos para mudança de modelo (Outros incentivos)” e os valores estimados para as “Bolsas do PMM” foram somados para compor o montante Incentivos para mudança de modelo.
Para diferenciar os municípios segundo seu esforço na estruturação de ações e estratégias vinculadas à APS abrangente e dimensionar adequadamente os esforços municipais, foi estimado o valor per capita dos Incentivos para mudança de modelo e do PAB fixo, no período de 2011 a 2017, e a relação entre eles. O número de habitantes utilizado para o cálculo foi o da projeção populacional para o ano de 2014 da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade)22Dados de https://populacao.seade.gov.br/. Acesso em: 31 out. 2020. (São Paulo, 2020).
Haja vista a importância de se considerar o porte populacional do município para a compreensão da dinâmica da implantação da ESF, como já apontado por diversos estudos (Pinto e Giovanella, 2018PINTO, L. F.; GIOVANELLA, L. Do Programa à Estratégia Saúde da Família: expansão do acesso e redução das internações por condições sensíveis à atenção básica (ICSAB). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro , v. 23, p. 1903-1914, 2018.; Miclos; Calvo; Colussi, 2017MICLOS, P. V.; CALVO, M. C. M.; COLUSSI, C. F. Avaliação do desempenho das ações e resultados em saúde da atenção básica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 86, 2017.; Castro; Oliveira; Cunha, 2016CASTRO, C. P.; OLIVEIRA, M. M.; CUNHA, G. T. O programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade na atenção básica sob a perspectiva de um estudo qualitativo. In: CECCIM, R. B.; et al. (Org.). Intensidade na Atenção Básica: prospecção de experiências, informes e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2016. p. 163-194.; Viana et al., 2008VIANA, A. L. d’A. et al. Atenção Básica e dinâmica urbana nos grandes municípios paulistas, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 24, n. 1, p. S79-S90, 2008.), os municípios foram agregados segundo quatro faixas por porte populacional: (1) menos de 10 mil habitantes; (2) de 10 mil até 50 mil habitantes; (3) de 50 mil até 100 mil habitantes; e (4) mais de 100 mil habitantes.
Com o objetivo de identificar os municípios que se destacam por seus esforços na captação de recursos para a estruturação da APS abrangente, foram selecionados, em cada faixa, aqueles que compuseram o quarto quartil da razão per capita entre os Incentivos para mudança de modelo e o PAB fixo, no período de 2011 a 2017. Os 162 municípios identificados foram chamados de municípios em destaque.
Para a verificação da estruturação da APS abrangente, foram selecionados, para o mesmo período: os indicadores de cobertura de Estratégia Saúde da Família, que apontam se houve ampliação no número de ESF nos municípios; visitas domiciliares por habitante coberto pela Equipe de Saúde da Família (EqSF), por compreender que a visita domiciliar é uma das principais ações proposta pela APS abrangente; e, complementarmente, o percentual de municípios que aderiram ao Programa de Melhoria do Acesso de Qualidade da AB (PMAQ). Entendemos que o PMAQ se constitui em uma iniciativa avaliativa voltada para o processo de trabalho e orientada por diretrizes da ESF, e que a adesão voluntária a ele, que poderia gerar premiações financeiras mediante escores mais elevados, pode constituir um indicativo, ainda que indireto, da disponibilidade e confiança do gestor em ser avaliado segundo os atributos propostos pela APS abrangente.
Para a coleta de dados referente à cobertura de ESF foram utilizados os dados de estimativa de população coberta e população total, disponibilizados pelo Ministério da Saúde (MS) no E-gestor AB para os anos de 2011 a 2017, referentes ao mês de julho. Para a coleta de dados sobre as visitas domiciliares, foi levantado o total de visitas realizadas no ano de 2011, disponibilizado pelo Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB),33Dados disponíveis em: <http://www2.datasus.gov.br/SIAB/index.php?area=04 >. Acesso em: 31 out. 2020. e o total de visitas realizadas pelas EqSF, Equipe de AB e Equipe de ACS no ano de 2017, disponíveis no Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB)44Dados disponíveis em: <https://sisab.saude.gov.br/>Acesso em: 31 out. 2020.. Vale ressaltar que o SISAB substituiu o SIAB e foi implantado entre 2013 e 2015 por meio da estratégia “e-SUS AB” (Thum; Baldisserotto; Celeste, 2019THUM, M. A.; BALDISSEROTTO, J. CELESTE, R. K. Utilização do e-SUS AB e fatores associados ao registro de procedimentos e consultas da atenção básica nos municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 35, e00029418, 2019.). Por fim, os dados referentes à adesão ao PMAQ foram obtidos a partir das bases de dados coletados no 1º e 3º Ciclos disponibilizadas no sítio do Programa.
Resultados
As transferências dos FMS para o Bloco AB representaram, em média, 28,2% do total transferido para os municípios. Na Tabela 1 pode-se observar que o montante total transferido nesse bloco ao longo dos sete anos foi de 16,27 bilhões de reais, em valores corrigidos, sendo uma metade para o PAB fixo e a outra para o PAB variável. Observa-se também que os recursos são crescentes ao longo dos anos de 2011 a 2015, com redução nos anos de 2016 e 2017.
Dentre os valores transferidos para o PAB variável, grande parte foi direcionado para componentes vinculados às políticas indutoras do modelo de atenção para uma APS abrangente. Dos 8,13 bilhões de reais transferidos para o PAB variável, 90,0% deste valor contemplou componentes vinculados a essas políticas, tais como a de ACS (35,0%), do PSF (34,0%) e Outros incentivos para mudança de modelo (21,1%).
Quando somados aos 1,16 bilhão de reais referentes às bolsas pagas no âmbito do PMM, no período de 2011 a 2017, chegamos ao valor de 8,49 bilhões de reais, identificado como Incentivos para mudança de modelo.
Como apresentado na Tabela 2, a distribuição desse valor pelos municípios paulistas, agregados por porte populacional, permite verificar que os maiores, com população acima de 100 mil habitantes, respondem por 62,0% dos Incentivos para mudança de modelo no período analisado (5,26 bilhões de reais). Na outra ponta, os municípios menores, com até 10 mil habitantes, respondem por 8,9% do valor (703,43 milhões de reais). Vale ressaltar que essa mesma análise, considerando os 8,14 bilhões de reais direcionados para o PAB Fixo, possibilita identificar uma concentração superior nos municípios maiores, de 71,2% (5,79 bilhões de reais), enquanto os menores receberam 4,4% dessas transferências (361,6 milhões de reais).
Já a análise per capita dos recursos permite observar que os municípios menores apresentam maior valor por habitante, tanto em relação ao PAB fixo, como aos Incentivos para mudança de modelo, de R$ 263,07 e R$ 511,75, respectivamente. Na outra ponta, os municípios maiores apresentam os menores valores, com R$ 181,71 e R$ 165,03, respectivamente. Observa-se o aumento gradual dos valores per capita conforme diminui o porte populacional do município.
A média da razão entre os Incentivos para mudança de modelo e o PAB fixo dos municípios permite observar que, quanto menor o município, maior o valor dos Incentivos para mudança de modelo , quando comparado ao PAB fixo. Enquanto a média da razão entre os 645 municípios é de 1,6, nas cidades com menos de 10 mil habitantes é de 2,1, diminuindo gradativamente conforme o porte populacional aumenta, até chegar a 0,8, nos municípios com mais de 100 mil habitantes.
A Figura 1 permite dimensionar no conjunto dos municípios em destaque a diferença entre a transferência per capita dos Incentivos para mudança de modelo (R$ 372,36) e do PAB fixo (R$ 198,77), no período de 2011 a 2017. A amplitude dessa diferença aumenta conforme diminui o porte populacional do município, sendo que o valor per capita dos Incentivos para mudança de modelo na faixa populacional com menos de 10 mil habitantes (R$ 821,72) é mais de três vezes o valor do PAB Fixo (R$ 246,24).
Valor per capita do repasse municipal dos municípios em destaque e do total dos municípios por porte populacional, estado de São Paulo, 2011 a 2017.
O valor per capita dos Incentivos para mudança de modelo entre os municípios em destaque (R$ 372,36) representa 1,9 vezes o valor entre o total dos municípios (R$ 198,89). É possível observar que as maiores diferenças se encontram nos municípios de maior porte populacional.
Quanto menor for o porte populacional do município, maior será a cobertura de ESF. Observa-se que os municípios em destaque apresentaram coberturas maiores nos dois períodos analisados, 2011 e 2017, bem como diferença de variação menor no período, quando comparados com o total dos municípios. Apesar da menor cobertura, os municípios em destaque com mais de 100 mil habitantes apresentam grande variação na cobertura de ESF na época analisada (35,4%), conforme pode ser observado na Tabela 3.
Em relação às visitas domiciliares e aos municípios em destaque, no ano de 2011 apenas os municípios com mais de 100 mil habitantes se diferenciaram em relação ao conjunto total. Já em 2017, apenas os municípios de 50 mil até 100 mil habitantes não se diferenciaram em relação ao total.
Os municípios em destaque apresentaram maior adesão ao PMAQ em 2011 e 2017, sobretudo aqueles com mais de 50 mil habitantes. Chama atenção que, em 2017, 100% deles tenham aderido ao programa.
Discussão
O estudo buscou agregar e descrever os incentivos para a mudança de modelo na AB no sentido de consolidar a APS abrangente. Seus resultados possibilitaram evidenciar a importância dos Incentivos para mudança de modelo nas transferências do FNS para os FMS paulistas, no período analisado. Verifica-se que os incentivos para o PSF e para o PACS continuavam sendo preponderantes, ainda que ao longo do tempo diversas novas estratégias tenham sido formuladas e financiadas. Foi possível observar que os menores municípios são relativamente mais beneficiados pelos Incentivos para mudança de modelo.
De maneira geral, a forma de transferência dos recursos, tanto para o PAB fixo, quanto para o PAB variável, em especial para o PSF, busca corrigir as desigualdades nessa distribuição, privilegiando municípios menores com valores maiores. Em relação ao PAB fixo, esse ajuste é feito segundo o porte populacional e critérios que consideram a densidade demográfica, condição de vulnerabilidade e população coberta por planos privados de saúde (Mendes; Marques, 2014MENDES, A; MARQUES, R. M. O financiamento da atenção básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 38, p. 900-916, 2014.). Tal método de transferência resulta em uma distribuição constante, que contempla todos os municípios brasileiros, independente da atuação da gestão municipal, e justifica as diferenças nos valores per capita segundo os portes populacionais identificados neste estudo.
Em relação aos Incentivos para mudança de modelo, também estão previstos ajustes dos valores transferidos mensalmente para as ESF segundo critérios que incluem o porte populacional do município. A Portaria n. 978, de 16 de maio de 2012 (Brasil, 2012aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 978 de 16 de maio de 2012. Define valores de financiamento do Piso da Atenção Básica variável para as Equipes de Saúde da Família, Equipes de Saúde Bucal e aos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, instituídos pela Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União, Brasília , DF, 2012a. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0978_16_05_2012.html#:~:text=978%2C%20DE%2016%20DE%20MAIO,Pol%C3%ADtica%20Nacional%20de%20Aten%C3%A7%C3%A3o%20B%C3%A1sica. >. Acesso em: 10 ago. 2022
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi... ), prevê um repasse por equipe cadastrada com valor maior para os municípios com menos de 30 mil habitantes (exceto nos estados da Amazônia Legal, que podem ter até 50 mil habitantes), e municípios maiores que abrangerem população remanescente de quilombos ou residentes em assentamentos. No entanto, cabe ressaltar que o recurso é acessado mediante a adesão da gestão municipal às ações e estratégias sugeridas pelo MS, demandando esforços na organização da assistência local para cumprir os requisitos estabelecidos. O papel dos municípios ganha relevância quando se considera que os recursos federais repassados são ainda insuficientes para arcar com as despesas da ESF; estimativas apontam que estes representam apenas 33,8% dos gastos com a Estratégia Saúde da Família (Mendes; Carnut; Guerra, 2018MENDES, A.; CARNUT, L.; GUERRA, L. D. da S. Reflexões acerca do financiamento federal da Atenção Básica no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, p. 224-243, 2018.; Mendes; Marques, 2014MENDES, A; MARQUES, R. M. O financiamento da atenção básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 38, p. 900-916, 2014.).
Depreende-se, então, que os altos valores per capita dos Incentivos para mudança de modelo identificados nos municípios de menor porte apontam para a importância desse tipo de financiamento, sobretudo para municípios menos populosos. Esse aspecto ganha destaque quando se considera as dificuldades dos gestores das cidades de menor porte na estruturação da sua rede assistencial, relacionadas às economias de escala e ao recrutamento e fixação de profissionais (Araújo; Gonçalvez; Machado, 2017ARAÚJO, C. E. L.; GONÇALVES, G. Q.; MACHADO, J. A.Os municípios brasileiros e os gastos próprios com saúde: algumas associações. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, p. 953-963, 2017.; Miclos; Calvo; Colussi, 2017MICLOS, P. V.; CALVO, M. C. M.; COLUSSI, C. F. Avaliação do desempenho das ações e resultados em saúde da atenção básica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 51, p. 86, 2017.).
Cabe ressaltar também os possíveis constrangimentos impostos pela Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) às gestões públicas que, em muitos momentos, podem inibir a ampliação, ou até mesmo, levar à redução da ESF (Mendes; Marques, 2014MENDES, A; MARQUES, R. M. O financiamento da atenção básica e da Estratégia Saúde da Família no Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 38, p. 900-916, 2014.). Ainda que esse tema seja recorrente na agenda dos gestores municipais, não existe consenso dos reais limites impostos pela LRF na contratação de pessoal para a atenção à saúde (Medeiros et al., 2017MEDEIROS, K. R. et al. Lei de Responsabilidade Fiscal e as despesas com pessoal da saúde: uma análise da condição dos municípios brasileiros no período de 2004 a 2009. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, p. 1759-1769, 2017.).
Apesar deste quadro poder indicar motivações para o não engajamento das gestões municipais em constituir ESF, este estudo evidenciou que um número expressivo dos 645 municípios paulistas recebeu em algum momento esses incentivos, sugerindo a importância dos repasses financeiros para mobilizar a implantação de tal modelo.
Em 2011, 83 municípios não acessaram recursos vinculados a Incentivos para mudança de modelo e, em 2017, eram apenas 19 municípios nessas condições. Este dado demonstra que a quase totalidade dos municípios do estado de SP se comprometeram, em alguma medida, em implementar as ações e estratégias vinculadas à APS abrangente. É possível inferir também que houve um maior engajamento deles ao longo do período analisado, não apenas pelo número de municípios que passaram a se envolver com a estruturação de uma APS abrangente, mas também em relação aos valores captados, que cresceram no período de 2011 a 2015. A ampliação dos valores se deve em grande parte à implantação do PMM no período.
Se, no que concerne aos recursos financeiros repassados pelo governo federal, foi possível observar a disposição das gestões municipais paulistas em implementar ações e estratégias vinculadas à APS abrangente, a efetivação delas não é de fácil mensuração, a despeito da existência de iniciativas regionais, como a QualiAB, realizada no estado de SP (Castanheira et al., 2014CASTANHEIRA, E. R. L. et al. Avaliação de serviços de Atenção Básica em municípios de pequeno e médio porte no estado de São Paulo: resultados da primeira aplicação do instrumento QualiAB. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, p. 679-691, 2014.). Sem indicadores específicos que monitorem frequentemente a implantação das ações a que se referem os Incentivos para mudança de modelo , analisamos neste estudo as informações referentes à cobertura de ESF, adesão ao PMAQ e Visita Domiciliar. Em que pese a heterogeneidade da composição destes indicadores para nortear os caminhos que AB está cursando nos municípios, ficou claro que eles são insuficientes para analisar as alterações no processo de trabalho da Atenção Básica visando uma APS abrangente no território. Neste sentido, é importante ressaltar a limitação dos dados disponíveis nos relatórios do E-gestor AB e o impacto da modificação do sistema de informação da AB no período analisado. A implantação do SIAB enfrenta grandes desafios nos municípios (Thum; Baldisserotto; Celeste, 2019THUM, M. A.; BALDISSEROTTO, J. CELESTE, R. K. Utilização do e-SUS AB e fatores associados ao registro de procedimentos e consultas da atenção básica nos municípios brasileiros. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 35, e00029418, 2019.), impactando a qualidade dos poucos dados que estão publicizados.
Perceber e encontrar alternativas para superar tal limitação mostra-se imprescindível. Sem o devido monitoramento, abre-se espaço para alegações genéricas e imprecisas relacionadas à integralidade resultante da expansão da cobertura (Onocko; Furtado, 2014ONOCKO, C. R., FURTADO, J. P. Desafios da avaliação de programas e serviços de saúde. Campinas: Editora Unicamp, 2011.; Castro; Oliveira; Cunha, 2016CASTRO, C. P.; OLIVEIRA, M. M.; CUNHA, G. T. O programa nacional de melhoria do acesso e da qualidade na atenção básica sob a perspectiva de um estudo qualitativo. In: CECCIM, R. B.; et al. (Org.). Intensidade na Atenção Básica: prospecção de experiências, informes e pesquisa-formação. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2016. p. 163-194.). É sabido do risco de que, mesmo com a ampliação, o financiamento ainda esteja induzindo um modelo biomédico ao considerar o pagamento mediante o monitoramento de procedimentos médicos e de enfermagem, sem as devidas condições de se averiguar as práticas mais abrangentes das equipes (Morosini; Fonseca; Baptista, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.). É difícil demonstrar este tipo de incongruência com os dados do período do estudo. Dentro das limitações apresentadas, esta pesquisa mostrou que a Cobertura de ESF possui uma relação direta com o recurso financeiro recebido, pois para cada nova equipe cadastrada pelo gestor, o MS repassa o valor correspondente. Desta forma, era esperado o crescimento nos municípios que apresentam menores coberturas, haja vista também a criação do PMM, que propiciou a presença do médico nas equipes, possibilitando seu cadastro junto ao ministério.
Quanto às informações sobre Visitas Domiciliares, cabe destacar que o MS substituiu o SIAB pelo SISAB em 2013, com o intuito de qualificar e ampliar a cobertura do sistema de informação da Atenção Básica, o que é evidenciado pelo aumento de municípios com informações de visitas domiciliares que responderam ao PMAQ. Contudo, é preciso considerar que a mudança de sistema provavelmente não será suficiente para suprimir a lacuna de conhecimento sobre o modelo de atenção, caso não sejam incrementados e disponibilizados indicadores específicos para tal. Esta proposição remete, em outras palavras, na construção de informações sobre ações relacionadas à APS abrangente, considerando seus atributos já reconhecidos, tais como integralidade, longitudinalidade e coordenação do cuidado, acrescidos de indicadores relacionados a ações territoriais, cuidado coletivo, articulações intersetoriais e em rede, e de clínica ampliada - no que se refere ao cuidado individual (Morosini; Fonseca; Baptista, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.; Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, p. 1475-1482, 2020.). É importante destacar que as informações coletadas atualmente pelo SIAB apresentam um potencial para novas análises neste sentido, pois permitem explorar detalhes das visitas domiciliares e de ações intersetoriais e de coordenação do cuidado, podendo, com foco nos processos de trabalho, trazer novos elementos para análise do modelo de atenção praticado na Atenção Básica. Desta forma, a disponibilidade destes dados para consultas de forma pública é essencial para garantir monitoramento e transparência na avaliação da AB, estimulando a construção de uma cultura de avaliação formativa que contribua para a dissolução do caráter punitivo das avaliações. Retomando os desafios relacionados por Fertonani et al. (2020) para a instituição de uma APS abrangente nos municípios, este estudo contribuiu para mostrar que os entraves relacionados à radicalização democrática na formulação, implementação e avaliação das políticas de saúde no território se reproduzem com as dificuldades de acesso aos dados em sua totalidade, estendendo-se para a ausência de indicadores referentes às práticas e modelo de atenção adotado, bem como para a fragmentação da informação que dificulta sua análise.
As recentes mudanças propostas pelo Ministério da Saúde, consubstanciadas no Programa Previne Brasil (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.979, de 12 de novembro de 2019. Institui o Programa Previne Brasil, que estabelece novo modelo de financiamento de custeio da Atenção Primária à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde, por meio da alteração da Portaria de Consolidação n. 6/GM/MS, de 28 de setembro de 2017. Diário Oficial da União, Brasília , DF, 13 nov. 2019, Seção 1, p. 97. Disponível em: <Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.979-de-12-de-novembro-de-2019-227652180 >. Acesso em: 20 jul. 2022.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta... ), promovem alteração estrutural na lógica de incentivos à AB, que inclui pagamento por desempenho, o que poderia estimular alteração na cultura avaliativa da Atenção Básica. Contudo, ao optar por indicadores já tradicionais e centrados em procedimentos de cuidado de caráter estritamente biomédico (Brasil, 2020cBRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Saúde da Família. Nota Técnica n. 5/2020-DESF/SAPS/MS. Brasília, DF, 2020.), não avança na indução de um processo de monitoramento do processo de trabalho de uma APS abrangente ou do modelo de atenção a ela subjacente (Morosini; Fonseca; Baptista, 2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.).
Estas e as demais mudanças impostas pelo novo financiamento da política de AB têm, além disso, poucas chances de serem devidamente debatidas pela população, devido às lacunas preexistentes em relação ao monitoramento e avaliação das práticas na Atenção Básica. Assim, as discussões tendem a ser mantidas de modo a excluir a população, mesmo esta sendo a maior afetada, caso se cumpram as perspectivas de precarização do cuidado, e de aprofundamento da retirada do cunho social e democrático da política de saúde, como já apontado por Giovanella, Franco e Almeida (2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. de. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, p. 1475-1482, 2020.) e Morosini, Fonseca e Baptista. (2020MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; BAPTISTA, T. W. de F. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro , v. 36, e00040220, 2020.).
Assim, permanece a necessidade de se construir estratégias de avaliação de modelo na AB capazes de contribuir para o monitoramento e consolidação da ESF, de modo que possam ser empregados também para sustentar argumentos e mobilizar a população contra as ameaças de desmonte que frequentemente surgem. Canais permanentes, com transparência dos dados e seu significado para as políticas públicas, são mais do que necessários.
Seriam necessários, portanto, investimentos na implementação efetiva do SIAB, com publicização de dados já coletados destinados à incrementação dos indicadores, que passariam a condensar aspectos relevantes do processo de trabalho ligados à APS abrangente, somados a esforços contínuos para simplificar o acesso, para que sejam de domínio público e compreensíveis também ao público leigo.
Considerações finais
O exercício de agregação, apresentação e análise empreendido neste artigo demonstrou a relevância dos repasses financeiros voltados para a indução do modelo de atenção. Contudo, notou-se também que a avaliação da mudança do modelo de atenção não representa um aspecto de fácil entendimento, limitando as possibilidades de acompanhar os resultados da utilização do financiamento como mecanismo indutor de mudanças em prol de um modelo vinculado à proposta da APS abrangente.
A partir da identificação dos Incentivos para mudança de modelo, mostrou-se nítida a importância que esses recursos assumiram no financiamento da Atenção Básica no estado de SP, especialmente nos municípios menores. Em contrapartida, o modelo de atenção em vigência não fica devidamente explicitado a partir dos indicadores analisados. Deste modo, demonstra-se a necessidade de complementar a utilização do financiamento como dispositivo indutor de mudança de modelo com processos avaliativos voltados, especificamente, para a consolidação da APS abrangente.
É sabido que o financiamento sozinho, especialmente considerando o subfinanciamento crônico e o congelamento de gastos com a saúde, não garante a mudança de modelo, que é um aspecto multideterminado. Todavia, o estudo em tela indica que sua participação não pode ser desprezada, pois o financiamento mostrou-se capaz de fomentar a equidade da distribuição regional dos recursos, ao possibilitar o acesso, sobretudo dos municípios de pequeno porte populacional. E, por atrair os pequenos municípios, configura um dispositivo potente para polinização de políticas de mudança de modelo, desde que devidamente complementado por planos de governo - local, regional e federal - voltados para o fortalecimento da AB; formação contínua de recursos humanos, cultura de monitoramento de resultados e pelo imprescindível envolvimento da população.
Diante de tantos desafios, com naturezas tão complexas, parece excessivamente reducionista a nova proposta conformada pelo pacote de indicadores de desempenho sugerido no Programa Previne Brasil. É necessário que se mantenha aberta as discussões e que se mantenha os investimentos para um modelo de atenção preocupado com o cuidado integral à saúde da população, algo que não se pode garantir objetivamente no cenário atual.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
17 Abr 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
17 Fev 2022 - Revisado
17 Fev 2022 - Aceito
22 Mar 2022