Resumo
Nesta entrevista à revista Saúde e Sociedade, a Dra. Cupertino faz um relato do seu engajamento para alcançar pessoas em situações desafiadoras como a pandemia de covid-19. O diálogo buscou conhecer experiências exitosas capazes de interromper ou reduzir a perpetuação das disparidades em saúde. Em sua trajetória profissional, perpassou pelo Instituto de Câncer de Wilmot (WIC), onde atua no momento, sempre apoiada em referências brasileiras importantes como Paulo Freire. No seu trabalho, percebe-se a utilização de estratégias que ultrapassam questões acadêmicas e trazem a comunidade para o protagonismo da pesquisa, permitindo que o processo de translação ocorra apropriadamente. Por fim, define as parcerias com países da América Latina como fundamentais para o desenvolvimento de ações de saúde direcionadas a imigrantes que vivem nos Estados Unidos, uma vez que a variável relações sociais é determinante para a saúde de uma comunidade. A fala da Dra. Cupertino revela, assim, um olhar distinto sobre realidades distantes, mas que podem contribuir para reflexões importantes em um mundo globalizado, no qual intercâmbios são cada vez mais frequentes.
Palavras-chave:
Grupos Minoritários; Serviços de Saúde Comunitária; Saúde Coletiva; Câncer
Entrevistada:
Ana Paula Cupertino
Formada pela Universidade Federal de São João Del Rey, realizou seu mestrado em Psicologia Social na Universidade de Brasília e partiu para fazer o doutorado na Universidade da Califórnia de Davis, nos Estados Unidos, país onde reside atualmente. Continuando sua trajetória, realizou o pós-doutorado no Departamento de Medicina Preventiva e Saúde Pública no Centro Universitário Médico do Kansas. Como cientista social e comportamental, nos últimos 20 anos a dra. Cupertino é financiada pelo National Institute of Health (NIH) para realizar pesquisas na área de prevenção do câncer. Ela tem mais de 100 artigos científicos publicados sobre o uso de tecnologia na prevenção do câncer, estudos clínicos aleatórios para deixar de fumar em comunidades com baixo acesso e utilização de tratamento baseado em evidências, principalmente entre latinos, imigrantes e comunidades rurais nos Estados Unidos, Porto Rico, Guatemala, México e Brasil.
Atualmente é professora do Departamento de Cirurgia, Ciências de Saúde Pública e Oncologia do Centro Médico da Universidade de Rochester. Ocupa a posição de vice-coordenadora do Programa de Diversidade e Inclusão e de diretora científica do Surgical Heath Outcomes Research Enterprise (SHORE). No Wilmot Cancer Institute, é fundadora e diretora associada do Centro de Engajamento Comunitário e de Extensão com os seguinte objetivos: (1) monitorar a carga epidemiológica do câncer em 27 condados no norte do estado de Nova York; (2) fomentar a participação comunitária na identificação, priorização e abordagem dos casos de câncer com maior impacto em comunidades específicas; (3) entender e pensar ações sobre as prioridades da comunidade em pesquisas básicas, clínicas e populacionais e facilitar a participação de grupos minoritários sub-representados em ensaios clínicos; e (4) disseminar programas baseados em evidências para promover a equidade e abordar as prioridades da comunidade em toda a área de captação e além.
Verônica Cortez Ginani: Os últimos acontecimentos mundiais, como a pandemia de covid-19, evidenciaram questões importantes sobre a saúde coletiva. As fragilidades dos sistemas de saúde de todo o mundo ficaram expostas e as populações vulneráveis, mais uma vez, foram as mais afetadas. Contudo, esse não é um assunto novo na sua carreira. Dentro da sua trajetória, como você percebe a inclusão de minorias, entendendo suas particularidades, em pesquisas na área de saúde coletiva?
Ana Paula Cupertino: A Wilmot Cancer Institute (WCI), como o resto do país, enfrentou desafios sem precedentes durante a pandemia de covid-19. Essa crise de saúde pública ocorreu quando fui contratada para desenvolver o Programa de Extensão e Engajamento Comunitário (Community Outreach and Engagement Program) do WCI. Nesse momento, estávamos na etapa de mobilização e integração de comunidades para estabelecer as prioridades na pesquisa, na participação em estudos clínicos aleatórios, nas ações de educação e promoção de programas, bem como na implementação de pesquisas com participação comunitária. Enquanto a comunidade estava focada em sobreviver à covid-19, estávamos preocupados com as crescentes disparidades identificadas no estudo epidemiológico do câncer na nossa área comparada com o estado e o país. Por exemplo, sabíamos que o uso de tabaco e a incidência de câncer e mortalidade relacionado com o uso de tabaco estavam elevados em minorias raciais e étnicas, comunidades rurais e residentes em áreas de alto índice de privação.
Um outro aspecto preocupante era o abandono da prevenção do câncer alcançada com realização dos estudos de mamografia, colonoscopia e câncer cervical. Como consequência, haveria a detecção do câncer tardiamente e as consequências seriam desastrosas. Não podíamos parar de prevenir o câncer e precisávamos entender as implicações da covid-19 no cuidado do câncer! Apesar das limitações impostas pela pandemia, nossos esforços cresceram exponencialmente, pois contávamos com a parceria de líderes comunitários, cidadãos e agências unidas com o mesmo objetivo. Seguindo os verdadeiros princípios da pesquisa participativa baseada na comunidade, na qual as prioridades da comunidade e acadêmicas ocupam um espaço similar, nós expandimos de 26 para 54 membros da comunidade reunidos inteiramente de forma remota. Em parceria com os esforços da comunidade para realização de testes e vacinação, coletamos dados sobre barreiras e facilitadores do tratamento do câncer durante a pandemia de covid-19. Participaram da amostra 200 membros da comunidade de diversas origens (19% comunidades LGBTQIA+, 20% trabalhadores rurais, 12,5% rurais, 47,5% principalmente latinos de língua espanhola, 21,5% negros). Os resultados da pesquisa indicaram que comunidades específicas (por exemplo, afro-americana e LGBTQIA+) estavam enfrentando desafios para seguir as diretrizes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention - CDC) em relação à prevenção da covid-19 e destacaram as implicações negativas do isolamento social e dos encargos financeiros.
A capacidade de se adaptar com agilidade e realizar atividades de engajamento virtual demonstra a prontidão das comunidades em se unir à academia para lidar com a covid-19 e o câncer, mesmo durante uma crise de saúde pública. Aprendemos que as atividades de divulgação, pesquisa e envolvimento da comunidade eram menos dispendiosas, mas altamente eficazes usando modalidades virtuais (Facebook ao vivo, Zoom). Em suma, aprendemos que, ao manter os princípios de envolvimento da comunidade de confiança, transparência e parceria bidirecional robusta, é possível alcançar alta participação da comunidade em toda a área de abrangência na pesquisa. À medida que as taxas de vacinação aumentaram, durante a covid-19, nossa equipe participou de mais de 200 eventos de saúde comunitários presenciais (por exemplo, mesas com materiais educativos, caminhada nas ruas, participação em ligas de futebol e participação na comunidade) e 50 caminhadas de bairro com membros e organizações do Conselho Comunitário de Wilmot de Ação para o Câncer (Community Cancer Action Council - CCAC) com o objetivo de conectar comunidades carentes com programas de prevenção, pesquisa, ensaios clínicos e educação de câncer.
Verônica Cortez Ginani: O conhecimento científico pode ser entendido como resultado da convergência entre o pesquisador e um contexto social e histórico. Na área da saúde coletiva, essa constatação se inicia na década de 1940, como crítica a um modelo médico especializado e fragmentado, presente nos Estados Unidos, que não atendia os interesses da comunidade e elevava os custos do tratamento. O reflexo inicial desse movimento foi o preventivismo (medicina preventiva), com mudanças curriculares nos cursos médicos na década de 1950, no mesmo país, e com repercussões mundiais. A ideia era, nesse momento, ampliar a visão sobre o indivíduo, compreendendo-o em sua integralidade. O desenrolar desse movimento, também nos Estados Unidos, foi o surgimento da medicina comunitária, na década de 1960, como resultado da mobilização popular e intelectual em torno das questões sociais ( OSMO, A.; SCHRAIBER, L. B. O campo da Saúde Coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, p. 205-218, 2015. Suplemento 1. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01018
https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S0... ). Todas essas movimentações evoluíram a partir da compreensão de que os saberes expressos pela comunidade são essenciais para o direcionamento de ações na área da saúde. Contudo, percebe-se que também é desafiador. Primeiro, por exigir uma movimentação delicada e perspicaz para seu conhecimento, visto que o acesso a essas informações exige um trabalho conjunto partindo de uma necessidade reconhecida tanto pela comunidade como pelo pesquisador. Nesse sentido, como é possível integrar pesquisa e comunidade?
Ana Paula Cupertino: Como investigadores, é imperativo que nossas pesquisas com comunidades reflitam as evidências dos modelos desenvolvidos por Paulo Freire. Nesse sentido, nosso trabalho em prevenção do câncer em diversas comunidades tem alcançado resultados importantes seguindo os princípios da pesquisa participativa de base comunitária que está de acordo com “teoria do oprimido”, modelo defendido por Paulo Freire. O modelo de pesquisa baseada na participação comunitária segue os seguintes pressupostos: (1) comunidade junto aos pesquisadores identificam e definem o problema a ser estudado; (2) comunidade participa da liderança com poder de guiar decisões junto aos profissionais de saúde, pesquisadores e líderes; (3) comunidade participa de todas es etapas da pesquisa incluindo a definição do conteúdo e meios de implementação de intervenções; (4) comunidade guia o recrutamento seguindo princípios de diversidade, inclusão e igualdade em pesquisa; e (5) comunidade informa a intepretação dos dados e disseminação dos resultados na comunidade e nos meios científicos.
O primeiro passo, bem antes de iniciar um programa de investigação, tem como meta formar uma coalizão entre comunidade e pesquisadores. Nesse sentido, em Wilmot, convocamos o CCAC, que se tornou a pedra angular de todas as parcerias comunidade-academia realizadas por nossos pesquisadores de ciência básica, programas de pesquisa clínica e comportamental. O CCAC determinou sua própria missão, “trabalhar juntos hoje para reduzir o fardo do câncer amanhã”. Ademais, como objetivos definiu: (1) estabelecer metas para identificar pesquisas de alta prioridade, iniciativas de divulgação e educação; (2) fomentar a participação em ensaios clínicos; (3) aumentar a realização de pesquisa participativa que responde aos anseios da comunidade; e (4) promover a equidade. Como resultado, 104 membros da comunidade participaram do CCAC desde a sua criação, e 54 membros compareceram a mais de 50% das reuniões. Os membros do CCAC incluem educadores de saúde da comunidade, sobreviventes de câncer, defensores de pacientes e a equipe composta por representantes de 46 organizações comunitárias que abrangem toda a área de cobertura do centro do câncer. Essas organizações fizeram parceria em eventos comunitários, incluindo feiras de saúde e fóruns educacionais, para expandir o alcance e as respostas das pesquisas em Wilmot em toda a região. Os membros do CCAC votaram em quatro prioridades de ação e se organizaram em grupos de trabalho: “Prevenção primária”, “Cuidados de apoio ao sobrevivente e cuidados”, “Integração rural” e “Pesquisa comunitária”. Cada grupo, em colaboração com pesquisadores, recebe um recurso-piloto para implementar iniciativas em relação às prioridades identificadas. Os resultados destas atividades realizadas por representantes da comunidade conjuntamente com pesquisadores direcionam novos projetos de pesquisas, sempre respeitando metodologias e abordagens que tenham como meta diminuir as disparidades em câncer. Os grupos de trabalho individuais do CCAC reúnem-se até duas vezes por mês para trabalhar em projetos de investigação prioritários e implementar componentes do modelo lógico. Ampliam, assim, a voz da comunidade no WCI. Além disso, líderes do CCAC se reúnem com o diretor do Centro de Câncer mensalmente bem como participam como líderes em diferentes comitês como, por exemplo, o “escritório de ensaios clínicos”, “currículo de treinamento e educação” etc.
Verônica Cortez Ginani: Todas as ações de saúde, incluindo a prevenção e tratamento do câncer, dependem da possibilidade de transformar protocolos médicos em realidade para as comunidades. Esse processo de translação se baseia em estratégias bem planejadas que envolvem, entre outros, o contato com o líder comunitário e o recrutamento da comunidade para participar das ações. Na sua experiência, quais são os investimentos necessários nessa direção, para que as pesquisas de intervenção na comunidade tenham sucesso?
Ana Paula Cupertino: O maior recurso necessário para implementação de pesquisas baseadas em comunidades são os recursos humanos comprometidos com o modelo de CBPR. A CBPR é construída verdadeiramente com pesquisadores e representantes comunitários juntos. Não é um processo fácil e exige tempo na etapa formativa. No processo formativo, se estabelecem o pilar, o alicerce, a integração do saber acadêmico com o saber da comunidade como um todo. Dessa forma, todos estão comprometidos com um objetivo comum: entender as disparidades na saúde. Entendendo as raízes e os fatores influenciadores das disparidades, passamos a desenvolver ações e intervenções que nos permitem chegar às evidências científicas que podem posteriormente ser disseminadas em níveis populacionais. Porém, depois que essa parceria está estabelecida, os resultados são bastante positivos.
Os recursos financeiros também são importantes. Os resultados são a longo prazo e altos investimentos são necessários. Eu tenho um trabalho de mais de 15 anos para entender por que Latinos nos Estados Unidos, México, Puerto Rico e Brasil fumam. Queremos saber também como intervenções usando tecnologia para informar a mudança de comportamento combinadas com medicamento se mostram altamente eficazes em comparação com grupo controle recebendo apenas material educativo. Nos Estados Unidos, é possível identificar os recursos financeiros em entidades governamentais, centros de fomento de pesquisa ou recursos destinados a organizações comunitárias. Enfim, muitas vezes os recursos são abundantes, mas não conseguem atingir as metas necessárias para mudança positiva de uma realidade em saúde por faltar o compromisso com modelos científicos construídos com a comunidade. Isso nos faz refletir sobre como, em países como o Brasil, ações com escassez de verbas repercutem de uma forma muito mais impactante para a comunidade. Possivelmente é uma resposta da presença de verdadeiros líderes pesquisadores e comunitários empoderados e motivados em promoção da saúde. É o reflexo do emprego dos princípios do trabalho calcado em Freire: respeito, transparência, honestidade, sustentabilidade e responsabilidade.
Verônica Cortez Ginani: A sua realidade de atuação proporciona um cenário de grande diversidade de gênero, cultural, étnica e racial. Simultaneamente, é comum a divulgação de pesquisas que revelam certo distanciamento entre as populações minoritárias e sistemas de apoio social, como com a comunidade médica (AMARASEKERA, C. et al. Prostate cancer in sexual minorities and the influence of HIV status. Nature Reviews: Urology, London, v. 16, n. 7, p. 404-421, 2019. DOI: 10.1038/s41585-019-0194-2
https://doi.org/10.1038/s41585-019-0194-... ). Essas situações acabam contribuindo para a perpetuação das disparidades de saúde. Nesse sentido, algumas estratégias podem ser exploradas para mitigar as evidentes disparidades nas taxas de incidência e mortalidade por câncer entre minorias raciais e étnicas, no contexto estadunidense. Uma delas é a inscrição dessas populações em ensaios clínicos randomizados para pesquisas que abordam o câncer. O primeiro passo nessa direção seriam as adaptações culturais e linguísticas de materiais educativos. Segue-se o uso de navegadores de pacientes (patient navigators), que são pessoas capacitadas para auxiliar os pacientes na tramitação pelo sistema de saúde, e, por último, a construção de parcerias comunitárias contínuas (VUONG, I. et al. Overcoming barriers: evidence-based strategies to increase enrollment of underrepresented populations in cancer therapeutic clinical trials: a narrative review. Journal of Cancer Education, [s. l.], v. 35, p. 841-849, 2020. DOI: 10.1007/s13187-019-01650-y
https://doi.org/10.1007/s13187-019-01650... ). Você poderia compartilhar alguma dessas experiências conosco? Como você vislumbra essas ações ocorrendo em países da América Latina, incluindo o Brasil?
Ana Paula Cupertino: Com certeza essa é uma estratégia. No que diz respeito ao “navegador de paciente” ou o agente comunitário de saúde (ACS), podemos falar com muito orgulho, que são modelos originários nos países da América Latina. O ACS, ou promotor da saúde, especificamente, são agentes da Atenção Primária à Saúde (APS) que consistem em um modelo de saúde coletiva desenvolvido no Brasil e em outros países da América Latina, como o México, calcado em Paulo Freire, e fazem parte da cultura dessa população.
Aqui nos Estados Unidos, a gente ainda tem grande dificuldade para implementar essa figura, que não é vista como parte do sistema de saúde. O que existe aqui é o “navegador de pacientes” dentro do hospital. Todas as estratégias destinadas a apoiar o paciente para o enfrentamento de barreiras, como cuidadores e outros diferentes níveis de parceria com o indivíduo, estão dentro do hospital. Nesse sentido, a América Latina se diferencia e é referência sempre que se pensa nessa pessoa que está dentro da comunidade e é ligada a ela, não como parte da equipe de pesquisa ou dentro do hospital.
Nos Estados Unidos a ideia é que o indivíduo, ao finalizar seu atendimento na atenção secundária e/ou terciária, retorne a sua rotina e se depare com uma série de recomendações médicas como fisioterapia, uso de medicamentos e orientações nutricionais, que são muitas vezes obstáculos para a concretização do plano de saúde elaborado. Todas essas dificuldades interferem na implementação do plano para a saúde e na manutenção desse indivíduo numa trajetória de saúde. Por essa razão, existe um indicador muito importante, a re-hospitalização, que destaca a atuação dos “navegadores de pacientes”. Essa figura pode apoiar o indivíduo no momento em que ele deixa o hospital, após um tratamento de câncer ou cirúrgico, por exemplo. No entanto, a lacuna dentro da comunidade deve ser preenchida, ao contrário do Brasil e do México, que apesar das suas limitações já têm esse indivíduo, que é o ACS ou o promotor da saúde. Seria o equivalente ao sistema de referência e contrarreferência em saúde no Brasil. Ou seja, deve haver um local dentro da comunidade para sobrepassar os determinantes sociais da saúde que são a raiz dos fatores de piora dos resultados em saúde.
É pensando nesse modelo que o nosso centro de câncer está atuando. Por exemplo, apesar dos testes de triagem, como mamografias, colonoscopias, entre outros, serem procedimentos comuns e indicados, ainda estão abaixo do que é desejado nas comunidades carentes. Para modificar esse cenário, a presença do “navegador de pacientes” é essencial a fim de auxiliar na viabilização desses procedimentos. Hoje, nos Estados Unidos, os sistemas de saúde disponibilizam uma avaliação bem detalhada dos determinantes sociais da saúde, que ficam disponibilizadas no prontuário médico. Dessa forma, é possível que o “navegador de pacientes” identifique as barreiras ao acesso aos testes de triagem, como idioma, transporte, violência doméstica etc. e busque soluções para que sejam transpostas. O indivíduo então consegue completar os testes de triagem ou realizar o exame médico necessário. Mas o que falta ainda é o depois, quando ele está na comunidade e talvez ainda tenha que fazer uma biópsia ou receber um resultado de exame. Como não há uma orientação e uma continuidade no contato, o paciente muitas vezes não retorna. Quando retorna já está em um estágio mais avançado do câncer, o que poderia ter sido evitado se existisse esse modelo comunitário.
Verônica Cortez Ginani: Acordos mundiais estão sendo pensados conjuntamente para avanços da saúde global. Os Estados Unidos têm uma tradição respeitada mundialmente no financiamento de programas globais de saúde, principalmente relacionados a países de baixa e média renda. Quais seriam as perspectivas de possíveis parcerias firmadas em a Universidade de Rochester e universidades brasileiras para pesquisas sobre saúde? Quais são os projetos em que você está envolvida em outros países da América Latina, além do Brasil?
Ana Paula Cupertino: Infelizmente o investimento americano em pesquisas com parcerias internacionais vem diminuindo com o passar dos anos, comparando-se com 10-15 anos atrás. Essa colaboração foi bastante comprometida pela pandemia e provavelmente vai demorar um bom tempo para se restabelecer. Os recursos estão bastante escassos a nível do Instituto Nacional de Saúde ou até mesmo, do FDA (Food and Drug Administration) ou do CDC. O fato é lamentável pelo papel que os Estados Unidos sempre tiveram na saúde global, no âmbito acadêmico. Mas é a realidade do país hoje e, possivelmente, resultará em consequências negativas para a América Latina. Independentemente dessa limitação de recursos do governo federal na saúde global, penso que no caso de parcerias, do pesquisador como eu, ela continua sendo uma prioridade. Sempre, quando realizamos atividades em países da América Latina, é possível aprender muito. Ao voltarmos, conseguimos implementar ações mais eficazes com os imigrantes latinos.
Aproximadamente quase 20% da população americana hoje é Latina. Por essa razão, no meu programa de investigação, essa parceria continua e crescerá depois da covid-19. Essas parcerias podem acontecer em termos educacionais e pela troca dos saberes entre grupos de investigação. Eu sempre estou muita interessada nos grupos que estão trabalhando com pesquisas comunitárias. Outro aspecto é a avaliação das diferenças entre os países e os Estados Unidos. Então hoje eu tenho algumas parcerias importantes. Com o México, há uma relação já bastante sólida, há 20 anos ou mais. Até porque a maioria dos imigrantes aqui nos EUA são mexicanos.
Nesse sentido, muitos estudos foram realizados como fruto dessa parceria. Por exemplo, há evidências sobre o comparativo de eficácia entre intervenções com fumantes mexicanos nos Estados Unidos e no México. É fabuloso entender que, apesar das barreiras sociais, dos desafios financeiros e dos limites de acesso ao programa de saúde, os fumantes no México têm um resultado muito melhor do que nos Estados Unidos. Os resultados podem ser atribuídos a algumas variáveis, como a discriminação social e a falta do senso de comunidade. Dentro dos Estados Unidos percebe-se uma falta de apoio e suporte social, entre outras variáveis, que podem comprometer a saúde. Portanto, o mexicano que fica no México tem um perfil de saúde muitas vezes melhor do que o que vem para cá. Outro trabalho de destaque é o realizado com a Guatemala. A gente realiza um trabalho de grande efeito na Guatemala em comunidades indígenas na prevenção do câncer pélvico. Existem muitas barreiras para atingir essa comunidade, como o acesso a elas, que se localizam ao redor o do lago Santa Catarina Palopó. Mas, de uma forma geral, é uma parceria que envolve também muita emoção e carinho. Com o Brasil, há uma parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora e a pretensão de ampliação para outras instituições nos próximos anos.
Verônica Cortez Ginani: Eu espero que realmente seja possível estreitar essas parcerias para ampliarmos os impactos gerados com pesquisas de excelência. Agradeço muito a sua disponibilidade e penso que conseguimos atender ao objetivo principal da entrevista.
Referências
- AMARASEKERA, C. et al. Prostate cancer in sexual minorities and the influence of HIV status. Nature Reviews: Urology, London, v. 16, n. 7, p. 404-421, 2019. DOI: 10.1038/s41585-019-0194-2
» https://doi.org/10.1038/s41585-019-0194-2 - OSMO, A.; SCHRAIBER, L. B. O campo da Saúde Coletiva no Brasil: definições e debates em sua constituição. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 24, p. 205-218, 2015. Suplemento 1. DOI: 10.1590/S0104-12902015S01018
» https://doi.org/10.1590/S0104-12902015S01018 - VUONG, I. et al. Overcoming barriers: evidence-based strategies to increase enrollment of underrepresented populations in cancer therapeutic clinical trials: a narrative review. Journal of Cancer Education, [s. l.], v. 35, p. 841-849, 2020. DOI: 10.1007/s13187-019-01650-y
» https://doi.org/10.1007/s13187-019-01650-y
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Dez 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
04 Jan 2023 - Aceito
22 Mar 2023