“Ainda bem que não foi na barriga!”: revisitando uma cena etnográfica de violência contra a mulher

“Thank God it was not the belly!”: revisiting an ethnographic scene of violence against women

Mónica Franch Sobre o autor

Resumo

Neste artigo, retomo uma cena de violência contra a mulher que vivenciei no ano de 2003 no curso de uma pesquisa etnográfica sobre relações de gênero no Programa Saúde da Família em Recife (PE), para refletir sobre os dilemas éticos da pesquisa antropológica e, especificamente, sobre as dimensões afetivas e emocionais do fazer etnográfico em campos sensíveis. Para isso, reproduzo os trechos do diário de campo que compõem a cena de violência e faço uma análise pormenorizada dos eventos que se sucederam à agressão, pela chave de duas emoções: “medo dos homens” e “impotência”, que ajudam a compreender as reações da equipe de saúde e da própria antropóloga. O reencontro da cena em questão, 20 anos depois, no contexto da apresentação de uma pesquisa contemporânea sobre violência contra a mulher, me permite problematizar mudanças e permanências dos modos de fazer etnografias em saúde em campos sensíveis.

Palavras-chave:
Etnografia; Violência Contra a Mulher; Emoções; Ética

Abstract

In this article, I look back at an ethnographic scene of violence against women that I observed in 2003, during ethnographic research on gender relations in the Family Health Program, in Recife (Brazil), to discuss the ethical dilemmas of anthropological research and, specifically, the affective dimensions and emotional aspects of ethnographic work in sensitive fields. To that end, I reproduce the excerpts from my fieldnotes comprising the scene of violence and analyze in detail the series of events that took place after the aggression, based on two emotions: “fear of men” and “impotence,” which help to understand the reactions of health team and the anthropologist herself. Reencountering the scene, 20 years later, in the context of the presentation of a contemporary research on violence against women allows me to discuss changes and continuities in the ways we do ethnographic research on health issues in sensitive fields.

Keywords:
Ethnography; Violence against Women; Emotions; Ethics

Quero, em vez disso, encontrar um modo de reconhecer o fato de que minha atenção foi petrificada em certos momentos (etnográficos) dos quais nunca pude - ou nunca quis - me livrar. (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 351)

Certas cenas do trabalho de campo ficam alojadas na nossa memória de forma indelével. Mesmo depois de anos de encerrada a pesquisa, elas podem continuar a nos assombrar como fantasmas, produzindo um vago sentimento de desconforto e um conjunto de questões incômodas que permanecem em aberto: por que fiz ou deixei de fazer tal coisa naquele momento? Foi essa a melhor atitude diante dos fatos observados? Até que ponto minha presença afetou negativamente o desenrolar daquela situação? Como me conduziria hoje diante de circunstâncias semelhantes?

Marilyn Strathern (2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014.) nomeia de “momentos etnográficos” aqueles eventos que se singularizam na observação por condensar ou objetivar as relações que se busca evidenciar. Partindo da compreensão de que o trabalho do antropólogo se divide em dois campos que exigem igual imersão, a pesquisa in situ e a escrita, o momento etnográfico põe ambos os campos em relação, tornando-se ocasiões privilegiadas “de conhecimento ou de discernimento” (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 350).

Neste ensaio, parto da inspiração de Strathern para retomar uma cena etnográfica que capturou minha atenção no curso de uma pesquisa em uma comunidade de baixa renda na cidade de Recife (PE), nos idos do ano 2003. A pesquisa em questão, promovida pela Coordenadoria da Mulher da Prefeitura do Recife11Pesquisa intitulada “Relações de gênero no Programa Saúde da Família do Recife”, desenvolvida pela Coordenadoria da Mulher e a Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura do Recife, em parceria com a Escola de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (ESP/USP), o Núcleo de pesquisas em Família, Gênero e Sexualidade (FAGES/UFPE) e a organização feminista SOS Corpo. visava identificar as questões de gênero que apareciam no cotidiano do então denominado Programa Saúde da Família (PSF), tanto no âmbito assistencial como no contexto comunitário, bem como o modo pelo qual as equipes de trabalho enfrentavam tais questões (Schraiber, 2005SCHRAIBER, L.B. Eqüidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do Programa Saúde da Família. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (ORG.) Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco; Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, 2005. p. 39-60.). O objetivo final era auxiliar a Prefeitura de Recife a produzir ações que melhorassem o atendimento às mulheres no âmbito do PSF, numa perspectiva de gênero. Fazia parte do desenho da pesquisa realizar etnografias junto a equipes do PSF de comunidades escolhidas aleatoriamente nos seis distritos de saúde da cidade. Como uma das pesquisadoras de campo do projeto, acompanhei durante dois meses o cotidiano de uma equipe de saúde composta por seis agentes comunitárias de saúde (ACS), uma auxiliar de enfermagem, uma enfermeira e uma médica, tanto dentro como fora da unidade de saúde da comunidade que me foi atribuída. Foi em uma das saídas às ruas, em companhia da enfermeira da equipe e de duas ACS, que me vi em meio à situação de violência contra a mulher de que tratarei neste artigo. O uso que farei dessa cena ou momento etnográfico não nos conduzirá, entretanto, a reflexões sobre os temas que mobilizaram a pesquisa naquela ocasião (relações de gênero, atenção básica de saúde, violência). Aqui, meu olhar se volta para refletir sobre os dilemas éticos da pesquisa antropológica e, especificamente, sobre as dimensões afetivas e emocionais do fazer etnográfico em campos sensíveis (Albera, 2001ALBERA, D. Terrains minés. Ethnologie française, Paris, v. 31, n. 1, p. 5-13, 2001.).

Destaco três elementos da pesquisa que serão importantes para explicitar alguns dilemas e conflitos encontrados. Em primeiro lugar, o fato de se tratar de uma pesquisa “encomendada” por uma coordenadoria da Prefeitura do Recife, instituição gestora do PSF, me colocava numa posição ambígua diante das equipes, podendo ser compreendida (e me compreender!) como “fiscal” de suas ações, apesar da garantia de que os resultados da pesquisa não causariam qualquer malefício a suas participantes. Em segundo lugar, observar questões envolvendo gênero, sexualidade e saúde em uma comunidade empobrecida da cidade de Recife significou, muitas vezes, tomar conhecimento de situações de extrema vulnerabilidade e provocadoras de muito sofrimento, tanto para as mulheres usuárias da unidade de saúde como, em menor medida ou de modo diferente, para as equipes. Por fim, tratava-se de uma comunidade com altos índices de pobreza e marcadas dinâmicas de violência, situações que permeavam as práticas de cuidado em saúde e exigiam constantes negociações por parte das equipes.

O artigo está dividido em quatro partes. Inicialmente reproduzo ipsis litteris a passagem ou cena etnográfica objeto de minha reflexão. Em seguida, caracterizo o medo como a principal emoção mobilizada diante da cena, trazendo para a discussão o entrelaçamento dessa emoção com a dimensão de gênero. A terceira parte discute de modo mais aprofundado alguns dilemas éticos vividos pela antropóloga, pondo foco no sentimento de impotência. Por fim, retorno à cena no momento atual, a partir da sua menção no presente por outra pesquisadora, o que me permitiu pôr em perspectiva alguns dos conflitos que me assombraram em relação à cena e refletir sobre as mudanças nos modos de fazer etnografias em saúde.

Relendo o diário de campo e retornando à cena

O diário de campo é uma importante ferramenta em antropologia, a maneira pela qual “inscrevemos” o discurso social (Geertz, 1981GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1981., p. 29), fixando no texto, de forma indelével, aspectos do fluxo da vida que de outro modo restariam no passado ou no terreno nebuloso da memória. Mais do que apenas um registro, o diário é uma forma de construir o conhecimento enquanto estamos em campo e depois de concluída a pesquisa, em uma temporalidade estendida e aberta a releituras. Todavia, o diário de campo costuma ficar nos bastidores dos nossos textos acadêmicos, sendo frequentemente entendido como “base empírica” que sustenta a trama elaborada das nossas análises. Conforme Soraya Fleischer (2018FLEISCHER, S. Cenas de microcefalia, de cuidado, de antropologia (Recife, setembro de 2017). Cadernos de Campo, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 118-131, 27 out. 2018., p. 128) assinala, o diário de campo é “uma das formas de escrita mais comuns, exaustivas e presentes na nossa lida profissional, mas paradoxalmente desvalorizado em nossos textos finais”.

Na contramão dessa tendência, começo minha reflexão retornando à cena etnográfica em que me vi envolta, a partir das anotações contidas no meu diário. Como integrante de uma pesquisa coletiva, com a função específica de fazer parte do trabalho de campo que alimentaria as análises posteriores dos coordenadores do projeto, o diário de campo tinha um caráter híbrido: ele era um documento de uso coletivo, mas era, também, um texto indiscutivelmente pessoal. Sua releitura, 20 anos depois, não traz apenas o relato de “fatos observados”. Ele se mostra, ademais, um registro bastante exaustivo das reações da antropóloga que eu era: sua visão de mundo, suas estratégias em campo, suas avaliações e ensaios de compreensão do que ocorria à sua volta, suas afetações e emoções, enfim. O uso da terceira pessoa do singular é proposital aqui, pois eu me reconheço e não me reconheço no texto que hoje reencontro, numa exemplificação involuntária da “ilusão biográfica” de Pierre Bourdieu (2006BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J.; PORTELLI, A. Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-221.). Me reaproprio da cena etnográfica, portanto, não apenas “por sobre os ombros” das suas protagonistas, parafraseando Clifford Geertz (1981GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1981.), mas também “por sobre os ombros” da própria etnógrafa, à época uma antropóloga de 34 anos de idade, vivendo de frilas na entressafra do mestrado ao doutorado e com forte identificação com o ideário feminista que norteava a pesquisa.

A cena em questão faz parte das anotações correspondentes à tarde do dia 11 de junho de 2003 e vem anunciada com o seguinte subtítulo: “Um flagrante de violência contra a mulher - nada sei, nada faço, não me meto”. Transcrevo a seguir o trecho principal da observação.22Optei por inserir os trechos do diário de campo no mesmo tamanho de fonte do restante do texto para facilitar a leitura e assim valorizar sua inserção. Apenas optei por colocar em itálico, para assinalar que se trata de um texto transcrito.

Num determinado ponto, avistamos uma mulher, do lado de fora da casa, e duas crianças sentadas na escadaria de cimento. Bianca33Todos os nomes são fictícios, inclusive o da comunidade. Os diários de campo (com os nomes reais) eram escritos no computador e enviados semanalmente para a coordenação da pesquisa. O trecho transcrito corresponde à terceira semana de observação.[enfermeira] e Marcela [ACS] comentam: “hoje, ao menos, eles estão vestidos”, como quem diz que a mulher tem costume de deixar as crianças nuas na rua. Aparentemente, é um comentário de censura e desaprovação. Passamos pela frente dessa mulher e Bianca a cumprimenta. Marcela fica conversando um pouco e nós [eu, Bianca e Mabel, a segunda ACS que acompanhou a saída] paramos esperando por ela […]. Nessas estamos quando Marcela volta da conversa e diz para Bianca: “ela disse que uma mulher acaba de ser esfaqueada, está sangrando e o marido não quer que ela vá para o hospital”. Seguem algumas indagações rápidas para saber onde foi isso. Marcela aponta com a cabeça - há um corredor de quartos (do lado de fora fica a mulher que falou com ela) e num desses quartos acabou de acontecer a violência. A sensação que passa é que tudo está acontecendo agora. Marcela deixa entender que a mulher que falou com ela espera que elas façam alguma coisa. E aí, Bianca diz muito calmamente: “Eu não vou entrar aí. Ela pode se dessangrar, que eu não entro. Se ele esfaqueou a mulher, quanto mais a gente”. Bianca testa com Marcela se ela quer entrar e Marcela diz: “Eu? Ali ninguém mora não, se esconde”. Bianca diz para Marcela: “pergunta se ela não quer entrar?”, se referindo à mulher que deu as informações. Em seguida, aparece o marido dessa mulher pela porta e Bianca indaga: “pergunta se o marido não quer ir lá ver”. Mas Marcela faz um gesto como quem diz que o marido não vai querer ir até lá. Mesmo assim, Marcela se aproxima da casa. Nós [eu, Bianca e Mabel] ficamos no mesmo lugar. Bianca continua irredutível: “eu não vou me meter nessa briga”. Mabel fica observando [à distância] e em pouco tempo diz: “Ela entrou!”. Bianca não se move um centímetro em direção à casa.

Em pouco tempo, vemos chegar uma mulher de uns 40 anos, chorosa, vestindo um short e uma camiseta branca. A mulher é branca, de olhos claros. A facada atingiu o braço esquerdo, fez um buraco na carne dela. A mulher carrega um pano sujo de sangue. A ferida não está sangrando nesse momento. Bianca parece aliviada com isso e fala de forma que eu achei frívola: “Ah, pensava que era na barriga! Isso não é nada”. Uma das agentes reafirma que pensava que o corte tinha sido na barriga. Bianca olha o corte e diz: “Isso não foi nada, viu? Você vai no Bandeira Filho [hospital mais próximo], vão dar dois pontos, não precisa dizer o que foi, diz que levou uma queda”. E mais tarde refaz essa orientação: “Se quiser dizer, diz”. A mulher, soluçando, olha para o braço e diz: “Obrigado”, já voltando para sua casa. Antes, um homem se aproxima (é o pai dos meninos que estavam do lado de fora, casado com a mulher que deu a informação a Marcela) e diz para ela: “Se tivesse sido na barriga, eh”, como alertando-a de que numa outra vez a coisa pode ser mais grave. Ela a todos olha e nada fala. Está muito chocada.

Marcela ainda volta para o lugar e fica conversando um pouco sobre o caso com as vizinhas. Quando volta [até onde nós estamos], diz que o marido tentou atingir o corpo dela e que ela parou a facada com o braço. O único comentário de Bianca é em forma de pergunta: “ele estava alcoolizado?” Marcela diz que não chegou a ver o homem. Outra indagação é a respeito de se o homem irá deixar a mulher ir até o hospital ou não. Mais tarde, na cozinha, Marcela irá me dar outras informações sobre o caso. Mas nós, agora, continuamos o passeio pela comunidade. A sensação que eu tenho é que, para elas, nada de significativo aconteceu. Não houve acolhimento algum, nem possibilidade de escuta. Tratava-se de limpar a consciência (um corte no braço não é nada grave) e sair de cena o antes possível, para evitar desdobramentos indesejáveis.

“Uma comunidade de homens muito violentos”: gênero e emoções em campo

A cena que presenciei foi uma expressão explícita de um fenômeno comum a todas as unidades básicas que participaram da pesquisa: a violência contra as mulheres. Como Schraiber (2005SCHRAIBER, L.B. Eqüidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do Programa Saúde da Família. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (ORG.) Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco; Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, 2005. p. 39-60., p. 56) observou, as seis equipes das unidades investigadas se depararam com demandas relacionadas a violências de gênero, mas não as assumiram como sendo passíveis de uma intervenção em saúde, por uma série de fatores:

Os comentários das profissionais sobre a violência contra as mulheres são eivados de preconceitos, mas há também um grande sentimento de impotência e medo, que, associado à inexistência de protocolos de atenção e de uma rede de referência, dificulta e mesmo impossibilita o atendimento dos casos. (Schraiber, 2005SCHRAIBER, L.B. Eqüidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do Programa Saúde da Família. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (ORG.) Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco; Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, 2005. p. 39-60., p. 56, grifo nosso)

Voltemos rapidamente ao contexto temporal de realização da pesquisa. 2003 é o primeiro ano do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e o ano de criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). No Brasil, os principais equipamentos do Estado para enfrentar a violência contra a mulher até então eram as Casas-Abrigo e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), cuja atuação, embora representasse uma conquista importante, não estava isenta de problemas (Machado, 2010MACHADO, L. Z. Feminismo em movimento. 2. ed. São Paulo: Verbena Editora, 2010.). Demoraria ainda algum tempo para a Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher ser efetivamente organizada (Brasil, 2011BRASIL. Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres . Acesso em: 2 set. 2023.
https://www12.senado.leg.br/instituciona...
). Já no plano local, a Coordenadoria da Mulher da Prefeitura de Recife, instaurada em 2001, havia criado o Programa de Assistência e Prevenção à Violência Doméstica e Sexista em 2002, ano em que também foram inauguradas a Casa Abrigo Sempre Viva e o Centro de Referência Clarisse Lispector (Adrião et al., 2016ADRIÃO, K. G. et al. A política para as mulheres em Recife (2001-2016): memórias e olhares. Recife: Editora UFPE, 2016.). A rede municipal estava, portanto, engatinhando. Era, ainda, um tempo anterior à Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, marco relevante não apenas pelo dispositivo legal em si, mas também pelo importante debate que suscitou. Pondo de lado a dimensão institucional do problema, é a atitude das equipes e o clima emocional que se estabelece em relação aos homens e às mulheres usuários das unidades que aqui me interessam, especialmente no que diz respeito à emoção do medo, seu entrelaçamento com dinâmicas de gênero e suas consequências práticas na atuação cotidiana do então Programa Saúde da Família.

Em todos os territórios pesquisados, as equipes demonstravam ter “medo dos homens” (Schraiber, 2005SCHRAIBER, L.B. Eqüidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do Programa Saúde da Família. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (ORG.) Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco; Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, 2005. p. 39-60., p.56), tanto na condição de possíveis usuários como na posição de companheiros, pais, filhos e vizinhos em comunidades imersas em dinâmicas de violência de várias ordens. Parecia existir uma certa naturalização da condição violenta dos homens, à qual correspondia uma atitude de temor por parte das equipes, compostas majoritariamente por mulheres, configurando uma evidente generificação das emoções (Díaz-Benítez, 2019DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O gênero da humilhação. Afetos, relações e complexos emocionais. Horizontes Antropológicos, [s. l.], v. 25, p. 51-78, Acesso em: 5 ago. 2019., p. 58). Diversas passagens do meu diário registram essa percepção do masculino como ameaça na unidade pesquisada. Logo no primeiro dia de minha chegada em campo, ao apresentar o objetivo da pesquisa à equipe reunida numa das salas da unidade de saúde, as ACS trouxeram situações que envolviam desconforto e medo no contato com homens da comunidade. Seguem as anotações do meu diário:

[Uma das ACS] diz que não faz visita onde tem homem solteiro. “Tem casa que eu não me atrevo a entrar”. Ela refere-se a um caso particular: “Eu sei por que a mulher saiu, eu sei por que a filha saiu…”, numa insinuação de que o marido/pai estaria talvez abusando das duas mulheres (Trecho do diário de campo, 29 de maio de 2003).

Marcela diz que na área há muitas casas de aluguel, corredores de quartos, cômodos onde moram homens. Esses homens são “gente que ninguém conhece” e por isso ela não gosta de ir lá. “Muitas nem cadastro eu fiz. Eu não entro”. Conta que a primeira vez que ela tentou entrar num corredor de quartos para fazer o cadastro de um homem, ele era um fugitivo: “fiquei no muro, tive medo”. (Trecho do diário de campo, 29 de maio de 2003).

A caracterização do território como “uma comunidade de homens muito violentos”, nas palavras da enfermeira Bianca, fazia referência ao entrelaçamento entre violência “de gangue” (conforme me foi apresentada) e da violência machista. Mas era em relação à primeira modalidade de violência que as preocupações se voltavam com maior frequência. Essa compreensão vinha acompanhada de uma recomendação de como direcionar a atenção nas visitas à área:

Uma ACS diz: “tem lugar que você está correndo risco de vida, mesmo fardado”. Por isso, quando estão pela área todas têm que ir com muita cautela, olhando sempre o que está acontecendo ao redor. “Se estiver desligado, já viu”. Quando vêm um movimento estranho, pode ser que estejam “atrás” de alguém, o que tenha acontecido um tiroteio. Bianca diz que “todas já sabem” essas estratégias de observação do movimento e que “a gente aprendeu com elas”, ou seja, com as agentes (Trecho do diário de campo, 29 de maio de 2003).

Naquele primeiro contato, o medo apareceu como uma emoção relatada à pesquisadora que começava adentrar a área, talvez servindo como alerta, talvez promovendo uma certa aura de heroísmo ao trabalho ali desenvolvido, ou talvez ambas as coisas. De todo modo, havia ali uma narrativa sobre uma emoção - caracterizada pelo medo - enquanto guia necessário para se manter atento (e vivo!) no território, a partir do acionamento da “cautela”. A diferença com a cena em análise, entretanto, é que nessa ocasião não se tratou de uma emoção narrada à pesquisadora; a violência e as reações que se seguiram foram efetivamente presenciadas e vivenciadas por todas nós no aqui e agora, o que deu um tom diferencial a essa passagem do diário de campo.

Relendo minhas anotações, é nítida a emergência do medo como emoção dominante e imediata diante do anúncio da violência em curso. Porém, embora compartilhada, a forma como essa emoção foi incorporada por cada uma de nós foi diferente. A enfermeira Bianca, mulher branca,44As classificações de raça/cor não foram por autoidentificação e sim pela minha percepção. O debate sobre relações étnico-raciais avançou muito nesses últimos 20 anos e entendo que, hoje, esse critério seria considerado inválido. Esse estranhamento, porém, faz parte do exercício deste artigo, de retorno a um campo realizado em um momento histórico não tão distante mas de muita mudanças significativas. de classe média, por volta dos 35 anos, teve uma reação de imobilidade física: ficou em pé no exato lugar onde recebeu a notícia, sem dar um passo à frente nem um passo atrás. Essa atitude corporal veio acompanhada de comentários denotadores de como aquela situação foi percebida por ela de forma ameaçadora, distanciando-a de uma possível responsabilidade em relação ao caso: “Eu não vou entrar aí. Ela pode se dessangrar, que eu não entro. Se ele esfaqueou a mulher, quanto mais a gente”. A agente de saúde que nomeei como Mabel, uma jovem identificada em minhas anotações como parda, moradora da comunidade, mas não responsável por aquela microárea, manteve-se conosco no lugar, porém passou a acompanhar a movimentação com seu olhar, dirigindo ativamente sua atenção até o lugar dos fatos: “Mabel fica observando [à distância] e em pouco tempo diz: ‘Ela entrou!’ Bianca não se move um centímetro em direção à casa”. Já a agente de saúde responsável por aquela microárea,55O trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde era distribuído espacialmente em unidades denominadas “microáreas”. Marcela (mulher jovem, branca e moradora da comunidade), se afastou de nós e foi em direção ao local da agressão, mantendo-se em distância segura, perto das demais pessoas que acompanhavam a cena. Desse ponto de observação, Marcela realizou uma intervenção que retirou a mulher da zona imediata de risco. Foi no retorno à unidade de saúde naquela mesma tarde que consegui os detalhes da atuação dessa agente de saúde:

Chegando na unidade, Marcela se dirige à copa e eu vou atrás dela, com a desculpa de que estou morrendo de sede. Mas na verdade estou querendo saber se o caso vai ficar por isso mesmo e também como foi a cena que se desenrolou no beco, enquanto Bianca, Mabel e eu ficávamos a uma distância de segurança da cena da agressão. Quando Marcela me conta o que fez, acho que a atitude dela foi bastante correta, diferentemente da indiferença de Bianca. Marcela ficou conversando com Sandra [moradora que informou do evento], com os olhos voltados para o corredor de quartos onde a mulher tinha sido agredida. A vítima não estava mais dentro de casa, e sim do lado de fora, ainda no corredor. Olhou para ela e Marcela perguntou: “Pode vir até aqui?”. Ela se aproximou até a metade do corredor, olhando para trás, e mostrou a ferida no braço perguntando: “Será que pegou na veia?” Marcela disse: “Não sei, mas a enfermeira da gente está aqui fora. Se você puder sair até ali, ela vai dar uma olhada”. A mulher olhou novamente para trás e se chegou até onde Marcela estava. Foi nesse momento que elas entraram no nosso campo de visão e Bianca interveio. (Trecho do diário de campo, 29 de maio de 2003).

Nos três casos, a “cautela” norteou as atitudes da equipe, mas ela posicionou as três mulheres de maneira diferenciada, a partir de sua maior ou menor proximidade com a situação observada - Bianca, socialmente menos identificada com a comunidade, e com menos contatos por sua atuação cotidiana no interior da unidade, manteve-se mais afastada; Mabel, moradora da comunidade e responsável por outra microárea, ocupou uma posição intermediária, com o corpo imóvel mas a atenção voltada para o evento; enquanto Marcela, responsável pela microárea, foi a que chegou mais perto do lugar onde a violência havia efetivamente ocorrido. Mas, e quanto à antropóloga?

Por que essa cena sempre retorna? Sobre impotência, dilemas éticos e outros fantasmas do campo

Se minha interpretação faz sentido (maior proximidade social e programática se traduzindo numa maior proximidade física do local da violência), o corpo da antropóloga ocupava, ali, a posição de maior externalidade (mulher branca, estrangeira, de classe média e vinculada à universidade), logo, provavelmente também atuaria com o maior distanciamento da cena. Há algumas pistas no diário que me situam na mesma linha de observação que a enfermeira e a ACS Mabel: “Nós [eu, Bianca e Mabel] ficamos no mesmo lugar”. Contudo, preocupada em descrever aquela cena em seus mínimos detalhes, minhas emoções e minha própria atitude corporal não foram evidenciadas no diário; elas devem ser procuradas nas entrelinhas do texto. Algumas frases mostram que eu também estava com “medo dos homens”, o que se expressava em um sentimento de urgência: “A sensação que passa é que tudo está acontecendo agora”. O medo desse homem desconhecido, capaz de esfaquear a companheira, “quanto mais a gente”, e que “se esconde” em um corredor de quartos alugados, foi uma emoção aprendida nas três semanas anteriores à cena, ao acompanhar o cotidiano das equipes. Uma “afetação”, posso dizer, no sentido dado por Jeanne Favret-Saada (2005FAVRET-SAADA, J. “Ser afetado”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155, 30 mar. 2005., p. 159), como um tipo de conhecimento que se distancia da observação racional em favor de “uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não”.

Por outro lado, a sensação de urgência não pode ser reduzida ao medo. Ela também expressava a imperiosa necessidade de realizar algum tipo de intervenção que colocasse aquela mulher (mesmo que momentaneamente) a salvo, lembrando que, antes de ela aparecer no nosso campo de visão, não tínhamos conhecimento exato da dimensão da agressão sofrida. Medo, apreensão e urgência fazem parte de um primeiro conjunto de emoções mobilizado por mim no momento inicial do encontro com a mulher agredida. Foram emoções que me conectaram às demais participantes da cena - Bianca, Marcela e Mabel, a mulher agredida, a vizinha, o marido da vizinha. Todavia, boa parte do meu relato se afasta desse foco de atenção (a mulher agredida) e se volta para a atuação da equipe diante da cena que estávamos compondo.

Até certo ponto, a mudança do foco de atenção (da mulher para a equipe) pode ser entendida como desdobramento lógico da pesquisa: se eu estava ali para pesquisar o modo como as equipes de saúde lidavam com as questões de gênero, que ocasião mais oportuna do que aquela? Todavia, lembrar daquela cena ou reler as páginas do diário provoca em mim uma desagradável sensação de desassossego que não se dirige unicamente à gravidade da cena em que me vi envolvida, mas à minha atitude diante dela: a opção pelo testemunho. Em sua clássica análise sobre a violência no Punjab por ocasião da Partição da Índia, Veena Das (2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, p. 9-41, dez. 2011.) utiliza a metáfora do veneno para expressar a maneira como mulheres que testemunharam e/ou sofreram a violência da Partição trazem essa lembrança para o presente, como um “conhecimento envenenado”, nunca explicitado, que subjaz à tarefa cotidiana de refazer o mundo. Silêncio e trabalho do tempo são duas dimensões complementares que moldam, inclusive, o próprio fazer etnográfico da autora. De modo inverso, ao testemunhar aquela cena de violência, anotei cuidadosamente as ações da equipe, primeiro mentalmente e depois no meu diário de campo, que posteriormente partilhei com a coordenação da pesquisa. Ali onde as mulheres indianas silenciavam, eu escrevia. Afinal, não é isso que antropólogos fazem - “O etnógrafo ‘inscreve’ o discurso social: ele o anota” (Geertz, 1981GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1981., p. 29, grifo nosso)?

Retomo a metáfora do veneno para pensar a recorrência dessa cena em minhas lembranças: um conhecimento que envenena por dentro, que não pode ser totalmente digerido. Resta saber o que ficou me envenenando: o fato de ter presenciado o resultado de uma agressão violenta que ficou sem acolhimento; a minha atitude de testemunha diante dessa cena, transformando aquele drama humano em uma “oportunidade etnográfica”; a sensação de ser uma “dupla traidora” (Fonseca, 2021FONSECA, C. Prefácio. In: FERREIRA, J.; BRANDÃO, E. R. Reflexividade na pesquisa antropológica em saúde: desafios e contribuições para a formação de novos pesquisadores. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 2021.), por não auxiliar a mulher agredida, contrariando meus ideais feministas, e por trair a confiança da equipe ao descrever para outros, de forma tão pouco amável, suas atitudes diante dessa situação.

Dilemas como esses, que põem em jogo dimensões éticas, afetivas e emocionais do trabalho de campo, são comuns em campos sensíveis ou diante de situações que se tornam “terrenos minados” (Albera, 2001ALBERA, D. Terrains minés. Ethnologie française, Paris, v. 31, n. 1, p. 5-13, 2001.). Em sua pesquisa de campo com parteiras em Melgaço (Pará), Soraya Fleischer enfrentou dilemas muito mais agudos por ter contribuído financeiramente para a “fuga” de uma mulher de seu marido violento, o que lhe valeu ameaças do homem abandonado e a incompreensão de várias outras interlocutoras - situações que posteriormente foram contornadas, mas que lhe renderam dias de muita solidão em campo. Refletindo posteriormente sobre esse momento de tensão, Fleischer escreveu:

Por outro lado, eu precisei equacionar meus escrúpulos feministas (como não ajudar uma mulher espancada?), as normas locais (muitos se abstiveram de ajudar, como D. Dinorá, o delegado, os vizinhos, por exemplo), os princípios éticos antropológicos (o respeito à cultura local e aos nossos interlocutores) e o risco de morte que me rondou. Este dilema - que prossegue neste momento de textualizar a experiência - foi a forma de conviver com os imponderáveis gerados por esse conflito conjugal e por minha implicação no mesmo. (Fleischer, 2010FLEISCHER, S. Hematomas, terçados e riscos. Teoria & Pesquisa, São Carlos, v. 19, n. 1, 17 dez. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/view/209 . Acesso em: 3 set. 2023.
https://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/in...
, p. 109, grifo da autora)

No meu caso, se o medo foi uma emoção que me aproximou da equipe, observar e escrever foram as formas pelas quais tentei, ainda no diálogo com Favret-Saada (2005FAVRET-SAADA, J. “Ser afetado”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155, 30 mar. 2005.), me “desafetar”, me distanciar de uma situação que exigia uma resposta que eu não conseguia dar. Diferentemente do caso descrito por Fleischer, eu não estava implicada no conflito conjugal, aliás, um dos problemas na condução daquela situação é que, aparentemente, ninguém estava implicado na vida desse casal que ocupava um vão no “corredor de quartos” onde “as pessoas se escondem”.

Retrospectivamente, entretanto, penso que minha tentativa de “desafetação” me reenviou para um outro sentimento também comum à equipe - o de impotência. Diante da situação que presenciei, senti-me desprovida dos meios e do conhecimento para fazer alguma coisa, embora sentisse a urgência e a necessidade de alguém fazer alguma coisa. Quando a mulher agredida retornou para sua casa e para seu agressor, após ter sido dado a ela a opção de ir para um hospital sozinha e mentir sobre o que lhe havia sucedido, a indignação me tomou de assalto. A escrita do diário, de certo modo, funcionou como desagravo diante do que percebi como uma inação injustificada da equipe. Daí o tom duro com que descrevo as atitudes das pessoas envolvidas, especialmente a atitude da enfermeira Bianca, cujo comentário (“Ah, pensava que era na barriga!”) classifico como “frívolo”. Naquele momento, a desresponsabilização da equipe em relação à mulher me pareceu o fato mais destacado de toda a cena, mas tive pouca escuta para o medo, para a impotência e para as tantas negociações que a equipe enfrentava cotidianamente para se manter atuante no lugar. Quando interpretado pela chave do medo e da impotência, o comentário de Bianca, que tanto me indignou em seu tempo, poderia receber outras camadas de significado - como alívio, por exemplo, uma interpretação que apenas ensaio no diário, mas que não desenvolvo.

De volta ao presente: algumas considerações

Estamos agora no mês de abril de 2023. No Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, recebemos a pesquisadora Ana Paula Portella, para o lançamento do livro Como morre uma mulher? (Portela, 2020PORTELLA, A. P. Como morre uma mulher? Recife: Editora UFPE, 2020.). Ana Paula foi uma das coordenadoras da pesquisa do PSF e não apenas teve acesso a todos os diários de campo, como os guardou cuidadosamente durante todos esses anos. Seu livro atual aborda as configurações sociais da violência contra as mulheres em Recife, mostrando como diversos fatores socioeconômicos configuram cenários de exposição diferencial à violência66O livro é uma adaptação da tese de doutorado da autora defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Recebeu prêmio da melhor tese no 5º Concurso Internacional de Teses sobre Segurança Pública, Vitimização e Justiça na América Latina e no Caribe, realizado pelo Centro de Excelência para Informação Estatística de Governo, Segurança Pública, Vitimização e Justiça do México, em 2016 e Menção Honrosa no Prêmio Capes de Teses em 2015. Agradeço a Ana Paula Portella pelo envio dos diários (sem os quais este artigo não poderia ter sido escrito) e a leitura atenta e cuidadosa de uma primeira versão deste texto.. No debate que se seguiu à apresentação do livro, qual não foi minha surpresa ao escutar “minha cena” sendo mencionada pela pesquisadora como um exemplo da fragilidade das redes de apoio às mulheres em contextos de extrema precariedade!

Afora a grata (e um tanto desconcertante) surpresa de escutar da boca de uma terceira pessoa a cena que registrei duas décadas atrás, a menção àquele momento etnográfico me levou a levantar diversos questionamentos, alguns relativos ao próprio conteúdo da cena, outros voltados às implicações da reaparição dessa observação específica em tempos e contextos de enunciação diferentes aos de produção do diário de campo de 2003. O que faz com que uma cena ocorrida num contexto e num tempo específicos ainda seja considerada útil para ilustrar fenômenos contemporâneos? Seria essa uma observação paradigmática das dinâmicas da violência contra a mulher? Até que ponto meu diário operou um congelamento temporal de uma situação que, caso viesse ocorrer hoje, poderia ter um desfecho diferente? De que modo minhas escolhas narrativas revelaram certas dimensões do acontecido, ao passo em que invisibilizaram outras? E, ainda, como é possível que a antropóloga desapareça da cena que não apenas observou, mas na qual estava ativa e emocionalmente implicada?

Para dialogar com essas questões, retomo a inspiração de Strathern (2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014.) a respeito do “momento etnográfico”. Este artigo é, de fato, a primeira ocasião em que escrevo sobre a cena que me marcou vinte anos atrás. Ainda não tinha feito a junção dos dois campos - aquele da imersão no terreno e a imersão posterior, na análise escrita, para além desse produto intermediário entre um e outro momento que chamamos “diário de campo”. Retornar reflexivamente àquela cena é uma forma de encarar, mais afastada do intenso envolvimento afetivo do momento, os desafios éticos advindos de uma posição ambígua em campo, pois envolvia relatar para outras pessoas as contradições que observava na atuação da equipe, ao mesmo tempo em que, como em todo trabalho de campo, estabelecia relações. Nos três meses de intensa convivência com a equipe, fui depositária de confidências, compartilhei dúvidas, vivenciei aflições, participei de momentos de lazer e sociabilidade. Mas também presenciei ações que me desagradaram, do ponto de vista de uma atenção sensível às questões de gênero, e outras que me indignaram profundamente, como o caso que relatei aqui. Talvez para as profissionais e trabalhadoras da equipe, mais até que para mim, a dimensão republicana da pesquisa estivesse sempre evidenciada - o fato de se voltar para uma melhora para as usuárias e não se configurar, portanto, como uma “caça às bruxas”. Talvez elas tivessem consciência da relevância e expertise em seu trabalho e não se sentiam ameaçadas por um olhar externo, apesar de ser uma pesquisa “encomendada” pela Prefeitura. Ou talvez simplesmente a etnografia continue sendo uma forma privilegiada de se aproximar de dramas sociais e de respostas locais no aqui e agora, enquanto entramos em relação e somos desafiados em nossas certezas, o que é particularmente produtivo no campo da saúde - mesmo quando nossa presença tenha sido, de certo modo, imposta.

Voltar à cena pela via das emoções me permitiu compreender melhor tanto a inação da enfermeira como a minha própria, bem como valorizar mais a intervenção possível da agente comunitária de saúde, que conseguiu retirar a vítima daquele local sem ter se exposto ao perigo - com “cautela”. Essa compreensão mais nuançada da ação das equipes (que leva em consideração as negociações cotidianas para a permanência do trabalho de cuidado na área) não retira o peso do abandono daquela mulher à própria sorte, nem elimina a percepção da naturalização da violência doméstica. Essas constatações permanecem ali, como uma importante e necessária lembrança do desamparo e da solidão da mulher vítima de violência doméstica. Por outro lado, tomar contato com meu medo e, sobretudo, com minha impotência diante daquele caso, se não afasta totalmente meus fantasmas, é uma boa lição de humildade.

Já em relação ao uso que Ana Paula Portella fez de minha cena, me levou a pensar no artifício que faz com que nossas anotações em campo congelem as situações sociais em uma espécie de presente etnográfico (Fabian; Duarte, 2013FABIAN, J.; DUARTE, D. J. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013.) perpétuo. Anos se passaram, uma rede de enfrentamento à violência contra as mulheres foi estruturada, o tema se tornou mais presente no debate público, as equipes de saúde foram sensibilizadas e capacitadas, no entanto, aquela mulher continua sendo esfaqueada e abandonada uma e outra vez, nas páginas de meu diário. Certamente, não há como saber qual seria o desfecho de uma situação como aquela no presente. Alguns estudos sugerem que as equipes de saúde na atenção básica continuam tendo dificuldades em reconhecer e encampar o enfrentamento à violência de gênero em sua ação cotidiana, mas também relatam avanços na estruturação das redes de apoio (D’Oliveira; Schraiber, 2014D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Mulheres em situação de violência: entre rotas críticas e redes intersetoriais de atenção. Revista de Medicina, [s. l.], v. 92, n. 2, p. 134, 30 abr. 2014.; Lima; Deslandes, 2014LIMA, C. A. D.; DESLANDES, S. F. Violência sexual contra mulheres no Brasil: conquistas e desafios do setor saúde na década de 2000. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 787-800, set. 2014.). As dinâmicas de violência permaneceram as mesmas ou até se acirraram, alimentadas pela maior facilidade de acesso a armas de fogo, entre outros fatores. O número de feminicídios não diminuiu no Brasil, pelo contrário. Esse conjunto de situações me levam a pensar que aquela cena, embora não atual, continua sendo verossímil, continua comunicando a dificuldade do enfrentamento à violência de gênero. Daí sua recorrência. Ao mesmo tempo, fico desejando outros desfechos para aquela situação, o que me leva às mudanças nos modos como fizemos e fazemos etnografias.

Conforme escrevi anteriormente, um aspecto que chamou minha atenção ao escutar, em 2023, o relato da cena que eu havia etnografado em 2003, foi a desaparição da antropóloga em campo. Sem dúvida, aquele relato não mais me pertence, mas o que isso permite pensar em relação ao fazer antropológico em campos sensíveis? Em primeiro lugar, a minha opção por testemunhar a difícil cena da qual também participava me colocou como observadora, logo, me retirou do texto. Eu era ali uma narradora, de modo que o profundo impacto que aquela situação toda provocou em mim permanece mais bem registrado em minha memória afetiva que nas páginas do diário. Meu apagamento do texto começa, portanto, no próprio relato escrito por mim na ocasião, o que significa também a adesão a um certo ideal de objetividade - o do olho que tudo vê. Seria possível fazer uma etnografia nesses moldes nos dias de hoje?

Penso que realizar uma etnografia sobre relações de gênero na atenção básica no presente assumiria uma feição mais colaborativa, que não separasse em momentos estanques “campo”, “análise”, “retorno” e “intervenção”. A partir de um desenho participativo de pesquisa, uma situação como a que eu vivenciei poderia ser uma boa oportunidade para testar estratégias que, se bem protegessem a equipe, prestassem o suporte necessário à vítima. Uma pesquisa agora, por outro lado, talvez não estivesse pautada por uma exterioridade tão marcante da pesquisadora em relação ao contexto de pesquisa. Afortunadamente, nossas universidades têm se aberto à presença de outros corpos e outras trajetórias sociais e existenciais. Uma universidade mais democrática demanda novas formas de construir conhecimento, formas que não apenas levem em consideração as urgências, mas se apliquem de maneira firme nas transformações sociais que almejamos.

Referências

  • ADRIÃO, K. G. et al. A política para as mulheres em Recife (2001-2016): memórias e olhares. Recife: Editora UFPE, 2016.
  • ALBERA, D. Terrains minés. Ethnologie française, Paris, v. 31, n. 1, p. 5-13, 2001.
  • BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J.; PORTELLI, A. Usos & abusos da história oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 183-221.
  • BRASIL. Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Brasília, DF: Presidência da República, 2011. Disponível em: Disponível em: https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres Acesso em: 2 set. 2023.
    » https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/copy_of_acervo/outras-referencias/copy2_of_entenda-a-violencia/pdfs/rede-de-enfrentamento-a-violencia-contra-as-mulheres
  • DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, Campinas, p. 9-41, dez. 2011.
  • DÍAZ-BENÍTEZ, M. E. O gênero da humilhação. Afetos, relações e complexos emocionais. Horizontes Antropológicos, [s. l.], v. 25, p. 51-78, Acesso em: 5 ago. 2019.
  • D’OLIVEIRA, A. F. P. L.; SCHRAIBER, L. B. Mulheres em situação de violência: entre rotas críticas e redes intersetoriais de atenção. Revista de Medicina, [s. l.], v. 92, n. 2, p. 134, 30 abr. 2014.
  • FABIAN, J.; DUARTE, D. J. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • FAVRET-SAADA, J. “Ser afetado”. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155, 30 mar. 2005.
  • FLEISCHER, S. Cenas de microcefalia, de cuidado, de antropologia (Recife, setembro de 2017). Cadernos de Campo, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 118-131, 27 out. 2018.
  • FLEISCHER, S. Hematomas, terçados e riscos. Teoria & Pesquisa, São Carlos, v. 19, n. 1, 17 dez. 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/view/209 Acesso em: 3 set. 2023.
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  • FONSECA, C. Prefácio. In: FERREIRA, J.; BRANDÃO, E. R. Reflexividade na pesquisa antropológica em saúde: desafios e contribuições para a formação de novos pesquisadores. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília, 2021.
  • GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
  • LIMA, C. A. D.; DESLANDES, S. F. Violência sexual contra mulheres no Brasil: conquistas e desafios do setor saúde na década de 2000. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 23, n. 3, p. 787-800, set. 2014.
  • MACHADO, L. Z. Feminismo em movimento. 2. ed. São Paulo: Verbena Editora, 2010.
  • PORTELLA, A. P. Como morre uma mulher? Recife: Editora UFPE, 2020.
  • SCHRAIBER, L.B. Eqüidade de gênero e saúde: o cotidiano das práticas do Programa Saúde da Família. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (ORG.) Gênero e Saúde: Programa Saúde da Família em questão. São Paulo: Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco; Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, 2005. p. 39-60.
  • STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

  • 1
    Pesquisa intitulada “Relações de gênero no Programa Saúde da Família do Recife”, desenvolvida pela Coordenadoria da Mulher e a Secretaria Municipal da Saúde da Prefeitura do Recife, em parceria com a Escola de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (ESP/USP), o Núcleo de pesquisas em Família, Gênero e Sexualidade (FAGES/UFPE) e a organização feminista SOS Corpo.
  • 2
    Optei por inserir os trechos do diário de campo no mesmo tamanho de fonte do restante do texto para facilitar a leitura e assim valorizar sua inserção. Apenas optei por colocar em itálico, para assinalar que se trata de um texto transcrito.
  • 3
    Todos os nomes são fictícios, inclusive o da comunidade. Os diários de campo (com os nomes reais) eram escritos no computador e enviados semanalmente para a coordenação da pesquisa. O trecho transcrito corresponde à terceira semana de observação.
  • 4
    As classificações de raça/cor não foram por autoidentificação e sim pela minha percepção. O debate sobre relações étnico-raciais avançou muito nesses últimos 20 anos e entendo que, hoje, esse critério seria considerado inválido. Esse estranhamento, porém, faz parte do exercício deste artigo, de retorno a um campo realizado em um momento histórico não tão distante mas de muita mudanças significativas.
  • 5
    O trabalho das Agentes Comunitárias de Saúde era distribuído espacialmente em unidades denominadas “microáreas”.
  • 6
    O livro é uma adaptação da tese de doutorado da autora defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Recebeu prêmio da melhor tese no 5º Concurso Internacional de Teses sobre Segurança Pública, Vitimização e Justiça na América Latina e no Caribe, realizado pelo Centro de Excelência para Informação Estatística de Governo, Segurança Pública, Vitimização e Justiça do México, em 2016 e Menção Honrosa no Prêmio Capes de Teses em 2015. Agradeço a Ana Paula Portella pelo envio dos diários (sem os quais este artigo não poderia ter sido escrito) e a leitura atenta e cuidadosa de uma primeira versão deste texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br