Resumo

Avaliaram-se fatores associados às atitudes de profissionais da Atenção Primária à Saúde (APS) quanto ao consumo e uso prejudicial de álcool e o alcoolismo dos usuários, além de suas percepções sobre possíveis mudanças no consumo de álcool durante a pandemia de covid-19. Trata-se de pesquisa avaliativa feita no interior de São Paulo em 2020. Analisaram-se características sociodemográficas sobre o consumo de álcool e a atitude com os usuários. Dos 94 profissionais do município, 65 participaram, sendo 67,7% deles com experiência no tema. A maioria (80%) não modificou seu consumo durante a pandemia, mas 50,8% deles perceberam aumento no consumo pelos usuários. Identificaram-se atitudes positivas em relação a ser do sexo masculino (p=0,014) e ter cor da pele branca (p=0,020), residir sozinho (p=0,047) e maior consumo pelos profissionais (p=0,037). Atuar na Estratégia Saúde da Família (ESF) associou-se com atitudes mais positivas (p=0,029). Concluiu-se que características pessoais influenciam na atitude, assim como o tipo de serviço. Há muito o que avançar em relação às atitudes dos profissionais de saúde para que ofereçam assistência adequada aos usuários que consomem álcool. Porém, a disseminação de conhecimento específico sobre a doença e a pessoa que faz uso de álcool parece ser uma das principais estratégias de enfrentamento deste importante agravo à saúde.

Palavras-chave:
Consumo de Bebidas Alcoólicas; Alcoolismo; Atenção Primária à Saúde; Atitude do Pessoal de Saúde; Avaliação em Saúde

Introdução

Estima-se que os problemas de saúde mental correspondam a cerca de 12% da carga de doença global, sendo responsáveis por 1/3 de todas as incapacidades na região das Américas. Destas, as relacionadas ao uso de álcool correspondem à nona causa mais frequente, acarretando mais de 3 milhões de mortes em 2016 (PAHO, 2018PAHO - PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION. The burden of mental disorders in the region of the Americas, 2018. Washington DC, 2018. Disponível em: <Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/49578/9789275120286_eng.pdf?sequ ence=10&isAllowed=y >. Acesso em: 16 jan. 2022.
https://iris.paho.org/bitstream/handle/1... ). Além de intoxicação aguda e da síndrome de dependência, os danos do consumo prejudicial de álcool encontram-se refletidos em transtornos mentais e comportamentais, distúrbios digestivos, acidentes de trânsito, situações de violência interpessoal, doenças cardiovasculares e várias outras condições de saúde (Brasil, 2018). No Brasil, estimativas mostram que 50% dos brasileiros consomem álcool habitualmente, sendo que em 24% dos casos o uso é frequente e pesado, o que demonstra padrão de alto risco para a saúde (Laranjeira, 2012LARANJEIRA, R (Org.). Segundo levantamento nacional de álcool e drogas: relatório 2012. São Paulo: Inpad; Unifesp, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relatório.pdf >. Acesso em: 12 out. 2021.
https://inpad.org.br/wp-content/uploads/... ; Brasil, 2018).

Os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS), principalmente aqueles operacionalizados no modelo Estratégia Saúde da Família (ESF) por seus atributos de primeiro contato, longitudinalidade, coordenação do cuidado e abordagem centrada na família e na comunidade, são compreendidos como espaços que apresentam melhores condições para abordar de forma mais precoce e resolutiva o consumo de álcool como fator de risco a esses inúmeros agravos (Brasil, 2003BRASIL. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003. ; Flôr et al., 2017FLÔR, C. R. et al. Primary health care as assessed by health professionals: comparison of the traditional model versus the Family Health Strategy. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 714-726, 2017. DOI: 10.1590/1980-5497201700040013
https://doi.org/10.1590/1980-54972017000... ; Macinko; Mendonça, 2018MACINKO, J.; MENDONÇA, C. S. Estratégia saúde da família: um forte modelo de atenção primária à saúde que traz resultados. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. especial 1, p. 18-37, 2018. ).

Entretanto, apesar dessa capacidade, a identificação precoce do consumidor de risco ainda tem passado despercebida aos profissionais de saúde, principalmente em relação aos padrões de consumo que não caracterizam dependência (Brasil, 2003BRASIL. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003. ; Fontanella et al., 2011FONTANELLA, B. J. B. et al. Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é “perdido na tradução”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 573-85, 2011. DOI: 10.1590/S1414-32832011000200020
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201100... ).

Agrava esse cenário o crescente aumento do consumo de álcool durante a pandemia de covid-19 quando comparado a anos anteriores, que além de poder se transformar em uso prejudicial, também pode ser o responsável pelo aumento de complicações associadas ao uso de álcool, sinalizando um importante problema de saúde pública a longo prazo (Clay; Paker, 2020CLAY, M. J.; PAKER, O. M. Alcohol use and misuse during the COVID-19 pandemic: a potential public health crisis? The Lancet Public Health, London, v. 5, n. 5, p. e-259, 2020. ; Rubin, 2021RUBIN, R. Alcohol-related diseases increased as some people drank more during the COVID-19 pandemic. JAMA, Chicago, v. 326, n. 3, p. 209-211, 2021. DOI:10.1001/jama.2021.10626
https://doi.org/10.1001/jama.2021.10626... ).

A atitude das pessoas é estabelecida pela interrelação entre os componentes cognitivos, afetivos e comportamentais, podendo ser modificada por experiências vividas em relação ao objeto (Aronson; Wilson; Akert, 2018ARONSON, E.; WILSON, T. D.; AKERT, R. M. (Org.). Psicologia social. 8. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018. ). Da mesma forma, as práticas de saúde são construções sociais e, portanto, influenciadas pelas diferentes concepções, valores e normas sociais experimentadas pelos profissionais que as executam (Aronson et al., 2018ARONSON, E.; WILSON, T. D.; AKERT, R. M. (Org.). Psicologia social. 8. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2018. ; Oliveira et al., 2019OLIVEIRA, A. J. et al. A construção histórica do estigma sobre o conceito de dependência de álcool. Revista de Psicologia, Jaboatão dos Guararapes, v. 13, n. 44, p. 253-275, 2019. DOI: 10.14295/idonline.v13i44.1612
https://doi.org/10.14295/idonline.v13i44... ; Souza; Menandro; Menandro, 2015SOUZA, L. G. S.; MENANDRO, M. C. S.; MENANDRO, P. R. M. O alcoolismo, suas causas e tratamento nas representações sociais de profissionais de Saúde da Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1335-1360, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000400015
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500... ). Assim, questiona-se quais fatores estão ligados às atitudes positivas ou negativas desses profissionais frente a questões relacionadas ao consumo de álcool dos usuários. Adicionalmente, indaga-se se houve mudanças nos hábitos de consumo pessoal dos profissionais e na forma de abordarem a temática do álcool com os usuários dos serviços durante o período da pandemia de covid-19.

Espera-se que tais respostas possam contribuir para a identificação de melhorias no processo de trabalho das equipes de saúde dos serviços de APS, assim como subsidiar reformulações para políticas públicas mais inclusivas. Desta forma, considerando as potencialidades da interrelação entre produção de conhecimento e gestão de práticas de saúde abordadas nas avaliações (Novaes, 2000NOVAES, H. M. D. Avaliação de programas, serviços e tecnologias em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 34, n. 5, p. 547-559, 2000. DOI: 10.1590/S0034-89102000000500018
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200000... ), o presente trabalho teve como objetivo avaliar fatores associados às atitudes de profissionais de saúde da APS quanto ao consumo e uso prejudicial de álcool e o alcoolismo dos usuários, além de suas percepções sobre possíveis mudanças no consumo durante a pandemia de covid-19.

Materiais e método

Trata-se de investigação avaliativa (Novaes, 2000NOVAES, H. M. D. Avaliação de programas, serviços e tecnologias em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 34, n. 5, p. 547-559, 2000. DOI: 10.1590/S0034-89102000000500018
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200000... ), alicerçada na aplicação de inquérito eletrônico aos 94 profissionais (médicos e enfermeiros) que compunham as 42 equipes de 34 serviços de APS de um município do interior do estado de São Paulo, no ano de 2020.

O instrumento de coleta, estruturado no Formulário Google®, continha 64 questões fechadas e de resposta única sobre características sociodemográficas dos entrevistados (sexo, idade, cor da pele autodeclarada e grau de escolaridade), perfil de consumo do profissional (três questões do Alcohol Use Disorders Identification Test-Concise/AUDIT-C e uma sobre mudança no seu hábito de beber durante a pandemia), experiências profissionais (tempo de atuação, experiência no cuidado com alcoolistas, percepção de mudança no uso de álcool dos usuários durante a pandemia), o arranjo organizacional do serviço (ESF ou modelo tradicional - UBS) e suas atitudes frente ao tema (Escala de Atitudes Frente ao Álcool, ao Alcoolismo e à pessoa com transtornos relacionados ao uso do Álcool/EAFAAA) (Vargas, 2014VARGAS, D. Validação de construto da escala de atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e a pessoas com transtornos relacionados ao uso do álcool. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 41, n. 4, p. 106-111, 2014. DOI: 10.1590/0101-60830000000021
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000... ; Meneses-Gaya et al., 2009MENESES-GAYA, C. et al. Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT): an updated systematic review of psychometric properties. Psychology & Neuroscience, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 83-97, 2009. ). Compreendendo o poder de indução das investigações avaliativas (Champagne; Contandriopoulos; Tanon, 2011CHAMPAGNE, F.; CONTANDRIOPOULOS, A. P.; TANON, A. Utilizar a avaliação. In: BROUSSELLE, A. et al. (Org.). Avaliação: conceitos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 241-261. ), acrescentou-se ao final do formulário uma pergunta aberta, para identificar se a experiência de responder o instrumento provocou alguma mudança no modo como o profissional pensava o uso de álcool, o alcoolismo e a pessoa que faz uso de álcool.

O convite com o formulário foi enviado pela gestão municipal e os dados foram coletados de forma anônima somente após a leitura e aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O banco de dados foi validado por meio da checagem da duplicidade e/ou ausência de respostas e de análise de comportamento das respostas, sendo que nenhuma delas precisou ser excluída.

A análise contou com duas etapas: (1) na análise descritiva, os resultados foram expressos por meio de números absolutos e respectivas porcentagens do perfil sociodemográfico e profissional dos respondentes, assim como de seu nível de consumo de álcool. Porém, considerando que a EAFAAA se refere a um instrumento que utiliza escala do tipo likert para mensurar a atitude dos profissionais, foi realizado primeiramente a conversão dos conceitos em pontuação (discordo totalmente = 1; discordo em parte = 2; estou em dúvida = 3; concordo em parte = 4; concordo totalmente = 5) e, dessa forma, foram calculadas as médias dos escores para cada um dos quatro Fatores e para o total (Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ). Para este cálculo, realizou-se a soma dos itens de cada participante por Fator, dividido pelo seu número respectivo de itens. Assim, este escore teve variação entre 1 e 5. Na sequência, calculou-se escore geral da atitude para todos os Fatores, ou seja, somando todas as respostas dos participantes e realizando sua divisão pelo número total de itens da escala (n=50). Dessa forma, a média dos escores de cada Fator e a média geral representam a tendência de atitudes de cada Fator e de atitude geral. Para a interpretação deste resultado, considerou-se: indicativos de atitude negativa os valores entre 1,0 e 2,5; atitude intermediária os valores entre 2,6 e 3,5; e atitude positiva os valores entre 3,6 e 5,0. (2) Já para a análise estatística inferencial, tomou-se como variável-desfecho as atitudes dos profissionais (média de pontuação em cada um dos quatro Fatores e da pontuação total da EAFAAA). Utilizou-se o teste t de Student para amostras independentes para a comparação das médias de escore na escala EAFAAA, considerando as variáveis binárias (sexo, condição de vivência - sozinho ou não, formação pós-graduada, tipo de unidade de saúde - UBS ou ESF, e experiência no trabalho com alcoolistas). Já para correlacionar os Fatores e média geral das atitudes com a cor de pele declarada, tempo de serviço, frequência de uso de álcool, quantidade de doses por consumo e frequência do beber em binge (grande quantidade em pequeno intervalo de tempo), aplicou-se a técnica de análise de variância para modelo com um fator, complementada pelo teste de comparações múltiplas de Tukey. Para analisar a associação entre a idade do participante, em anos, e os escores das atitudes, utilizou-se o coeficiente de correlação linear de Pearson. Em todas as análises estatísticas, considerou-se o nível de significância de 5% (p<0,05). Os conteúdos referentes à questão aberta foram agrupados conforme sua correspondência com as atitudes abordadas nos respectivos Fatores da EAFAAA e analisados em relação a sua distribuição neles.

Resultados

Dos 94 médicos e enfermeiros da APS municipal, 69,14% responderam ao questionário, sendo a maioria de: cor da pele branca (81,5%), sexo feminino (70,8%), idade entre 30 e 49 anos (72,3%), com menos de 15 anos de experiência profissional (63,1%), diferentes níveis de pós-graduação e com experiência com alcoolistas (67,7%). Entre eles, 21,5% declararam ser abstêmios. Entre os que consomem álcool, predominou a frequência de uso de duas a quatro vezes ao mês (38,5%), seguida de uma vez por mês ou menos (27,7%), com uma a duas doses em cada episódio de uso (47,7%) e o uso semanal do binge foi relatado por 10% dos participantes.A maioria dos entrevistados (76,9%) atuava em serviços organizados conforme o arranjo ESF (Tabela 1).

A maioria dos profissionais participantes não modificaram o hábito de consumir álcool durante a pandemia (80%) e 7,7% revelaram redução. Cerca de metade dos profissionais (50,8%) relatou a percepção de aumento no consumo de álcool pelos usuários durante a pandemia de covid-19. Destaca-se que 15,4% dos participantes informaram não questionar sobre o uso de álcool de forma rotineira em seus atendimentos (Tabela 2).

Em relação à atitude dos profissionais quanto ao álcool, ao alcoolismo e ao alcoolista, é possível notar uma atitude geral intermediária referente a dúvidas e incertezas frente às atitudes questionadas (média geral = 3,43). Atitudes mais positivas foram observadas quanto à compreensão do usuário de álcool como um ser humano que possui uma patologia e que muitos dos seus comportamentos não o definem como pessoa (Fator 2 = 4,02). Os demais Fatores analisados indicaram uma tendência a atitudes intermediárias - atender a pessoa que faz uso de álcool, incluindo as dificuldades de relacionamento com esses indivíduos e os sentimentos gerados na equipe de saúde, além da necessidade de treinamento para que esse processo se realize (Fator 1 = 3,51); legitimar o ato de beber como um comportamento aceitável (Fator 4 = 3,46); e aquelas voltadas à etiologia do alcoolismo em relação a questões biopsicossociais (Fator 3 = 3,06).

Identificou-se associação entre as atitudes gerais dos profissionais que atuavam na ESF (p=0,029), assim como daqueles que se declararam do sexo masculino (p=0,014). Encontrou-se diferença, ainda, entre as pessoas declaradas brancas e amarelas em relação à média geral (p=0,020), mas, também, nas atitudes que dizem respeito ao trabalhar com alcoolistas e ter habilidades para tal (Fator 1 p=0,007). Destaca-se, ainda, que os profissionais autodeclarados amarelos obtiveram pontuações mais baixas nessas atitudes, bem como no geral, quando comparados aos profissionais brancos (Fator 1 p=0,007). Ainda sobre as características pessoais dos profissionais, aqueles que moravam sozinhos apresentaram pontuações mais elevadas em todos os Fatores, apresentando associação somente com as atitudes relacionadas às opiniões para com a bebida alcoólica e o direito de beber (Fator 4 p=0,047), também apresentaram associação com essas atitudes quanto à quantidade de consumo próprio de álcool, sendo aqueles que se relataram abstêmios os que obtiveram pontuações significativamente mais baixas (p=0,037).

Constatou-se que a experiência dos profissionais em responder o questionário provocou reflexões em aproximadamente todos os participantes (n=64), porém, apenas 21,6% comentaram sobre o assunto, destacando reflexões relacionadas ao processo de trabalhar com a pessoa que faz uso de álcool (Fator 1) para a maioria. Ao mesmo tempo, chama atenção a pouca referência a outros conteúdos, em especial, à legitimidade de beber (Fator 4), que não emergiu em nenhum dos comentários (Quadro 1).

Discussão

Os resultados sinalizaram percepções em relação a mudanças no consumo de álcool durante a pandemia de covid-19 pelos usuários, porém, não houve mudanças por parte dos profissionais de saúde. Permitiram, ainda, constatar que fatores relacionados a características pessoais dos profissionais, incluindo a quantidade de doses e frequência de consumo pessoal, assim como o tipo de arranjo organizacional dos serviços de APS, são fatores associados às atitudes dos profissionais quanto ao consumo e uso prejudicial de álcool e o alcoolismo.

Tais resultados corroboram a literatura que aponta o sexo (Bezerra, Freitas; Amendola, 2020BEZERRA, M. E. T.; FREITAS, N. O.; AMENDOLA, F. O álcool, alcoolismo e o alcoolista: atitudes dos enfermeiros de uma Estratégia de Saúde da família. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 11, n. 3, p. 114-121, 2020. ; Pinho et al., 2018PINHO, P. H. et al. Atitudes das equipes dos serviços de atenção psicossocial em álcool e drogas. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, 2018. DOI: 10.24879/201800120010078
https://doi.org/10.24879/201800120010078... ; Ramírez; Vargas; Luis, 2019RAMÍREZ, E. G. L.; VARGAS, D.; LUIS, M. V. Atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e à pessoa com transtornos relacionados ao uso de álcool em enfermeiros colombianos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 24, 2019. DOI: 10.5380/ce.v24i0.58795
https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.58795... ) e o nível de formação (Vargas; Bittencourt, 2013VARGAS, D.; BITTENCOURT, M. N. Álcool e alcoolismo: atitudes de estudantes de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 66, n. 1, p. 84-89, 2013. DOI: 10.1590/S0034-71672013000100013
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300... ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ; Vargas, 2014VARGAS, D. Validação de construto da escala de atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e a pessoas com transtornos relacionados ao uso do álcool. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 41, n. 4, p. 106-111, 2014. DOI: 10.1590/0101-60830000000021
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000... ) como alguns dos fatores que influenciam a maneira como o profissional de saúde aborda o uso de álcool.

Considerando que os homens bebem mais que as mulheres, tanto em quantidade de doses quanto em frequência (Laranjeira, 2012LARANJEIRA, R (Org.). Segundo levantamento nacional de álcool e drogas: relatório 2012. São Paulo: Inpad; Unifesp, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relatório.pdf >. Acesso em: 12 out. 2021.
https://inpad.org.br/wp-content/uploads/... ), pode-se pensar que o fato deles apresentarem atitudes mais positivas esteja relacionado à permissividade em relação ao usuário de álcool (Vargas; Luis, 2008VARGAS, D.; LUIS, M. A. V. Álcool, alcoolismo e alcoolista: concepções e atitudes de enfermeiros de unidades básicas distritais de saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. Esp., p. 543-550, 2008. DOI: 10.1590/S0104-11692008000700007
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200800... ). Justifica esta suposição o fato dos profissionais que fazem uso de álcool tenderem a utilizar seu próprio consumo como parâmetro de normalidade, sendo mais permissivos diante daqueles que fazem uso moderado (Vargas; Luis, 2008VARGAS, D.; LUIS, M. A. V. Álcool, alcoolismo e alcoolista: concepções e atitudes de enfermeiros de unidades básicas distritais de saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. Esp., p. 543-550, 2008. DOI: 10.1590/S0104-11692008000700007
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200800... ). Além de terem tido atitudes favoráveis em relação às gerais frente ao álcool, alcoolista e alcoolismo, esses profissionais tiveram, também, uma aproximação ao limiar de significância estatística quanto à bebida alcoólica e ao direito de beber. Esses resultados reforçam a hipótese da relação entre o consumo próprio e atitudes mais positivas com os usuários.

Esse mesmo raciocínio pode ser usado quando observado que profissionais com cor da pele declarada amarela possuem atitudes mais negativas, tanto no geral quanto nas questões relacionadas ao trabalhar com usuários que fazem uso de álcool, quando comparados aos profissionais brancos. Tal resultado pode refletir o fato de que pessoas de origem asiática possuem menores taxas de uso prejudicial de álcool que outros grupos étnicos (Chartier; Caetano, 2010CHARTIER, K.; CAETANO, R. Ethnicity and Health Disparities in Alcohol Research. Alcohol Research & Health, [s.l.], v. 33, n. 1-2, p. 152-160, 2010. ), sugerindo que reproduzem esta influência cultural em suas atitudes.

De forma semelhante, o fato dos profissionais que moram sozinhos apresentarem atitudes mais positivas quanto à bebida alcoólica e ao direito de beber levanta o questionamento se um dos motivos para este resultado seria o fato de que quem vive sozinho bebe mais (Franco; Baldin; Paiva, 2011FRANCO, S. C.; BALDIN, N.; PAIVA, M. Fatores associados ao consumo de risco de álcool entre homens adultos na atenção primária à saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 35, n. 89, p. 217-227, 2011. ), refletindo na forma como este profissional compreende o ato de beber e, consequentemente, na sua atitude para com o usuário que consome álcool.

Todos esses resultados corroboram a associação identificada entre o uso pessoal de álcool por parte dos profissionais com atitudes mais positivas em relação às opiniões sobre a bebida alcoólica e ao direito de beber.

Apesar do número de profissionais abaixo da média da população brasileira que se declararam abstêmios (Laranjeira, 2012LARANJEIRA, R (Org.). Segundo levantamento nacional de álcool e drogas: relatório 2012. São Paulo: Inpad; Unifesp, 2012. Disponível em: <Disponível em: https://inpad.org.br/wp-content/uploads/2014/03/Lenad-II-Relatório.pdf >. Acesso em: 12 out. 2021.
https://inpad.org.br/wp-content/uploads/... ), assim como daqueles que afirmaram um padrão de beber em binge (Carlos; Herval; Gontijo, 2018CARLOS, M. A.; HERVAL, Á.; GONTIJO, L. Consumo de álcool entre os trabalhadores da saúde da família. Revista da Faculdade de Odontologia, Passo Fundo, v. 23, n. 2, p. 193-198, 2018. ) e da maioria negar o aumento do próprio consumo durante o período da pandemia (Clay; Paker, 2020CLAY, M. J.; PAKER, O. M. Alcohol use and misuse during the COVID-19 pandemic: a potential public health crisis? The Lancet Public Health, London, v. 5, n. 5, p. e-259, 2020. ; Rubin, 2021RUBIN, R. Alcohol-related diseases increased as some people drank more during the COVID-19 pandemic. JAMA, Chicago, v. 326, n. 3, p. 209-211, 2021. DOI:10.1001/jama.2021.10626
https://doi.org/10.1001/jama.2021.10626... ), é preciso considerar que os profissionais que fazem uso de álcool têm maior dificuldade em revelarem a quantidade real que consomem (Soares; Vargas; Oliveira, 2011SOARES, J.; VARGAS, D.; OLIVEIRA, M. Atitudes e conhecimentos de profissionais de saúde diante do álcool, alcoolismo e do alcoolista: levantamento da produção científica nos últimos 50 anos. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas , Ribeirão Preto, v. 7, n. 1, p. 45-52, 2011. ). Talvez, por esta razão, mesmo não reconhecendo o aumento do próprio consumo, declararam a percepção de aumento na ingestão de álcool por parte dos usuários atendidos durante a pandemia.

Essa aparente contradição entre a percepção do seu consumo e do usuário pode estar refletida nas atitudes identificadas como intermediárias dos profissionais, principalmente diante de conflitos morais, quando ambos fazem uso de álcool (Bezerra; Freitas; Amendola, 2020BEZERRA, M. E. T.; FREITAS, N. O.; AMENDOLA, F. O álcool, alcoolismo e o alcoolista: atitudes dos enfermeiros de uma Estratégia de Saúde da família. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 11, n. 3, p. 114-121, 2020. ; Soares; Vargas; Oliveira, 2011SOARES, J.; VARGAS, D.; OLIVEIRA, M. Atitudes e conhecimentos de profissionais de saúde diante do álcool, alcoolismo e do alcoolista: levantamento da produção científica nos últimos 50 anos. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas , Ribeirão Preto, v. 7, n. 1, p. 45-52, 2011. ). Esta ambivalência nas atitudes dos profissionais é relatada pela literatura (Caixeta; Pedrosa; Hass, 2016CAIXETA, L. M. M.; PEDROSA, L. A. K.; HAAS, V. J. Analysis of attitudes of Primary Health Care professionals regarding people with disorders due to alcohol use. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 12, n. 2, p. 84-91, 2016. ; Ramírez; Vargas; Luis, 2019RAMÍREZ, E. G. L.; VARGAS, D.; LUIS, M. V. Atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e à pessoa com transtornos relacionados ao uso de álcool em enfermeiros colombianos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 24, 2019. DOI: 10.5380/ce.v24i0.58795
https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.58795... ) e detectada no fato destes não se sentirem confortáveis em se posicionar nas respostas sobre o tema (Bezerra; Freitas; Amendola, 2020BEZERRA, M. E. T.; FREITAS, N. O.; AMENDOLA, F. O álcool, alcoolismo e o alcoolista: atitudes dos enfermeiros de uma Estratégia de Saúde da família. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 11, n. 3, p. 114-121, 2020. ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ; Vargas; Bittencourt, 2013VARGAS, D.; BITTENCOURT, M. N. Álcool e alcoolismo: atitudes de estudantes de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 66, n. 1, p. 84-89, 2013. DOI: 10.1590/S0034-71672013000100013
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300... ).

Entretanto, apesar das dificuldades enfrentadas por estes profissionais para cuidar deste público (Vargas; Luis, 2008VARGAS, D.; LUIS, M. A. V. Álcool, alcoolismo e alcoolista: concepções e atitudes de enfermeiros de unidades básicas distritais de saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. Esp., p. 543-550, 2008. DOI: 10.1590/S0104-11692008000700007
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200800... ), ao observar as atitudes de cada Fator separadamente, evidenciou-se uma tendência a atitudes positivas em relação à pessoa que apresenta complicações relacionadas ao uso de álcool e suas características pessoais, além das expectativas dos profissionais ao trabalhar com esses indivíduos. Tais resultados corroboram o encontrado na literatura que relata esta associação, independentemente de possuírem uma capacitação específica para a abordagem do uso de álcool (Caixeta; Pedrosa; Hass, 2016CAIXETA, L. M. M.; PEDROSA, L. A. K.; HAAS, V. J. Analysis of attitudes of Primary Health Care professionals regarding people with disorders due to alcohol use. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 12, n. 2, p. 84-91, 2016. ; Vargas, 2014VARGAS, D. Validação de construto da escala de atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e a pessoas com transtornos relacionados ao uso do álcool. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 41, n. 4, p. 106-111, 2014. DOI: 10.1590/0101-60830000000021
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000... ).

Ao mesmo tempo, diverge de outros estudos que apontam para um predomínio de atitudes negativas (Bezerra; Freitas; Amendola, 2020BEZERRA, M. E. T.; FREITAS, N. O.; AMENDOLA, F. O álcool, alcoolismo e o alcoolista: atitudes dos enfermeiros de uma Estratégia de Saúde da família. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 11, n. 3, p. 114-121, 2020. ; Ramírez; Vargas; Luis, 2019RAMÍREZ, E. G. L.; VARGAS, D.; LUIS, M. V. Atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e à pessoa com transtornos relacionados ao uso de álcool em enfermeiros colombianos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 24, 2019. DOI: 10.5380/ce.v24i0.58795
https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.58795... ; Vargas, 2014VARGAS, D. Validação de construto da escala de atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e a pessoas com transtornos relacionados ao uso do álcool. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 41, n. 4, p. 106-111, 2014. DOI: 10.1590/0101-60830000000021
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000... ). Essa diferença pode justificar-se pelo perfil especializado dos profissionais, já que a literatura mostra que, quanto mais especializados e preparados para atuarem com pessoas que fazem uso prejudicial de álcool, melhores são as atitudes, enquanto quanto maior o tempo de atuação no serviço, pior elas são (Vargas; Bittencourt, 2013VARGAS, D.; BITTENCOURT, M. N. Álcool e alcoolismo: atitudes de estudantes de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 66, n. 1, p. 84-89, 2013. DOI: 10.1590/S0034-71672013000100013
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300... ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ).

A limitação na formação dos profissionais é demonstrada em vários estudos, fazendo supor que os profissionais não tenham o hábito de abordar o tema de forma preventiva (Romero-Rodríguez et al, 2019ROMERO-RODRÍGUEZ, E. et al. Knowledge, attitudes and preventive practices of primary health care professionals towards alcohol use: a national, cross-sectional study. PLoS One, San Francisco, v. 14, n. 5, 2019. DOI: 10.1371/journal.pone.0216199
https://doi.org/10.1371/journal.pone.021... ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ; Vargas; Oliveira; Luís, 2010). De forma semelhante, esse melhor preparo dos profissionais sobre a temática pode ter ligação com as atitudes relacionadas à influência dos determinantes biopsicossociais do alcoolismo, abrangendo fatores psíquicos, biológicos e morais (Vargas, 2014VARGAS, D. Validação de construto da escala de atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e a pessoas com transtornos relacionados ao uso do álcool. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 41, n. 4, p. 106-111, 2014. DOI: 10.1590/0101-60830000000021
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000... ). As atitudes dos profissionais participantes tenderam a ser intermediárias nesse Fator e não negativas como em outros estudos (Bezerra; Freitas; Amendola, 2020BEZERRA, M. E. T.; FREITAS, N. O.; AMENDOLA, F. O álcool, alcoolismo e o alcoolista: atitudes dos enfermeiros de uma Estratégia de Saúde da família. Enfermagem em Foco, Brasília, DF, v. 11, n. 3, p. 114-121, 2020. ).

A tendência dos profissionais em aceitarem o alcoolista como pessoa (ao olharem para a pessoa que bebe - Fator 2), mas de não aceitarem da mesma forma sua doença (ao não se posicionarem frente à sua etiologia - Fator 3), sugere influências permeadas pelo estigma do uso prejudicial de álcool - idealizado como desviante dos bons costumes (Ramírez; Vargas; Luis, 2019RAMÍREZ, E. G. L.; VARGAS, D.; LUIS, M. V. Atitudes frente ao álcool, ao alcoolismo e à pessoa com transtornos relacionados ao uso de álcool em enfermeiros colombianos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 24, 2019. DOI: 10.5380/ce.v24i0.58795
https://doi.org/10.5380/ce.v24i0.58795... ; Pinho et al., 2018PINHO, P. H. et al. Atitudes das equipes dos serviços de atenção psicossocial em álcool e drogas. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, 2018. DOI: 10.24879/201800120010078
https://doi.org/10.24879/201800120010078... ; Oliveira et al., 2019OLIVEIRA, A. J. et al. A construção histórica do estigma sobre o conceito de dependência de álcool. Revista de Psicologia, Jaboatão dos Guararapes, v. 13, n. 44, p. 253-275, 2019. DOI: 10.14295/idonline.v13i44.1612
https://doi.org/10.14295/idonline.v13i44... ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ).

Nessa visão de caráter moral, o alcoolista não é visto como uma pessoa a ser tratada, mas como um caso crônico de repetição, que atrapalha o funcionamento do serviço de saúde. Este conceito, que ainda perdura e traz percepções estigmatizantes e estereotipadas, favorece a desmotivação dos profissionais a lidarem com esses sujeitos (Oliveira et al., 2019OLIVEIRA, A. J. et al. A construção histórica do estigma sobre o conceito de dependência de álcool. Revista de Psicologia, Jaboatão dos Guararapes, v. 13, n. 44, p. 253-275, 2019. DOI: 10.14295/idonline.v13i44.1612
https://doi.org/10.14295/idonline.v13i44... ; Vargas; Luis, 2008VARGAS, D.; LUIS, M. A. V. Álcool, alcoolismo e alcoolista: concepções e atitudes de enfermeiros de unidades básicas distritais de saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 16, n. Esp., p. 543-550, 2008. DOI: 10.1590/S0104-11692008000700007
https://doi.org/10.1590/S0104-1169200800... ). De tal forma, todo esse estigma e falta de conhecimento, que gera desconforto dos profissionais em abordar o consumo de álcool (Pinho et al., 2018PINHO, P. H. et al. Atitudes das equipes dos serviços de atenção psicossocial em álcool e drogas. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, 2018. DOI: 10.24879/201800120010078
https://doi.org/10.24879/201800120010078... ; Vargas; Bittencourt, 2013VARGAS, D.; BITTENCOURT, M. N. Álcool e alcoolismo: atitudes de estudantes de enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 66, n. 1, p. 84-89, 2013. DOI: 10.1590/S0034-71672013000100013
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201300... ), também pode ser observado em relação aos usuários dos serviços, conforme sinalizado na percepção desses profissionais e relatado na literatura, de que o próprio alcoolista não se reconhece como alguém que precisa ser cuidado ou, ainda, não se sente à vontade no serviço de saúde para revelar essa necessidade (Brasil, 2003BRASIL. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2003. ; Fontanella et al., 2011FONTANELLA, B. J. B. et al. Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é “perdido na tradução”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 573-85, 2011. DOI: 10.1590/S1414-32832011000200020
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201100... ; Soares; Vargas; Oliveira, 2011SOARES, J.; VARGAS, D.; OLIVEIRA, M. Atitudes e conhecimentos de profissionais de saúde diante do álcool, alcoolismo e do alcoolista: levantamento da produção científica nos últimos 50 anos. SMAD: Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas , Ribeirão Preto, v. 7, n. 1, p. 45-52, 2011. ).

Assim, reconhecendo que essa visão é influenciada pelo meio social nos saberes construídos pelos profissionais de saúde, assim como da sociedade em geral, e que as práticas em saúde são, também, sociais, a reprodução desta visão acaba por ser incorporada na atuação dos profissionais para além do conhecimento técnico-científico (Oliveira et al., 2019OLIVEIRA, A. J. et al. A construção histórica do estigma sobre o conceito de dependência de álcool. Revista de Psicologia, Jaboatão dos Guararapes, v. 13, n. 44, p. 253-275, 2019. DOI: 10.14295/idonline.v13i44.1612
https://doi.org/10.14295/idonline.v13i44... ; Souza; Menandro; Menandro, 2015SOUZA, L. G. S.; MENANDRO, M. C. S.; MENANDRO, P. R. M. O alcoolismo, suas causas e tratamento nas representações sociais de profissionais de Saúde da Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1335-1360, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000400015
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500... ), refletidas nas rotinas de trabalho como, por exemplo, na espera pela demanda espontânea do usuário. Porém, é influenciada também pelo modelo biomédico de atenção - ainda hegemônico no país -, que enfatiza uma abordagem de caráter moral sobre a etiologia do alcoolismo (Malvezzi; Nascimento, 2018MALVEZZI, D.; NASCIMENTO, J. L. Cuidado aos usuários de álcool na atenção primária: moralismo, criminalização e teorias da abstinência. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1095-1112, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00153
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001... ; Soares; Vargas; Formigoni, 2013SOARES, J.; VARGAS, D.; FORMIGONI, M. L. O. S. Atitudes e conhecimentos de enfermeiros frente ao álcool e problemas associados: impacto de uma intervenção educativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 47, n. 5, p. 1172-1179, 2013. ; Souza; Menandro; Menandro, 2015SOUZA, L. G. S.; MENANDRO, M. C. S.; MENANDRO, P. R. M. O alcoolismo, suas causas e tratamento nas representações sociais de profissionais de Saúde da Família. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1335-1360, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000400015
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500... ; Vargas; Luis, 2008) e de intervenção apenas quando os sintomas já estão presentes em quadros de dependência, ao invés de investigar o padrão de consumo dos usuários durante a rotina dos atendimentos (Fontanella et al., 2011FONTANELLA, B. J. B. et al. Os usuários de álcool, atenção primária à saúde e o que é “perdido na tradução”. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 15, n. 37, p. 573-85, 2011. DOI: 10.1590/S1414-32832011000200020
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201100... ).

A literatura aponta, ainda, outras características típicas deste modelo de atenção, como a expectativa de que o usuário, ao procurar o serviço, acredite que a abstinência total é a melhor solução, quando já é comprovado que a abordagem de redução de danos seria a mais apropriada (Malvezzi; Nascimento, 2018MALVEZZI, D.; NASCIMENTO, J. L. Cuidado aos usuários de álcool na atenção primária: moralismo, criminalização e teorias da abstinência. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1095-1112, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00153
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001... ). Ou, ainda, gere sentimento de impotência, raiva e rejeição dos profissionais de saúde diante de situações que parecem desorganizar sua rotina de trabalho, como na chegada de uma pessoa alcoolizada, cujo comportamento pode parecer inadequado e fora dos padrões de “civilidade” (Malvezzi; Nascimento, 2018MALVEZZI, D.; NASCIMENTO, J. L. Cuidado aos usuários de álcool na atenção primária: moralismo, criminalização e teorias da abstinência. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1095-1112, 2018. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00153
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol001... ; Vargas; Oliveira; Luís, 2010), o que acaba por manter essas pessoas ainda mais distantes dos serviços.

Assim, ao reconhecer que todas essas características estão refletidas nas atitudes e práticas profissionais, pode-se considerar, também, que exercem influência no modelo de atenção operacionalizado nos diferentes serviços de APS, como no fato dos profissionais atuantes nos serviços organizados conforme o arranjo ESF terem demonstrado, de forma geral, atitudes mais positivas frente ao álcool, ao alcoolismo e ao alcoolista, quando comparados com aqueles alocados em UBS tradicionais. Além disso, se aproximaram do limiar de significância em relação às atitudes voltadas ao trabalhar com alcoolistas e ao alcoolista como pessoa, reforçando as hipóteses desse arranjo possuir um olhar ampliado de saúde (modelo biopsicossocial) e um processo de trabalho mais voltado para as necessidades de saúde da comunidade, além do favorecimento por localizar-se mais próximo da população (Fertonani et al., 2015FERTONANI, H. P. et al. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1869-1878, 2015. DOI: 10.1590/1413-81232015206.13272014
https://doi.org/10.1590/1413-81232015206... ).

Entretanto, apesar da maior resolutividade atribuída aos serviços organizados no arranjo ESF (Flôr et al., 2017FLÔR, C. R. et al. Primary health care as assessed by health professionals: comparison of the traditional model versus the Family Health Strategy. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 714-726, 2017. DOI: 10.1590/1980-5497201700040013
https://doi.org/10.1590/1980-54972017000... ; Macinko, Medonça, 2018MACINKO, J.; MENDONÇA, C. S. Estratégia saúde da família: um forte modelo de atenção primária à saúde que traz resultados. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. especial 1, p. 18-37, 2018. ), uma série de deficiências são evidenciadas pela literatura, destacando a dificuldade na implantação do modelo de atenção ampliado de saúde para esse público, por meio de atendimento interdisciplinar e ações de matriciamento (Sanine; Silva, 2021SANINE, P. R.; SILVA, L. I. F. Saúde mental e a qualidade organizacional dos serviços de atenção primária no Brasil. Caderno de Saúde Pública, Rio de janeiro, v. 37, n. 7, 2021. DOI: 10.1590/0102-311X00267720
https://doi.org/10.1590/0102-311X0026772... ) e menos centrados no corpo biológico e na medicalização (Fertonani et al., 2015FERTONANI, H. P. et al. Modelo assistencial em saúde: conceitos e desafios para a atenção básica brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1869-1878, 2015. DOI: 10.1590/1413-81232015206.13272014
https://doi.org/10.1590/1413-81232015206... ).

Algumas limitações merecem ser pontuadas, especialmente em relação ao baixo número de participantes e ao fato da maioria atuar na ESF, sugerindo que aqueles que aceitaram participar poderiam ser pessoas previamente mais sensíveis ao tema, pelo próprio processo de trabalho operacionalizado na rotina dos serviços organizados no arranjo ESF. Apesar da não diferenciação entre os profissionais de saúde (se médico ou enfermeiro) ter favorecido o anonimato dos participantes, tal fato impossibilitou evidenciar diferenças importantes entre as suas atitudes e padrões do próprio consumo. Reconhece-se, ainda, a existência de outras características que podem influenciar em tais atitudes, como o nível de conhecimento e utilização de ferramentas de rastreio para uso prejudicial de álcool, intervenção breve e tratamento de dependência alcoólica, a religiosidade dos profissionais, assim como a história de alcoolismo na família, que não foram analisados no presente estudo. Entretanto, ainda assim, seus resultados permitiram identificar importantes fatores associados às atitudes de profissionais da APS quanto ao consumo e uso prejudicial de álcool e o alcoolismo dos usuários da APS, bem como suas percepções sobre as possíveis mudanças de consumo dos usuários durante a pandemia de covid-19, favorecendo o aprofundamento em estudos futuros.

Considerações finais

No geral, os profissionais apresentaram atitudes intermediárias, que denotam ambivalência frente a determinado objeto, ou mesmo dificuldade de se posicionar. Embora tenham demonstrado atitudes positivas frente à pessoa do alcoolista, foram intermediárias em relação ao trabalhar com alcoolista, à etiologia do alcoolismo e à bebida alcoólica e ao direito de beber, sugerindo desconhecimento sobre o assunto, assim como reflexos da estigmatização da doença e suas questões morais. Ao mesmo tempo, a associação dessas atitudes com características pessoais, como sexo, cor da pele e se mora acompanhado, assim como ao consumo pessoal de álcool, reforçam a concepção de construção sócio-histórica de tais atitudes, alertando para a necessidade de intervenções junto à sociedade, assim como na formação profissional.

A associação de atitudes positivas frente ao álcool, alcoolismo e alcoolista com os serviços de APS organizados segundo o arranjo ESF, embora não permita estabelecer relações de causalidade, sugere que a maior proximidade com a população e a organização de modelo de atenção centrado na integração biopsicossocial, conforme as necessidades de saúde da pessoa, da família e da comunidade, possam ter influenciado neste resultado, reafirmando o potencial desse arranjo organizacional, também, para a temática do álcool.

Por fim, reconhece-se que há muito o que se avançar em relação às atitudes dos profissionais de saúde para que ofereçam uma assistência qualificada aos usuários de álcool. Porém, a disseminação de conhecimento específico sobre a doença e a pessoa que faz uso de álcool parece ser uma das principais estratégias de enfrentamento deste importante agravo à saúde.

Referências

Datas de Publicação

Histórico