A contracepção como um valor: histórias de jovens sobre desafios no uso e manejo dos métodos11A pesquisa “Jovens da era digital: sexualidade, reprodução, redes sociais e prevenção às IST/HIV/Aids” foi coordenada por Cristiane S. Cabral (coord. geral e de São Paulo/USP), Ana Paula dos Reis (Salvador/UFBA); Daniela Riva Knauth (Porto Alegre/UFRGS); Elaine Reis Brandão (Rio de Janeiro/UFRJ), Flávia Bulegon Pilecco (Conceição do Mato Dentro/UFMG); José Miguel Nieto Olivar (São Gabriel da Cachoeira/USP). O estudo contou com apoio financeiro do CNPq (Processo 442878/2019-2; Processo 431393/2018-4). Agradecimentos especiais às/aos coordenadoras(es) e equipes de trabalho de campo de cada localidade, bem como às (aos) jovens que compartilharam parte de suas experiências de vida conosco.

Ana Paula dos Reis Andrea Del Pilar Trujillo Rodríguez Elaine Reis Brandão Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta resultados da pesquisa socioantropológica “Jovens da era digital: sexualidade, reprodução, redes sociais e prevenção às IST/HIV/aids”, conduzida com interlocutores (as) de 16 a 24 anos em seis cidades brasileiras. Analisamos narrativas de jovens heterossexuais, especialmente mulheres, dada a centralidade da posição que ocupam no planejamento reprodutivo em contextos hierárquicos de gênero. Apresentamos um script típico da contracepção juvenil: uso de preservativo na iniciação sexual, seguido de método hormonal em combinação/ou não com coito interrompido e o recurso frequente à contracepção de emergência. Destaca-se a experiência negativa das mulheres diante dos efeitos colaterais da contracepção hormonal, resultando em seu abandono ou descontinuidade, bem como o interesse pelo DIU de cobre que, no entanto, é considerado pouco acessível no Sistema Único de Saúde (SUS). Concluímos que, a despeito de constrangimentos de gênero e de desigualdades sociais, étnicas e raciais, a contracepção é um valor incorporado pelos(as) entrevistados(as), aspecto que deve ser considerado na atualização e retomada de políticas públicas voltadas à juventude.

Palavras-chave:
Contracepção; Juventude; Gênero; Sexualidade; Direitos Sexuais e Reprodutivos

Introdução

A gravidez na adolescência tem sido abordada por pesquisadores de diferentes campos do saber, assim como por formuladores de políticas públicas, educadores e profissionais de saúde, entre outros. Em geral, prevalece um discurso de caráter moralista, que toma o fenômeno como causa ou fator agravante de problemas sociais. Ainda como exceção, encontram-se análises que buscam desvelar sua heterogeneidade à luz de aportes socioantropológicos e com mobilização de conceitos atinentes à esfera dos direitos humanos (Brandão; Cabral, 2017BRANDÃO, E. R.; CABRAL, C. S. Da gravidez imprevista à contracepção: Aportes para um debate. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 33, n. 2, e00211216, 2017.; Cabral; Brandão, 2021CABRAL, C. S.; BRANDÃO, E. R. Uma bricolagem de experiências contraceptivas: desafios impostos à gestão da potencialidade reprodutiva. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 21-31, 2021.; Heilborn et al., 2006HEILBORN, M. L. et al(Orgs). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond/Fiocruz; 2006.).

Estudo com dados do Sistema de Informação de Nascidos Vivos constatou um padrão decrescente da maternidade entre adolescentes de 10-14 anos e estacionário entre as de 15-19 anos, embora com diferenças raciais (Goes et al., 2023GOES, E. F. et al. Desigualdades raciais nas tendências da maternidade adolescente e no acesso ao pré-natal no Brasil, 2008-2019. Research, Society and Development, Vargem Grande Paulista, v. 12, n. 1, e8312139404, 2023.). Ao lado desse fato, o país mantém declínio substancial na fecundidade, chegando em 2021 a uma média de 1,76 filhos por mulher (IBGE, 2024IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Panorama. Rio de Janeiro: IBGE , 2024. Disponível em < Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panorama >. Acessado em: 20 jan. 2024.
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panor...
). Confirmando tendências de mudanças no cenário sociodemográfico brasileiro, dados do último Censo Demográfico divulgados recentemente mostraram a menor média de crescimento anual da população brasileira (0,52%) (IBGE, 2023IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2022: População e domicílios - Primeiros Resultados. Rio de Janeiro: IBGE , 2023.).

O planejamento reprodutivo no Brasil é marcado por significativas diferenças socioeconômicas e demográficas. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 mostra que os contraceptivos orais (40,6%) são mais usados por mulheres de 15 a 49 anos, brancas e provenientes das regiões Sul e Sudeste, enquanto as mulheres pretas/pardas, das regiões Norte e Nordeste e com baixa escolarização, são as que mais recorreram à esterilização tubária (17,3%), apesar da prevalência desse método definitivo ter diminuído (Brasil, 2021aBRASIL. Pesquisa Nacional de Saúde 2019: ciclos de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 2021a.; Trindade et al., 2021TRINDADE, R. E. et al. Uso de contracepção e desigualdades do planejamento reprodutivo das mulheres brasileiras. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 26, sup. 2, p. 3493-3504, 2021.).

No país, o uso dos métodos anticoncepcionais (MAC) provavelmente impactou na diminuição das taxas de aborto (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2023DINIZ, D.; MEDEIROS, M.; MADEIRO, A. National Abortion Survey - Brazil, 2021. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 6, p. 1601-1606, 2023.). Na América Latina e Caribe, a utilização de contraceptivos reversíveis e de ação prolongada (LARC), ainda não totalmente disponíveis no sistema público brasileiro (Brandão, Cabral, 2021BRANDÃO, E. R.; CABRAL, C. S. Juventude, gênero e justiça reprodutiva: iniquidades em saúde no planejamento reprodutivo no Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 26, n. 7, p. 2673-2682, 2021.), tem crescido, embora com importantes disparidades sociais (Bearak et al., 2018BEARAK, J. et al. Global, regional, and subregional trends in unintended pregnancy and its outcomes from 1990 to 2014: estimates from a Bayesian hierarchical model. The Lancet Global Health, London, v. 6, n. 4, e380-e389, 2018.; Ponce De Leon et al., 2019PONCE DE LEON, R. G. et al. Contraceptive use in Latin America and the Caribbean with a focus on long-acting reversible contraceptives: prevalence and inequalities in 23 countries. The Lancet Global Health , London, v. 7, n. 2, e227-e235, 2019.).

Neste artigo enfocamos narrativas de adolescentes e jovens sobre suas experiências contraceptivas. A análise se vincula a reflexões anteriores que destacam a impossibilidade de compreender as práticas contraceptivas juvenis de modo dissociado das dimensões de gênero e de sexualidade. Além disso, entende-se MAC como tecnologias biomédicas e meios que podem viabilizar o exercício de uma vida sexual prazerosa (Cabral, 2017CABRAL, C. S. Articulações entre contracepção, sexualidade e relações de gênero. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 4, p. 1093-1104, 2017.).

Práticas contraceptivas estão imersas em relações de poder e hierarquia, além de serem expressas e potencializadas na interseção de eixos de desigualdade como gênero, raça, classe, sexualidade, etnia e geração. A polifonia de discursos - da medicina, da educação, da religião, da mídia e das redes sociais, entre outros - sobre a contracepção marca a experiência dos sujeitos. Com base em nosso material empírico, mostramos que a despeito de diferentes constrangimentos sociais, os jovens, desde a iniciação sexual e no decorrer de suas trajetórias afetivo-sexuais, mobilizam diferentes estratégias para acessar e usar os MAC, valorizando as práticas contraceptivas.

O trabalho se insere na pesquisa socioantropológica multicêntrica “Jovens da era digital: sexualidade, reprodução, redes sociais e prevenção às IST/HIV/aids”. A investigação faz uma imersão em questões relativas à sociabilidade juvenil, à vivência da sexualidade e à experiência da reprodução, buscando compreender as formas de aproximação afetivo-sexual entre adolescentes e jovens no atual contexto de relações mediadas pelas redes sociais.

Apresentamos um panorama sobre o material empírico, baseado em nossas experiências de trabalho com o tema, bem como nas discussões em equipe sobre os insights analíticos que nos despertaram atenção e merecem discussão.

Aspectos metodológicos

A partir de uma perspectiva socioantropológica, conduzimos 194 entrevistas individuais em profundidade com jovens entre 16 e 24 anos, buscando analisar suas trajetórias afetivas, sexuais e reprodutivas, e seus entrelaçamentos. A pesquisa de campo foi realizada em uma capital da região Nordeste (Salvador), duas do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo) e uma do Sul (Porto Alegre), além de cidades do interior do país, localizadas em Minas Gerais (Conceição do Mato Dentro) e no Amazonas (São Gabriel da Cachoeira).

As entrevistas foram mediadas por um roteiro semiestruturado e conduzidas por pesquisadores(as) jovens, a maioria vinculada às universidades envolvidas na pesquisa. A equipe foi treinada nos procedimentos de campo e na condução da entrevista com base nos pressupostos teórico-metodológicos do estudo. As entrevistas ocorreram, em sua maioria, presencialmente, em local escolhido pelo(a) participante, observadas as recomendações de prevenção da transmissão do SARS-CoV-2. Foram gravadas, transcritas e revisadas pelos(as) entrevistadores(as). Em etapa posterior, a equipe produziu resumos analíticos e quadros com informações sobre as biografias dos(as) interlocutores(as). Como ferramenta de armazenamento, organização e codificação usamos o software NVIVO.

As equipes locais utilizaram diferentes estratégias para recrutamento de entrevistados(as): busca por meio das relações pessoais de coordenadores(as) e entrevistadores(as), divulgação em redes sociais e o recurso da técnica “bola de neve”. O trabalho de campo ocorreu de outubro de 2021 a julho de 2022, período em que o país experimentava declínio na incidência e mortalidade associada à Covid-19 e aumento da vacinação, inclusive entre adolescentes e jovens.

O conjunto de participantes foi diverso e composto, em sua maioria, por mulheres e homens cis, além de pessoas trans e pessoas não-bináries. Nossos resultados partem das entrevistas com jovens de diferentes classes sociais, raça/cor, experiência reprodutiva (ou não) e orientação sexual, e de anotações pertinentes ao trabalho de campo. Buscou-se compor um grupo múltiplo de histórias que nos permitisse compreender as trajetórias juvenis contemporâneas, em especial no que se refere às questões afetivo-sexuais.

A totalidade de jovens entrevistados(as) (n=194) incluiu uma maioria de mulheres cis (n=100) e homens cis (n=87). Homens e mulheres trans, pessoas não-bináries e gênero fluido somam sete participantes. Pretos(as) ou pardos(as) (autodeclarados) formam o maior grupo do estudo (n=120). Aproximadamente um terço dos participantes se identificou como LGBTQIA+ (n=58), especialmente como bissexuais (n=37). Grande maioria do grupo completou ou está no ensino médio e aproximadamente a metade não professa nenhuma religião (n=96). Neste artigo, foram analisadas narrativas de rapazes e, principalmente, de moças, tendo em vista a centralidade da posição que ocupam na contracepção em contextos hierárquicos de gênero. Nosso foco recaiu sobre pessoas cis, heterossexuais e que haviam iniciado a vida sexual.

O estudo foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e comitês de ética em pesquisa das instituições coparticipantes. A pesquisa obteve permissão para dispensa de consentimento parental no caso de participantes menores de 18 anos, sendo a assinatura do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) realizada pelo próprio jovem. Participantes entre 18 a 24 anos assinaram diretamente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Na reprodução de histórias e depoimentos, foram utilizados nomes fictícios.

Explorando possibilidades contraceptivas

Sunna, 19 anos, é uma mulher cis, branca e estudante universitária. Vive com seus pais e uma irmã mais nova, em um bairro habitado pelas camadas médias e médias altas de Salvador. Assim como seu grupo de amigos, Sunna compartilha uma visão de mundo progressista em relação aos atributos/expectativas de gênero e à sexualidade. Define-se como bissexual, embora sua trajetória afetivo-sexual esteja marcada por parcerias heterossexuais.

Sunna começou sua vida sexual aos 16 anos. Antes da primeira relação, ela e o namorado conversaram sobre métodos contraceptivos e decidiram usar o preservativo. Pouco tempo depois, Sunna passou a combiná-lo com a pílula de uso diário, prescrita por uma ginecologista da rede privada de saúde e adquirida nas farmácias após uma consulta em que a jovem foi acompanhada pela mãe. Ela e o parceiro permaneceram utilizando a combinação de métodos por quatro anos, até o término da relação, e nunca engravidou. Ela afirmou que não queria usar a pílula, porque “uma pessoa saudável não deveria tomar um remédio regular” e pelos seus efeitos desagradáveis. Sunna relata uma situação na qual o preservativo rompeu durante a relação sexual e, excepcionalmente, ela não estava utilizando a pílula. Sem hesitações, nossa interlocutora usou a contracepção de emergência (CE), ainda que tenha, como disse , “[se] sentido violentada, por colocar algo no meu corpo, que eu sabia que ia me fazer mal, que ia ser uma bomba de hormônio[…]”.

A trajetória de Sunna atende a expectativas sociais amplamente compartilhadas inclusive por profissionais de saúde (McCallum; Reis, 2008MCCALLUM, C. A.; REIS, A. P. Users’ and carers’ perspectives on technological procedures for ‘normal’ childbirth in a public maternity hospital in Salvador, Brazil. Salud Pública de México, Cuernavaca, v. 50, n. 1, p. 40-48, 2008.), que valorizam o retardamento da constituição de prole frente a projetos de vida que incluam a escolarização e entrada no mercado de trabalho, marcos importantes de transição para a vida adulta. Seu pertencimento de classe, mas também racial, permite a Sunna o acesso fácil e informado à contracepção, inclusive de emergência, com apoio da família e diálogo com o parceiro. Não é o caso de Ana, uma jovem que vive no estado do Amazonas.

Ana, de 19 anos, é uma moça indígena da etnia Baré. Tem sete irmãos e reside com a avó, a filha e outros familiares. Frequentou a escola até o nono ano, interrompendo durante a pandemia. Menciona problemas com a mãe e desconhece quem seja seu pai. Também como Sunna, iniciou sua vida sexual aos 16 anos, com um rapaz indígena de outra etnia, que tinha 17 anos e era amigo de amigas dela. Conversaram pela primeira vez pelo WhatsApp. Posteriormente, iniciaram um namoro que durou cerca de um ano. Na primeira relação sexual, o casal usou camisinha e, na sequência, ela iniciou a pílula de uso diário, que ora obtinha na Unidade Básica de Saúde (UBS), ora comprava na farmácia. Em algumas situações, também recorreu à CE. Ana menciona que ela e o primeiro parceiro conversaram muitas vezes sobre a possibilidade da relação sexual: “antes de a gente ter a nossa primeira relação […] a gente conversou bastante. Eu tava gostando dele, a gente ficou, aí eu falei que sim e tal […] Aí a gente teve [relação sexual].”

O segundo parceiro de Ana era um rapaz também indígena, de outra etnia, cuja relação afetivo-sexual durou dez meses. Eles se conheceram na casa da tia de Ana. Nessa relação, nossa interlocutora não usou métodos hormonais contínuos, lançando mão, na maioria das vezes, de camisinha e, em outras situações, da pílula do dia seguinte. Com esse parceiro, aos 18 anos, Ana engravidou e pensou em abortar, mas as tias, com as quais conversou sobre a gravidez, “não deixaram tirar”. Um mês após o nascimento da filha, Ana rompeu o namoro e não se relacionou afetivo-sexualmente com mais ninguém. Ela afirmou que nunca participou de atividades escolares sobre prevenção da gravidez e tampouco conversou com os parceiros sobre o tema. Suas informações sobre saúde foram obtidas em palestras de um Projeto Social.

Como os jovens que compõem nosso estudo, Sunna e Ana apresentam trajetórias de vida e origem social e étnico-racial distintas. No entanto, observamos semelhanças em relação a suas práticas contraceptivas: camisinha na iniciação sexual, seguida da pílula diária e recurso à CE. No grupo das jovens cis com vida sexual (86), mais da metade (48) utilizou pílula anticoncepcional em algum momento de vida. Essa constatação é importante e ilustra o que outros estudos têm mostrado (Olsen et al., 2018OLSEN, J. M. et al. Práticas contraceptivas de mulheres jovens: Inquérito domiciliar no município de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00019617, 2018.).

A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2019 (PeNSE), realizada com estudantes de 13 a 17 anos, mostrou que, entre os adolescentes que já haviam iniciado a vida sexual (35,4%), 79,7% usaram, na última relação sexual, métodos hormonais. Destes, 52,6% utilizaram pílula, 17,3% contracepção de emergência e 9,8%, injetáveis (Brasil, 2021bBRASIL. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar: 2019. Rio de Janeiro: IBGE ; 2021b.). Dados de inquérito populacional no município de São Paulo, analisados por Lago e colaboradoras, estimam uma prevalência de 84,8% de uso de anticoncepção entre mulheres de 15-44 anos. A pílula foi mais frequente (27%), seguida pela camisinha (19%) e pelo injetável (10,4%) (Lago et al., 2020LAGO, T. G. et al. Diferenciais da prática contraceptiva no Município de São Paulo, Brasil: resultados do inquérito populacional Ouvindo Mulheres. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 10, e00096919, 2020.). Especificamente sobre práticas contraceptivas entre jovens de 15 a 19 anos desse mesmo inquérito, observou-se uma prevalência de anticoncepção de 81%. Os MAC mais usados são o preservativo masculino, 28,2%, e a pílula, 23% (Olsen et al., 2018OLSEN, J. M. et al. Práticas contraceptivas de mulheres jovens: Inquérito domiciliar no município de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00019617, 2018.).

Observamos grande utilização de contraceptivos hormonais entre nossas interlocutoras, prevalecendo a pílula de uso diário, mencionada por 48 mulheres. Quanto aos injetáveis, 22 entrevistadas os adotaram, administrados trimestralmente, e 18 em periodicidade mensal. No momento da entrevista, 28 estavam usando algum método hormonal, especialmente jovens de camadas populares (n=15). Além disso, 54 delas utilizaram a pílula do dia seguinte pelo menos uma vez na vida.

A camisinha é também um método recorrentemente utilizado, seja de modo isolado ou combinado a outros MAC, de forma irregular ou regular. A maioria (93 jovens) afirmou ter utilizado o preservativo masculino na iniciação sexual, tendência também observada em outros estudos (Marinho; Aquino; Almeida, 2006; Cabral; Brandão, 2021CABRAL, C. S.; BRANDÃO, E. R. Uma bricolagem de experiências contraceptivas: desafios impostos à gestão da potencialidade reprodutiva. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 21-31, 2021.). Quase a totalidade das jovens cis com iniciação sexual (67) já o havia adotado em algum momento da vida. Considerando rapazes e moças cis, mais da metade (57) mencionou o preservativo como método atual predominante.

É o caso de Nicolas, morador de São Paulo, 18 anos, branco, heterossexual, de classe média e que teve sua iniciação sexual aos 16 anos com uma parceira casual, três anos mais velha, no Réveillon de 2019. Nicolas narra como foi sua iniciação sexual: “[ Aconteceu] num rolê num condomínio na verdade, tipo a gente tinha conversado, ela foi pro banheiro feminino aí eu fui junto, a gente foi e trancou a porta tipo e fez lá no banheiro. Nosso interlocutor tinha uma camisinha comprada em uma farmácia e a usou. O casal prosseguiu fazendo sexo após o primeiro orgasmo do rapaz, mas, dessa vez, sem preservativo, conforme explica: Nicolas diz: “aí pronto, eu comprei […] [eu] era virgem, aí falei ‘Vai ser o final de ano. Vou levar tudo que tiver’. Na minha primeira vez tipo foi, aí eu tive que tirar a camisinha depois que terminou, né, só que depois a gente fez sem.

A primeira namorada de Nicolas tinha dezesseis anos. A relação durou dois anos e no início fizeram sexo sem preservativo, o que levou a parceira a usar CE, comprado por ele em uma farmácia. Segundo disse, a jovem procurou o ginecologista da rede privada de saúde e iniciou o uso de pílula de uso diário. Nesse período, o rapaz se relacionou casualmente com outra moça, usando preservativo.

A princípio, o preservativo masculino é o método mais simples e de fácil alcance, bastante utilizado pelos(as) jovens, mas não necessariamente de modo contínuo. Tal recurso parece se vincular ao tipo de relacionamento ou a não adoção de outro método utilizado pela parceira (Cabral; Brandão, 2021CABRAL, C. S.; BRANDÃO, E. R. Uma bricolagem de experiências contraceptivas: desafios impostos à gestão da potencialidade reprodutiva. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 21-31, 2021.; Marinho; Aquino; Almeida, 2006). É o que ocorreu com Joaquim, carioca, 23 anos, oriundo de classe popular, solteiro e com dois filhos. Ao ser questionado sobre o uso de camisinha, Joaquim afirmou “Eu uso. Pô, eu tando casado, não, mas agora eu tô usando camisinha na carteira e o caralho, pra se chegar numa situação, eu tá me protegendo […] Também antes de ter relação com a pessoa pergunto, às vezes a pessoa pode mentir, né, mas eu pergunto, se usa, se toma remédio, […] tipo há um tempo atrás eu me relacionei com uma pessoa que tinha DIU. Aí nem usava proteção, […] faço exame de seis em seis meses, pra ver como é que tá, faço um teste rápido. Graças a Deus nunca deu nada”.

O relato de Joaquim evidencia o manejo da camisinha dependente da natureza do relacionamento afetivo-sexual. Quando se casou, a contracepção estava a cargo da parceira, que adotou diferentes métodos hormonais, descontinuados em função dos efeitos colaterais. O jovem assinala ter conversado com a esposa para não interromper o método hormonal: “Não, véi continua tomando, o bagulho vai preservar pra não ter filho […] ‘Não, vamo se preservar de outra forma, eu tô sendo prejudicada, tô engordando’, a estética de mulher, né, eu falei ‘Ah, tudo bem, mano’, acabou que com isso que veio, tá ligado, o menor, por causa que ela não tava tomando injeção, acabou que veio meus dois filhos. Destaca-se o jogo de inclusão-e-exclusão masculina dos encargos contraceptivos em que a responsabilização pela contracepção é vista como uma atribuição feminina, a qual ele somente toma para si em relacionamentos casuais.

O coito interrompido, método de controle masculino, é também uma alternativa contraceptiva acionada pelos casais. Na pesquisa, sete rapazes e cinco moças declararam estar adotando-o, mas, como os demais jovens, comentaram sobre sua baixa eficácia. Ao longo da vida, 26 mulheres e 46 homens mencionaram recorrer a esse método. Em geral, o recurso a este MAC integra uma estratégia para contornar a ausência ou descontinuidade temporária de outros métodos.

Nossos dados indicam um script típico da contracepção juvenil, que inclui o uso inicial do preservativo, seguido ou posteriormente combinado à pílula ou outro método contraceptivo hormonal, e/ou ainda associado à prática de coito interrompido. Chama atenção no âmbito de nosso estudo dois aspectos importantes: a recorrência à contracepção de emergência e as queixas frequentes das jovens sobre os efeitos indesejáveis dos contraceptivos hormonais. Esses dois aspectos serão explorados a seguir.

O lugar estratégico da contracepção de emergência na geração atual

Assim como Sunna, Ana e a parceira de Nicolas, 54 mulheres entrevistadas usaram a pílula do dia seguinte. A PeNSE 2019 (Brasil, 2021bBRASIL. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar: 2019. Rio de Janeiro: IBGE ; 2021b.), mencionada acima, evidenciou que 45,5% das meninas de 13 a 17 anos com vida sexual usaram em algum momento o contraceptivo de emergência. No inquérito populacional em São Paulo antes referido, 60% das jovens que tiveram relações heterossexuais, de 15 a 19 anos, a usaram alguma vez na vida (Olsen et al., 2018OLSEN, J. M. et al. Práticas contraceptivas de mulheres jovens: Inquérito domiciliar no município de São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, e00019617, 2018.).

Camila tem 23 anos, pertence à classe popular e vive em São Paulo. Define-se como uma mulher cisgênero, preta, heterossexual. Em sua primeira relação sexual, não falou com o parceiro sobre evitar gravidez, mas exigiu o uso do preservativo. Ele concordou, mas, mesmo assim, ela levou o preservativo para o encontro. Segundo Camila, “quando chega na hora, a pessoa finge que esquece, e aí eu sinto que sempre sou eu que tenho que lembrar que vai colocar a camisinha, né”. Após ter iniciado um novo namoro, Camila consultou um ginecologista do SUS com a intenção de usar a pílula, mas não conseguiu fazer os exames solicitados pelo profissional porque a pandemia foi decretada e os serviços de saúde fechados ou prioritariamente organizados para atendimento à Covid-19.

Em decorrência disso, a jovem não iniciou o uso da pílula anticoncepcional, mas nos disse que com todos os parceiros com os quais se relaciona sexualmente solicita o uso de camisinha. Por precaução, aliás, leva sempre uma consigo. Com seu parceiro atual, ela tem usado o preservativo, mas está planejando mudar de MAC, pois observa que o desempenho sexual do rapaz tem sido negativamente afetado pelo uso da camisinha.

Camila também já fez uso de contracepção de emergência, acionada após o rompimento do preservativo masculino durante a relação sexual. Nossa interlocutora fornece mais informações sobre a situação que motivou o recurso à CE:

A camisinha estourou, e foi com uma pessoa que eu, foi desses rolês de sexo casual, uma pessoa com quem eu tinha conversado três dias que eu encontrei. Foi muito bom o sexo com ele, muito bom mesmo, mas estourou a camisinha. E aí eu entrei em desespero, assim, meu Deus, e agora que acontece, o que eu faço? E aí ele foi super solícito no sentido de [...] não, vamos passar, vamos comprar a pílula e tals. É o mínimo, na verdade […] quem comprou foi ele, a gente tava no carro, ele ia pro trabalho dele, ele pagou o Uber pra eu voltar pra minha casa, e aí a gente passou na farmácia, ele comprou, trouxe e eu tomei. E fui pra minha casa.

Assim com ocorreu na experiência relatada, Camila acredita que sempre existe o risco de engravidar. “Ah, porque a camisinha pode estourar, porque eu não tomo pílula anticoncepcional, sempre tem pílula do dia seguinte, tem, mas enfim, não sei se pode acontecer alguma coisa e ela não ser eficaz. Então eu sei que tem [risco] e eu sempre tenho esse medinho”. O rompimento do preservativo masculino ou casos de coito interrompido, cujo desfecho não ocorre de modo seguro, são motivos recorrentes para o uso da CE. Outras situações para o uso da CE foram mencionadas, como conta Amanda, jovem residente de Conceição do Mato Dentro (MG).

Amanda é mulher cisgênero de 24 anos, heterossexual, criada em um território quilombola. Ela se identifica como “preta” e de classe popular. Sua primeira relação sexual foi aos 18 anos, com um rapaz de 21 anos que se tornou seu namorado. Antes da iniciação sexual, ambos conversaram sobre o que usariam para evitar uma gravidez e decidiram pela camisinha, adquirida na farmácia, que usam “quase sempre” desde o início da relação que já dura seis anos. Além da camisinha, Amanda também já usou CE: “Eu já usei uma vez, pílula do dia seguinte, porque a gente cismou que não tinha dado certo o preservativo, e por segurança […] Ele comprou. […] por ser o primeiro medicamento que eu tomei, dá uma mexida, né, com o organismo da gente, aí, eu senti dor de cabeça e enfim, o fluxo de menstruação deu uma desregulada, mas eu sabia que isso poderia ser por causa da pílula, né. […]”.

Nossa interlocutora afirmou que nunca quis usar outro MAC, a exemplo da pílula anticoncepcional. Ela e o parceiro concordavam que a pílula não seria um bom método pelo potencial de causar maleficio à saúde ou de comprometer sua fertilidade no futuro. Embora quisesse usar outro contraceptivo, Amanda afirmou que desconhecia algum que não apresentasse efeitos negativos à saúde. Como muitas das nossas entrevistadas, Amanda se mostrou preocupada com os contraceptivos hormonais. Não é raro o abandono destes métodos em função de sintomas desagradáveis e temores em relação aos efeitos a longo prazo na saúde e capacidade reprodutiva.

Nosso material mostra que a CE foi geralmente adquirida nas farmácias comerciais, e não no SUS. Em alguns casos, as (os) jovens usam essa estratégia para fugir do controle social a que estão sujeitas(os) quando buscam as UBS nos territórios onde residem. Luciano, 22 anos, um rapaz preto, morador de um bairro popular de Salvador, narra a situação na qual sua parceira recorreu à pílula do dia seguinte:

Logo no início do nosso relacionamento, que a gente desconhecia […], era muita desinformação. A primeira vez que a gente ficou eu não cheguei nem a ter orgasmo e ela tomou o Diad [marca de CE]. Quando foi uns dois meses depois a gente foi pro interior e aconteceu da gente transar e eu acabei ejaculando dentro e ela tomou outro Diad. E a gente sabe que a carga hormonal é pesadíssima, né?[…] A gente foi junto, foi em outra farmácia. A gente estudava no [colégio] e ali no [colégio] tem o GBarbosa que é do lado, a gente foi na farmácia do mercado […] porque não era nem próximo do meu bairro, nem próximo do bairro dela, ela tinha vergonha, né, de comprar essas coisas, então a gente foi num lugar distante.

Outro aspecto que merece atenção é que nem sempre a CE tem sido usada de forma correta, tanto no que se refere à frequência como no modo de administração. Observamos histórias de jovens que usam a CE seguidamente, combinada com outros contraceptivos hormonais. Maria, 23 anos, preta, com um filho e proveniente de classe popular de Salvador, afirmou ter adotado o método em várias oportunidades e até mesmo sem necessidade: “Foi muita loucura... nessa época se ele gozasse na minha perna eu já tomava uma pílula do dia seguinte, porque eu tinha muito medo disso acontecer.

A CE é também bastante acionada pelos rapazes. A aquisição nas farmácias comerciais permite sua compra e utilização imediatamente à relação sexual desprotegida ou quando o preservativo masculino se rompe, fica retido na vagina da parceira, ou o sêmen escorre. Muitos interlocutores confiam plenamente na eficácia da CE, chegando a adquiri-la em repetidas ocasiões para entregá-las às parceiras, frente a situações consideradas de “risco”. Iago, 23 anos, preto, de classe popular, casado, pai de um filho e morador de Conceição do Mato Dentro, ao ser questionado sobre suas preocupações relativas à ocorrência de uma gravidez, expressa sua confiança no método: “Ah, ter eu tinha, né?! Mas a pílula do dia seguinte resolve tudo, né?!. Ele explica que já comprou o método em repetidas ocasiões, tanto para a parceria atual quanto no passado. Seu depoimento se destaca pela forma como gerencia situações de risco. Iago explica: “Comprei [a CE] e entreguei, né!? É, depois só manda a foto, né?! Depois que você tomar. Mostra aí que você tomou”. Ao ser questionado sobre uma possível negociação com a parceira para adoção do método, o jovem nega um acordo prévio. Para ele parece estar implícito o uso da CE após uma relação sexual desprotegida: “Não, até porque é um recurso certo esse aí, né!? […] Todo mundo já sabia.

Em síntese, não restam dúvidas sobre a difusão dessa alternativa contraceptiva como um recurso em caso de não uso ou falha de outro MAC, de incertezas sobre a eficácia da proteção utilizada, de eventual deslize no coito interrompido, de atraso na periodicidade do injetável e de esquecimento da ingestão da pílula, entre outras ocasiões A sua popularização se deve à não exigência da receita médica no balcão da farmácia e à possibilidade de utilização episódica e emergencial, não condicionando a usuária ao uso contínuo da pílula anticoncepcional. Ainda assim, a ideia de que a CE é uma “bomba hormonal” é bastante difundida e pode se constituir em uma barreira na gestão dos riscos contraceptivos (Brandão et al, 2016BRANDÃO, E. R. et al. “Bomba hormonal”: Os riscos da contracepção de emergência na perspectiva dos balconistas de farmácias no Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 32, n. 9, e00136615, 2016.).

Além dos benefícios: uso de métodos hormonais e a vivência dos efeitos adversos

Como já mencionado, a maioria das moças utilizou métodos hormonais de anticoncepção. As experiências juvenis com o aprendizado do uso desses métodos revelam uma geração bastante preocupada e inquieta com seus efeitos colaterais, um fenômeno que tem chamado atenção em diferentes países (Bajos et. al., 2014BAJOS, N. et al. La crise de la pilule en France : vers un nouveau modèle contraceptif ?. Population & Sociétés, Aubervilliers, v. 511, n. 5, p. 1-4, 2014.; Gubrium, 2011GUBRIUM, A. “I’ve lost my mojo, baby”: a narrative perspective on the effect of depo-provera on libido. Sexuality Research and Social Policy, v. 8, n. 4, p. 321-334, 2011.). Encontramos muitas histórias sobre esses efeitos, como dores de cabeça, sangramento excessivo, problemas vasculares, aumento de peso, diminuição da libido, indisposição, variação de humor, inchaço/edemas, irritação, mal-estar, entre outros. O relato sobre consequências desagradáveis associadas ao uso da pílula anticoncepcional não é, no entanto, novo. Desde a entrada desse dispositivo contraceptivo no Brasil, na década de 1970, as mulheres já expressavam incômodo com os efeitos adversos da pílula (Pedro, 2003PEDRO, J. M. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 239-260, 2003.).

Em função dos problemas mencionados, várias jovens abandonam, trocam ou descontinuam o uso dos métodos hormonais. Clarice é uma moça de 23 anos, cisgênero, carioca, preta e bissexual. Desempregada, sem renda própria, “trancou” a matrícula em uma universidade pública. Diferente da maioria, ela afirmou que procura frequentemente a ginecologista porque faz uso do DIU de cobre. Sua escolha se deu após uma longa jornada na utilização de contracepção hormonal. Durante cinco anos usou pílula, associada à camisinha em algumas situações. Mas os efeitos negativos da pílula foram fundamentais para a busca por outras opções, como nos conta Clarice:

Eu não aguentava mais tomar anticoncepcional. Sinceramente… tomar todo dia, é… questão de hormônio. […] Eu tomava o mesmo anticoncepcional há cinco anos. Só que eu tive princípio de trombose. E aí, eu falei pra ginecologista: ‘olha, não dá, tô com muito problema de circulação, eu tô passando muito mal’. Eu não podia caminhar, fazer um exercício, que eu ficava completamente inchada.[…] Era horrível, horrível. Eu falei: Chega, pra mim já deu!

Clarice procurou a UBS, mas a médica não foi receptiva à sua demanda de mudança do método: “A médica falou: ‘ah, em time que tá ganhando não se mexe…’ eu falei: “cara, eu não tô bem, não tô bem”. Ela conta como a profissional subestimou os efeitos adversos relatados, não recomendando a mudança do método. Inconformada, a jovem procurou outra ginecologista do SUS que lhe encaminhou para a inserção de DIU de cobre.

Assim como Clarice, muitas jovens (28 delas) pretendiam usar algum método contraceptivo não hormonal, em especial o DIU de cobre, adotado somente por dez interlocutoras, cinco pertencentes às camadas populares e cinco, às camadas médias. Em geral, esses dispositivos foram inseridos no pós-parto, no SUS, ou em serviço privado naquelas que puderam custeá-lo. Das mulheres que tinham filhos (45), treze de camadas populares e duas de camadas médias manifestaram interesse em usar o DIU de cobre, mas acreditam ser difícil obtê-lo gratuitamente. Embora o dispositivo esteja presente no SUS há décadas, estudos mostram barreiras organizacionais - a exemplo da indisponibilidade do insumo ou de profissionais para inseri-lo - e morais, como a reticência dos profissionais em relação à indicação do dispositivo para adolescentes ou mulheres sem filhos, que, de fato, dificultam seu acesso (Gonzaga et al., 2017GONZAGA, V. A. S. et al. Barreiras organizacionais para disponibilização e inserção do dispositivo intrauterino nos serviços de atenção básica à saúde. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 51, e03270 , 2017.).

Em prol da recomendação de evitar a gravidez na adolescência e juventude, os relatos sobre os efeitos adversos dos contraceptivos hormonais são muitas vezes negligenciados ou silenciados, seja pelos formuladores de políticas públicas, seja pelos profissionais de saúde. A pouca escuta às queixas das jovens pode ser entendida à luz do termo “gaslighting médico” (Sebring, 2021SEBRING, J. C. H. Towards a sociological understanding of medical gaslighting in western health care. Sociology of Health and Illness, Massachusetts, v. 43, n. 9, p. 1951-1964, 2021.), adotado para representar um tipo de violência psicológica exercida pelo profissional de saúde que desacredita dos sintomas ou padecimentos vivenciados pelas pacientes. A normalização desses efeitos no âmbito do atendimento/aconselhamento sexual e reprodutivo pode influenciar de forma significativa a tomada de decisões contraceptivas pelas mulheres, inclusive jovens e adolescentes.

Fonte de informações, acesso aos contraceptivos e o (não) acolhimento dos profissionais de saúde

Documentos oficiais do Ministério da Saúde (Brasil, 2009) e da Educação (Cassiavillan; Albrecht, 2023CASSIAVILLANI, T. P; ALBRECHT, M. P .S. Educação sexual: uma análise sobre legislação e documentos oficiais brasileiros em diferentes contextos políticos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 39, e39794, 2023.) incluem o provimento de informação qualificada sobre saúde reprodutiva e sexual como uma estratégia fundamental para a educação em sexualidade voltada para os (as) adolescentes, tanto nos serviços de saúde, como nas escolas.

No entanto, as principais fontes de informação citadas por nossos(as) interlocutores (as) foram o Google, sites dedicados à saúde, blogs e redes sociais. Se por um lado, o fato de a geração estudada buscar novos conhecimentos no mundo digital amplia o acesso a múltiplas fontes, por outro, não garante informações confiáveis, abrindo brechas para que sites com informações equivocadas ou mesmo relatos preconceituosos sejam utilizados como referência para as escolhas contraceptivas.

Como segunda fonte de informação mais referida estão a escola, Organizações Não Governamentais (ONGs) ou projetos sociais. Em relação às escolas, as informações são consideradas insuficientes e foram obtidas em palestras esporádicas sobre saúde sexual e reprodutiva, centradas nos aspectos fisiológicos da reprodução.

No caso dos rapazes, observou-se desinformação generalizada sobre tipos e funcionamento dos contraceptivos femininos. A maioria deles apontou as irmãs ou parceiras como principais fontes de informação sobre os MAC. Entre as jovens, a maioria procurou informações em blogs ou grupos de apoio nas redes sociais, valorizando as experiências contraceptivas de outras mulheres como informações confiáveis. Uma parcela importante acompanha influenciadores(as) digitais nas redes sociais (Instagram, Tik Tok, Youtube), algumas delas médicas. Paradoxalmente a uma miríade de informações de qualidade díspares, as jovens vivenciam o desamparo nas decisões contraceptivas, por vezes reproduzindo o uso de pílulas anticoncepcionais que amigas, primas e irmãs utilizam, sendo orientadas de modo equivocado, em algumas situações, por parentes, balconistas de farmácias, entre outras fontes. O aconselhamento negociado e não autoritário, necessário ao processo de educação em sexualidade voltado à população juvenil, frequentemente não encontra profissionais de saúde aptos a fazê-lo (Guimarães; Cabral, 2022GUIMARÃES, J.; CABRAL, C. S. Pedagogias da sexualidade: discursos, práticas e (des)encontros na atenção integral à saúde de adolescentes. Pro-Posições, Campinas, v. 33, e20200043, 2022.).

O diálogo sobre a iniciação sexual pouco integra o cotidiano das famílias, principalmente nas classes populares. Nos segmentos médios, algumas jovens são encaminhadas às consultas ginecológicas por meio de planos de saúde, o que pode não se traduzir em aconselhamento de qualidade. Já algumas mães de camadas populares, quando souberam da iniciação sexual de suas filhas, trataram de conduzi-las à UBS para uma providência imediata - como por exemplo, tomar a injeção hormonal -, sem diálogo prévio com as jovens sobre a adoção desse método contraceptivo ou dos seus efeitos colaterais.

A ausência de informações suficientes na escola, nos serviços de saúde e na família promove um silenciamento sobre as dúvidas e curiosidades relativas ao exercício da sexualidade e à contracepção. Isso se agudiza quando se somam as barreiras encontradas nos atendimentos dos serviços de saúde, pouco permeáveis e compreensivos com a população juvenil.

Considerações finais

Neste artigo, mostramos que os (as) adolescentes e jovens têm acionado distintas estratégias para acessar e adotar os métodos contraceptivos. As narrativas exploradas trazem exemplos de processos de gestão da contracepção - que começam na iniciação sexual e prosseguem no decorrer do exercício da sexualidade - agenciados diretamente pelos(as) jovens e, em alguns casos, em diálogos com seus/suas parceiros(as).

Com base em nosso material empírico argumentamos que, a despeito do enfoque limitado das questões relacionadas à sexualidade e gênero nas escolas, como presenciamos em anos recentes (Cassiavillani; Albrecht, 2023CASSIAVILLANI, T. P; ALBRECHT, M. P .S. Educação sexual: uma análise sobre legislação e documentos oficiais brasileiros em diferentes contextos políticos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 39, e39794, 2023.), do apoio restrito das famílias nas decisões afetivo-sexuais e da relativa ausência dos serviços de saúde na escuta atenta e implicada, no acolhimento, no acompanhamento e no provimento regular e dialogado dos métodos contraceptivos, os(as) jovens lançam mão de diversas estratégias para obter e usar os MAC disponíveis. Entre esses, despontam os métodos hormonais a exemplo da contracepção de emergência, amplamente utilizada e difundida e, ao que parece, às margens do SUS.

Imersos em diferentes processos de aprendizagem referidos ao exercício da sexualidade e às estratégias contraceptivas, nossos(as) interlocutores(as) valorizam a não reprodução nessa etapa da vida. É nesse sentido que a contracepção entra em cena. Não se pode dizer que há uma norma contraceptiva completamente interiorizada pelos jovens, no sentido que Bajos e Ferrand discutem (2002BAJOS N., FERRAND M. (Org.) De la contraception à l’avortement: sociologie des grossesses non prévues. Paris: Éditions INSERM, 2002.). Observa-se, no entanto, uma disposição incorporada (Bourdieu, 1983BOURDIEU, P. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, R. (Org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 46-81.) que guia as práticas e estratégias contraceptivas, tendo como referência a valorização da contracepção. Em função disso, argumentamos que, no contexto estudado, os(as) jovens agem tendo a contracepção como um valor, como algo bom, correto e socialmente desejável.

A ação das jovens, no entanto, está constrangida às hierarquias de gênero e às desigualdades sociais, raciais, étnicas, dentre outras, que caracterizam a sociedade brasileira. Essas hierarquias e desigualdades, associadas a retrocessos na organização dos serviços de educação e de saúde sexual e reprodutiva, constituem-se como obstáculos à autonomia feminina no campo do planejamento reprodutivo (Cabral, 2017CABRAL, C. S. Articulações entre contracepção, sexualidade e relações de gênero. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 4, p. 1093-1104, 2017.).

Ao mostrar que adolescentes e jovens recorrem à contracepção, não estamos afirmando que eles(as) sempre tenham êxito ou estejam satisfeitos (as). Ao contrário: algumas vezes não foi possível evitar uma gravidez, ou mesmo gerir a contracepção de modo estável, contínuo e regular, sem danos ao corpo feminino. Assim como outros estudos mostram, observamos relatos de mudanças, descontinuidades e falhas no agenciamento cotidiano da contracepção (Borges et al., 2021BORGES, A. L. V. et al. Descontinuidades contraceptivas no uso do contraceptivo hormonal oral, injetável e do preservativo masculino. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, e00014220, 2021. Chofakian et al., 2019CHOFAKIAN, C. B. et al. Contraceptive discontinuation: frequency and associated factors among undergraduate women in Brazil. Reproductive Health, London, v. 16, n. 1, p. 131, 2019.).

Neste sentido, é necessário lembrar que o aprendizado do manejo da contracepção exige muitas habilidades. Tais habilidades não são inatas; são processuais e requerem diálogo e apoio tanto de pares como dos educadores, familiares e profissionais de saúde, o que torna necessário uma socialização contraceptiva prévia à iniciação sexual (Brandão, 2009BRANDÃO, E. R. Desafios da contracepção juvenil: interseções entre gênero, sexualidade e saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 4, p. 1063-1071 2009.; Heilborn et al., 2006HEILBORN, M. L. et al(Orgs). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond/Fiocruz; 2006.).

Os processos sociais em torno da contracepção como um valor são amplos e complexos, dentre os quais se incluem as políticas públicas de saúde e educação, as novas configurações nas relações de gênero e na sexualidade, o papel dos movimentos sociais, entre outros. Esses processos carecem de maior reflexão no âmbito deste artigo e serão retomados em publicações futuras.

Por fim, a incorporação da contracepção como um valor pode fornecer pistas importantes para a atualização e retomada de políticas públicas voltadas à juventude. A partir do reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos da população juvenil, é necessário que escolas e serviços de saúde atuem para garantir o acesso a informações confiáveis sobre saúde sexual e reprodutiva. No caso do SUS, urge a oferta de um amplo leque de contraceptivos prescritos e acompanhados por profissionais competentes, acolhedores(as) e atentos(as) ao que demandam os(as) jovens dessa geração.

Referências

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  • 1
    A pesquisa “Jovens da era digital: sexualidade, reprodução, redes sociais e prevenção às IST/HIV/Aids” foi coordenada por Cristiane S. Cabral (coord. geral e de São Paulo/USP), Ana Paula dos Reis (Salvador/UFBA); Daniela Riva Knauth (Porto Alegre/UFRGS); Elaine Reis Brandão (Rio de Janeiro/UFRJ), Flávia Bulegon Pilecco (Conceição do Mato Dentro/UFMG); José Miguel Nieto Olivar (São Gabriel da Cachoeira/USP). O estudo contou com apoio financeiro do CNPq (Processo 442878/2019-2; Processo 431393/2018-4). Agradecimentos especiais às/aos coordenadoras(es) e equipes de trabalho de campo de cada localidade, bem como às (aos) jovens que compartilharam parte de suas experiências de vida conosco.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2023
  • Revisado
    28 Fev 2024
  • Aceito
    12 Mar 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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