Resumo
Pessoas com deficiência (PCD) vivenciam profundas desigualdades sociais e no acesso à saúde. A Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) foi instituída em 2012, com o objetivo de melhorar esse acesso de forma equânime e igualitária. O objetivo deste artigo é analisar a implementação e os condicionantes da RCPD na região de saúde de São José do Rio Preto. Este é um estudo de caso exploratório, de abordagem qualitativa e quantitativa, ancorado no instrumental de análise de políticas públicas. As dimensões política, organização e estrutura nortearam a análise dos resultados. Foram realizadas entrevistas com 37 atores-chave da gestão, prestadores e da sociedade. O Ministério da Saúde é considerado protagonista pela definição da política e repasse de recursos financeiros. O ente estadual é prestador de serviços e conciliador de demandas municipais através do grupo condutor da RCPD. A inexistência de um sistema de regulação assistencial é um entrave para a organização da rede. Serviços contratualizados decidem quem terá acesso a seu atendimento, não respeitando fluxos pactuados. A estrutura dos serviços de reabilitação, com exceção do Centro Especializado em Reabilitação, não foi orientada pelas necessidades de saúde, mas pela existência dos serviços no território. Evidenciam-se barreiras para a garantia do direito à saúde que perpetuam desigualdades vividas pelas PCD.
Palavras-chave:
Pessoas com Deficiência; Política de Saúde; Redes de Atenção à Saúde; Desigualdade
Introdução
Como grupo social historicamente negligenciado, as pessoas com deficiência (PCD) experimentam diferentes barreiras sociais, econômicas e de acesso a serviços de educação e saúde, resultando em profundas desigualdades em relação a outros grupos sociais (WHO, 2011WHO - World Health Organization. World report on disability 2011. Geneva, 2011.). Quanto maiores forem as desigualdades vivenciadas, menor será o nível de inclusão social experienciado pelas PCD (Cunha et al., 2022CUNHA, M. A. O. da et al. Health care for people with disabilities in the Unified Health System in Brazil: a scoping review. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 19, n. 3, p. 1472, 2022. DOI: 10.3390/ijerph19031472
https://doi.org/10.3390/ijerph19031472... ).
A expressiva incidência de pessoas deficientes na sociedade brasileira transforma o tema da deficiência em uma questão social que exige do poder público ações no sentido de promover os direitos de cidadania dessa população, seja por meio de políticas sociais ou outros instrumentos que garantam a justiça (Santos, 2008SANTOS, W. R. dos. Pessoas com deficiência: nossa maior minoria. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, p. 501-519, 2008. DOI: 10.1590/S0103-73312008000300008
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200800... ).
Direitos constitucionais e leis foram propostos desde a redemocratização, visando garantir a prestação de serviços e a inclusão social. Em 2002, é editada a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, que estabelece diretrizes para orientar a definição ou a readequação de planos, programas, projetos e atividades operacionais nos estados e municípios.
Em 2012, o Ministério da Saúde (MS) institui a Portaria no 793/2012, que implementa a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD), componente da saúde do Plano Nacional dos Direitos da PCD - Viver sem Limite. Em nível municipal, a RCPD tem como foco ações desenvolvidas pela Atenção Primária à Saúde (APS) como identificação precoce, acolhimento, educação em saúde, promoção da inclusão, criação de linhas de cuidado e protocolos clínicos, atenção domiciliar e adequação do ambiente escolar. A Atenção Especializada (AE) seria dada no território da região de saúde, por meio da implementação dos Centros Especializados em Reabilitação (CER) e das Oficinas Ortopédicas, referências reguladas para o território que compartilham o cuidado com a APS, estabelecendo fluxos assistenciais contínuos, ampliação e qualificação do cuidado e desenvolvimento de recursos humanos. A atenção hospitalar deveria ampliar o acesso a leitos regulados de reabilitação (Brasil, 2012BRASIL. Portaria No 793, de 24 de abril de 2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 abr. 2012.).
A RCPD nasce no contexto de implementação do modelo de Redes de Atenção à Saúde (RAS). Preconizado como alternativa à fragmentação dos sistemas de saúde, este modelo funciona através de organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde com objetivos comuns e ação cooperativa, sendo coordenado pela APS (Mendes, 2011MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. 2. ed. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2011.).
Dentre os desafios de funcionamento das RAS, há a necessidade de estabelecer lideranças institucionais com capacidade de coordenação do sistema regional, melhorar os sistemas de informação, comunicação, monitoramento e avaliação das redes, dimensionar a rede de serviços, melhorar as estratégias de regulação assistencial e aumentar o financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS) (Tofani et al., 2021TOFANI, L. F. N. et al. Caos, organização e criatividade: revisão integrativa sobre as Redes de Atenção à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 10, p. 4769-4782, 2021. DOI: 10.1590/1413-812320212610.26102020
https://doi.org/10.1590/1413-81232021261... ).
Especificadamente sobre a RCPD, ainda são poucos os estudos existentes, mas eles têm demonstrado que, após 10 anos de sua implementação, ainda necessita diminuir barreiras de acesso, favorecer a integração entre os componentes da rede, definir fluxos assistenciais, ampliar o acesso e melhorar a acessibilidade (Dubow; Garcia; Krug, 2018DUBOW, C.; GARCIA, E. L.; KRUG, S. B. F. Percepções sobre a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em uma Região de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 117, p. 455-467, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811709
https://doi.org/10.1590/0103-11042018117... ; Machado et al., 2018MACHADO, W. C. A. et al. Integralidade na Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 27, n. 3, e4480016, 2018. DOI: 10.1590/0104-07072018004480016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018004... ). Para que cumpra seu papel, é necessário que sejam estabelecidas definições claras e que haja conhecimento público da missão assistencial de cada ponto de atenção, bem como dos fluxos entre os serviços (Magalhães Junior, 2014MAGALHÃES JUNIOR, H. M. Redes de Atenção à Saúde: rumo à integralidade. Divulgação em Saúde para Debate, Londrina, n. 52, p. 15-37, 2014.).
O processo de implementação de uma política pública é complexo. Envolve seu desenho, diagnóstico situacional, aplicabilidade, motivações e incentivos implicados aos diferentes atores, sejam eles os formuladores, os implementadores ou os grupos de interesse envolvidos na política pública no processo (Howlett; Ramesh; Perl, 2013HOWLETT, M.; RAMESH, M.; PERL, A. Política pública: seus ciclos e subsistemas: uma abordagem integral. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.).
Desta forma, este trabalho tem como objetivo analisar a implementação e os condicionantes da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência na região de saúde de São José do Rio Preto.
Método
Trata-se de um estudo de caso de caráter exploratório que utiliza abordagem mista, por meio de métodos quantitativos e qualitativos, e se ancora no referencial teórico de análise de políticas públicas (Donahue; Zeckhauser, 2008DONAHUE, J. D.; ZECKHAUSER, R. J. Public-Private collaboration. In: MORAN, M.; REIN, M.; GOODIN R. E. (Ed.). The Oxford Handbook of Public Policy. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 496-526.). Seu uso recai nas possibilidades de estudar as interações entre burocracia estatal (gestores nos diferentes níveis de governo), burocratas de nível de rua (provedores de serviços), representantes da sociedade e os recursos que estes atores mobilizam no desenho da política e seus resultados distributivos (Viana et al., 2017VIANA, A. L. D. et al. Region and networks: multidimensional and multilevel approaches to analyze the health regionalization process in Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil , Recife, v. 17, suppl. 1, p. S7-S16, 2017. DOI: 10.1590/1806-9304201700S100002
https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S... ).
Este trabalho buscou aproximação teórica com o estudo de Viana et al. (2017VIANA, A. L. D. et al. Region and networks: multidimensional and multilevel approaches to analyze the health regionalization process in Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil , Recife, v. 17, suppl. 1, p. S7-S16, 2017. DOI: 10.1590/1806-9304201700S100002
https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S... ). Os autores empregam três dimensões para compreender o processo de implementação das RAS: Política, Estrutura e Organização. Juntas, podem explicar, se não o todo, ao menos parte do processo de implementação das redes de atenção à saúde e da RCPD. A primeira dimensão, Política, procura identificar: os protagonismos no processo de tomada de decisão; negociação e conflito; e as diferentes formas de relação entre o Estado e a sociedade ou entre diferentes governos, atores do setor privado e membros da sociedade. A dimensão Organização pretendeu identificar os critérios de conformação da RCPD, o planejamento, a gestão, a integração sistêmica entre serviços e a regulação assistencial. Estrutura traduz a disponibilidade e a suficiência de recursos humanos, físicos, acessibilidade e transporte sanitário. Tais dimensões possuem diferentes graus de autonomia e aspectos de interdependência, e somente uma visão integrada de seu conjunto permite identificar quais problemas são mais recorrentes e de que forma podem interferir, conjuntamente, na implementação de uma rede de atenção à saúde.
O estudo de caso foi realizado na região de saúde denominada São José do Rio Preto (SJRP), estado de São Paulo. Sua escolha se justifica por aglutinar elementos centrais para a análise da implementação da RCPD. Essa região de saúde é uma das que tem um dos 220 CER habilitados pelo MS. Possui serviço de reabilitação da Rede de Reabilitação Lucy Montoro (RLM), estabelecido pela parceria entre a Secretaria Estadual de Saúde (SES) e a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo. Conta ainda com serviços municipais de especialidades, com ações de reabilitação e serviços filantrópicos contratualizados pelas Secretarias Municipais de Saúde da região e com a SES. Aliados a estes fatores, estão o porte populacional de 732.845 habitantes e 20,61% de PCD na região, segundo o Censo de 2010. Dados semelhantes a demais regiões de saúde do país, sobretudo as com mais de 400 mil habitantes. O Quadro 1 apresenta maiores informações sobre a região de saúde de estudo.
Visando compreender melhor as especificidades da gestão e dos serviços para as PCD, os municípios foram o polo da região de saúde - São José do Rio Preto - e os dois com as maiores taxas populacionais de PCD para indivíduos com ao menos uma das deficiências investigadas - Palestina (26,61%) e Mirassolândia (23,62%).
Para responder aos objetivos deste estudo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas e aplicação de questionários com três categorias de atores-chaves representantes dos níveis estadual, regional e municipal: gestor, prestador e sociedade. A categoria Gestor (indicada por G) inclui os profissionais que atuam nas Secretarias Municipais de Saúde, Secretaria Estadual de Saúde e na Divisão Regional de Saúde. Prestador (P) é a categoria que agrega responsáveis pelos serviços que oferecem atendimento de saúde e profissionais que lidam diretamente com o público. A última categoria, Sociedade (S), engloba os representantes sociais dentro dos conselhos municipais de saúde (CMS) e do conselho das PCD. Não se pretendeu limitar o estudo a serviços de administração direta, mas sim realizar entrevistas também com atores vinculados aos serviços privados contratualizados sem fins lucrativos.
Para escolha dos serviços, foram listados todos aqueles que, independentemente de seu nível de complexidade, realizavam atendimento às PCD. Compreende-se que, dentro de uma rede de atenção à saúde, os serviços de APS sejam essenciais, uma vez que devem coordenar o cuidado e ser porta de entrada do sistema. Para seleção das Unidades Básicas de Saúde (UBS), foram sorteadas quatro unidades no município polo e uma unidade para cada um dos demais munícios.
Todos os serviços ambulatoriais de reabilitação, de prestação direta ou contratualizados, foram incorporados ao rol de entrevistados. Esta escolha ocorreu em virtude da centralidade desses serviços na rede. Por fim, foi selecionado um único serviço hospitalar de abrangência regional, com o maior número de serviços disponíveis em reabilitação, sendo também um importante hospital-escola.
Os questionários foram tabulados em digitação dupla. Após a análise de consistência da digitação, foi realizada a análise descritiva dos dados utilizando o programa IBM-SPSS-13. Os resultados de questões do tipo Likert são apresentados como a média resultante do conjunto de respostas. Para isso, as respostas possíveis foram traduzidas em números da seguinte forma: “muito alta - 5”, “alta - 4”, “moderada - 3”, “baixa - 2” e “muito baixa - 1”.
Entrevistas semiestruturadas foram transcritas e analisadas através da análise de conteúdo, que é uma das possibilidades de interpretar dados de um texto ou fala, adotando normas com o objetivo de extrair o significado temático ou de seu significado. A análise de conteúdo visa estabelecer relações entre os temas, palavras e/ou ideias, determinando assim uma forma de pesar os sentidos e significados extraídos, a fim de revelar sutilezas contidas no texto (Bardin, 2015BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2015.). Organizaram-se os temas por dimensões e condicionantes da implementação, apresentadas no esquema analítico usado como referência (Quadro 2).
Fragmentos das entrevistas e de documentos foram utilizados para exemplificar as mensagens.
A pesquisa foi submetida à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa e aprovada por meio do parecer nº. 3.441.243 de 5 de julho de 2019.
Resultados e discussão
Foram entrevistados 37 indivíduos, representantes das esferas estadual, regional e municipal, divididos nas categorias de Gestor (46,0%), Prestador (40,5%) e Sociedade (13,5%). Uma instituição filantrópica se recusou a participar do estudo. Os respondentes estavam vinculados a suas respectivas instituições de trabalho/cargo de representação social em média há 11 anos. Entre estes, 70,3% eram do sexo feminino, com média de idade de 45,2 anos. Entre os entrevistados, somente dois eram PCD, ambos representantes do conselho das PCD do município de São José do Rio Preto.
Política
O protagonismo do MS, desde o início do processo de implementação da RCPD, é evidente, orientando as ações desempenhadas pelos demais entes federativos. Sobre a importância para a tomada de decisão, o MS é o principal órgão (média 4,21); entre as organizações, são os estabelecimentos públicos de média e alta complexidade (3,92); e os espaços de tomada de decisão com maior destaque são: grupo condutor da RCPD (4,25), Conselho dos Secretários Municipais de Saúde (Cosems) (4,15) e Comissão Intergestores Regional (CIR) (4,08) (Gráfico 1).
Para Lima et al. (2017LIMA, L. D. de et al. Governance arrangements for specialized assistance in health regions in Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 17, suppl. 1, p. S107-S119, 2017. DOI: 10.1590/1806-9304201700S100006
https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S... ), o protagonismo da governança regional será orientado por aqueles órgãos, organizações e espaços com maior capacidade de influência na condução e organização do sistema de saúde. O modo como é constituída a governança se espelha nas características desses espaços, sua abrangência, decisões, relações entre os atores e estratégias e instrumentos utilizados por eles. Neste sentido, o destaque dado ao grupo condutor condiz com as atribuições a ele conferida pela Portaria nº 793/2012, a saber: implementar diretrizes clínicas e protocolos; e acompanhar as ações de cada componente da RCPD. Uchimura et al. (2017UCHIMURA, L. Y. T. et al. Contributions on the regionalization process in two regions in the Southeast of Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 17, suppl. 1, p. S83-S94, 2017. DOI: 10.1590/1806-9304201700S100005
https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S... ) afirmam que o protagonismo nas regiões de saúde é dado pela estrutura regional da SES, bem como pelos estabelecimentos prestadores de serviços.
As relações dos diferentes níveis da burocracia estatal são essenciais para a tomada de decisão, desta forma as CIR têm atuação central por serem um “espaço oficial, eletivo […] onde a decisão deve acontecer” (G8). Tal posição é compartilhada por Vargas et al. (2015VARGAS, I. et al. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning, Oxford, v. 30, n. 6, p. 705-717, 2015. DOI: 10.1093/heapol/czu048
https://doi.org/10.1093/heapol/czu048... ).
Embates e disputas entre os entes federados são comuns na lógica federalista brasileira, sobretudo na organização das atribuições. Para os entrevistados, é clara a responsabilidade dos municípios pela APS. Para a AE, afirmam que as responsabilidades são compartilhadas, levando à sobreposição de ações ou ao não cumprimento das competências previamente pactuadas.
Existe dificuldade adicional para a implementação das RAS, devido à baixa capacidade administrativa dos municípios. Formuladores e implementadores de políticas locais apresentam resistência e dificuldade em aceitar um nível supramunicipal para acompanhar a gestão das redes (Vargas et al., 2015VARGAS, I. et al. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning, Oxford, v. 30, n. 6, p. 705-717, 2015. DOI: 10.1093/heapol/czu048
https://doi.org/10.1093/heapol/czu048... ).
No caso analisado, a esfera estadual é apresentada como a responsável pela construção do plano regional e pelo diagnóstico da região em conjunto com os municípios. Gestores e prestadores compreendem que a SES se destaca na prestação de serviços para a RCPD por conta da RLM. O ente estadual é protagonista na liderança da construção da RCPD. Seu papel é de destaque sobretudo na CIR: “[…] quem define o que tem que fazer, o que será pactuado, é a CIR, com atuação importante do estado” (G1).
Os estados agem de formas diferentes na liderança do processo de construção das RAS. Estados com liderança fraca atuam diretamente como prestadores de serviços, engajando-se menos na coordenação das redes. Por outro lado, estados fortes orientam a definição dos serviços e do fluxo de pacientes entre os municípios, realizam monitoramento e avaliação, e financiam as redes e os serviços (Vargas et al., 2015VARGAS, I. et al. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning, Oxford, v. 30, n. 6, p. 705-717, 2015. DOI: 10.1093/heapol/czu048
https://doi.org/10.1093/heapol/czu048... ). Estudo de Roese, Gerhardt e Miranda.(2015ROESE, A.; GERHARDT, T. E.; MIRANDA, A. S. de. Análise estratégica sobre a organização de rede assistencial especializada em região de saúde do Rio Grande do Sul. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 107, p. 935-947, 2015. DOI: 10.1590/0103-110420151070525
https://doi.org/10.1590/0103-11042015107... ), no Rio Grande do Sul, demonstra que, embora o estado não tenha operado por meio de incentivos financeiros para a adesão a programas e políticas, atuou como intermediador e avalizador da estratégia ministerial, postura semelhante à encontrada neste estudo.
Conflitos e busca por protagonismo na tomada de decisão são elementos importantes na análise da governança de uma política. O papel do estado nesta região foi estabilizado em dois polos: como prestador de serviços especializados, através da RLM, e como conciliador entre as demandas municipais através do grupo condutor da RCPD. É, portanto, ator central para a rede. Ao nível local, o protagonismo da organização da rede é disputado entre a RLM e as secretarias municipais de saúde. O MS tem presença etérea, pois sua importância é sinalizada pela definição da política e pelo repasse de recursos, mas nos conflitos diários é ausente.
É consenso entre os prestadores de serviços de reabilitação que, se fossem convidados, participariam das discussões de organização da rede junto ao grupo condutor regional. A postura de não levar os prestadores à mesa de discussão potencializa a fragmentação dos serviços. Essa fragmentação pode produzir efeito nefasto para o acesso e cuidado devido à precariedade das estratégias de gestão do setor, tornando o sistema ineficiente e pouco sustentável. Identificar, compreender e criar relações entre gestores e prestadores seria uma oportunidade para acabar com esse processo de fragmentação, otimizar e melhorar a prestação de serviços (Santos; Campos, 2015SANTOS, L.; CAMPOS, G. W. de S. SUS Brasil: a região de saúde como caminho. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 438-446, 2015. DOI: 10.1590/S0104-12902015000200004
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201500... ).
O Conselho de Direitos à Pessoa com Deficiência (CDPCD) e os CMS apresentaram médias de 3,79 e 3,67, respectivamente, em relação a sua importância na tomada de decisão. Representante da sociedade afirma sentir maior necessidade de integração entre o CDPCD a e gestão pública. As PCD não aparecem nos discursos como representantes para a implementação da política e não participam dos espaços de negociação e de tomada de decisão na região.
Organização
Políticas de saúde no Brasil são, em grande parte, elaboradas pelo MS e implementadas nos estados e municípios através de mecanismos de incentivo financeiro. Cabe a estes últimos a organização dos processos de implementação, o planejamento e as pactuações necessárias. É nesta etapa que ganham vida e podem vir a produzir efeitos distintos dos inicialmente previsto.
Quanto ao planejamento, os gestores afirmam que, a partir de 2012, o plano de ação foi construído em um momento em que “[…] havia muito recurso financeiro e muitas habilitações” (G6). Ainda assim, foi um processo de “[…] muita dificuldade em elaborar projetos envolvendo a microrregião, por conta dos limites impostos pelo porte populacional, pelas necessidades de cada serviço e por interesses políticos” (G8).
Na opinião de gestores e prestadores, o Plano de Ação Regional para a RCPD não pactua fluxos assistenciais, definição de vagas, linhas de cuidado e fluxos prioritários para exames de usuários que estejam em acompanhamento na reabilitação. Segundo um gestor, no momento do diagnóstico da capacidade dos serviços, algumas instituições filantrópicas, mesmo sendo pontos de atenção contratualizados pelas prefeituras da região para o atendimento de PCD física e intelectual, foram ignoradas para a composição e o diagnóstico da Rede.
Especificamente para o acesso a serviços de reabilitação, as centrais de regulação operam como entidades de agendamento da primeira avaliação conduzida pelos serviços prestadores. Existem, portanto, duas fases para a regulação assistencial: a primeira é realizada pelas centrais de regulação, disponibilizando vagas para triagem. Nesta fase inicial, não existe priorização para usuários que necessitem de reabilitação precoce. A segunda fase ocorre dentro dos próprios serviços, que retiram os pacientes das filas da central de regulação, realizam avaliações individuais dos casos conforme os critérios de priorização das próprias instituições e criam filas de espera dentro do próprio serviço.
Entre os responsáveis pelas centrais de regulação municipal e regional é consenso que o agendamento das consultas médicas de especialidade e de reabilitação para PCD ocorre sempre a partir de encaminhamento das UBS, via central de regulação. Afirmam desconhecer o tempo de espera para agendamento de avaliação de serviços em reabilitação e as taxas de absenteísmo dos serviços.
Prestadores afirmaram que, para casos em que a reabilitação precoce é priorizada (fraturas, acidente vascular cerebral recente, atraso do desenvolvimento, entre outros), a espera não é maior que um mês. Para casos crônicos, pode chegar a seis meses. Neste quesito a literatura apresenta dados discrepantes, com esperas para casos crônicos variando de um a seis meses (Passalent; Landry; Cott, 2009PASSALENT, L. A.; LANDRY, M. D.; COTT, C. A. Wait times for publicly funded outpatient and community physiotherapy and occupational therapy services: implications for the increasing number of persons with chronic conditions in Ontario, Canada. Physiotherapy Canada, Toronto, v. 61, n. 1, p. 5-14, 2009. DOI: 10.3138/physio.61.1.5
https://doi.org/10.3138/physio.61.1.5... ).
Representantes das instituições filantrópicas, por sua vez, afirmaram que possuem um sistema de regulação próprio, independente dos utilizados no restante da rede. Relataram que os pacientes podem ser encaminhados da própria rede, via UBS ou do CER, mas podem chegar à instituição por indicação de amigos, escola e igrejas. Tais formas de referência não estão pactuadas com as secretarias contratantes, em que está posta a necessidade das guias de referência e contrarreferência reguladas pelos Complexos Regulatórios. “Esta lógica causa problemas para a organização da rede […], uma vez que os filantrópicos não são integrados ao sistema de regulação tanto municipal quanto estadual. São serviços de porta aberta” (G5).
Os serviços filantrópicos não seguem as pactuações dadas pela instância gestora regional, estabelecendo vínculos de prestação de serviços diretamente com as prefeituras, incluindo as de outras regiões de saúde. Há predomínio da lógica de mercado, com foco nas metas de produção e ausência de continuidade do cuidado e responsabilidade territorial sob os usuários. O Estado não consegue transpor estas regras para que os serviços estejam adequadamente inseridos no plano regional de atenção à PCD, inviabilizando a construção de um protocolo único de acesso, ou seja, de uma efetiva regulação.
Reis et al. (2017REIS, A. A. C. dos et al. Reflexões para a construção de uma regionalização viva. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n .4, p. 1045-1054, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017224.26552016
https://doi.org/10.1590/1413-81232017224... ) afirmam que é necessário assentar as instituições filantrópicas sob a subordinação da gestão regional, através de planos dinâmicos de regulação, avaliação e monitoramento. Caberia à filantropia executar papel complementar dentro das políticas públicas de saúde para à pessoa com deficiência e/ou incapacidade, devendo estar submetida a contratos com metas bem definidas, prestação de contas, transparência e processo contínuo de avaliação.
O processo de regulação assistencial não propiciará acesso equânime e integral enquanto operar apenas com parte dos serviços públicos e não atuar sobre os interesses dos serviços privados (Albuquerque et al., 2013ALBUQUERQUE, M. do S. V. de et al. Regulação assistencial no recife: possibilidades e limites na promoção do acesso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 223-236, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000100020
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201300... ). Matthews (2012MATTHEWS, F. Governance and state capacity. In: LEVI-FAUR, D. (Ed.). The Oxford handbook of governance. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 281-293.) demonstra esta situação ao tratar do esvaziamento das ações estatais resultando na perda do controle sobre as políticas públicas como consequência de maiores interações entre atores estatais, mercado e sociedade civil. A falta de estrutura organizativa dos processos de regulação assistencial leva a casos de ocupação de vagas de atendimento em dois ou mais serviços de reabilitação pelo mesmo usuário ao mesmo tempo, o que limita o acesso dos demais usuários.
O principal problema da articulação em rede se encontra na não definição do escopo de atuação de cada serviço de saúde. Esta é uma colocação apresentada em coro pelos prestadores, que afirmam a necessidade de participar dos fóruns de negociação, visando criar fluxos de atendimento adequados às necessidades dos serviços e da população, bem como definir com maior exatidão o escopo de cada serviço.
Apesar da determinação de assistência integral à PCD, a não delimitação das ações e competências específicas dos serviços, assim como a não realização do trabalho de forma multiprofissional, implica no não atendimento efetivo do usuário. Integralidade do cuidado e assistência multiprofissional acabam sendo limitadas à perspectiva idealista (Machado et al., 2018MACHADO, W. C. A. et al. Integralidade na Rede de Cuidados da Pessoa com Deficiência. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 27, n. 3, e4480016, 2018. DOI: 10.1590/0104-07072018004480016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018004... ).
Cada ponto de atenção atua de forma predominantemente independente e desarticulada da rede. São poucos os espaços de discussão e integração das equipes da APS com a AE, que ocorre sobretudo em reuniões técnicas em que “[…] sobra algum tempo” (P2) para discutir casos específicos de alguns poucos usuários.
Os mecanismos utilizados para integração sistêmica encontrados são divididos em duas categorias. A primeira se dá por meio de mecanismos formais, tais como fichas de referência e contrarreferência e reuniões de equipe; e a segunda por processos informais. Neste caso ocorre integração quando um mesmo profissional de saúde trabalha em dois serviços distintos e/ou através de contatos pessoais, por meio de aplicativos de mensagem. A integração depende de esforços mútuos entre os pontos de atenção e dos esforços dos profissionais (Vargas et al., 2015VARGAS, I. et al. Regional-based Integrated Healthcare Network policy in Brazil: from formulation to practice. Health Policy and Planning, Oxford, v. 30, n. 6, p. 705-717, 2015. DOI: 10.1093/heapol/czu048
https://doi.org/10.1093/heapol/czu048... ). Estes agentes detêm poder suficiente para modular a implementação de uma política pública e, por consequência, alterar os resultados para os usuários (Lipsky, 1983LIPSKY, M. Street level bureaucracy: dilemmas of the individual in public services. New York: Russell Sage Foundation, 1983.). A fala a seguir exemplifica a ideia:
Não existe integração que realmente funcione […] começa pela atenção básica, a gente vê é uma atenção básica com apoio dos NASF [Núcleos Ampliados de Saúde da Família], em que os profissionais que estão no NASF fazem do jeito que elas querem fazer e que não existe uma pessoa que realmente consiga coordenar a gestão nos NASF para fazer de uma forma que seja realmente coordenada igual e realmente com uma integração entre todos. (P10)
Continuidade do cuidado, como uma forma de potencializar o cuidado em saúde através do vínculo entre usuário, profissionais e serviços, é referida predominantemente como inexistente. Esta responsabilidade recai majoritariamente sobre o usuário: “Após a alta, deixamos a porta aberta para os deficientes físicos, temos oficinas aqui para eles, eles estão aqui ainda. Mas aí ele já não é nosso [paciente], não está nas nossas metas. Ele está usando o espaço e só” (P9).
Outro prestador afirma que: “O que acontece é que a gente devolve para a APS [os pacientes], para não ficar aqui no serviço ocupando a vaga de quem poderia ter maior benefício. Mas eles acabam retornando para cá. Ninguém olha para eles na APS” (P10).
Falta de diálogo entre os prestadores e gestores cria conflitos. Estes ocorrem, principalmente, com os serviços filantrópicos contratualizados, devido aos protocolos rígidos que constroem para inclusão de usuários dentro serviço. As instituições filantrópicas que fazem o acompanhamento de usuários com deficiência física tentam definir o perfil dos usuários atendidos, não em função das necessidades de saúde da população, mas em torno da construção histórica do serviço. Exemplo disso surge no discurso de um prestador dessas instituições no qual diz que
[…] tem que ter deficiência na escala de avaliação psicológica, tem que ter deficiência leve, moderada ou severa, é o primeiro passo, então se você dentro da escala tiver no nível de limítrofe, não sendo considerado deficiente e não sendo considerado normal, nós já não atendemos […]. Para a instituição a gente só traz pessoa com deficiência neurológica, ele pode ter deficiência física, não tem problema nenhum, mas se ele tiver deficiência física e não tiver deficiência neurológica ele não vem para cá, só entra deficiência neurológica, com física ou não, síndromes ou não. (P2)
Outro serviço afirma que o perfil de seus atendimentos não foi pactuado com os municípios que o contrataram, levando a conflitos entre a gestão municipal e a entidade.
O foco é de pacientes neurológicos. Nós não atendemos pacientes com síndrome de Down, ele não corresponde à terapia; paciente com autismo, a gente não tem experiência […] por mais que tenha deficiência física, a gente não tem essa experiência, essa expertise. Está claro para nós, para a Secretaria de Saúde não sei dizer […]. (P1)
As instituições filantrópicas têm regras próprias para entrada de usuários, assim como a Rede Lucy Montoro também as tem. O Estado não consegue traspor estas regras para que os serviços estejam contemplados dentro do plano regional de atenção à PCD, o que dificulta a construção de um protocolo único de acesso, como os gestores dos municípios e da regional gostariam que existisse.
A lógica existente para a construção da RCPD na região de saúde de SJRP é construída nos equipamentos e serviços existentes, em suas peculiaridades e seus fluxos próprios de atendimento. Trata-se de um modelo no qual a oferta é estruturante, e não a demanda e as necessidades de saúde das PCD. A institucionalização de instrumentos de pactuação, contratos de gestão e de organização regional são necessários. É fundamental que se estabeleçam
[…] instrumentos oficiais de pactuação regional inclusive com o município central […]. Oficialmente ela não tem um monitoramento sistemático, é dependente da mobilização dos municípios […]. O gestor não consegue entender que existe um mérito por parte do município em fazer a pactuação […] não consegue compreender as questões da construção de redes regionais. Ele não consegue entender que é uma estratégia de garantir acesso à população dele. (G7)
O agenciamento contratual de estabelecimentos privados - e, como demonstrado aqui também, de estabelecimentos públicos como a RLM - para a prestação de serviços públicos deveria requerer a garantia dos termos, ou seja, os instrumentos de gestão e de prestação de serviços devem ser condizentes e coerentes com os princípios e diretrizes constitucionais do contrato social vigente e das políticas públicas. De forma contrária, podem incidir diferenças na definição dos modos de seu funcionamento, sua prestação de serviços e sua avaliação (Miranda, 2017MIRANDA, A. S. Institucionalidades jurídicas e administrativas de estabelecimentos de saúde nas regiões do Brasil. Novos Caminhos, [s.l.], n. 16, p. 3-114, 2017.).
Estrutura
A região de saúde conta somente com um CER habilitado em reabilitação física e intelectual. Ao serem questionados quanto à existência de demanda por mais CER, 86,67% dos entrevistados responderam positivamente. Entre os serviços que compõem a RCPD, somente a atenção especializada em reabilitação visual e os centros de especialidade odontológica foram considerados suficientes por mais de 50% dos respondentes (Gráfico 2).
Representantes da sociedade afirmam que há necessidade de mais serviços de reabilitação na maioria dos municípios. Os menores não dispõem de serviços e pouco suprem a demanda através de consórcios ou pactuações com o município polo ou o estado. Porosidades na oferta de serviços apontam problemas nas redes intermunicipais de assistência à saúde. As desigualdades territoriais na oferta de serviços de saúde refletem discrepâncias no nível de desenvolvimento social e econômico e indicam limitações no planejamento de políticas públicas e na distribuição de recursos para a população (Rodrigues; Amaral; Simões, 2007RODRIGUES, C. G.; AMARAL, P. V. M. do; SIMÕES, R. F. Rede urbana da oferta de serviços de saúde: uma análise multivariada macro regional - Brasil, 2002. Revista de Desenvolvimento Econômico, Salvador, v. 9, n. 16, p. 83-92, 2007.).
Distribuição territorial não uniforme entre os serviços, escassez da oferta e concentração em municípios polo das regiões de saúde se refletem em desigualdades territoriais. Estas criam elevado grau de dependência regional em relação a municípios polo, impactam na distribuição de poder e ampliam conflitos intergovernamentais e nos arranjos de governança regional. Tais fatores seriam exemplificados através da disputa por recursos humanos e financeiros e pelo grau de influência dos prestadores (Lima et al., 2017LIMA, L. D. de et al. Governance arrangements for specialized assistance in health regions in Brazil. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 17, suppl. 1, p. S107-S119, 2017. DOI: 10.1590/1806-9304201700S100006
https://doi.org/10.1590/1806-9304201700S... ).
Centros de reabilitação estão concentrados em áreas urbanas, dificultando o acesso para moradores do interior. A necessidade de viajar constantemente para obter tratamentos de reabilitação pode ser caro, demorado e extenuante, fatores que são potencializados pela falta de adaptação do transporte público. A implantação de serviços em municípios de baixa densidade populacional é dificultada pela indispensabilidade de certo grau de densidade tecnológica, que se concentra nas grandes cidades. Ainda assim, a integração entre os serviços de APS, AE e reabilitação, todos próximos à residência do usuário, potencializaria sua recuperação (WHO, 2011WHO - World Health Organization. World report on disability 2011. Geneva, 2011.).
A baixa suficiência de recursos humanos é destacada no Gráfico 3.
Somente profissionais de enfermagem foram considerados suficientes para mais de 50% dos respondentes. É notável, ainda, que até 35,7% dos entrevistados afirmaram não saber responder à pergunta. Estudo sobre a implementação da RCPD no Rio Grande do Sul encontrou baixo número de profissionais para atender a este público, destacando que a contratação destes, principalmente em municípios de pequeno porte, esbarra na burocracia estatal, falta de recursos financeiros e infraestrutura precária (Dubow; Garcia; Krug, 2018DUBOW, C.; GARCIA, E. L.; KRUG, S. B. F. Percepções sobre a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência em uma Região de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 117, p. 455-467, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811709
https://doi.org/10.1590/0103-11042018117... ). Em Minas Gerais, 17,7% dos equipamentos de saúde prestadores de serviço especializados para pessoas com deficiência e/ou incapacidade contam com uma equipe mínima adequada (Escarce et al., 2017ESCARCE, A. G. et al. Implementação de um projeto de avaliação da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 29, n. 4, p. 772-781, 2017. DOI: 10.23925/2176-2724.2017v29i4p772-781
https://doi.org/10.23925/2176-2724.2017v... ).
Mecanismos de acessibilidade são indispensáveis para permitir a participação e a busca por cuidado da PCD. Existe disponibilidade de matérias em braile para 25% dos entrevistados, mas recursos de audiodescrição e intérprete de Libras não existem (58,3%). O município de São José do Rio Preto disponibiliza intérprete de Libras para a comunidade surda no acompanhamento em consultas e exames. Segundo representante da sociedade, esse acompanhamento é essencial, uma vez que a barreira linguística é um problema recorrente. Afirma ainda que, quando o intérprete não pode estar presente nas consultas, são feitas chamadas por WhatsApp para facilitar a comunicação. O município tem, ainda, ofertado ensino de Libras para profissionais de saúde, com a expectativa de ao menos um profissional por unidade estar apto a esta forma de comunicação.
Em relação ao transporte, cada município é responsável pela organização de forma independente, sem interferência das esferas regionais e estaduais. Como o usuário com deficiência requer tratamento contínuo, prolongado e geralmente mais de uma vez por semana, este serviço é essencial, sobretudo com a concentração dos serviços de saúde no município polo da região.
Gestores afirmam que em municípios menores não existe carro adaptado para pacientes cadeirantes, sendo necessário recorrer à “ambulância-terapia”. Esta é uma das formas encontradas para o deslocamento por grandes distâncias, sobretudo para o polo da região ou ainda para referências estaduais. A falta de transporte sanitário pode levar à perda de consultas, ao atraso no cuidado e à dificuldade de obtenção de medicamentos. Trata-se de uma barreira central para o acesso aos serviços de saúde, sobretudo para pessoas com menor renda e para as que têm maiores necessidades de saúde. Tais problemas levam a pior manejo de doenças crônicas (Syed; Gerber; Sharp, 2013SYED, S. T.; GERBER, B. S.; SHARP, L. K. Traveling towards disease: transportation barriers to health care access. Journal of Community Health, Amsterdam, v. 38, n. 5, p. 976-993, 2013. DOI: 10.1007/s10900-013-9681-1
https://doi.org/10.1007/s10900-013-9681-... ).
Considerações finais
O referencial teórico utilizado possibilita compreender a implementação da RCPD com olhar ampliado. A sobreposição de serviços de agenciamento distinto - prestação por entidades filantrópicas, empresas privadas contratadas, órgãos públicos municipais e públicos estaduais -, aliada à implementação do CER e da RLM, conforma uma construção histórica que pode ser extrapolada para parte do território nacional (Miranda, 2017MIRANDA, A. S. Institucionalidades jurídicas e administrativas de estabelecimentos de saúde nas regiões do Brasil. Novos Caminhos, [s.l.], n. 16, p. 3-114, 2017.). Estas rugosidades carregam legados históricos de realizações passadas e atestam marcas culturais, sociais e econômicas, interconectando o presente e o passado.
Os resultados apresentados expõem problemas persistentes na implementação da RCPD, que podem se manifestar como uma expressão das desigualdades vivenciadas pelas PCD e são consistentes com outras dificuldades encontradas na literatura como: falta de dados epidemiológicos consistentes (WHO, 2011WHO - World Health Organization. World report on disability 2011. Geneva, 2011.), baixa cobertura de serviços de reabilitação (Kuper; Hanefeld, 2018KUPER, H.; HANEFELD, J. Debate: can we achieve universal health coverage without a focus on disability? BMC Health Services Research, London, v. 18, n. 1, p. 738, 2018. DOI: 10.1186/s12913-018-3547-2
https://doi.org/10.1186/s12913-018-3547-... ), fragmentação e coordenação ineficiente do sistema de saúde, falta de continuidade no cuidado (Geberemichael et al., 2019GEBEREMICHAEL, S. G. et al. Rehabilitation in Africa. Physical Medicine and Rehabilitation Clinics of North America, Amsterdam, v. 30, n. 4, p. 757-768, 2019. DOI: 10.1016/j.pmr.2019.07.002
https://doi.org/10.1016/j.pmr.2019.07.00... ), de recursos financeiros, de força de trabalho e de capacitação profissional (Thomas; Tharion, 2019THOMAS, R.; THARION, G. Rehabilitation in South India. Physical Medicine and Rehabilitation Clinics of North America, Amsterdam, v. 30, n. 4, p. 817-833, 2019. DOI: 10.1016/j.pmr.2019.07.011
https://doi.org/10.1016/j.pmr.2019.07.01... ).
Ainda que apresentadas separadamente, as dimensões analisadas - Política, Organização e Estrutura - conformam uma tríade de fatores que, somente sobrepostas, podem apresentar os desafios e condicionantes da implementação da RCPD na região de saúde estudada.
Os prestadores filantrópicos, por sua importância histórica no cuidado das PCD, detêm parte considerável dos recursos físicos e humanos para a prestação de serviços, além do apreço popular. Estes fatos lhes conferem poder político e decisório - não dentro das instâncias formais de decisão do Estado, mas sim nos processos informais -, evidenciado pela necessidade de contratação de seus serviços e por exercerem poder regulatório de suas ações independente das ações pactuadas. Além disso, decidem quem poderá ter acesso a seus serviços, não respeitando fluxos existentes.
A existência em paralelo de serviços de agenciamento em reabilitação públicos e filantrópicos contratualizados distintos cria empecilhos no processo de regulação assistencial e na definição do escopo de cada serviço. A inexistência de um sistema de regulação assistencial único para a RCPD é um dos principais entraves para a organização dos serviços.
Os vazios assistenciais não são somente evidenciados no nível territorial, são também criados pela especificidade de cada serviço. A estrutura dos serviços de reabilitação da RCPD, com exceção do CER, não foi construída com foco no atendimento às necessidades populacionais, e sim através da contratação de serviços disponíveis no território. Ações realizadas por serviços públicos, com gestão direta ou por organizações sociais, são orientadas para se encaixarem dentro do sistema, mesmo que de forma pouco organizada.
As desigualdades podem se manifestar de diferentes formas, neste caso, ela começa pela falta de representatividade de PCD entre os entrevistados. Ao estudar o caso da implementação da RCPD em uma região de saúde, optou-se por entrevistar os indivíduos que ocupam os cargos dentro das categorias analisadas. Ainda que este seja uma importante limitação do estudo, não haver PCD em posições de tomada de decisão é sintomático de uma política que tem dificuldades de se concretizar na vida real. Ao não propiciar a participação desta população nestes espaços de decisão, suas necessidades de saúde podem não ser pautadas e não se transformar em políticas condizentes.
Novos estudos referentes à RCPD, visando aprofundar o a compreensão da implementação e sua efetividade, são necessários. Não obstante, os resultados apresentados deixam claros alguns dos desafios para que a proposta política da RCPD consiga se efetivar.
Agradecimentos
A todos entrevistados na pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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- 1Este artigo recebeu financiamento MS-SCTIE-DECIT/CNPQ nº 442801/2018-1. O autor Bousquat é bolsista de produtividade do CNPq.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
07 Ago 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
12 Out 2022 - Revisado
12 Out 2022 - Aceito
03 Dez 2022