A ideia deste dossiê partiu das inquietações das organizadoras diante de suas experiências como pesquisadoras em ciências sociais e saúde coletiva, professoras e orientadoras de pesquisas etnográficas, e de sua atuação como integrantes do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em suas respectivas instituições.
Após a implantação da obrigatoriedade da submissão das pesquisas em saúde à apreciação do CEP pelo Conselho Nacional de Pesquisa (Conep), antropóloga(os) mobilizaram-se contra tais parâmetros, sob égide das pesquisas biomédicas (Duarte, 2015DUARTE, L. F. D. A ética em pesquisa nas ciências humanas e o imperialismo bioético no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 3, p. 31-52, 2015.). Isso fez com que o próprio sistema CEP/Conep passasse a ser alvo de análises e reflexões (Nogueira; Silva, 2012NOGUEIRA, V. M. R.; SILVA, V. R. Ética em pesquisa, Plataforma Brasil e a produção de conhecimento em ciências humanas e sociais. SER Social, Brasília, DF, v. 14, n. 30, p. 190-209, 2012.; Silva, 2023SILVA, M. B. B. Relato de experiência sobre a participação em um Grupo de Trabalho da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 18, p. 1-10, 2023.) e até mesmo uma etnografia foi realizada em um de seus ambientes (Harayama, 2014HARAYAMA, R. O Sistema CEP-CONEP e a ética em pesquisa como política pública de proteção do usuário do SUS. In: FERREIRA, J.; FLEISCHER, S. (Org.). Etnografias nos serviços de saúde. Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2014. p. 323-351.). Desde então, várias coletâneas e dossiês de periódicos científicos dedicados ao tema têm mostrado a sua pertinência, como, por exemplo, a publicação da Associação Brasileira de Antropologia em 2004 (Víctora et al., 2004VÍCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil . Niterói: EdUFF, 2004.) e, mais tarde, publicações como as de Fleischer e Schuch (2010FLEISCHER, S.; SCHUCH, P. (org.). Ética e regulamentação na pesquisa antropológica. Brasília: Ed. UNB, 2010.), Sarti e Duarte (2013SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília: ABA, 2013.), sem contar diferentes artigos e capítulos de livros (Diniz; Guerriero, 2008DINIZ, D.; GUERRIERO, I. Ética na pesquisa social: desafios ao modelo biomédico. In: DINIZ, D. et al. (Org.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília, DF: Letras Livres: Ed. UnB, 2008. p. 289-322.; Sarti; Pereira; Meinerz, 2017SARTI, C.; PEREIRA, E.; MEINERZ, N. Desafios e dilemas da ética em pesquisa nas ciências humanas. Revista Mundaú, Maceió, n. 2, 2017.).
Tais debates contínuos demonstram a reflexão de cientistas sociais e particularmente de antropólogas(os) sobre diferentes aspectos da ética na pesquisa, evidenciando assim que eles são mais complexos do que contemplam as resoluções n. 466/2012 e n. 510/2016 do Conep. Ainda que esta última resolução já apresente alguns avanços para as pesquisas de ciências sociais e humanas na saúde, posto que construída com a colaboração de uma comunidade ampliada de instituições, alguns desafios permanecem como centrais e são constantemente renovados nos dias de hoje (Webinar ABA, 2022WEBINAR ABA. Ética em pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais: o Sistema CEP/CONEP em perspectiva. [S. l.: s. n.], 2022. 1 vídeo (140 min). Publicado pelo canal TV ABA. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=SplGnMEoPdM&list=PLrqSUafHHXYynb3zsLcCmswhwYRHb4yDP&index=22&t=37s >. Acesso em: 16 out. 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=SplGnMEo... ). No que tange especialmente à sua perspectiva centrada nas ciências biomédicas, Roberto Cardoso de Oliveira (2003CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos. In: VÍCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: EdUFF, 2004. p. 33-44.) afirmou que as resoluções fazem sentido para as pesquisas em seres humanos e não com seres humanos, na qual se pauta a Antropologia. Alguns desses questionamentos trazem a perspectiva antropológica sobre as questões biomédicas como, por exemplo, Fonseca (2007FONSECA, C. O anonimato e o texto antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia ‘em casa’. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 2, n. 1-2, p. 39-53, 2007., 2018FONSECA, C. Pesquisa “Risco Zero”: é desejável? é possível? In: GROSSI, M. et al. (Org.). Trabalho de campo, ética e subjetividade. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2018.) na sua reflexão sobre o anonimato e o risco nas pesquisas, Corrêa Zell e Quinaglia Silva (2018CORRÊA ZELL, F. S.; QUINAGLIA SILVA, E. Ética na pesquisa antropológica: a vulnerabilidade dos participantes com transtornos mentais. Revista de Antropologia Amazônica, Belém, v. 10, n. 2, p. 520-536, 2018.) sobre a vulnerabilidade dos participantes e Rosário e Simões Rivero (2021ROSÁRIO, R.; SIMÕES RIVERO, A. Ética nas pesquisas com crianças: desafios que marca(ra)m os 30 anos de história do núcleo de estudos e pesquisas da educação na pequena infância (NUPEIN - CED/UFSC). Zero 6, Florianópolis, v. 23, n. 44, p. 1517-1539, 2021.) sobre grupos que necessitam de atenção especial, como é o caso das crianças. Esses trabalhos ilustram como a perspectiva ética nas ciências sociais ultrapassa as questões formais colocadas pelo sistema CEP/Conep, considerando-as como insuficientes para dar conta da complexidade, dos conflitos e dissonâncias que envolvem o cotidiano das pesquisas, dando margens a diferentes interpretações e análises (Fonseca, 2015FONSECA, C. Situando os comitês de ética em pesquisa: o sistema CEP (Brasil) em perspectiva. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 21, n. 44, p. 333-369, 2015.).
Segundo Coutellec (2019COUTELLEC, L. Penser l’indissociabilité de l’éthique de la recherche, de l’intégrité scientifique et de la responsabilité sociale des sciences. Revue D’Anthropologie des Connaissances, Paris, v. 13, n. 2, p. 1-15, 2019.), a ética em pesquisa é tratada em três abordagens: reflexiva (sobre os valores e finalidades), integrativa (sobre as boas práticas) e política (sobre as implicações e consequências). Não negligenciando esses parâmetros ainda prementes à problemática central deste dossiê, buscamos analisar a interferência das subjetividades e emoções no transcurso etnográfico em determinados campos “sensíveis” (Albera, 2001ALBERA, D. Terrains minés. Ethnologie Française, Paris, v. 31, p. 5-13, 2001.) e suas implicações sobre a ética em pesquisa. Consideramos que tais dimensões têm tido pouco espaço para discussão e reflexão.
Podemos evocar como campos “sensíveis” desde aqueles que foram desbravados pelos antropólogos clássicos, como Malinowski (1978MALINOWSKI, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos de Nova Guiné melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978.), Clifford Geertz (1978GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.), Godelier (1982GODELIER, M. La production des grands homes: pouvoir et domination masculin chez les Boruya de Nouvelle Guinn Guinnell: Ed. Fayard, 1982.) e Lévi-Strauss (1958LÉVI-STRAUSS, C. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958.), os quais demonstraram tanto os imponderáveis da vida real e até mesmo o caráter de aventura e perigo em algumas situações em suas pesquisas. Hoje, embora determinados campos ainda apresentem perigos físicos (Martin, 2021MARTIN, N. Escute as feras. São Paulo: Editora 34, 2021.), na antropologia “em casa”, ou seja, no ambiente familiar ao antropólogo (Velho, 1978VELHO, G. Observando o familiar. In: NUNES, E. O. A aventura sociológica: objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 1-13.), os perigos são mais simbólicos e relacionados às experiências etnográficas intensas. A antropologia pós-moderna buscou respostas às experiências que envolvem implicação pessoal em campo e como elas influenciam na produção de dados e na escrita etnográfica (Caldeira, 1988CALDEIRA, T. P R. A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia. Novos Estudos, São Paulo, n. 21, p. 134-157, 1988.). Não é objetivo deste dossiê retomar essa discussão já bem desenvolvida na disciplina, mas sim trazer contribuições sobre como essas dificuldades e implicações da pesquisa se relacionam com os aspectos éticos. Melhor dizendo, este dossiê, além de se somar às iniciativas anteriores de publicações das ciências sociais, tem como objetivo adensar a reflexão sobre ética em pesquisa em temas e campos sensíveis, como o estudo com populações vulneráveis, relações familiares, sexualidade, violência e questões étnico-raciais, que podem provocar suscetibilidades subjetivas tanto nas(os) pesquisadoras(es) como nos seus interlocutores(as) no fazer e no retorno dos dados de pesquisa. Uma vez que envolvem situações delicadas, e frequentemente geram na(o) etnógrafa(o) questionamentos éticos reflexivos ao perguntar e escrever sobre questões íntimas. São aspectos que o desafiam a questionar-se continuamente, requerendo sensibilidade, capacidade de estabelecer empatia e confiança com seus interlocutores, posicionamento sobre “o que pode” e “o que não pode” ser inquerido e de que forma será revelado na escrita etnográfica. No que se refere ao “desconforto emocional” provocado em nossos interlocutores(as) diante de temas que lhe são sensíveis, temos enfrentado pouco diálogo com os comitês de ética em pesquisa, que frequentemente nos impõem a garantia da recomendação de atendimento psicológico diante dessas situações.
Por outro lado, a(o) pesquisadora(o) deve também refletir nas/sobre as situações em que o seu envolvimento e engajamento com o tema e com a(o) interlocutora(o) tornam-se um “confidente” ou militante político. Cientistas sociais como Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Compreender. In: BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 693-736.) preconizam que as relações intersubjetivas com nossas(os) interlocutoras(es) podem e devem gerar um efeito de mobilização da sua consciência e também com a dos leitores, e que tal fato assume um papel importante no processo constitutivo do conhecimento. Assim, embora a neutralidade na pesquisa já tenha sido negada há tempos e a subjetividade tenha sido reconhecida como parte integrante da ciência (Kuhn, 2013KUHN, T. A. Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Perspectiva, 2013.), a implicação das pesquisadoras(os) com os interlocutores e os efeitos da pesquisa sobre os dois polos ainda é objeto de questionamentos, sobretudo quando o tema ou campo de pesquisa diz respeito à saúde, que mobiliza dilemas, tensões, receios e outras emoções.
Esses desafios éticos, metodológicos e epistemológicos já foram objeto de reflexão de diferentes autores, que se debruçaram especialmente na forma como o seu envolvimento na pesquisa implica no seu processo de conhecimento. São experiências particulares, mas que nos ajudam a refletir sobre os nossos campos de pesquisa e como nos implicamos com ele e com nossos interlocutores. É especialmente marcante o clássico texto de Renato Rosaldo, em que relata como, a partir de sua experiência pessoal de revolta pela morte de sua mulher em campo, ele pode compreender a raiva que mobilizava os Ilongot a caçar cabeças após uma vivência de luto (Rosaldo, 1989ROSALDO, R. Introduction: grief and a headhunter’s rage. In: ROSALDO, R. Culture and truth. Boston: Beacon Press, 1989. p. 1-21.). Teresa Caldeira, por sua vez, já analisou como as relações de poder e ambiguidades em campo estão implicadas em uma dimensão política (Caldeira, 1988CALDEIRA, T. P R. A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia. Novos Estudos, São Paulo, n. 21, p. 134-157, 1988.). Tornquist, Hartmann e Fischman (2007TORNQUIST, C. S.; HARTMANN, L.; FISCHMAN, F. Gerar, parir, narrar: narrativas de parto e o poder (relativo) das mulheres. In: HARTMANN, L.; FISCHMAN, F. (Org.). Donos da palavra: autoria, performance e experiência em narrativas orais na América do Sul. Santa Maria: Ed. UFSM, 2007. p. 131-156.) refletiram sobre a posição de mulheres, pesquisando-as no que concerne às relações de poder nas pesquisas sobre gravidez e parto. Já Jeanne Favret Saada, quando avaliou a sua experiência de “ser afetada” pelas questões do seu campo de pesquisa e pela atribuição que os interlocutores lhe deram, defendeu como é importante que as(os) antropólogas(os) experenciem eventos e sentimentos em sintonia com os seus interlocutores, pois são dimensões centrais no trabalho de campo e para o processo de conhecimento (Siqueira; Favret-Saada, 1991SIQUEIRA, P; FAVRET-SAADA, J. “Ser afetado” de Jeanne Favret-Saada. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005.). Enfim, há uma pluralidade de experiências, sentimentos e afetos que envolvem desde a motivação para o tema até a interação entre o pesquisador e seus interlocutores, culminando em um contínuo processo de reflexão e de elaboração teórica da construção do conhecimento. Mas como eles dialogam com a ética?
Conforme já salientamos, compreendemos a ética para além dos instrumentos formais de regulação, e nossa proposta é problematizar temas como as relações de hierarquia e poder no trabalho de campo, a emoção e os sentimentos que aparecem nas relações construídas ao longo da pesquisa, a entrevista como instrumento de reflexão e terapêutica, as diversas possibilidades de análise, a devolutiva dos “resultados” de pesquisa para os participantes da pesquisa, a compreensão plural do significado de “risco” e “benefícios”, entre outros. Isso inclui uma atenção particular às pesquisas socioantropológicas que tenham como objeto as relações em torno da saúde e dos processos de adoecimento, incluindo as pesquisas realizadas no campo da saúde coletiva que se reconheçam em diálogo com essas metodologias. Já apontamos igualmente que esses aspectos, embora façam parte do processo de pesquisa, ainda recebem pouca visibilidade em artigos cujo espaço não permite a descrição densa, tão recomendada no fazer etnográfico. Dessa forma, tais dimensões são propensas a serem relatadas com mais acuidade em coletâneas e livros autorais (Grossi et al., 2018GROSSI, M. P. et al. (Org.). Trabalho de campo, ética e subjetividades. Tubarão: Tribo da Ilha: Copiart, 2018.; Ferreira; Brandão, 2021FERREIRA, J.; BRANDÃO, E. R. (Org.). Reflexividade na pesquisa antropológica em saúde: desafios e contribuições para a formação de novos pesquisadores. Brasília: Ed. UnB, 2021.). Nesse sentido, os artigos apresentados neste dossiê se debruçam sobre tais questões com o intuito de contribuir para o debate.
O primeiro artigo advém da publicação revisada de um texto seminal de Teresa Pires Caldeira - Uma incursão pelo lado “não-respeitável” da pesquisa de campo. Originalmente apresentado em 1980 no IV Encontro Anual da Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e publicado na Revista Ciências Sociais Hoje, em 1981, o manuscrito não se encontra disponível online, o que reavivou nosso interesse em divulgá-lo para as novas gerações, uma vez que a discussão é extremamente atual. A autora aceitou a nossa proposta de apresentá-lo aqui após uma pequena atualização, mostrando todo o seu percurso de reflexão ética na inserção e encontro com as suas interlocutoras para discorrer sobre relações familiares. Ela questiona a legitimidade das ciências sociais em inquerir sobre a vida e intimidade, sobretudo das pessoas de baixa renda, pautada nos regimes de poder/saber foucaultianos.
Outras colegas aceitaram esse desafio nos contando os impasses de suas pesquisas, suas reflexões e suas contribuições, mostrando que as questões que envolvem ética em pesquisa antropológica são sempre boas para pensar.
Mónica Franch nos apresenta o texto “Ainda bem que não foi na barriga”: revisitando uma cena etnográfica e violência contra a mulher, em que discorre sobre sua experiência com um grupo de baixa renda em um território com cobertura do programa de saúde da família, conhecido pela violência urbana, violência de gênero e pela atuação do tráfico. Ela analisa o sentimento reinante de medo dos homens da população em geral, das mulheres esposas, mães e filhas, das profissionais de saúde e da própria antropóloga, tornando a cautela uma estratégia para manter-se incólume e vivo. Em que medida essa emoção paralisa a ação e faz repensar questões éticas e a impotência no campo. Demonstrando não só a atualidade dessas questões, a autora nos faz refletir sobre a necessidade de revisitar nossos campos passados para nos orientar nas pesquisas presentes e futuras.
De forma aproximada, Elaine Reis Brandão discute os limites no fazer etnográfico frente ao debate sociopolítico e ao cotidiano dos sujeitos de pesquisa. Em Indignação, impotência e engajamento. Notas sobre desafios à pesquisa antropológica feminista, ela nos fala de suas reflexões advindas principalmente da sua pesquisa sobre a mobilização de mulheres que implantaram o dispositivo para esterilização permanente Essure® no Brasil. A autora nos relata o seu mal-estar diante do contato com essas mulheres, na sua grande maioria pobres e negras, que se reconhecem como “cobaias” de uma inovação tecnológica, na medida em que o dispositivo lhes foi implantado sem todos os esclarecimentos necessários (principalmente, sua remoção do corpo, se preciso), causando-lhes extremo sofrimento físico e emocional. Elaine Reis Brandão questiona o seu lugar como mulher feminista e pesquisadora em ciências sociais no que se refere à impotência e voz silenciada diante das “autoridades” biomédicas, sentimentos esses que ela compartilha com suas interlocutoras. Ela nos convida a refletir de que forma, nós, etnógrafas em saúde que abordam temas tão delicados, podemos contribuir para uma ciência plural, engajada e cidadã.
No texto Agência e poder na pesquisa: algumas reflexões sobre os termos de consentimento livre e esclarecido, Claudia Barcellos Rezende parte de uma reflexão sobre suas experiências de pesquisa antropológica sobre gestação e parto, avaliando dimensões como risco, autonomia para discutir as dimensões de agência, poder e ética na pesquisa social. Claudia busca o sentido do termo de consentimento livre e esclarecido em diferentes momentos dentro do percurso dinâmico do trabalho de campo, que vai moldando as relações, negociações e ampliando os objetivos e análises.
Por sua vez, Érica Quinaglia reflete sobre ética, poder, subjetividades e afetividades no texto Cartografias em confluências: afetividades emergentes do encontro com a loucura em conflito com a lei. Na sua reflexão, a autora mostra a sua implicação com o tema e sua busca em dignificar seus interlocutores já por demais vulnerabilizados por sua situação de saúde mental e aviltados na sua condição de cidadãos. Por outro lado, ela nos mostra as imposições institucionais e possibilidades de trocas na restituição de dados com juízes, mostrando como todas as etapas de pesquisa são sujeitas a constantes negociações.
Igor Sacramento discute o papel da relativização e seus limites no contato com grupos que pensam muito diferente de nós, cientistas sociais: os grupos anticiência. No texto Entrando no campo da desinformação: emoções conflitantes e os limites da relativização, ele analisa os conflitos emocionais que são gerados nesse encontro etnográfico e propõe uma mudança no conceito “negativismo” para “afirmativismo”, como forma de analisar os valores, crenças e cosmovisões desses grupos com menos estranhamento, a fim de compreendermos como eles avaliam, entendem e compartilham a desinformação de acordo com seu universo de significações com menos juízos de valor, mas mantendo a postura crítica.
Esperamos que as discussões e análises aqui apresentadas contribuam com pesquisadoras(es) no seu fazer etnográfico e na reflexão sobre os afetos, emoções e subjetividades como partes integrantes do conhecimento antropológico, contribuindo para produções científicas éticas e responsáveis para seus interlocutores e sociedade.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
31 Out 2023 - Aceito
10 Nov 2023