Resumo
Neste artigo procura-se conhecer a percepção dos secretários estaduais de saúde, de seus docentes e dirigentes sobre as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para o Sistema Único de Saúde (SUS). Sendo uma pesquisa de abordagem qualitativa, foram entrevistados os secretários estaduais de saúde, além dos dirigentes e docentes dessas escolas. O conteúdo das entrevistas foi analisado à luz do referencial de Bardin. Foram ressaltadas as contribuições das escolas para o SUS, demonstrando o papel estratégico que elas desempenham, destacando-se a provisão de profissionais formados nessas escolas e que ocupam cargos de gestão do SUS; o apoio técnico ofertado aos municípios e o reconhecimento dos trabalhadores pelo trabalho desenvolvido por essas escolas. No entanto, é necessário observar que essas instituições enfrentam dificuldades, em especial a insuficiência de recursos financeiros e humanos. As escolas são estratégicas para o SUS, sendo instrumentos fundamentais para manter a política de educação permanente em saúde e para qualificar a força de trabalho em saúde. As dificuldades relatadas indicam a necessidade de priorizar de fato as políticas de educação permanente e de qualificação profissional voltadas para o trabalhador da saúde.
Palavras-chave:
Escola de Saúde Pública; Educação Permanente em Saúde; Sistema Único de Saúde
Introdução
Neste artigo é apresentada a percepção dos secretários estaduais de saúde, de seus docentes e dirigentes sobre as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para o Sistema Único de Saúde (SUS).
O surgimento das escolas de saúde pública tem como base a construção do conhecimento em saúde pública, a formulação e/ou execução de programas e políticas destinados à qualificação dos trabalhadores e a necessidade de responder e melhorar as condições, as oportunidades e os desafios para a saúde em face das políticas implantadas ao longo do tempo. Em distintos contextos, as escolas foram se fundaram no aperfeiçoamento de uma política pública de formação e de construção de cenários de ensino-aprendizagem-serviço, na perspectiva de uma agenda intersetorial entre educação e saúde. Desempenham, portanto, um papel importante para implementar e fortalecer o SUS.
É necessário frisar que as escolas estaduais de saúde pública estão situadas na intersecção de dois campos: a educação e a saúde. O campo da educação, conforme aponta Nunes (2007NUNES, T. C. M. Democracia no ensino e nas instituições: a face pedagógica do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007., p. 58):
compõe uma arena específica, com suas premissas, debates teóricos e propostas particulares, compondo assim um eixo próprio de análise que, ainda que possa (e tenha de) ser remetido às discussões sobre as necessidades organizacionais do sistema de saúde brasileiro, não pode ser tratado como epifenômeno destas.
Contudo, as escolas estaduais de saúde pública também têm necessidades e características próprias, considerando que elas são escolas do SUS e para o SUS, e, portanto, precisam atender ao que está preconizado nos princípios e diretrizes do sistema.
Nesse sentido, defende Nunes (2009NUNES, T. C. M. Uma escola viva: “vida de escola”. [S. l.: s. n.], 2009.) que a escola de saúde pública deve ser engajada e comprometida com mudanças, de forma a interagir com o SUS e repensar permanentemente suas práticas uma Escola viva para o SUS. Ou seja, deve ser uma escola que estrutura seus processos educacionais tendo em vista a realidade social, com conteúdos dinâmicos, concretos, vivos e atualizados. Portanto, uma escola cuja referência seja o trabalho e que o utilize como lugar de problematização e de aprendizagem.
Em estudo realizado pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Pontes; Coutinho; Santos, 2020PONTES, H. J. C.; COUTINHO, M. L.; SANTOS, M. R. As escolas estaduais de saúde pública: contribuições pedagógicas e político-institucionais para o Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: Conass , 2020.) demonstrou-se que existiam, até 2019, 15 escolas estaduais de saúde pública, vinculadas às Secretarias Estaduais de Saúde (SES). Desse total, 12 são subordinadas e integradas à estrutura administrativa direta do Estado e três compõem as estruturas da administração indireta dos governos. De acordo com o estudo, as 15 escolas estaduais de saúde pública são responsáveis pela formulação e/ou execução de programas e políticas destinados à qualificação dos trabalhadores do SUS e todas utilizam o processo de trabalho como princípio educativo.
A escola estadual de saúde pública mais antiga é a de Minas Gerais, constituída em 1946 no contexto da reforma dos serviços de saúde pública e da consequente necessidade de formação de técnicos com conhecimentos especializados na área e habilitados para executar a política de saúde. Foi constituída, assim, com o objetivo de qualificar pessoal para a carreira sanitária e promover o aperfeiçoamento daqueles que nela já atuavam (Machado, 1990MACHADO, E. N. M. Formação de sanitaristas e políticas de saúde pública em Minas Gerais, 1947-1955. 1990. 269 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1990.).
Ressalta-se que, excetuando-se as escolas de Minas Gerais, do Paraná (1958) e do Rio Grande do Sul (1962), todas as demais foram constituídas depois do SUS; portanto, é possível inferir que a criação Sistema Único de Saúde incentivou e impulsionou as SESs a criarem as escolas.
É preciso lembrar que o SUS alterou radicalmente a história da saúde pública brasileira com a definição de novos princípios e diretrizes e, consequentemente, de uma nova organização do funcionamento e da gestão dos serviços de saúde. A Lei Federal nº 8.080, que o instituiu, define, no artigo 6º, inciso III, que está incluída no campo de atuação do SUS a ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde. No seu artigo 15, inciso IX, diz que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as atribuições de participar na formulação e na execução da política de formação e desenvolvimento de recursos humanos para a saúde. Por fim, no artigo 27, inciso I, proclama que a Política de Recursos Humanos na área da saúde será formalizada e executada articuladamente pelas diferentes esferas de governo, em cumprimento aos objetivos de organizar um sistema de formação de recursos humanos em todos os níveis de ensino, inclusive de pós-graduação, e elaborar programas de permanente aperfeiçoamento de pessoal (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 128, n. 182, p. 1, 20 set. 1990.).
A constituição do SUS impulsionou uma expressiva expansão da rede de serviços e ações de saúde em todas as regiões do país. Consequentemente, tornou-se necessária uma política de recursos humanos que reorientasse suas ações, com o objetivo de atender aos novos objetivos expressos. Nesse sentido, em 13 de fevereiro de 2004, por meio da Portaria nº 198, foi instituída a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (Pneps) como a principal estratégia do SUS para a formar e desenvolver os trabalhadores da saúde (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 141, n. 32, p. 37-41, 16 fev. 2004.).
A Pneps considera a importância da integração entre o ensino da saúde, as ações e os serviços de saúde e a realidade local, na organização e na oferta de qualificação dos trabalhadores. Trata-se, portanto, de aprendizagem no trabalho, incorporada ao cotidiano do trabalho. O processo de capacitação fundamenta-se na necessidade de saúde das pessoas e objetiva transformar práticas profissionais e da organização do trabalho (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 141, n. 32, p. 37-41, 16 fev. 2004.). Assim, a área dos recursos humanos em saúde assume, a partir da constituição do SUS e da Pneps, novas e ampliadas funções e responsabilidades.
Partindo do pressuposto de que o SUS assume as escolas de saúde pública como espaços estratégicos para a qualificação da sua força de trabalho, e que estas integram a estrutura das SESs, neste artigo são analisadas as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para a qualificação do trabalho realizado nos serviços do SUS, segundo a percepção de seus dirigentes e docentes. Parte-se da compreensão de que educar é uma forma de intervenção no mundo, e que, portanto, exige comprometimento. Assim, não é uma ação neutra ou indiferente, mas um ato histórico (Freire, 2019FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.).
Este artigo resultou da dissertação desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Gestão, Trabalho, Educação e Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte que analisou as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para a implementação e o fortalecimento do SUS.
Procedimentos metodológicos
Os procedimentos metodológicos utilizados se ampararam na abordagem qualitativa e exploratória, conforme a perspectiva de Minayo (2012MINAYO, M. C. S. et al. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2012.), e objetivaram desvelar o universo de significados, valores, crenças e concepções dos sujeitos da pesquisa sobre as escolas estaduais de saúde pública.
Para selecionar as escolas foram utilizados incialmente os seguintes critérios: integrar a estrutura da administração direta do governo estadual e desenvolver o ensino técnico e de pós-graduação. As escolas estaduais de saúde pública que se constituem como órgãos da administração indireta têm características próprias, como maior autonomia orçamentária e financeira, o que as diferencia nesse aspecto, das demais (Pontes; Coutinho; Santos, 2020PONTES, H. J. C.; COUTINHO, M. L.; SANTOS, M. R. As escolas estaduais de saúde pública: contribuições pedagógicas e político-institucionais para o Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: Conass , 2020.). Em razão disso se optou por realizar o trabalho com as escolas que integram a estrutura da administração direta. Depois dos critérios mencionados, foram incorporados outros dois: antiguidade e distribuição geográfica. Este último tinha como intuito contemplar a diversidade regional de um país com dimensões continentais, como é o Brasil. Foram priorizadas as escolas mais antigas por região. Por fim, foram selecionadas algumas escolas para o estudo:
Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais, criada pelo Decreto nº 1.751, de junho de 1946.
Escola de Saúde Pública do Paraná, criada pela Lei Estadual nº 3.807, de 4 de novembro de 1958.
Escola de Governo em Saúde Pública de Pernambuco, criada pela Lei nº 11.530, de 13 de janeiro de 1998.
Escola de Saúde Pública do Estado de Mato Grosso, criada pelo Decreto nº 2.484, de 7 de abril de 2000.
Escola Tocantinense do SUS, criada pela Medida Provisória nº 16, de 13 de maio de 2011.
As entrevistas foram realizadas no período de junho a novembro de 2021, com atores cujos papéis técnicos e políticos são determinantes para o funcionamento e o desempenho das escolas: diretores e docentes das escolas selecionadas e secretários estaduais de saúde. Devido aos limites impostos pela pandemia de covid-19, empregou-se o recurso da entrevista on-line; e, para sua viabilização, foi utilizada a plataforma Google Meet. Os entrevistados foram informados sobre todos os procedimentos aos quais seriam submetidos, bem como sobre a finalidade da pesquisa; as entrevistas foram gravadas (áudio e vídeo) e posteriormente transcritas, e tiveram uma duração média de 50 minutos. Em todas as entrevistas os entrevistados estavam sozinhos e a câmera ficava permanentemente ligada. É preciso considerar que a pandemia de covid-19 foi um fator limitante para a realização das entrevistas.
As falas dos entrevistados foram analisadas de acordo como o referencial de análise de conteúdo de Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.) e seguindo o seguinte percurso: pré-análise do material; exploração do material (codificação); e tratamento dos resultados (categorização, inferências e interpretações). Três categorias surgiram como catalisadoras das discussões dos sujeitos entrevistados: contribuições; relevância; e dificuldades e desafios. Essas categorias se constituíram a partir dos objetivos específicos da pesquisa e das respostas que emergiram das entrevistas.
A pesquisa que fundamentou este artigo seguiu as diretrizes da Resolução nº 466 de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, que orienta as pesquisas envolvendo seres humanos, e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal, do Rio Grande do Norte, em 4 de fevereiro de 2021, sob o Parecer nº 4.523.802.
Resultados e discussão
Compreendendo as escolas estaduais de saúde pública como espaços estratégicos para viabilizar a política de educação permanente, procurou-se conhecer a percepção dos secretários estaduais de saúde, de seus docentes e dirigentes sobre as contribuições dessas escolas para os serviços de saúde.
Dentre as contribuições apontadas, destaca-se o papel das escolas na qualificação de profissionais que assumem cargos na gestão do SUS e no apoio técnico aos municípios, conforme demonstram as falas destacadas a seguir:
Vários são os egressos das residências e das especializações ofertadas pela Escola que estão ocupando cargos de gestão no interior do estado. (Di 4)
O meu plano e a minha expectativa é que a ESP possa nivelar por cima esses gestores e trabalhadores da saúde, que atuam em saúde coletiva em especial, para que a gente consiga ter melhores resultados. (S 3)
Ontem eu participei de uma reunião da diretoria do Cosems, com todos os vices regionais, e recebi o feedback de quanto que o trabalho da Escola tem sido reconhecido. (Di 2)
Também foi enfatizada a contribuição da escola estadual de saúde pública na melhoria da qualificação da gestão municipal de saúde.
A Escola tem contribuído significativamente na qualificação dos profissionais de saúde de todos os municípios do estado. A maioria dos municípios não possuem NEP (Núcleo de Educação Permanente), então a Escola assessora por meio do NAEP (Núcleo de Articulação da Educação Permanente). (Di 1)
A ESP é protagonista de um dos principais projetos da secretaria, na capacitação dos municípios para esse projeto. A gente vê a ESP como uma forma fácil e segura, de qualidade, da gente conseguir implantar esse projeto estratégico. (S 3)
De forma similar, foi observado o importante papel das escolas na qualificação emergencial dos trabalhadores da saúde durante a pandemia.
No período da pandemia, a Escola aceitou o desafio de qualificar os agentes de endemia, os ACS, e os vacinadores. (S 1)
A relação entre as ações desenvolvidas pelas escolas e o que está preconizado nos planos estaduais de saúde foi outro ponto destacado.
As escolas estaduais de saúde pública têm papel ativo na construção da política estadual e na construção, desenvolvimento e orientação dos planos regionais da educação permanente em saúde. (Do 4)
A gente consegue visualizar as ações da Educação Permanente em Saúde - (ESP) em todas as regionais do estado. (Do 4)
Além disso, foi ressaltada a importância do trabalho que as escolas desenvolvem nas Comissões Intergestores Bipartites (CIBs) - instâncias de pactuação do SUS e nas Comissões de Integração Ensino-Serviço (CIES).
Se não fosse a presença da Escola estimulando e discutindo os processos de qualificação na CIES e na CIB (Comissão Intergestores Bipartite), a Educação Permanente não estaria hoje como está no estado. (Di 1)
A escola tem o reconhecimento dos servidores e uma importância significativa para os serviços de saúde do estado. Isso nós podemos perceber pelos depoimentos na CIES e na CIB. A gente percebe um envolvimento dos trabalhadores, em participar quando os cursos são ofertados pela Escola. (Di 3)
Ficou patente, na análise do conjunto das entrevistas, que os entrevistados reconhecem que as escolas estaduais de saúde pública são escolas do SUS e para o SUS, e dialogam com o que está preconizado nos princípios e diretrizes do sistema. A análise também permite afirmar que os secretários de saúde, diretores e dirigentes das escolas estaduais de saúde pública compreendiam o trabalho das escolas como fundamental para fortalecer e qualificar a força de trabalho do SUS, mesmo com os poucos recursos que são disponibilizados.
Sobre isso, destaca-se que a escassez de recursos humanos e de financiamento foi indicada como uma das maiores dificuldades para ofertar educação de qualidade que pudesse responder a todas as necessidades dos serviços de saúde. Sabe-se que a insuficiência financeira é um problema para o funcionamento de todo o sistema, mas as entrevistas revelaram o quanto esse percalço interfere na execução das atividades dessas escolas, frequentemente inviabilizando o funcionamento de diversas atividades, em que pese a Portaria nº 198 de 2004, que institui a Pneps, definir no seu artigo 6º que será financiada com recursos do orçamento do Ministério da Saúde (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 198, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 141, n. 32, p. 37-41, 16 fev. 2004.). Essa dificuldade também foi ressaltada nos resultados da pesquisa realizada por França (2016FRANÇA, T. Análise da Política de Educação Permanente do SUS (PEPS) implementada pelas Secretarias Estaduais de Saúde (SES). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016. v. 2.), na qual se destaca a preocupação com a insuficiência dos recursos necessários para o desenvolvimento do trabalho das escolas.
Todavia, os dados revelam que, apesar das dificuldades financeiras ou das relacionadas à gestão e à qualificação da força de trabalho, há um compromisso dos trabalhadores das escolas estaduais de saúde pública com a qualificação do trabalho no SUS. Assim, se faz pertinente dizer que, mesmo lidando com uma série de limitações desafiadoras, esses trabalhadores seguem acreditando e insistindo que as escolas estaduais de saúde pública contribuem para fortalecer o SUS.
As condições de trabalho não são boas. Tudo isso que a gente faz, que a gente cria, é para a construção do SUS. Isso se torna uma meta de vida: entender que a gente participa de um projeto maior para o País. Então, a gente trabalha com o que a gente tem, com o esforço do trabalhador. (Do)
Em seus depoimentos, os entrevistados afirmaram que as ações das escolas estaduais de saúde pública são realizadas por trabalhadores que acreditam no poder transformador da educação e no SUS: “A escola assume hoje uma função estratégica dentro daquilo que pretendemos para a saúde no estado, ganhou uma responsabilidade até maior que a sua capacidade” (S 1).
Nessa perspectiva, defende-se que o trabalho das escolas parte do pressuposto de que a transformação das práticas profissionais deve estar baseada na reflexão crítica sobre o processo de trabalho desenvolvido pelas equipes na rede de serviços de saúde (Cardoso, 2012CARDOSO, I. M. “Rodas de educação permanente” na atenção básica de saúde: analisando contribuições. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 21, p. 18-28, 2012. DOI: 10.1590/S0104-12902012000500002
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201200... ). Nesse sentido, realça-se a centralidade do trabalhador no processo de trabalho em saúde. Assim, presume-se que a compreensão dessa centralidade é o diferencial dos processos educativos conduzidos pelas escolas estaduais de saúde pública.
Face ao exposto, é plausível afirmar que as escolas procuram fundamentar suas ações na proposta de educação permanente em saúde, na aprendizagem incorporada ao cotidiano do trabalho, enfatizando a integração entre o ensino e o serviço e, principalmente, considerando as necessidades e a participação da sociedade. Seus processos de capacitação procuram se fundamentar na necessidade de saúde das pessoas e objetivam transformar as práticas profissionais e a organização do processo de trabalho. Em resumo, quando baseadas na proposta de educação permanente em saúde, as escolas estaduais de saúde pública desenvolvem o seu trabalho considerando a realidade social, sempre dinâmica, e seus processos de intervenção tendo como referência o trabalho cotidiano, afinal, elas são Escolas do SUS.
As escolas de saúde pública foram criadas, de acordo com Nunes (2009NUNES, T. C. M. Uma escola viva: “vida de escola”. [S. l.: s. n.], 2009.), com a perspectiva de serem plurais, engajadas e comprometidas com mudanças, interagindo e repensando permanentemente suas práticas. Ainda segundo a autora, as de saúde pública devem estruturar seus processos de intervenção tendo em vista a realidade social, ser dinâmicas e estar em permanente movimento, já que elas têm como referência o trabalho, que é utilizado como lugar de problematização e de aprendizagem. Nesse sentido, Saviani (1984SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1984.) diz que a relação pedagógica precisa ser referenciada na prática social e na perspectiva histórica. O autor defende que a difusão de conteúdos reais, dinâmicos, concretos, vivos e atualizados é uma das tarefas primordiais do processo educativo.
Nesse sentido, é pertinente lembrar Freire (2019FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.), quando ele diz que educar exige comprometimento e que a educação é uma forma de intervenção no mundo; por isso, nunca é neutra ou indiferente. Freire (2019FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.) ensina que a educação não é um ato de depositar conhecimentos; ela precisa ser problematizadora e conscientizadora. Para Freire (1980FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação. São Paulo: Cortez & Moraes, 1980., 2019FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.), a conscientização significa tomar posse da realidade, ter convicção de que a mudança é possível.
Cabe observar que os depoimentos dos docentes e dirigentes das escolas estaduais de saúde pública e dos secretários estaduais de saúde deixaram evidente que as escolas desempenham um papel relevante para o SUS. Porém, é necessário que esse papel seja compreendido e valorizado por um número maior de gestores públicos, para que esses espaços possam ser fortalecidos. Acredita-se que, desse modo, será possível materializar as escolas estaduais de saúde pública como prioridade, transformar as ideias em ações e potencializar o trabalho que elas já realizam.
Paim (2020PAIM, M. C. Prefácio. In: PONTES, H. J. C.; COUTINHO, M. L.; SANTOS, M. R. As escolas estaduais de saúde pública: contribuições pedagógicas e político-institucionais para o Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: Conass, 2020.) enfatiza que, mesmo com o reconhecimento dos gestores, a educação na saúde ocupa uma posição periférica na agenda de prioridades. Corroborando tal fato, Padilla, Cardoso e Nunes (2018PADILLA, M.; PINTO, I. C. M.; NUNES, T. C. M. Trabalho e educação em saúde: desafios para a garantia do direito à saúde e acesso universal às ações e serviços no Sistema Único de Saúde. In: OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Relatório 30 anos de SUS, que SUS para 2030?. Brasília, DF: Opas, 2018. p. 139-158.) dizem que o maior desafio está no campo político, diretamente ligado à governança e à insuficiência financeira da gestão pública.
Para concluir, defende-se a necessidade de colocar mostrar que, no âmbito do SUS, as escolas estaduais de saúde pública são espaços privilegiados de promoção e gestão dos processos educacionais voltados para o desenvolvimento dos trabalhadores da saúde. Cabe a esses espaços promover ações que acolham e desenvolvam a expertise do trabalhador, motivando-o e criando ambientes para desenvolver a criatividade, as reflexões sobre as práticas de saúde e a colaboração para melhorar os serviços prestados pela instituição.
O propósito da pesquisa que originou este artigo teve como ponto de partida o interesse de o destacar o papel e as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para o SUS. Mas, para além disso, as falas dos entrevistados ofereceram informações importantes para quem atua com a gestão do trabalho e da educação na saúde no SUS. São, na verdade, afirmações que alertam sobre problemas difíceis de superar, mas que precisam ser avaliados e solucionados. Aprofundar o conhecimento sobre as ações realizadas pelas escolas estaduais de saúde pública possibilita conhecer melhor o papel desempenhado por elas no SUS e, ao mesmo tempo, indica caminhos para superar desafios históricos da gestão do trabalho e da educação na saúde.
Ao discutir sobre as contribuições das EESPs, este artigo alude de modo especial sobre a necessidade de priorizar - com ações, e não só com palavras - a política de educação permanente e a política de qualificação profissional voltadas para o trabalhador da saúde. Políticas estas que visam à valorização do trabalhador na perspectiva da melhoria e do fortalecimento dos serviços de saúde.
Considerações finais
Neste artigo, a partir do lastro fornecido por entrevistas com alguns protagonistas responsáveis pelo trabalho nas escolas estudadas, foram pensadas as contribuições das escolas estaduais de saúde pública para o SUS, com destaque para algumas atividades desenvolvidas, para sua relevância social e política e para as dificuldades relacionadas ao desempenho de seu papel no SUS e para o SUS. Tudo isso a partir da percepção de um conjunto de protagonistas responsáveis pelo trabalho nas Escolas estudadas.
As razões dos problemas enfrentados pelas escolas estaduais de saúde pública são diversas. Por exemplo, o SUS sofre, desde sua criação, pressões que dificultam sua implementação, com destaque para o financiamento insuficiente. Nesse sentido, a Educação Permanente em Saúde (EPS) dificilmente é priorizada em relação às ações diretamente ligadas à assistência à saúde. Como as necessidades são diversas, é complexo disputar a alocação de recursos entre uma escola do SUS e um hospital. Por outro lado, os secretários de saúde, os diretores e os docentes das escolas estaduais de saúde pública avaliaram que as capacitações desenvolvidas provocam mudanças nos serviços de saúde. A pressão e a necessidade de respostas imediatas estão sempre presentes; e, para enfrentar esse problema, é necessário superar essa falsa dicotomia e compreender que assistência e capacitação são prioridades complementares.
Nesse sentido, é preciso estudar os impactos das ações educativas das escolas estaduais de saúde pública na implementação e no fortalecimento do SUS. A Portaria nº 3.194, de novembro de 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.194, de 28 de novembro de 2017. Dispõe sobre o Programa para o Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde no Sistema Único de Saúde - PRO EPS-SUS. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 154, n. 229, p. 141, 30 nov. 2017., que instituiu o Programa para o Fortalecimento das Práticas de Educação Permanente em Saúde no SUS (PRO EPS-SUS), também institui, no artigo 11, sua Comissão de Monitoramento e Avaliação, comissão esta que nunca foi constituída.
À guisa da conclusão, importa dizer que avaliar o papel que as escolas estaduais de saúde pública desempenham no SUS, destacando suas contribuições, assim como a necessidade de monitorar o impacto de suas ações, tem como propósito alertar as autoridades do SUS, com o intuito de que elas dirijam seu olhar para o fortalecimento das escolas estaduais de saúde pública, entendendo-as como espaços estratégicos para a gestão do SUS e comprometidas com seus princípios e diretrizes. É importante, portanto, que seu papel seja compreendido e valorizado por um número maior de gestores públicos, para que esses espaços possam ser fortalecidos. Acredita-se que, desse modo, será possível tornar as escolas estaduais de saúde pública prioridade, transformar as ideias em ações e potencializar o trabalho que elas já realizam.
Ademais, as escolas estaduais de saúde pública são comprometidas com os princípios e diretrizes do SUS, fundamentais para a manutenção da política de EPS e essenciais para a qualificação da força de trabalho em saúde, devendo ser, portanto, entendidas como um espaço de valorização do trabalhador da saúde. São escolas do SUS e desenvolvem seu trabalho considerando a realidade social, sempre dinâmica, e seus processos de intervenção tendo como referência o trabalho cotidiano.
Por fim, com a certeza de que a história é uma ação humana, concretizada a partir das condições presentes, mas, ao mesmo tempo, em permanente e eterno movimento e transformação, entende-se que todo trabalho é inacabado, portanto, aponta-se para a necessidade de outros estudos sobre a atuação da EESP e seus impactos no SUS.
Referências
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» https://doi.org/10.1590/S0104-12902012000500002 - FRANÇA, T. Análise da Política de Educação Permanente do SUS (PEPS) implementada pelas Secretarias Estaduais de Saúde (SES). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016. v. 2.
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- SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo: Cortez, 1984.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
24 Jul 2023 - Revisado
29 Maio 2023 - Revisado
24 Jul 2023 - Aceito
24 Jul 2023