Insegurança alimentar, saúde e produção da vida: uma aproximação às práticas alimentares de mulheres de camadas populares à luz da antropologia da alimentação11Este estudo contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ-1A.

Food insecurity, health, and life production: an approach to the food practices among low-income women in light of the anthropology of food

Maria Elisa do Carmo Venegas Érika Arantes de Oliveira-Cardoso Manoel Antônio dos Santos Sobre os autores

Resumo

A alimentação, além de imperativo biológico para sobrevivência e saúde humana, é revestida de significados culturais que determinam suas múltiplas expressões na sociedade. Os campos da alimentação, da nutrição, da saúde e da antropologia se interseccionam na discussão sobre práticas alimentares. Este ensaio teórico do tipo reflexivo tem como objetivo refletir sobre a relevância das práticas alimentares das mulheres de camadas populares para possível superação da insegurança alimentar e nutricional, examinando as relações estabelecidas com a comida no contexto da cozinha, de seus corpos e do acesso aos alimentos. O percurso metodológico consiste no estudo reflexivo de caráter exploratório, que recorre a fontes bibliográficas e documentais para alicerçar as análises com base em uma leitura crítica da realidade. A herança patriarcal continua delegando à mulher o papel de cuidadora familiar, o que abarca a alimentação: desde a aquisição do alimento até o preparo e fornecimento das refeições. Propomos que as práticas alimentares dessas mulheres podem impulsionar potenciais mudanças, que serviriam como ferramentas para aplicação de políticas públicas. As reflexões oferecem subsídios para o planejamento de políticas que possam empoderá-las como sujeitos de ação e reflexão crítica, abrindo uma projeção de cenários possíveis para agenciar formas de superação das inseguranças alimentares.

Palavras-chave:
Antropologia da Alimentação; Segurança Alimentar e Nutricional; Práticas Alimentares; Políticas Públicas; Saúde Pública

Abstract

Food, besides being a biological imperative for survival and human health, is coated with cultural meanings that determine its multiple expressions in society. The fields of food, nutrition, health, and anthropology intersect in the discussion about food practices. This theoretical and reflexive essay aims to reflect on the relevance of the food practices of low-income women for the possible overcoming of food and nutritional insecurity, examining the relationships established with food in the context of the kitchen, of their bodies, and of the access to food. The methodological path followed was the reflexive and exploratory study, which uses bibliographical and documental sources to support the analyses based on a critical reading of reality. The patriarchal heritage continues to assign women the role of family caretaker, which encompasses everything from acquiring food to its preparation and serving meals. We propose that the food practices of these women can drive potential changes, which would serve as tools for the application of public health policies. The reflections offer subsidies for planning of policies that can empower them as subjects of critical action and reflection, opening a projection of possible scenarios for the agency of ways to overcome food insecurity.

Keywords:
Anthropology of Food; Food and Nutrition Security; Food Practices; Public Policies; Public Health

Introdução

O diálogo entre os campos da alimentação, nutrição, atenção à saúde e outras áreas do conhecimento, como a antropologia, tem se intensificado nas últimas décadas. A antropologia pode ser entendida como o campo no qual se leva em consideração a diferença (resultado do encontro histórico de fatos) as ideias e os vislumbres sobre a identidade do indivíduo em suas diferentes relações e sistemas sociais, como é o caso da alimentação. Essa ciência mostra que o ato de comer está além do nível da mera sobrevivência e envolve escolhas, rituais, relações sociais, interdições, simbolismos e, consequentemente, a interpretação de experiências e situações (Canesqui; Diez-Garcia, 2005CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. D. Uma introdução à reflexão sobre abordagem sociocultural da alimentação. In: CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. (Org). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2005. p. 9-19.).

A contribuição dos estudos antropológicos se evidencia pela reflexão sobre as diferentes formas de produção e consumo dos alimentos, quer se trate da produção de subsistência ou da extrativista, destacando crenças associadas à produção dos alimentos e à composição da dieta e suas formas de preparo, bem como uma análise do contexto ético-político, do cenário econômico e das relações de troca entre ser humano e natureza a fim de compreender o funcionamento de sua produção e de suas práticas como um todo, enquanto modelos simbólicos da relação alimento-indivíduo (Diez-Garcia, 2003DIEZ-GARCIA, R. W. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição, Campinas, v. 16, n. 4, p. 483-492, 2003. DOI: 10.1590/S1415-52732003000400011
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; Menasche; Alvarez; Collaço, 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.).

Desde o princípio, os estudos antropológicos sobre alimentação e nutrição tinham forte caráter de aplicação: estudava-se o processo alimentar, desde a obtenção até o consumo dos alimentos, para tentar explicar as causas dos problemas nutricionais de determinada população, examinando-se possíveis soluções para que fossem sanados. Todavia, foi apenas na década de 1970 que as pesquisas desenvolvidas pelas ciências sociais e nutrição foram revigoradas. Na França, autores(as) como Annie Hubert, Claude Fischler, Igor de Garine e Jean-Pierre Poulain trouxeram para o primeiro plano discussões sobre Antropologia da Alimentação (Vilà, 2012VILÀ, M. B. Reflexões sobre a análise antropológica da alimentação no México. In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 29-44.).

Nesse mesmo período, houve uma retomada da preocupação dos cientistas sociais com a deterioração das condições de vida e saúde das camadas trabalhadoras; dessa forma, buscaram analisar, em suas pesquisas, o orçamento destinado ao consumo alimentar, já que havia uma preocupação com carências nutricionais (Canesqui, 1988CANESQUI, A. M. Antropologia e alimentação. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 207-216, 1988. DOI: 10.1590/S0034-89101988000300007
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). O conhecimento produzido colocou em evidência as desigualdades sociais que, via de regra, atravessam o ato de comer. Disparidades na saúde, na distribuição e no consumo de alimentos foram destacadas como os principais fatores que agravam a situação de insegurança alimentar e nutricional, contribuindo para dificultar o acesso a alimentos saudáveis e de qualidade pelo conjunto da população. No caso brasileiro, a situação de insegurança alimentar perpassa a constituição histórica da nação desde muito antes dessa época e persiste até os dias de hoje, com o país sendo colocado novamente no “mapa da fome” (Rede PENSSAN, 2022REDE PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert. 2022. Disponível em: <Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ >. Acesso em: 19 jul. 2022.
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). Assim, a relação entre as condições de vida e de saúde nas camadas trabalhadoras tornou-se um tema central da Antropologia da Alimentação, tendo como preocupações as representações sociais, tabus e modificações dos hábitos alimentares.

No campo da saúde, a aproximação entre ciência da nutrição e antropologia se potencializa quando elementos centrais dessas áreas do conhecimento se entrelaçam para perscrutarem o que está para além do comer (Vilà, 2012VILÀ, M. B. Reflexões sobre a análise antropológica da alimentação no México. In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 29-44.). Afinal, a complexidade da alimentação humana solicita entender o comer não apenas como ato biológico, mas como acontecimento carregado de significado social e cultural (Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.). Os profissionais que trabalham com reeducação alimentar têm na antropologia uma fonte de conhecimentos que aponta para possibilidades de intervenção para mudar os hábitos alimentares das pessoas, a fim de promover ressignificações no nível individual e potencializar essas transformações no plano coletivo, como possíveis estratégias de saúde pública (Menasche et al., 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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).

A abordagem antropológica convida o pesquisador a entender o sentido simbólico das práticas alimentares, considerando a alimentação como expressão de um complexo sistema simbólico de escolhas, classificações e oposições (Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.). Os elementos culturais e ideológicos que estão inseridos nessas práticas fazem parte do conhecimento social de determinada população. As dimensões culturais se expressam por meio de padrões, comportamentos, crenças, tabus, ideias e pensamentos de uma “cultura tradicional”, derivada de um processo histórico. Portanto, a alimentação pode ser um objeto legítimo de análise social e de busca do entendimento, a fim de aprimorar a promoção do viver em sociedade (Canesqui; Diez-Garcia, 2005CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. D. Uma introdução à reflexão sobre abordagem sociocultural da alimentação. In: CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. (Org). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2005. p. 9-19.).

Até os anos 1970, o olhar das ciências sociais sobre a alimentação se limitava a considerar o contexto sensorial e comportamental como circunscritores de identidades sociais, com base na antropologia e na sociologia da cultura. Com a globalização e criação do mercado mundial de alimentos, nos anos 1990, a comida passou a ter maior relevância antropológica, sendo percebida, na perspectiva de Fischler, como construtora da identidade individual e, sob as lentes da análise de Pierre Bourdieu, como um marcador de diferenciação social (Canesqui, 1988CANESQUI, A. M. Antropologia e alimentação. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 207-216, 1988. DOI: 10.1590/S0034-89101988000300007
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). Porém, ao passo que na França e Inglaterra o tema da alimentação já estava bem consolidado nas ciências sociais, o mesmo não ocorreu na América Latina (Azevedo, 2017AZEVEDO, E. Alimentação, sociedade e cultura: temas contemporâneos. Revista Sociologias, Porto Alegre, v. 19, n. 44, p. 276-307, 2017. DOI: 10.1590/15174522-019004412
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; Manasche et al., 2012).

Para a antropologia, o indivíduo é um acúmulo de conhecimentos, ações, pensamentos e bens (materiais e simbólicos) constitutivos da existência coletiva, transmitidos de geração em geração e que, consciente ou inconscientemente, serão utilizados a todo momento, inclusive quando comemos. Portanto, as práticas alimentares, como constructos sociais, se relacionam às instituições sociais matriciais como a família, sendo organizadas e reproduzidas cotidianamente por grupos domésticos em um processo contínuo de transformação do alimento em cultura. As práticas alimentares contemporâneas são submetidas a uma complexa dualidade entre a cadeia produtiva e os fatores que interferem na aquisição e consumo do alimento, tais como acessibilidade, publicidade e palatabilidade (Diez-Garcia, 2005DIEZ-GARCIA, R. W. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição, Campinas, v. 16, n. 4, p. 483-492, 2003. DOI: 10.1590/S1415-52732003000400011
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).

Notamos, então, que a alimentação é um processo macrossocial, o que torna necessário pensar o consumo alimentar de maneira ampla, tendo em vista que não se trata apenas de uma escolha racional, envolvendo gostos e preferências individuais. Trata-se de um comportamento resultante da interação entre mecanismos fisiológicos, biológicos e sociais apreendidos e armazenados na bagagem cultural pelos indivíduos, de acordo com o contexto social em que estão inseridos (Santos; Garcia; Santos, 2015SANTOS, M. A.; GARCIA, R. W. D.; SANTOS, M. L. A sujeição aos padrões corporais culturalmente construídos em mulheres de baixa renda. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde , Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 761-774, 2015. DOI: 10.12957/demetra.2015.16117
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). Portanto, a alimentação é um sistema com disposições socialmente constituídas, que fazem parte de um princípio que gera e unifica um conjunto de práticas e ideologias que caracterizam um grupo de agentes.

Os hábitos alimentares são influenciados pelos valores que se tornam dominantes sob determinadas circunstâncias culturais, históricas, religiosas e geográficas. Tanto o indivíduo quanto a sociedade são definidos por seus estilos e modos de vida (DaMatta, 1997DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.). Já as práticas alimentares também podem abarcar a busca por saúde, o que pode ter influência sobre o nosso paladar. As mudanças nesse sentido só serão exequíveis no decorrer do tempo e a depender da alteração das circunstâncias, já que a escolha do que comer é um processo complexo constituído no quadro da estrutura social, previamente estabelecida por instituições, sistemas de crenças, ideias, costumes e significados atribuídos à comida. Quando pensamos no paladar e o contrastamos com a fome, percebemos que se estabelece uma dicotomia: a fome remete a uma necessidade natural, circunscrita ao nível elementar biológico, enquanto o paladar é um gosto moldado culturalmente e por meio do qual podemos compreender a sociedade com sua matriz simbólica, que molda e é moldada pelas relações sociais (Canesqui, 2005CANESQUI, A. M. Mudanças e permanências da prática alimentar cotidiana de famílias de trabalhadores. In: CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. (Org). Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005. p. 167-210.; Rodrigues, 2016RODRIGUES, C. E. A influência da alimentação em quem somos. Diálogos & Saberes. Mandaguari, v. 12, n. 1, p. 9-24, 2016.; Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, T. C. et al. Concepções sobre práticas alimentares em mulheres de camadas populares no Rio de Janeiro, RJ, Brasil: transformações e ressignificações. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 65, p. 435-446, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622016.0807
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).

Não podemos pensar no consumo dos alimentos sem pensar em seu preparo, historicamente delegado às mulheres por meio de regras sociais e econômicas, que tendem a ser essencializadas como se fossem naturais e existissem desde o princípio dos tempos. De acordo com Siliprandi (2003SILIPRANDI, E. C. Políticas de alimentação e papéis de gênero: desafios para uma maior equidade. In: FARIA, N; NOBRE, M. (Org). A produção do viver: ensaios de economia feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2003. p. 56-90.), as mulheres são consideradas o principal meio pelo qual se pode atingir a segurança alimentar das famílias, ou seja, são protetoras do bem-estar de todos os membros. Isso se torna ainda mais marcado, e até sacralizado, quando voltamos a análise para as mulheres de camadas populares. Muitas vezes elas são estigmatizadas como exemplos de má nutrição, favorecendo um processo de autoculpabilização por não conseguirem disponibilizar uma alimentação adequada e balanceada para suas famílias (Kestering, 2020KESTERING, V. T. Riscos alimentares e feminilidades: as subjetividades reflexivas a partir da perspectiva de gênero. In: Encontro Nacional da ANPOCS, 44, 2020, São Paulo. Anais … São Paulo: ANPOCS, 2020. p. 1-15.).

Com base nesses pressupostos, formulamos o problema do estudo: qual a relação entre práticas alimentares, gênero e camada social com a insegurança alimentar e nutricional? Consideramos que são necessários novos estudos que permitam refletir sobre a prática alimentar e sua relação com gênero e classe social, de modo a contribuir com subsídios na elaboração de políticas públicas para o enfrentamento da insegurança alimentar. Assim, este ensaio teórico do tipo reflexivo tem como objetivo refletir sobre as práticas alimentares das mulheres de camadas populares a partir da Antropologia da Alimentação, examinando as relações estabelecidas com a comida no contexto da cozinha, de seus corpos e do acesso aos alimentos, ponderando seu papel em uma possível superação da insegurança alimentar e nutricional.

O percurso metodológico foi o estudo reflexivo de caráter exploratório, que recorre a fontes bibliográficas e documentais para alicerçar as análises com base em uma leitura crítica da realidade. A fundamentação desses estudos se baseia na formulação discursiva aprofundada acerca de um tema específico, buscando dialogar com diferentes fontes e pontos de vista teóricos e/ou práticos (Matheus, 2006MATHEUS, M. C. C. Pesquisa qualitativa em enfermagem. São Paulo: Livraria Médica Paulista, 2006.). Partimos de uma construção argumentativa e analítica, que destaca conceitos, atores e cenários articulados de tal forma com o tema que possibilitem compreender a relação de forças existentes, buscando elucidar o que de mais relevante está em jogo e o que obscurece o problema investigado.

Para estruturar a proposta analítica, este ensaio ancora-se em cinco eixos temáticos. O primeiro discute a gênese sociocultural das práticas alimentares, destacando a construção social do gosto e as especificidades encontradas nos estratos sociais dominantes e subalternos, modulando preferências e aversões reguladas pela cultura. No segundo eixo, abordamos a questão da comida para além do nível biológico do existir humano, buscando iluminar a dimensão da experiência. O eixo seguinte debate o protagonismo feminino no preparo da alimentação. No quarto, analisamos os meandros das relações estabelecidas entre corpo e gênero na contemporaneidade. Por fim, discutimos a relação entre práticas alimentares e insegurança alimentar e nutricional no contexto de vida das mulheres de camadas populares.

Gênese sociocultural das práticas alimentares

Para compreendermos a gênese sociocultural das práticas alimentares, preliminarmente é preciso entender a construção da identidade social, permeada por duas questões básicas: quem somos e como somos. Cada sociedade oferece determinadas condições particulares que definem processos que podem servir para a construção subjetiva de um projeto único e singular. A identidade é constituída socialmente, de maneira a afirmar ou negar determinados traços e concepções. Para DaMatta (1997DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.), a construção identitária no Brasil se dá de forma peculiar, já que erigimos uma dupla identidade social: a primeira na forma quantitativa, na qual deixamos a desejar enquanto coletividade; e a segunda na forma qualitativa, a partir da qual nos percebemos como entes sociais de valor, visto que o Brasil é reconhecido internacionalmente como um país supostamente hospitaleiro, rico em comidas saborosas e música envolvente, com tradição de valorização do paladar, da comensalidade e das relações de amizade. Nos meandros de nossa construção como nação encontramos os legados culturais, símbolos coletivos que distinguem um espaço social de um espaço de convívio íntimo entre as pessoas, a exemplo da residência que, para Marcel Mauss (apud DaMatta, 1997DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.), é um fato social totalizante no qual se conjugam a moral, a divisão sexual do trabalho e a questão geracional.

Como já assinalado, o ato de comer é permeado de significados fundamentais para a construção do senso de identidade social. Isso implica que a cultura define o que é ou não visto como comida, o que é permitido e considerado adequado em termos de práticas alimentares, e que molda os gostos e os modos de consumirmos os alimentos. Há um conjunto de práticas e processos sociais que abrangem desde a matéria-prima do alimento até o que se leva à mesa, isto é, a busca, a preservação, a preparação, a apresentação, o consumo e até mesmo o descarte. Todos esses processos e práticas carregam a marca identitária da cultura, organizada de forma singular por cada sociedade (Canesqui; Diez-Garcia, 2005CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. D. Uma introdução à reflexão sobre abordagem sociocultural da alimentação. In: CANESQUI, A. M.; DIEZ-GARCIA, R. W. (Org). Antropologia e Nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2005. p. 9-19.).

Segundo Marshall Sahlins (1979, apud Neto, 2012NETO, H. M. “Que cheirinho bom!”: O milho para além do comer. In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 119-134.), o patrimônio simbólico herdado se articula com a organização das relações de produção, a distribuição de renda e também com a configuração da demanda, apresentando diferenças de acordo com o status social da pessoa e com o que ela come. Além disso, há a construção do gosto, que é cultivado pela história, pela economia, pela política e pela própria cultura. Para Bourdieu (1988, apud Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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), o gosto demonstra uma hierarquização social, expondo publicamente nos corpos o teor público de reafirmação das categorias sociais e marcando a distinção entre os indivíduos. O sujeito necessita se apropriar do gosto para poder se posicionar na hierarquia social.

A construção do gosto não é pautada pelas necessidades biológicas de sobrevivência, mas pela satisfação sensitiva da relação entre a depuração dos sentidos e a diferenciação social. Ou seja, as necessidades fisiológicas são substituídas pela experiência cultural dos sentidos (Solano, 2012SOLANO, D. R. Cultura, sabor e mercado do café: uma leitura antropológica. In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 149-164.). O gosto envolve preferências e aversões que abrangem, simultaneamente, reações bioquímicas e o posicionamento frente a tais reações, pressupondo-se uma apreciação valorativa e um julgamento por parte do indivíduo em relação ao que come.

O gosto é maleável de acordo com os diferentes tipos de interações sociais, que se dão tanto no âmbito individual quanto coletivo. Muitas vezes a escolha por determinado alimento pode vir atrelada à busca por saúde, mas também pode significar o consumo de um símbolo que denota ascensão social para alguns, como é o caso da predileção por certos gêneros alimentícios de acordo com a visão de mundo de cada classe social. As camadas populares tendem a pautar suas escolhas alimentares pela preferência por alimentos mais gordurosos e baratos, que são associados à capacidade de fornecer energia para a reprodução e manutenção da força de trabalho (Santos; Garcia; Santos, 2015SANTOS, M. A.; GARCIA, R. W. D.; SANTOS, M. L. A sujeição aos padrões corporais culturalmente construídos em mulheres de baixa renda. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde , Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 761-774, 2015. DOI: 10.12957/demetra.2015.16117
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). A adesão aos alimentos industrializados responde à necessidade de rapidez e praticidade no cotidiano. Já os estratos mais elevados na pirâmide social privilegiam refeições mais rápidas, com alimentos livres de gordura e com baixos teores de carboidratos - critérios definidos por necessidade e por serem de fácil digestão, sendo este último um gosto determinado pela busca de conforto e liberdade (Menasche; Alvarez; Collaço, 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Ortiz, 1983; Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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).

Com os avanços tecnológicos e a reorganização das cadeias produtivas, a maximização da circulação dos bens e mercadorias possibilitou que os alimentos sejam congelados e transportados rapidamente para lugares distantes. Na atualidade, o alimento pode ser consumido durante todo o ano sem se degradar e não depende mais das variações sazonais, incrementando eficientemente tanto a disponibilidade e variedade de alimentos no mercado globalizado, quanto a aceleração do ritmo de circulação de produtos. A cozinha passa, então, a incorporar outros lugares geográficos e sua reprodução é possível em países distantes de sua origem, o que permite valorizar concepções de culturas populares que participam da diversificação culinária de diferentes países (Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.; Menasche; Alvarez; Collaço, 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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).

A alimentação passa também a ter influência de modelos alimentares globais que referenciam a dieta ocidental, fazendo com que haja um aumento no consumo de alimentos industrializados e ultraprocessados e, simultaneamente, uma redução do consumo de alimentos frescos e regionais (Diez-Garcia, 2003DIEZ-GARCIA, R. W. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição, Campinas, v. 16, n. 4, p. 483-492, 2003. DOI: 10.1590/S1415-52732003000400011
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; Ramos, 2012RAMOS, M. O. A comida nas histórias da “colônia”: um estudo etnográfico das mudanças alimentares entre famílias rurais de Maquiné (Rio Grande do Sul, Brasil). In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 229-244.). O movimento de homogeneização dos hábitos alimentares é fruto da industrialização, dos avanços tecnológicos e da modernização da produção agropecuária, que passaram a regular a opção preferencial à ingestão de alimentos que propiciem economia no tempo de preparo e que tenham status agregado ao seu consumo.

Entre o final do século XX e início do século XXI, houve uma transformação na percepção social ocidental das práticas alimentares. Entre as mudanças mais significativas percebidas nas últimas décadas, Santos (2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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) destaca: o advento de novas formas de pensar alimentação, no que se refere à quantidade e qualidade; a reflexão sobre a questão alimentar como preocupação inserida na ordem do dia; e a individualização do ato de comer. Todos passaram a ser convocados para reorganizarem suas práticas alimentares em prol de um bem maior: a saúde. Contudo, nem todas as sociedades interpretam e operacionalizam esse imperativo da mesma maneira. Aliás, até em uma mesma sociedade se encontra uma tendência à uniformidade entre os diferentes segmentos sociais, porém cada um deles formula sua própria interpretação de acordo com sua realidade social e econômica. Por exemplo, nas camadas populares é parte da disciplina e do código moral compartilhado pelas pessoas o “comer tudo” e “de tudo”, adotando-se como regra fundamental a condenação do desperdício.

Comida para além do nível biológico do existir humano

Embora seja um imperativo biológico, a alimentação é uma atividade humana e, como qualquer outra, é definida socioculturalmente e impregnada de significados. Isso torna bem mais complexa a tomada de decisão sobre onde comer, o que comer e com quem comer. Não se trata apenas de sanar a fome e ingerir nutrientes, mas de ter escolhas alimentares guiadas por normas de comportamento alicerçadas em referências culturais, o que nos leva a diferenciar a comida do alimento. As necessidades nutricionais são supridas pelos alimentos, que serão transformados em comida por meio da prática culinária. Então, a comida é um estilo de se alimentar, é tudo aquilo que comemos com prazer e de acordo com determinadas regras culturais e sociais ensinadas, aprendidas e transmitidas entre gerações (DaMatta, 1997DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.; Vilà, 2012VILÀ, M. B. Reflexões sobre a análise antropológica da alimentação no México. In: MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS , 2012. p. 29-44.).

Não consumimos apenas nutrientes e calorias, ainda que, na visão puramente biológica, a ingestão desses elementos seja suficiente para justificar a busca pela manutenção do funcionamento regular do organismo. O hábito alimentar é muito mais do que isso, pois envolve selecionar o alimento, fazer escolhas e distinguir os mais apropriados de acordo com certas ocasiões, interesses, disponibilidades e rituais. O hábito alimentar está intrinsecamente ligado à sociabilidade, às ideias e significados atribuídos ao ato de compartilhar a comida, e às diferentes interpretações que o sujeito dá às experiências e situações vitais (Rodrigues, 2016RODRIGUES, C. E. A influência da alimentação em quem somos. Diálogos & Saberes. Mandaguari, v. 12, n. 1, p. 9-24, 2016.).

Na confluência da constituição intersubjetiva de identidades mediada pela comida, encontramos também a construção de um corpo que, mais do que material, é também cultural, simbólico, pulsional e marcado pelas insígnias das identidades sociais (Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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). O corpo participa do ato de se alimentar, que não se resume a consumir calorias que serão convertidas em energia. Comer é mais do que ingerir alimentos - é uma ação que liga natureza e cultura. Considerando a influência dos aspectos culturais, não há como desvincular a saúde da alimentação. Basta lembrar que, historicamente, antes de surgirem os primeiros medicamentos, as pessoas se curavam de doenças por meio de caldos, palavra que em latim remete a reparar, consertar, renovar e restaurar.

Com o processo de industrialização, os alimentos continuaram a ser estritamente relacionados à saúde, porém os que mais conservam essa conotação são aqueles com pouco ou nenhum processamento, como hortaliças e frutas, e sempre com a valorização do mais natural possível, como é o caso dos orgânicos, providos da ruralidade em oposição aos alimentos industrializados por serem naturais, frescos e livres de agrotóxicos. Muitas vezes o consumidor urbano vai em busca desses alimentos procurando, além de saúde, sabores perdidos e valores atribuídos à natureza e à liberdade do ambiente campestre. Desse modo, a alimentação pode mobilizar tanto os domínios do apetite, desejo e prazer (os “prazeres da mesa”), quanto da desconfiança, incerteza e ansiedade (Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.;Rodrigues, 2016RODRIGUES, C. E. A influência da alimentação em quem somos. Diálogos & Saberes. Mandaguari, v. 12, n. 1, p. 9-24, 2016.).

Por conseguinte, a comida, assim como a busca pela manutenção da saúde, é ato social, cultural e político, além de biológico. O ato de comer é também uma forma relevante de dar suporte, criar e manter relações sociais. Para DaMatta (1997DAMATTA, R. O que faz o brasil, Brasil? 8. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.), a comida é o elo de mediação entre cabeça e barriga, alma e corpo. Além de operar transversalmente nos vários códigos culturais, envolve a sensorialidade presente no gosto, cheiro, impacto visual, temperatura e digestão dos alimentos. Não por acaso a comida se tornou um veículo privilegiado para a manifestação de significados, afetos, emoções, memórias, visões de mundo e identidades. O ato de se alimentar é um momento no qual é possível vislumbrar uma busca de harmonia entre as pessoas e o ambiente, emoções e alimentos, o que evoca o conceito de Lévi-Strauss (2004LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. Coleção Mitológicas 1. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.) de comensalidade totêmica, segundo o qual a lógica da comensalidade se estabeleceu quando houve a padronização do comer e da relevância social que esse ato assumiu em cada sociedade.

Além de ato primitivo e vital comum a todos, comer é um direito humano. Porém, os indivíduos desenvolveram formas de socialização que vão além de uma reunião de pessoas e que envolvem a partilha da alimentação, da narrativa de uma comunidade e do pertencimento à história viva de um povo, convertendo-se, portanto, em um ato sociológico (Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.). O comer não apenas nos nutre, mas também nos constrói e nos potencializa enquanto seres humanos.

Protagonismo feminino: cozinha como trincheira e palco político

É importante notarmos que a cozinha, enquanto sistema social que segundo a definição de Lévi-Strauss (2004LÉVI-STRAUSS, C. O cru e o cozido. Coleção Mitológicas 1. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.) estabelece uma linguagem própria por meio das preparações que ali são feitas, não representa apenas um conjunto organizado de ingredientes e técnicas. Como espaço da casa dedicado à preparação das refeições, a cozinha é um sistema complexo de normas e regras implicitamente estruturadas em forma de representações, que regulam comportamentos e organizam relações sociais, econômicas e políticas (Menasche; Alvarez; Collaço, 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Rodrigues, 2016RODRIGUES, C. E. A influência da alimentação em quem somos. Diálogos & Saberes. Mandaguari, v. 12, n. 1, p. 9-24, 2016.).

Ao problematizarem a relação que as mulheres estabelecem com a alimentação, os estudos antropológicos de comunidades oferecem proposições sobre crenças e tabus alimentares, tanto no que tange ao preparo dos alimentos quanto ao consumo deles em diferentes etapas da vida. Por exemplo, em situações de pós-parto é comum que se prescreva um conjunto de alimentos qualificados como “carregados”, “leves”, “quentes” e “frios”, em íntima conexão com o cuidado da saúde da mãe e do bebê. Em estudos antropológicos clássicos, como os realizados por Lévi-Strauss e Mauss, encontramos associações das mulheres com as propriedades organolépticas das comidas, de forma que preparos doces aparecem conectados ao feminino, enquanto alimentos crus são associados ao caráter selvagem e ao estado de rusticidade da natureza e, por conseguinte, ao masculino (Siliprandi, 2013SILIPRANDI, E. C. A alimentação como um tema político das mulheres In: ROCHA, C.; BURLANDY, L.; MAGALHÃES, R. (Org). Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2013. p. 187-198. ).

Na preparação dos alimentos, as mulheres têm desempenhado evidente protagonismo, uma vez que lhes foi atribuída a gerência e controle sobre a alimentação do grupo familiar a partir da divisão sexual do trabalho, historicamente pautada por regras sociais e econômicas fixadoras de posições nas relações de poder. A centralidade do preparo e elaboração do alimento para consumo reproduz a contradição, tanto da comensalidade quanto da própria reprodução social, que define o papel da mulher na sociedade. Espera-se que toda a logística do cuidado com a alimentação familiar seja manejada por elas sem que lhes sejam oferecidas condições para que desempenhem essa missão com conforto, não sendo discutido o tempo dispendido, o esforço pessoal e a infraestrutura disponível para que isso ocorra a contento.

Tudo isso transcorre no ambiente da cozinha, convertido em palco político que serve de veículo para a manutenção das relações de poder e das iniquidades de gênero estabelecidas no seu entorno. Todavia, a cozinha também constitui espaço de resistência das mulheres de baixa renda, que se empenham em preservar o patrimônio culinário regional ao resgatar tradições e memórias familiares sistematicamente submetidas a processos de apagamento. Nesse esforço significativo dirigido contra o esquecimento e a invisibilidade de seu trabalho, as mulheres pobres têm historicamente feito da cozinha sua trincheira amorosa, valorizando saberes, sabores e identidades, na tentativa de resistir à mercantilização da comida (Canesqui, 1988CANESQUI, A. M. Antropologia e alimentação. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 22, n. 3, p. 207-216, 1988. DOI: 10.1590/S0034-89101988000300007
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; Leonel; Menasche, 2017LEONEL, A. L.; MENASCHE, R. Comida, ato alimentar e outras reflexões consumidas. Contextos da Alimentação: Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, São Paulo, v.5, n.2, p. 3-13, 2017.; Schottz, 2019SCHOTTZ, V. Comida de verdade no campo e na cidade: refletindo sobre direito humano à alimentação, mulheres e agroecologia. In: SCHOTTZ, V. Mulheres e soberania alimentar. Rio de Janeiro: Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), 2019. p. 15-30.).

Ocorre que, com a inserção da mulher no mercado de trabalho, houve uma reconfiguração social das relações existentes no preparo daquilo que seria consumido pela família. Assim, novas formas e valores foram incorporados, modificando as formas tradicionais de preparação e introduzindo outros produtos na culinária doméstica. No entanto, as mulheres continuaram a ser socialmente encarregadas desse preparo e de todo o cuidado que ele demanda, um trabalho que permanece invisibilizado e subvalorizado a despeito disso tudo. Assim, o ingresso das mulheres no mercado formal de trabalho remunerado criou, na maioria dos casos, uma realidade ainda mais árdua para o gênero feminino, pois além da histórica carga de trabalho doméstico, acrescentou mais horas de trabalho diário, o que introduziu a dupla jornada (Braga; Oliveira; Santos, 2020SANTOS, M. A.; OLIVEIRA, W. A.; OLIVEIRA-CARDOSO, É. A. Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 32, e020018, 2020. DOI: 10.1590/1807-0310/2020v32240339
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). O fato de desenvolver uma atividade remunerada fora do espaço do lar não isentou a mulher dos afazeres domésticos que lhe foram atribuídos. O que ocorreu foi apenas um remanejamento de suas funções dentro de casa, o que em nada aliviou a sobrecarga, pelo contrário, trouxe um acréscimo de responsabilidades.

Assim, a despeito da histórica conquista de mais espaço na vida pública, de maior inserção no mercado de trabalho, de liberdade para escolher seu destino reprodutivo e do protagonismo na gestão de suas vidas, ainda permanece sendo socialmente delegado às mulheres o papel de cuidadora exclusiva do espaço privado. Isso inclui os cuidados com a casa, roupas, educação, saúde e, notadamente, o preparo das refeições, que devem ser saborosas e com “sustância” para garantirem a saúde e a reprodução da própria família. Pensa-se sempre na mulher como fiadora e garantidora da esfera privada, na medida em que o alimento deve também suprir a necessidade vital de todos os membros da família de obter energia para desenvolverem suas atividades laborais, em especial os homens, que ainda são vistos como responsáveis pelo trabalho fora de casa e pelo provimento do sustento financeiro. Persiste a divisão sexual do trabalho não igualitária entre os gêneros, que resulta no acúmulo de responsabilidades sobre o preparo do alimento já que, mesmo na sociedade contemporânea, não existe um mecanismo social que dê suporte para que essa concentração desproporcional de atribuições deixe de ser amplamente desfavorável ao gênero feminino (Lelis; Teixeira; Silva, 2012LELIS, C. T.; TEIXEIRA, K. M. D.; SILVA, N. M. D. A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, 2012.).

Outro desafio se impõe à jornada diária das mulheres de camadas populares. Como efeito da herança patriarcal, a inserção no mercado de trabalho acaba afetando o sistema alimentar, gerando uma nova organização de valores e hábitos e tendo consequências no padrão alimentar familiar, com a exigência de proporcionar refeições saudáveis e equilibradas (Lelis; Teixeira; Silva., 2012LELIS, C. T.; TEIXEIRA, K. M. D.; SILVA, N. M. D. A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, 2012.). Devido ao pouco tempo de que dispõem, as mulheres tendem a dar preferência a alimentos cujo preparo é mais fácil e rápido, tais como os prontos para o consumo ou que exijam pouca dedicação e elaboração. Desse modo, os produtos industrializados ganham espaço crescente na mesa das famílias (Oliveira et al., 2018OLIVEIRA, T. C. et al. Concepções sobre práticas alimentares em mulheres de camadas populares no Rio de Janeiro, RJ, Brasil: transformações e ressignificações. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v. 22, n. 65, p. 435-446, 2018. DOI: 10.1590/1807-57622016.0807
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; Santos; Garcia; Santos, 2015SANTOS, M. A.; GARCIA, R. W. D.; SANTOS, M. L. A sujeição aos padrões corporais culturalmente construídos em mulheres de baixa renda. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde , Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 761-774, 2015. DOI: 10.12957/demetra.2015.16117
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). Além de mitigar a sobrecarga que paira sobre a mulher, trata-se de um alimento altamente palatável, durável, prático e rápido, o que propicia uma boa aceitação pelos membros da família. Lelis, Teixeira e Silva (2012LELIS, C. T.; TEIXEIRA, K. M. D.; SILVA, N. M. D. A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, 2012.) detectaram que 63,9% das entrevistadas em sua pesquisa consideravam que houve mudanças nos hábitos alimentares da família após sua entrada no mercado de trabalho. A principal alteração percebida foi a preferência dada às refeições mais rápidas, como os lanches. Já para as mulheres que não consideraram ter havido alteração nos hábitos alimentares da família, foram reportadas as seguintes estratégias: presença de empregadas domésticas no lar, organização do tempo para preparar a comida e residir próximo à casa dos pais. Dentre as situações evocadas, não se inclui a possibilidade de alternância com o homem do trabalho diário na cozinha, no preparo das refeições.

Mulheres, corpo e gênero: indigestos enlaces contemporâneos

Para o desenvolvimento de estratégias e ações que levem ao enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional, é necessário compreender as transformações contemporâneas das relações de intimidade. Assim como ocorreu com os hábitos alimentares, o corpo, enquanto eixo estruturante da subjetividade, foi expropriado pelo modo de produção e consumo capitalista. A corporalidade foi capturada pelo processo de massificação, no qual a publicidade é utilizada pela sociedade de consumo como uma das ferramentas para influenciar escolhas individuais. O corpo foi transformado em objeto a ser investido do ponto de vista econômico, cultural e simbólico, transformando-se em mercadoria moldável, um corpo-fetiche (Santos et al., 2019SANTOS, M. A. et al. Corpo, saúde e sociedade de consumo: a construção social do corpo saudável. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 239-252, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170035
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). Isso fica patente na objetificação do corpo das mulheres e, mais recentemente, do das crianças e adolescentes.

As mulheres ainda são as mais afetadas por esse processo porque, além de provedoras de refeições, recai sobre elas o fardo adicional de se preocupar incessantemente com seu próprio corpo. A vigilância obsessiva sobre ele é incentivada pelo mercado, graças às mensagens difundidas pelos meios de comunicação tradicionais e pelas mídias digitais (Santos et al., 2019SANTOS, M. A. et al. Corpo, saúde e sociedade de consumo: a construção social do corpo saudável. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 3, p. 239-252, 2019. DOI: 10.1590/S0104-12902019170035
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). Influenciadoras digitais sugerem às mulheres uma necessidade deturpada de permanecerem alertas o tempo todo ao seu peso e a sua forma corporal, devendo estar constantemente engajadas em dietas restritivas e preocupadas em manter uma alimentação “saudável”. A voracidade alimentar é condenada, em nome de um controle permanente para não ceder às tentações da comida e ao perigo latente da compulsão alimentar. Aliás, desde cedo a menina aprende que o alimento é uma ameaça à boa forma física (Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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; Santos et al., 2016SANTOS, M. A.; BANUTH, R. F.; OLIVEIRA-CARDOSO, É. A. O corpo modelado e generificado como espelho da contemporaneidade: considerações a partir da teoria queer. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 511-520, 2016. DOI: 10.12957/demetra.2016.22525
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).

Nas camadas populares, as mulheres assimilam com facilidade o discurso moralizante e as referências às dietas saudáveis veiculadas por meios de comunicação de massa e por profissionais de saúde (Santos; Garcia; Santos, 2015SANTOS, M. A.; GARCIA, R. W. D.; SANTOS, M. L. A sujeição aos padrões corporais culturalmente construídos em mulheres de baixa renda. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde , Rio de Janeiro, v. 10, n. 4, p. 761-774, 2015. DOI: 10.12957/demetra.2015.16117
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). As comidas saborosas passam a ser evitadas por apresentarem alto teor de gordura e quantidade de calorias acima do recomendável, mas a percepção e imposição social de padrões de alimentação não se dão do mesmo modo para todos os corpos, especialmente no que diz respeito aos homens e mulheres (Santos et al., 2016SANTOS, M. A.; BANUTH, R. F.; OLIVEIRA-CARDOSO, É. A. O corpo modelado e generificado como espelho da contemporaneidade: considerações a partir da teoria queer. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 511-520, 2016. DOI: 10.12957/demetra.2016.22525
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). Isso pode ser notado pelo aumento da prevalência de obesidade e pelo fenômeno dos transtornos alimentares que, no último século, ficaram claramente associados à condição feminina, a exemplo da anorexia e bulimia que são socioculturalmente situadas. Estima-se que 90% dos casos diagnosticados desses transtornos alimentares sejam em mulheres jovens (Manochio et al., 2020MANOCHIO et al. Significados atribuídos ao alimento por pacientes com Anorexia Nervosa e por mulheres jovens eutróficas. Fractal: Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 120-131, 2020. DOI: 10.22409/1984-0292/v32i2/5626
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).

Os valores socialmente convencionados como “femininos”, relacionados à manutenção das tarefas domésticas e aos cuidados com o bem-estar do marido e dos filhos, situam a mulher como chefe emocional e nutriz da família (Banuth et al., 2016). Todavia, quando adentra o espaço público com o ingresso no mercado de trabalho a mulher deve incorporar certos valores ditos “masculinos”, o que é paradoxal e pode se tornar conflitante. Segundo Santos (2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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), essas contradições são mais acentuadas nas camadas populares, devido ao baixo poder de negociação e agência das mulheres. Isso pode ser percebido nas tentativas frustradas de seguirem dietas. A sobrecarga de tarefas, falta de equipamentos nas cozinhas que facilitem o preparo das refeições, necessidade de receber ajuda de mulheres externas à casa, maior resistência dos homens para aceitarem modificações na dieta e não individualização das refeições fazem com que as mulheres, apesar de se esforçarem para seguirem a reeducação alimentar, se sintam frustradas nesse desejo, mesmo sendo a parcela da população que mais internaliza e se mostra dócil ao discurso midiático das dietas como instrumento disciplinador dos corpos (Santos, 2008SANTOS, L. A. S. O corpo, o comer e a comida: um estudo sobre as práticas corporais e alimentares no mundo contemporâneo. Salvador: EDUFBA, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/38m/pdf/santos-9788523211707.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2020.
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; Santos et al., 2016SANTOS, M. A.; BANUTH, R. F.; OLIVEIRA-CARDOSO, É. A. O corpo modelado e generificado como espelho da contemporaneidade: considerações a partir da teoria queer. Demetra: Alimentação, Nutrição & Saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 511-520, 2016. DOI: 10.12957/demetra.2016.22525
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).

Em tempos de perdas e mesas vazias: mulheres de camadas populares e insegurança alimentar

É preciso pontuar que, além das desigualdades de gênero, há também a questão econômica que intersecciona a realidade das mulheres de famílias de baixa renda, deixando-as vulneráveis ao risco alimentar. Em circunstâncias menos favoráveis, elas devem lidar com empregos sub-remunerados ou ocupações laborais em condições de precarização, pouco acesso à alimentação de qualidade e sobrecarga de tarefas cotidianas. O contexto atual de precarização das relações de trabalho acentua o problema crônico da falta de segurança alimentar e nutricional, conceito consagrado pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan) e definido como a realização do direito humano ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e nutricionalmente adequados, que deve ser assegurado à população sem que comprometa o acesso às demais necessidades essenciais, e que seja sustentável e respeite a diversidade cultural (Brasil, 2006BRASIL. Lei n°11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.). O artigo 2º da Lei nº 11.346 estabelece que “a alimentação adequada é direito fundamental, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (Brasil, 2006BRASIL. Lei n°11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.). Destarte, a insegurança alimentar e nutricional nada mais é do que a negação desse direito, ou seja, a falta de acesso a uma alimentação saudável e adequada que é condicionada, principalmente, à questão do acesso à renda.

Nos estratos sociais populares, mulheres e crianças são as mais afetadas pela desnutrição relacionada ao risco alimentar (Siliprandi, 2003SILIPRANDI, E. C. Políticas de alimentação e papéis de gênero: desafios para uma maior equidade. In: FARIA, N; NOBRE, M. (Org). A produção do viver: ensaios de economia feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2003. p. 56-90.; Bezerra et al., 2020BEZERRA, M. S. et al. Insegurança alimentar e nutricional no Brasil e sua correlação com indicadores de vulnerabilidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 10, p. 3833-3846, 2020. DOI: 10.1590/1413-812320202510.35882018
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). O contexto pandêmico no qual mergulhamos a partir de março de 2020 impôs um desafio extraordinário para a saúde pública, gerando impactos sem precedentes nos sistemas de saúde, nas condições de vida da população e no sistema alimentar hegemônico (Ribeiro-Silva et al., 2020RIBEIRO-SILVA, R. C. et al. Implicações da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar e nutricional no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 3421-3430, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020259.22152020
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). No Brasil, a pandemia da COVID-19 acabou escancarando iniquidades sociais, étnico-raciais e de gênero preexistentes, o que dificultou ainda mais a garantia do direito humano à alimentação adequada para a população mais vulnerável (Santos; Oliveira; Oliveira-Cardoso, 2020SANTOS, M. A.; OLIVEIRA, W. A.; OLIVEIRA-CARDOSO, É. A. Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 32, e020018, 2020. DOI: 10.1590/1807-0310/2020v32240339
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).

Em 2021, ganharam proeminência nas mídias algumas cenas perturbadoras de pessoas aguardando em filas para obterem ossos ou carcaça de frango, a fim de alimentarem suas famílias. A situação desesperadora de mães revirando lixo nas ruas em busca de restos de comida tornou-se cada vez mais cotidiana no cenário brasileiro. Essas imagens dramáticas refletem o aumento exponencial do número de pessoas que convivem com algum grau de insegurança alimentar no país, que voltou a ganhar força diante da corrosão do poder de compra da população devido à elevação dos índices de inflação e ao encarecimento da produção e distribuição de alimentos.

Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil, feito pela Vigilância da Segurança Alimentar e Nutricional (Vigisan), mostraram que, de 211,7 milhões de pessoas, 116,8 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar em 2020. Já no final de 2021, esse número saltou para 125,2 milhões (Rede PENSSAN, 2022REDE PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert. 2022. Disponível em: <Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ >. Acesso em: 19 jul. 2022.
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). No fim de 2020, 19,1 milhões de brasileiros conviviam com a fome. Em 2022, já eram 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer. Nos domicílios chefiados por mulheres, seis em cada 10 já não conseguiam suprir suas necessidades básicas de alimentação, estando em algum grau de insegurança alimentar, e destes, 18% vivenciavam a fome. Somando-se a isso, a crescente e continuada redução dos programas de segurança alimentar patrocinada pelo governo Bolsonaro (2019-2022), com o desmonte programado da rede de proteção social, ampliou a vulnerabilização das famílias pobres. Com o desmantelamento institucional, equipamentos públicos responsáveis pela área passaram a não ter mais prioridade, além de haver redução substancial no orçamento para programas de cestas básicas (Alpino et al., 2020ALPINO, T. M. A.. et al. COVID-19 and food and nutritional (in)security: action by the Brazilian Federal Government during the pandemic, with budget cuts and institucional dismantlement. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00161320, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00161320
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; Rede PENSSAN, 2022REDE PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert. 2022. Disponível em: <Disponível em: http://olheparaafome.com.br/ >. Acesso em: 19 jul. 2022.
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).

O espetáculo escandaloso da volta do país ao mapa da fome passou a ser diariamente estampado nas manchetes dos jornais, com seus impactos diretos ocorrendo na mesa dos brasileiros. As mulheres pobres, mais do que nunca, necessitam do amparo de políticas de segurança alimentar que amenizem as aflições e impactos do aviltamento das funções relacionadas à alimentação da família brasileira (Alpino et al., 2020ALPINO, T. M. A.. et al. COVID-19 and food and nutritional (in)security: action by the Brazilian Federal Government during the pandemic, with budget cuts and institucional dismantlement. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, e00161320, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00161320
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). Insegurança alimentar está intimamente ligada à lógica do lucro imposta pelo mercado agroindustrial, que se choca frontalmente com o direito humano a receber uma alimentação cultural e nutricionalmente adequada, tendo como desafios o respeito à biodiversidade, a educação popular para boas escolhas alimentares e a necessidade de cessar a perda contínua de saberes e práticas alimentares tradicionais. Tais desafios poderiam ser superados com a valorização do papel central que as mulheres desempenham nos espaços sociais ligados à alimentação (Menasche; Alvarez; Collaço, 2012MENASCHE, R.; ALVAREZ, M.; COLLAÇO, J. (Org). Dimensões socioculturais da alimentação: diálogos latino-americanos. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2012.; Ribeiro-Silva et al., 2020RIBEIRO-SILVA, R. C. et al. Implicações da pandemia COVID-19 para a segurança alimentar e nutricional no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 3421-3430, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020259.22152020
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).

Entre as possíveis estratégias de enfrentamento do problema estrutural da insegurança alimentar, vislumbramos, além da garantia de comida no prato, o posicionamento das mulheres no centro das estratégias de combate à fome, fortalecendo as redes de apoio que permitiriam que atividades domésticas, como o preparo das refeições, não sofressem alterações quando elas se inserissem no mercado de trabalho. Isso faria com que não houvesse uma deterioração na qualidade dos alimentos, dificultando a troca de produtos in natura pelos industrializados e de rápido preparo, que são pobres nutricionalmente (Lelis; Teixeira; Silva, 2012LELIS, C. T.; TEIXEIRA, K. M. D.; SILVA, N. M. D. A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, 2012.). Segundo Siliprandi (2003SILIPRANDI, E. C. Políticas de alimentação e papéis de gênero: desafios para uma maior equidade. In: FARIA, N; NOBRE, M. (Org). A produção do viver: ensaios de economia feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2003. p. 56-90.), algumas instituições já enfatizam a necessidade de colocar recursos nas mãos das mulheres, para que possam melhorar tanto sua educação alimentar quanto as condições de produção de produtos agrícolas de subsistência.

Incrementar o acesso às informações nutricionais e de saúde também pode ser uma forma de potencializar a qualidade da alimentação das famílias. As mulheres são vistas como instrumento fundamental no combate às carências alimentares por estarem na condição social de provedoras alimentares da família, já que há muito tempo são legitimadas no exercício desse papel. Aliás, algumas políticas sociais estão colocando a mulher como referência, contudo, é necessário construir propostas que tenham foco direto nelas enquanto indivíduos complexos e completos, como sujeitos de direitos e agentes de transformação social.

A relação das mulheres com a segurança alimentar e a busca por sustentabilidade ganhou espaço e relevância com a luta das camponesas e indígenas, que em seu posicionamento no debate sobre soberania alimentar defendem seus direitos como produtoras e mantenedoras de um modelo de alimentação que respeite a cultura e sabedoria dos povos originários. Já existem, ao redor do mundo, correntes de ativismo alimentar de mulheres com experiências alternativas de produção e distribuição de alimentos, tendo como base tecnologias brandas, ecologicamente orientadas, sustentadas pelos princípios da economia solidária e pelo feminismo (Schottz, 2019SCHOTTZ, V. Comida de verdade no campo e na cidade: refletindo sobre direito humano à alimentação, mulheres e agroecologia. In: SCHOTTZ, V. Mulheres e soberania alimentar. Rio de Janeiro: Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), 2019. p. 15-30.). Esses movimentos buscam resgatar o conhecimento feminino ancestral no que tange à alimentação, em uma perspectiva emancipatória e coletiva na qual o modelo produtivo seja prazeroso e compartilhado de forma a não sobrecarregar as mulheres, que acabam assumindo também o cuidado da família.

Nessa perspectiva, salta aos olhos os dados do Ipea que apontam que o número de mulheres agricultoras supera o de homens, mostrando a importância de sua contribuição na construção dos sistemas alimentares alternativos, que tentam desvencilhar-se dos sistemas hegemônicos em busca de segurança e soberania alimentar (Siliprandi, 2003SILIPRANDI, E. C. Políticas de alimentação e papéis de gênero: desafios para uma maior equidade. In: FARIA, N; NOBRE, M. (Org). A produção do viver: ensaios de economia feminista. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2003. p. 56-90.; Silva, 2019SILVA, E. J. M. Sistemas alimentares, soberania alimentar e a vida das mulheres: elementos para o debate. In: Mulheres e soberania alimentar: sementes de mundos possíveis. Rio de Janeiro: Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) , 2019. p. 43-57. Disponível em: <Disponível em: http://biblioteca.pacs.org.br/wp-content/uploads/2020/03/Mulheres_e_SoberaniaAlimentar.pdf >. Acesso em: 17 jul. 2022.
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). É necessário dar voz e protagonismo às mulheres camponesas, responsáveis pela produção agrícola de subsistência, pois elas são peças-chave para a superação da insegurança alimentar não apenas na produção e circulação dos alimentos, mas também na transmissão de saberes culturais alimentares para as novas gerações (Siliprandi, 2013SILIPRANDI, E. C. A alimentação como um tema político das mulheres In: ROCHA, C.; BURLANDY, L.; MAGALHÃES, R. (Org). Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2013. p. 187-198. ).

Considerações finais

O direito constitucional de acesso à alimentação adequada e saudável é garantido pela política pública desde 2006 - Lei Nº 11.346 (Brasil, 2006BRASIL. Lei n°11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.), que preconiza, em seu artigo 3º, que esse acesso deve ter como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. Este estudo mostrou que as práticas alimentares das mulheres de camadas populares são perpassadas por relações sociais, simbólicas e econômicas que influenciam suas experiências enquanto produtoras e provedoras da alimentação da família. Considerando que as famílias brasileiras são fortemente impactadas por algum grau de insegurança alimentar, que nos últimos anos se agravou no país sobretudo sob a caótica gestão Bolsonaro, torna-se imperativo lançar um olhar mais atento para o protagonismo feminino na produção de formas de resistência.

Pesquisas empíricas e de reflexão teórica compreensiva e relacional, utilizando as perspectivas antropológica e das práticas alimentares, são fundamentais para subsidiar ações de enfrentamento da insegurança alimentar. Abordagens que considerem as dimensões socioculturais e que tomem a alimentação como um tema político das mulheres são estratégias potentes para subsidiar análises abrangentes, permitindo superar visões simplistas que tentam reduzir a compreensão do problema a um olhar biológico e mecanicista.

Este estudo apresentou reflexões sobre as práticas alimentares adotadas por mulheres de camadas populares, consideradas sob a perspectiva da Antropologia da Alimentação. O percurso crítico-reflexivo proporcionou elementos que fomentam a discussão sobre a importância da soberania alimentar na produção de vida das mulheres pobres, abrindo uma projeção de cenários possíveis. Postulamos que ações transformadoras podem ser realizadas - e com especial vantagem - pelas próprias mulheres que vivenciam, em seus espaços de interação social, os desafios e as mazelas da falta de alimento em casa.

No debate contemporâneo, as perspectivas antropológica e nutricional assumem relevância ao enfatizarem o protagonismo feminino nas camadas populares e valorizarem as potencialidades de suas redes de apoio e relações sociais, suas habilidades de lidar com condições de vida extremamente adversas - mantendo suas duplas ou triplas jornadas de trabalho -, e sua sabedoria no domínio/manejo dos códigos culturais e das tradições locais. A sensibilidade e entendimento que as mulheres acumularam historicamente permitem pensar no quanto as políticas públicas de segurança alimentar precisam ser desenhadas sob medida e implementadas para e por elas, enquanto protagonistas com papel fundamental para a superação do grave problema da insegurança alimentar.

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  • 1
    Este estudo contou com o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ-1A.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2023
  • Revisado
    03 Fev 2023
  • Aceito
    19 Set 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br