Práticas corporais e o tratamento interdisciplinar de pessoas com fibromialgia: a dádiva do cuidado11Aprovado no CEP - HUPE, com o seguinte certificado de apresentação para Apreciação Ética (CAAE : 25727419.0.0000.5259. O presente trabalho contou com apoio financeiro da FAPERJ para sua realização. Número do processo da FAPERJ: E-26/202.219/2018 - Bolsa. Número de matrícula: 2018.03555.4.

Leonardo Hernandes de Souza Oliveira Alan Camargo Silva Wecisley Ribeiro do Espírito Santo Rafael da Silva Mattos Sobre os autores

Resumo

A fibromialgia é uma síndrome reumática caracterizada por dor musculoesquelética crônica e difusa que apresenta desafios diagnósticos e terapêuticos à racionalidade médica ocidental. Estudos ressaltam o papel do tratamento interdisciplinar (TI) e das práticas corporais de saúde (PCS) em termos de cuidado em saúde e acolhimento. Os atos de dar, receber e retribuir dádivas simbólicas de cuidado fornecem sociabilidade, reconhecimento e legitimidade no campo da saúde. O objetivo deste artigo é compreender o TI e as PCS como um sistema de troca de dádivas de cuidado em saúde que se estabelece entre pessoas diagnosticadas com fibromialgia e profissionais de saúde. Trata-se de um estudo qualitativo realizado mediante aplicação de entrevista aberta e observação em campo com oito pessoas diagnosticadas com fibromialgia e questionário semiaberto com nove profissionais de saúde. A Análise do Conteúdo resultou na construção de uma categoria temática: “O ciclo da tripla obrigação da dádiva do cuidado em saúde”. A constituição da dádiva no processo de cuidado em saúde ocorreu mediante um deslocamento afetivo-terapêutico ao próximo, dom da hospitalidade e dom do reconhecimento. Em síntese, foi possível perceber a relevância do TI e das PCS como circuitos de reciprocidade capazes de construir novos usos sociais do corpo nas instâncias sociais da vida.

Palavras-chave:
Fibromialgia; Práticas Corporais de Saúde; Tratamento Interdisciplinar; Dádiva; Cuidado em Saúde

Introdução

A fibromialgia é uma síndrome reumática caracterizada por dor musculoesquelética crônica e difusa, por inúmeros sintomas associados, de origem desconhecida e que atinge predominantemente as mulheres (Able; Robinson; Kroenke, 2016ABLE, S. L.; ROBINSON, R. L.; KROENKE, K. Variations in the management of fibromyalgia by physician specialty: rheumatology versus primary care. Pragmatic and Observational Research, Washington, DC, v. 7, p. 11-20, 2016. DOI: doi: 10.2147/POR.S79441
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). De acordo com Marques et al. (2017MARQUES, A. P. et al. A prevalência de fibromialgia: atualização da revisão de literatura. Revista Brasileira de Fibromialgia, São Paulo, v. 57, n. 4, p. 356-363, 2017. DOI: 10.1016/j.rbr.2016.10.004
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), a literatura aponta valores de prevalência da fibromialgia na população entre 0,2 e 6,6%, em mulheres entre 2,4 e 6,8%, nas áreas urbanas entre 0,7 e 11,4%, nas rurais entre 0,1 e 5,2% e em populações especiais entre 0,6 e 15%.

A síndrome faz parte de uma classe de desordens que apresenta desafios diagnósticos e terapêuticos significativos à medicina, pois a sua etiopatogênese ainda não está muito clara à luz de uma clínica hegemonicamente caracterizada por excesso de objetividade. O sistema biomédico, apesar dos inúmeros avanços, apresenta dificuldades diante de uma síndrome caracterizada pela ausência de substrato anatômico na sua etiologia e que se somatiza na forma de dor (Mattos, 2015MATTOS, R. S. Fibromialgia: o mal-estar do século XXI. São Paulo: Phorte, 2015.).

Sendo assim, a dor crônica da fibromialgia requer uma análise contextual que leve em consideração a história de vida das pessoas, pois sua expressão clínica varia em termos sociais, psicológicos, culturais e ambientais. O aumento do número de casos, a cronicidade, o desconhecimento das causas que a originam, a incapacidade proporcionada e as relações constrangedoras experimentadas em diversos âmbitos sociais nos quais a síndrome não é legitimada sugerem a necessidade de uma relevância, tanto médica quanto social, no processo terapêutico (Martinez et al., 2017MARTINEZ, J. E. et al. EpiFibro (Registro Brasileiro de Fibromialgia): dados sobre a classificação do ACR e preenchimento dos critérios diagnósticos preliminares e avaliação de seguimento. Revista Brasileira de Reumatologia, São Paulo, v. 57, n. 2, p. 129-133, 2017. DOI: 10.1016/j.rbre.2016.09.012
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; Souza; Laurenti, 2017SOUZA, B.; LAURENTI, C. Uma interpretação molar da dor crônica na fibromialgia. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 37, n. 2, p. 363-377, 2017. DOI: 10.1590/1982-3703001102016
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).

Diante desse complexo contexto sociodemográfico e clínico, defende-se aqui a relevância de estudos de caráter antropológico sobre o tema. Em primeiro lugar, o exercício investigativo básico do campo antropológico de alteridade pode fornecer outras compreensões acerca do quadro sintomático que provoca incapacidade funcional, impacto negativo na qualidade de vida e dificuldade de reinserção social (Beyazal et al., 2018BEYAZAL, M. S. et al. The impact of fibromyalgia on disability, anxiety, depression, sleep disturbance, and quality of life in patients with migraine. Noro Psikiyatri Arsivi, Washington, DC, v. 55, p. 140-145, 2018. DOI: 10.5152/npa.2016.12691
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). Em segundo lugar, pesquisas antropológicas podem revelar como, por vezes, a pessoa não é respeitada por conta de seu adoecimento, gerando um estado de revolta em relação à saúde do próprio corpo (Mattos, 2019MATTOS, R. S. Dor crônica e fibromialgia: uma visão interdisciplinar. Curitiba: CRV , 2019.). Em terceiro lugar, ainda sobre a importância da compreensão antropológica, argumenta-se que, apesar de a dor crônica ser um dos principais motivos de busca por consultas médicas e terapêuticas (Le Breton, 2013LE BRETON, D. Antropologia da dor. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2013.), a fibromialgia dificulta a relação das pessoas diagnosticadas com seus corpos e saúde justamente pela hegemonia da lógica ou explicação da racionalidade médica (Mattos, 2019MATTOS, R. S. Dor crônica e fibromialgia: uma visão interdisciplinar. Curitiba: CRV , 2019.).

Nesse contexto, o presente trabalho fundamenta-se no clássico referencial de Marcel Mauss (2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.) acerca da teoria da dádiva, argumentando que os atos de dar, receber e retribuir bens simbólicos de cuidado podem fornecer reconhecimento e legitimidade ao processo saúde-doença da fibromialgia. Nesse sentido, alinha-se ao pressuposto do fato social total, que sustenta uma apreensão simbólica e subjetiva da realidade, em que o social existe quando integrado em sistemas de interpretações tridimensionais, ligando o social ao sujeito, ao físico e também ao psicológico.

A partir do sociólogo Alain Caillé (2002CAILLÉ, A. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes , 2002., 2014CAILLÉ, A. Dádiva, care e saúde. Sociologias, Porto Alegre, v. 16, n. 36, p. 42-59, 2014.), um dos autores contemporâneos que problematiza a dádiva a partir do ponto de vista maussiano, aponta-se a possibilidade de articular tais discussões com a Educação Física e o campo da saúde. Para o autor, a teoria da dádiva excede, por sua dimensão simbólica, a dimensão utilitária e funcional dos bens e serviços e dos seres humanos. Mauss (2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.) pensou a dádiva a fim de se aproximar de uma perspectiva simbólica, das palavras e dos gestos, sempre na contramão do utilitarismo, pois as sociedades tradicionais por ele estudadas não estruturam suas trocas materiais e imateriais a partir do mercado, mas do ciclo simbólico de tripla obrigação.

Destaca-se, portanto, que os pressupostos teóricos maussianos se alinham ou contribuem efetivamente para a intervenção interdisciplinar tão preconizada no tratamento biopsicossocial da fibromialgia. Essa intervenção interdisciplinar tem o sentido de aproximação/entrelaçamento de diferentes saberes e disciplinas, como Educação Física, Enfermagem, Medicina e Psicologia e surge como um fator chave para o controle do quadro sintomático e melhora da qualidade vida dos acometidos, além de possibilitar aos pacientes melhor compreensão da complexidade do seu estado de saúde em termos sociais, fisiológicos e psicológicos (Berardinelli; Brito; Miranda, 2019BERARDINELLI, L. M. M.; BRITO, I. S.; MIRANDA, N. A. C. G. Empoderamento, interdisciplinaridade e pesquisa-ação participativa no cuidado a pessoas que vivenciam fibromialgia e suas famílias. In: MATTOS, R. S. Dor crônica e fibromialgia: uma visão interdisciplinar. Curitiba: CRV, 2019. p. 269-284.).

Nessa direção, práticas corporais de saúde caracterizam-se por exercícios físicos dentro de uma proposta de tratamento coletiva interdisciplinar que compreende o movimento humano dotado de significação sociocultural, necessidades, desejos, vínculos, acolhimento e cuidado em saúde, na esteira de valores que superam a noção biologicista de saúde e que ressaltam a relação entre movimento humano e cultura. Trata-se de ações sociais estratégicas elaboradas por pessoas diagnosticadas com fibromialgia no enfrentamento do sofrimento e adoecimento proporcionados pela síndrome (González, 2015GONZÁLEZ, F. J. Práticas corporais e o sistema único de saúde: desafios para a intervenção profissional. In; GOMES, I. M.; FRAGA, A. F.; CARVALHO, Y. M. (Org.). Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegra: Rede Unida, 2015. p. 135-162.; Mattos, 2015MATTOS, R. S. Fibromialgia: o mal-estar do século XXI. São Paulo: Phorte, 2015.; Oliveira et al., 2017OLIVEIRA, L. H. S. et al. Práticas corporais de saúde para pacientes com fibromialgia: acolhimento e humanização. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1309-1332, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000400023
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).

Ante o exposto, parte-se da seguinte questão norteadora: o tratamento interdisciplinar para pacientes com fibromialgia e as práticas corporais de saúde constituem um sistema de troca de dádivas simbólicas (cuidado em saúde) que se estabelece entre as pessoas diagnosticadas e os profissionais de saúde? Tomando como base esse questionamento, o objetivo do presente estudo foi compreender o tratamento interdisciplinar e as práticas corporais de saúde para pessoas com fibromialgia a partir dessa perspectiva.

Metodologia

Este estudo, de caráter qualitativo, foi desenvolvido no âmbito do Projeto “Tratamento Interdisciplinar para pacientes com fibromialgia” (TIF), que pertence ao Programa de extensão “Práticas Corporais de Saúde”. O TIF foi fundado em 2000, com a intenção de oferecer terapêutica não medicamentosa gratuita a pessoas com fibromialgia, tendo atendido, desde então, mais de 500 mulheres. Além dessa proposta, existem outras intenções específicas: contribuir para a redução das limitações impostas pela fibromialgia, aprimorar valências físicas e capacidade funcional, diminuir a tensão muscular, criar e/ou consolidar hábitos da prática de atividade física regular e colaborar para o aumento da autoestima.

Existem três fases no Projeto, com três meses de duração cada: Adaptação, Transição e Convivência. Nas diferentes fases do Projeto, as pessoas participam de duas sessões semanais de exercícios físicos aeróbios, de força e de flexibilidade, supervisionados por professores de Educação Física (todas as fases), orientação nutricional quinzenal (todas as fases), terapia psicológica em grupo semanal (Transição e Convivência) e “Grupo Interdisciplinar” semanal de educação em saúde com profissionais da educação física, nutrição, Psicologia, medicina e enfermagem (Adaptação).

Para a composição do universo empírico, foram selecionadas pessoas diagnosticadas com fibromialgia (P) e profissionais de saúde (PS) entre os anos de 2019 e 2020. Os critérios de inclusão do estudo foram o ingresso e participação nos grupos de Adaptação e Transição do TIF, por parte das pessoas com fibromialgia, no ano de 2019 e o envolvimento nas ações interdisciplinares do Projeto, por parte dos profissionais de saúde. O grupo de estudo do presente trabalho foi composto por oito pessoas diagnosticadas com fibromialgia e nove profissionais de saúde. Os perfis dos sujeitos da pesquisa, em termos de idade, sexo, escolaridade, atuação profissional, estado civil e ocupação/profissão constam nos Quadros abaixo.

Quadro 1
Perfil dos profissionais de saúde

Quadro 2
Perfil das pessoas com fibromialgia

O material empírico foi realizado por meio de entrevista aberta em profundidade com pessoas diagnosticadas com fibromialgia, questionário semiaberto com profissionais de saúde (professores de Educação Física, Nutricionista, Enfermeiras e Psicólogas) envolvidos com o tratamento interdisciplinar do Projeto e observação durante o trabalho de campo. Em síntese, houve a triangulação de técnicas, a partir de entrevista aberta, questionário semiaberto e observação em campo, como também de dados derivados de diferentes pesquisados, o que pode potencializar o desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa (Farmer et al., 2006FARMER, T. et al. Developing and implementing a triangulation protocol for qualitative health research. Qualitative Health Research, Washington, DC, v. 16, n. 3, p. 377-394, 2006. DOI: 10.1177/1049732305285708
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).

No total, foram realizadas 16 entrevistas abertas, duas vezes com cada pessoa com fibromialgia. As entrevistas ocorreram em dois momentos diferentes: na passagem da turma de Adaptação para a de Transição e da de Transição para a de Convivência. Dessa forma, os relatos contextualizaram de forma precisa as mais variadas vivências no tratamento interdisciplinar. Todas as entrevistas tiveram duração entre 50 e 60 minutos, foram gravadas com auxílio de um smartphone, com o consentimento de todas as participantes do estudo, e transcritas para fins de análise. Tal estratégia metodológica das entrevistas possibilita compreender a realidade dos interlocutores em seu mundo vivencial (Gaskell, 2010GASKELL, G. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G. (Org.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes , 2010. p. 64-89.).

Já os profissionais responderam um questionário semiaberto (Google Forms) em uma única oportunidade, composto por cinco partes com perguntas fechadas e abertas, que durava em torno de 12 minutos: dados sociodemográficos; tratamento interdisciplinar para pacientes com fibromialgia; atuação profissional; dor crônica e saúde; e as demandas dos pacientes. Esse tipo de instrumento com questões fechadas e abertas garante não somente maior objetividade nas respostas, como também uma maior liberdade de resposta aos participantes do estudo (Goldenberg, 2004GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. Rio de Janeiro: Record, 2004.).

Destaca-se também que houve observação em campo durante as práticas corporais da Educação Física em duas sessões de uma hora, às terças e quintas. O pesquisador desenvolveu a observação em campo nas diferentes fases do TIF, nos meses de junho e julho (adaptação), setembro e outubro (transição) e novembro e dezembro (convivência), no ano de 2019, de forma participante, interagindo e estabelecendo eventuais diálogos com as pessoas com fibromialgia e com os professores de Educação Física do local, no sentido de Becker (1997BECKER, H. Métodos de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1997., p. 47):

observa as pessoas que está estudando para ver as situações com que se deparam normalmente e como se comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou com todos os participantes desta situação e descobre as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que observou.

O pesquisador responsável pela observação em campo é um professor de Educação Física, ex-estagiário do TIF entre os anos de 2011-2014 e atualmente professor colaborador do laboratório em que o TIF está inserido (Laboratório de Fisiologia Aplicada à Educação Física - Lafisaef). Trata-se de uma pessoa com histórico de convivência com profissionais, pacientes e coordenadores do TIF, além de envolvimento com pesquisas desenvolvidas anteriormente no âmbito do Projeto. Nesse sentido, foi necessário exercitar o processo de reflexividade durante o trabalho de campo, como proposto por Beaud e Weber (2007BEAUD, S.; WEBER, F. Guia para a pesquisa de campo: produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis: Vozes, 2007.).

A análise de dados selecionada para tratar os relatos captados por meio das entrevistas abertas em profundidade e do questionário semiaberto foi a análise do conteúdo (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.). Esse tipo de análise permite a construção de categorias a partir das seguintes etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos. Em síntese, a análise categorial, também conhecida como temática, consiste em compreender os núcleos de sentidos que compõem o processo comunicativo, em que a frequência das enunciações permite a identificação de uma estrutura de encadeamentos simbólicos constitutivos de regularidades discursivas.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Universitário Pedro Ernesto com o seguinte certificado de apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 25727419.0.0000.5259.

Resultados e discussão

A seção resultados e discussão será desenvolvida com base na categoria que emergiu do processo de análise: “o ciclo da tripla obrigação da dádiva do cuidado em saúde“, sob a ótica das pessoas com fibromialgia, bem como dos profissionais do TIF, como poderá ser visto a seguir.

O ciclo da tripla obrigação da dádiva do cuidado em saúde

O ato de dar, receber e retribuir dádiva envolve um paradoxo que inclui liberdade e obrigação. Primeiramente, a doação de uma dádiva promove uma relação assimétrica, pois institui uma dívida do donatário perante o doador. Tal dívida proporciona uma retribuição da dádiva recepcionada e envolve obrigação, pois não se dá coisa alguma a qualquer pessoa, em um momento aleatório ou de qualquer forma, sendo os momentos e as formas da dádiva socialmente instituídos. Entretanto, é na espontaneidade e liberdade do ato que as trocas adquirem sentido. Assim, o ciclo da tripla obrigação é a determinação que atua como liberdade nos movimentos de dar, receber e retribuir (Caillé, 2002CAILLÉ, A. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes , 2002.).

Destaca-se que o cuidado entendido como dádiva significa a promoção de uma mediação que se distancia das relações estereotipadas, verticalizadas e hospitalares entre profissionais e usuários de saúde. Trata-se da necessidade de se compreender que o campo da saúde requer um engajamento dos profissionais habilitados em estabelecer o processo de cuidado efetivamente com o outro. Nessa direção, entende-se que a perspectiva relacional da dádiva se torna presente na circulação das trocas simbólicas que atuam no processo interativo com os usuários (Martins, 2011MARTINS, P. H. Dom do reconhecimento e saúde: elementos para entender o cuidado como mediação. In: PINHEIRO, R.; MARTINS, P. H. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, 2011. p. 39-50.).

Destarte, detectou-se que as ações de saúde do TIF ocorreram por meio de um deslocamento ao próximo, a partir do ato de dar ou fornecer dádivas de cuidado em saúde como, por exemplo, no caso abaixo:

A primeira coisa que eu recebi quando pisei aqui no Programa foi o carinho, na verdade isso já acontecia antes mesmo de eu entrar por parte da professora responsável, ela ligou para mim várias vezes. Eu falava para minha filha! Não é possível, tem um lugar que a pessoa te liga, que sabe seu nome, eu preciso conhecer ela, ai ela marcou tudo direitinho. (P1)

O que uma simples conversa por telefone tem a ver com a doação e recepção de dádivas? Conhecer a situação social da família dos pacientes, acompanhar a evolução do quadro clínico e até mesmo saber o nome da pessoa atendida são possibilidades de ingressar no circuito das dádivas simbólicas em que a reciprocidade atua como oportunidade de gerar vínculos sociais.

A partir de Moreira (2010MOREIRA, M. C. N. Dimensões do associativismo voluntário no cenário das relações entre saúde, pobreza e doença. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 917-924, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000300035
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), aspectos básicos em uma relação de cuidado são considerados dádivas simbólicas quando reativam a sociabilidade, reconstroem vínculos e reduzem distâncias entre profissionais e usuários de saúde, em ambientes que se encontram esgarçados socialmente, como é o caso dos espaços de tratamento das pessoas com fibromialgia. Trata-se da construção de vínculos sociais em um processo de cuidado, pois, na teoria da dádiva, a reciprocidade é fundamento da sociabilidade (Lopes, 2021LOPES, J. A. V. A teoria integracionista de Marcel Mauss. Sociologias, Porto Alegre, n. 58, p. 360-387, 2021.). A reciprocidade possibilita o deslocamento do profissional de saúde em direção à pessoa com fibromialgia e a retribuição (contradádiva) dessa pessoa a partir de seu ingresso nas ações e serviços do TIF.

A retribuição/contradádiva ocorreu no momento em que houve uma insistência, por parte da profissional do TIF, na importância do ingresso da pessoa com fibromialgia:

Eu não acreditava, pelas ligações e também pelo carinho, como é um tratamento…porque se eu não for no médico ele não está nem aí para mim, dane-se! Ela não, ela ficou e continuou naquela insistência, eu ligava para ela e ela mesmo de férias estava anotando tudo, aí ela disse que no dia que fosse voltar me ligaria, então foi assim que entrei aqui, com aquela força que ela me deu. (P1)

Desde o contato inicial por telefone ou presencialmente para inscrição no projeto, oferecer escuta atenta e respeitosa, esclarecer dúvidas e orientar aproxima a pessoa do tratamento, penso que desde esse momento a seriedade do serviço já é percebida. Os laços de confiança, pertencimento, segurança, respeito, que se tecem na entrevista de ingresso também favorecem o ingresso, a adesão e manutenção no tratamento. Esses laços se consolidam em um ambiente de harmonia onde o convívio alegre e descontraído, incentiva a participação com prazer. (PS1)

A partir dessas observações, percebe-se que o que está circulando entre a profissional de saúde do TIF e a pessoa com fibromialgia é o cuidado em saúde na forma de diálogo, atenção e acolhimento. O ciclo da tripla obrigação se efetiva quando o cuidado em saúde está sendo doado, recepcionado e retribuído nas relações que se constroem entre profissionais de saúde e pessoas com fibromialgia. Por parte do Projeto, trata-se de uma ação obrigatória e livre, pois, ao mesmo tempo que não se doa algo a qualquer pessoa, é a partir da espontaneidade de gestos e diálogos que a reciprocidade se traduz em sociabilidade, como pontua Lopes (2021LOPES, J. A. V. A teoria integracionista de Marcel Mauss. Sociologias, Porto Alegre, n. 58, p. 360-387, 2021.).

Dessa forma, embora aqui esteja se tratando de uma situação pontual em determinada microrrealidade, revela-se a potência do dar-receber-retribuir no TIF. Para além do contexto das pessoas com fibromialgia, tal dado demonstra como a noção ampliada de saúde pode extrapolar para distintas realidades do “estar com” ou “estar entre” profissionais e pessoas com outras doenças crônicas.

Foi possível verificar que havia um deslocamento afetivo-terapêutico ao próximo com frequência nas aulas de Educação Física durante as práticas corporais de saúde, mais precisamente no momento dos exercícios aeróbicos, propostos pelos professores de forma lúdica e interativa:

Desde o início, junto com a professora de educação física e os estagiários, todos os envolvidos tem uma atenção e um cuidado, se eles observam a gente fazendo algo errado eles conversam com a gente e corrigem ou passam outro exercício. E com o passar do tempo eles deixam a gente mais à vontade de chegar neles e perguntar ou tirar uma dúvida para a trabalhar essa autonomia na gente mesmo. (P3)

A professora e o cuidado dela também é passado entre a gente, principalmente quando a gente está caminhando, nesse momento a gente consegue conversar, dá para ver a preocupação de umas com as outras, pergunta com a outra está, e não fica só por aqui pelo projeto, porque se estende para o grupo do WhatsApp. (P4)

Durante o trabalho de campo, comumente, era possível observar uma preocupação tanto da professora com as pacientes quanto das pessoas com fibromialgia entre si no momento de execução do exercício físico. A professora estava atenta não apenas ao movimento ou à rotina de exercícios em si, mas também à forma como o público se sentia no momento das aulas. Isso podia ser notado quando pedia o feedback em relação ao andamento das atividades. Foi possível perceber também que, quando alguém preferia se sentar um pouco por conta do cansaço ou qualquer outro desconforto, as outras pessoas com fibromialgia se aproximavam ou se reuniam entre elas para indagar se estava tudo bem.

As meninas e a professora repararam que eu sentei e vieram me perguntar se estava tudo bem… eu disse que só precisava descansar as pernas. Essa preocupação com o outro aqui é constante, todo mundo se preocupa e quer o outro bem… no momento das aulas a gente também repara quando a outra não está indo bem. Fantástico. (P7)

na hora dos exercícios quando uma de nós está fazendo alguma coisa de errado. A professor sempre ajuda, então está sempre todo mundo de olho, eu sempre observo isso, mas quando dá eu ajudo também. (P6)

Trata-se de um deslocamento ao próximo imerso em cuidado em saúde, com gestos, percepções e diálogos, em momentos entendidos como desafiadores para pessoas com fibromialgia que apresentavam dificuldades na execução de movimentos corporais. Essa iniciativa coloca em circulação dádivas simbólicas de cuidado para promover a participação das pessoas com fibromialgia nas práticas propostas. Na execução de exercícios, por exemplo, as pacientes retribuíram o cuidado recepcionado ao expressar necessidades, gostos e percepções, uma vez que chegaram a pedir atividades lúdicas, como danças, em geral as preferidas por elas.

Assim, ali havia a compreensão do movimento humano como algo repleto de simbolismos, não tendo apenas como objetivos o gasto calórico, o desenvolvimento de habilidades motoras e o controle de fatores de risco. Tal construção de um espaço propício e convidativo à participação das pessoas com fibromialgia no processo saúde-doença da síndrome repousa na ótica relacional fundada pela troca de dádivas simbólicas (Mauss, 2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.).

A própria estruturação das práticas corporais a partir de danças, estafetas e jogos parece favorecer a capacidade de afeto entre os envolvidos, em conformidade com as ideias de Ruiz, Santos e Gerhardt (2016RUIZ, E. N. F., SANTOS, V. F.; GERHARDT, T. E. Mediações na atenção à saúde sob à ótica da teoria da dádiva: a saúde da população rural em destaque. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 829-852, 2016. DOI: 10.1590/S0103-73312016000300007
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). Em outras palavras, tendo em vista que a dádiva é uma realidade recíproca que constrói sociabilidade entre as pessoas e os professores de Educação Física, as atividades coletivas desenvolvidas, em termos de exercícios físicos, parecem favorecer a continuidade das trocas realizadas. A frequente utilização de danças sustenta tal entendimento, pois observou-se uma maior integração social e um maior engajamento entre os envolvidos.

Há, nas danças, desde o texto clássico de Mauss (2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.) até o trabalho de Luz (2005LUZ, M. Novos saberes e práticas em saúde coletiva: estudo sobre racionalidades médicas e atividades corporais. São Paulo: Hucitec , 2005.), a circulação de valores de cuidado que cultivam a diversidade das formas corporais, aliança entre grupos e os comportamentos solidários com o outro. A dinâmica com movimentos corporais livres de uma determinada exigência técnica e de uma execução biomecânica perfeitas, conjugada com diálogos, brincadeiras, improvisos e criatividade, proporciona a construção de uma prática corporal coletiva baseada na aliança para o enfrentamento da fibromialgia.

Na concepção de González (2015GONZÁLEZ, F. J. Práticas corporais e o sistema único de saúde: desafios para a intervenção profissional. In; GOMES, I. M.; FRAGA, A. F.; CARVALHO, Y. M. (Org.). Práticas corporais no campo da saúde: uma política em formação. Porto Alegra: Rede Unida, 2015. p. 135-162.), as práticas corporais de saúde devem fazer parte de um contexto que busque ampliar e garantir a integralidade do cuidado, o empoderamento e a autonomia do sujeito. As práticas estão inseridas no desafio de promover opções de vida mais saudáveis, porém a partir de um viés reflexivo que não ignore o esquecimento dos sujeitos e das coletividades.

Logo, nas práticas corporais do TIF, a dádiva do cuidado circula funcionando como dispositivo de reciprocidade e integralidade capaz de criar um ambiente confortável e sociável para a execução dos exercícios. As relações simbólicas de troca de dádivas exigem a coparticipação dos usuários de saúde no processo, seja no atendimento clínico ou nas práticas corporais. O cuidado em saúde como dádiva apenas se materializa quando a simbólica relacional inclui mediações entre os profissionais de saúde e aqueles que usufruem dos serviços. Trata-se da emergência do cuidado como dispositivo de mediação e produção de vínculo social (Cerulli, 2018CERULLI, A. Gifting knowledge for long life. International Journal of Hindu Studies, New York, v. 22, p. 235-255, 2018.; Martins, 2011MARTINS, P. H. Dom do reconhecimento e saúde: elementos para entender o cuidado como mediação. In: PINHEIRO, R.; MARTINS, P. H. Usuários, redes sociais, mediações e integralidade em saúde. Rio de Janeiro: UERJ, 2011. p. 39-50.).

Acrescenta-se ainda que, durante a observação em campo, foi possível detectar que as pessoas com fibromialgia participavam do processo de cuidado em saúde, nas relações com professores de Educação Física:

Fui bem recebida pela professora de Educação Física, encontrei retorno nas colegas, a minha perspectiva foi atendida. Eu pensava que seria chato e que todo mundo estaria chorando, mas não é isso, graças a deus, porque na verdade acaba levantando nossa astral. (P4)

eu estava precisando de ter contato com outras pessoas por causa da minha cabeça, se fosse pela dor física talvez eu nem viesse, mas mais pelo emocional (a paciente começou a chorar) porque eu estava precisando fazer amizade e ter contato com outras pessoas (P7).

A partir da teoria do dom, o sujeito social é visto como ativo e reflexivo no processo de cuidado em saúde, não se limitando a posturas de passividade ou caridade. Assim, de um lado, o grupo constituído pelas pessoas com fibromialgia do TIF e por sua equipe multiprofissional não é concebido como um todo superorgânico, dotado de coesão social homogênea, conforme a perspectiva holista poderia sugerir. Também não se admite que cada integrante desse grupo constitua uma espécie de mônada incomunicável ou impermeável às trocas simbólicas, gestuais, linguísticas e afetivas que nele se estabelecem, desde o primeiro encontro - o que caracterizaria uma atitude orientada pelo individualismo metodológico. Antes, observa-se que os vínculos e a coesão - com o consequente suporte social afetivo e simbólico - vão se constituindo no processo da troca triádica que caracteriza a lógica da dádiva (Mauss, 2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.).

Outro dado no que diz respeito à (contra)dádiva que merece destaque se refere à relação de afeto mútuo entre o profissional de saúde e as pessoas com fibromialgia:

Tentamos criar uma relação de parceria e confiança entre os profissionais e as pacientes e realizamos nossa abordagem baseados na problemática do grupo. (PS6)

O profissional precisa se relacionar de maneira empática com o paciente. É preciso estabelecer vínculo para que este possa aprender a lidar com a fibromialgia, que sua participação é fundamental para o sucesso do tratamento e que é preciso estabelecer metas a vencer diariamente, ter uma postura ativa perante a vida. (PS5)

A partir dos relatos, pode-se compreender que o processo relacional entre esses atores sociais encontra na dádiva a possibilidade de pensar estratégias terapêuticas que vão além do aparato técnico e não se resumem à materialidade do corpo biológico. Em outras palavras, a circulação da dádiva do cuidado, a partir de atenção, diálogo, acolhimento e gestos, produz saúde, cidadania e solidariedade. Para Ruiz, Santos e Gerhardt (2016RUIZ, E. N. F., SANTOS, V. F.; GERHARDT, T. E. Mediações na atenção à saúde sob à ótica da teoria da dádiva: a saúde da população rural em destaque. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 829-852, 2016. DOI: 10.1590/S0103-73312016000300007
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), a dádiva do cuidado pode ser pensada justamente no sentido de entender como profissionais de saúde e usuários se afetam no tratamento, efetivando o ciclo da tripla obrigação.

Na concepção das pessoas com fibromialgia, são as possibilidades de afeto, demandas por atenção e encontro com os demais que são buscadas na jornada terapêutica, em oposição às posturas passivas. Caillé et al. (2019CAILLÉ, A. et al. Le don d’hospitalité: quand recevoir, c’est donner. Revue du MAUSS, Paris, n. 53, p. 5-41, 2019. DOI: 10.3917/rdm.053.0005
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) entendem tais movimentações e demandas, por parte de atores sociais, no contexto do dom da hospitalidade, em que a busca por relacionamentos duráveis nas mais diversas instituições sociais e de saúde insere-se na tripla obrigação de dar, receber e retribuir acolhimentos, saudações e recepções nas relações que perpassam pessoas com fibromialgia e profissionais de saúde.

Nesse sentido, um dos aspectos que mais predominava no cuidado poderia ser visto na perspectiva do acolhimento:

Atenção para aquilo que estou procurando resposta, depois o tratamento, mas o que quero de volta é atenção! Porque se você buscou aquele tratamento, você quer pelo menos ser ouvida. Por mais que não seja resolvido naquele momento, mas desejo perceber que a pessoa me ouviu e vai tentar de alguma maneira me ajudar. (P3)

O acolhimento, a escuta ativa, a legitimação do sofrimento, a informação e a formação de vínculo, são estruturas fundamentais para a clínica. (PS9)

Observando ao longo destes vinte anos de projeto, identifico como uma grande demanda a busca por acolhimento externado por mais de noventa por cento dos usuários do TIF. (PS3)

Naquele espaço, a acolhida ocorria a partir de uma aceitação afetiva de demandas, problemas e angústias das pessoas com fibromialgia pelos profissionais de saúde, inaugurando assim uma relação de cuidado. O dom da hospitalidade, que inclui uma pluralidade de doações na contemporaneidade, supõe também o acolhimento como uma dádiva simbólica no recebimento e reconhecimento de pessoas nos mais diversos serviços de saúde.

Desse modo, os depoimentos retratam a efetivação do ciclo da tripla obrigação de dar, receber e retribuir, que se encontra presente quando o ato de receber pessoas com fibromialgia é dar atenção, cuidado e acolhimento. O dom da hospitalidade torna-se fundamental para práticas terapêuticas, pois a recepção desse dom por parte de pessoas com fibromialgia inclui reconhecimento e retribuição de participação no processo saúde-doença e terapêutico da síndrome.

Esse cenário de cuidado pode ser interpretado à luz de Caillé et al. (2019CAILLÉ, A. et al. Le don d’hospitalité: quand recevoir, c’est donner. Revue du MAUSS, Paris, n. 53, p. 5-41, 2019. DOI: 10.3917/rdm.053.0005
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) quando as ações de acolhimento e até mesmo determinados gestos possibilitam entrar no mundo do outro, efetivando o círculo social. Para Tesser e Luz (2018TESSER, C. D.; LUZ, M. T. Uma categorização analítica para estudo e comparação de práticas clínicas em distintas racionalidades médicas. Physis, Rio de Janeiro, v. 28, n. 1, p. 1-23, 2018. DOI: 10.1590/S0103-73312018280109
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), o acolhimento é o início de um encontro terapêutico, o momento em que o adoecido demanda atenção, legitimidade e resolutividade aos seus problemas de saúde. Pode-se perceber a aproximação entre a proposta dos profissionais de saúde e a forma como as pessoas notam e demandam o TIF. Dessa maneira, revela-se a importância de relações terapêuticas baseadas no outro, em que as dádivas preenchem um espaço significativo na vida de pessoas com fibromialgia (Caillé et al., 2019CAILLÉ, A. et al. Le don d’hospitalité: quand recevoir, c’est donner. Revue du MAUSS, Paris, n. 53, p. 5-41, 2019. DOI: 10.3917/rdm.053.0005
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; Pereira, Magri, 2019PEREIRA, K.; MAGRI, L. Fibromialgia e subjetividade: para além da dor. In: MATTOS, R. S. Dor crônica e fibromialgia: uma visão interdisciplinar. Curitiba: CRV , 2019. p. 63-73.).

No entanto, cabe ressaltar que esse vínculo de confiança entre os profissionais de saúde e as pessoas com fibromialgia apenas se efetivou pelo fato de a dor crônica ter sido reconhecida naquele espaço:

MUITA DESCONFIANÇA, as pessoas não conseguem compreender, elas não conseguem dimensionar o que você está sentindo, você até quer falar mas as pessoas NÃO ACREDITAM, isso tudo é a minha LUTA. (P5)

Já vi casos de pessoa que param até de participar das atividades sociais, porque as pessoas só criticam, a família só critica, não consegue trabalhar, poucos compreendem o que você tem. (P6)

A falta de credibilidade em suas queixas inicialmente, pelos familiares, por alguns profissionais da saúde e colegas/chefias de trabalho. Perda da autonomia no desempenho das atividades de vida diária, contribuindo para a baixa autoestima e depressão. Por isso, a necessidade de afeto, empatia, respeito e escuta são extremamente relevantes. (PS2)

Nessa direção, pode-se perceber que o ponto de partida para iniciar ou interromper o TIF se estabelece primordialmente pelo reconhecimento da dor crônica. Nota-se que tal dado de confiança/desconfiança entre a pessoa com fibromialgia e o outro não somente se apresenta no (não) engajamento no tratamento, como também no convívio social, o que pode ser compreendido como uma forma identitária do doente crônico de inserção no mundo. Assim, o projeto em questão se torna determinante para que a paciente (re)construa e ressignifique o seu lugar social junto aos profissionais de saúde e às outras usuárias.

A dor crônica é capaz de proporcionar comedimento nas relações afetivas, retração, isolamento social e esquecimento de si (Le Breton, 2013LE BRETON, D. Antropologia da dor. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2013.), associando-se, frequentemente, a comportamentos depressivos e ansiosos, no caso da fibromialgia (Pereira, Magri, 2019PEREIRA, K.; MAGRI, L. Fibromialgia e subjetividade: para além da dor. In: MATTOS, R. S. Dor crônica e fibromialgia: uma visão interdisciplinar. Curitiba: CRV , 2019. p. 63-73.). Dessa forma, as relações terapêuticas necessitam de interpretações tridimensionais, ligando o social ao sujeito, ao físico e também ao psicológico, dimensões que estão contidas em uma pessoa que procura tratamento.

Argumenta-se a dificuldade de determinar quando se inicia a primeira doação, pois, de certa forma, o ciclo de reciprocidade pode colocar doadores na função de destinatários e receptores na função de donatários. Em outras palavras, os atos de doar e receber não funcionam de forma mecânica, mas como um ciclo complexo (Cerulli, 2018CERULLI, A. Gifting knowledge for long life. International Journal of Hindu Studies, New York, v. 22, p. 235-255, 2018.). No caso da dor crônica, o que se percebe é uma dádiva em direção a outras pessoas, na busca por reconhecimento, porém sem reciprocidade, ou seja, a pessoa recebe de volta sentimentos que não promovem acolhida e reconhecimento, mas sim a exacerbação do quadro álgico e depressivo.

A desconfiança e a incompreensão podem ser interpretadas como formas de lidar e interagir com a dor crônica no formato de dádiva-veneno. Mauss (2017MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 191-330.) destaca que existe um perigo na coisa dada ou transmitida de acordo com as línguas germânicas, pois a palavra gift supõe dois sentidos: o de dádiva, presente ao próximo, possibilidade de reciprocidade, e o de veneno. Nos dicionários da época, não existia uma diferenciação entre a dádiva e o veneno, pois aquilo que era dado tinha potencial de se desenvolver em perigo e se tornar um veneno na realidade. Assim, entende-se que, com frequência, as pacientes lidam e recebem essas dádivas no formato de veneno, quando na verdade demandam cuidado, acolhimento e atenção.

Por fim, urge a necessidade de apontar como as pessoas se sentiam ao (não) ser reconhecidas em dado quadro fibromiálgico e quais as possíveis implicações perante o profissional de saúde:

um ponto importante é você não precisar justificar a sua dor, você está com a dor e ninguém pede justificativa, eu acho que quando você está com dor e a pessoa não te questiona é saudável. (P2)

aqui você sabe que as pessoas acreditam na sua dor, não precisa justificar, esse conhecimento te leva para a credibilidade, então não tem que ficar provando para a pessoa que está mal, esse acolhimento mostra para gente que a gente será bem atendida. (P5)

No caso das relações que as pessoas com fibromialgia estabeleceram com os profissionais de saúde do TIF, a presente dinâmica enfatizou os movimentos das dádivas de cuidado como forma de perceber e reconhecer a dor crônica (dom do reconhecimento). O reconhecimento do outro é um movimento assimétrico, um dos requisitos necessários ao movimento da dádiva, em que o ato de doar fundamenta-se no prazer da perda e da relação construída. Trata-se da importância do desequilíbrio, a necessidade de achar que recebeu mais e por isso encontrar-se em dívida com o próximo (Ruiz, Santos, Gerhardt, 2016RUIZ, E. N. F., SANTOS, V. F.; GERHARDT, T. E. Mediações na atenção à saúde sob à ótica da teoria da dádiva: a saúde da população rural em destaque. Physis, Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 829-852, 2016. DOI: 10.1590/S0103-73312016000300007
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).

Logo, a forma como um profissional de saúde percebe o adoecido, reconhece suas necessidades e histórias de vida, expressa sua presença em atitudes, gestos e diálogos e atua com cuidado em saúde faz parte dos mais variados exemplos de como a relação de assimetria constitui a teoria do dom. Pode-se dizer que, no TIF, o cuidado em saúde encontra-se disponível nos atos de dar, receber e retribuir, em termos de deslocamento afetivo-terapêutico, hospitalidade/acolhimento da demanda e reconhecimento da dor crônica.

Considerações finais

Em síntese, foi possível perceber a relevância da perspectiva interdisciplinar e as práticas corporais de saúde do TIF como circuitos de reciprocidade, hospitalidade e reconhecimento, nos quais ocorreu a troca de dádivas de cuidado em saúde entre profissionais de saúde e pessoas com fibromialgia. Ademais, os profissionais de saúde, no encontro com as pessoas com fibromialgia, desenvolveram e apostaram em novas formas de usar e construir socialmente os corpos, a saúde e a dor crônica para as mais diversas instâncias sociais da vida. Entretanto, alerta-se aqui que o ciclo da tripla obrigação da dádiva do cuidado em saúde não se restringe às relações entre profissional-paciente, mas também é atravessado por outras instâncias ou segmentos, como o envolvimento com familiares, convívio social etc.

Nesse sentido, sugere-se que compreender um tratamento interdisciplinar para pessoas com fibromialgia sob a égide da teoria do dom significa buscar os aspectos socializadores e de reciprocidade que garantem coesão social, qualidade de vida e bem-estar. Argumenta-se, portanto, que a dádiva alcança aliança, reciprocidade e rivalidade em momentos e circunstâncias bem particulares, reunindo sentidos de singularidade entre doadores e receptores. Por isso, vale lembrar que encontrar ou buscar sempre a mesma relação nas práticas de saúde significa recusar a teoria em destaque.

Embora o presente estudo tenha realizado um aprofundamento analítico em determinada microrrealidade, aponta-se o potencial teórico-empírico desse trabalho para futuros empreendimentos investigativos que foquem a relação entre corpo, saúde-doença e cuidado, em especial, no contexto de programas de extensão ou serviços de saúde. Afinal, revelou-se, aqui, que o TIF proporcionou novos cuidados com o corpo e a saúde por conta dos vínculos de reciprocidade estabelecidos entre os atores sociais, no que se pode interpretar como um investimento simbólico do Projeto, dos pacientes e dos profissionais na forma de lidar com a dor crônica. Em outras palavras, o caminho para alcançar relações mais saudáveis e legítimas com o corpo e a dor foi apostar nas ações de troca de bens simbólicos no tratamento interdisciplinar.

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    Aprovado no CEP - HUPE, com o seguinte certificado de apresentação para Apreciação Ética (CAAE : 25727419.0.0000.5259. O presente trabalho contou com apoio financeiro da FAPERJ para sua realização. Número do processo da FAPERJ: E-26/202.219/2018 - Bolsa. Número de matrícula: 2018.03555.4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2023
  • Revisado
    28 Mar 2023
  • Aceito
    15 Maio 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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