Reflexões sobre as estratégias para mitigar vulnerabilidades das mulheres à violência íntima na pandemia de covid-19

Reflections on strategies to mitigate women’s vulnerabilities to intimate violence in the pandemic by covid-19

Rosana Maffacciolli Evelin Gomes Esperandio Maíra Rossetto Dyelle Hingrid Gonçalves Gontijo Débora Silva Teixeira Sobre os autores

Resumo

Neste artigo, objetiva-se refletir sobre as estratégias no campo da saúde que possam colaborar para a mitigação da vulnerabilidade de mulheres à violência íntima (VI) em meio a crises econômicas e sociais que ocorrem em contextos de pandemias, epidemias e catástrofes climáticas. Trata-se de um ensaio teórico-reflexivo elaborado a partir do diálogo entre os referenciais teóricos da vulnerabilidade e direitos humanos e o modelo ecológico de compreensão da violência. A composição desses referenciais permitiu elencar estratégias de enfrentamento da VI, analisando-as nos âmbitos individual, familiar, comunitário e social, entendendo que as dimensões da vulnerabilidade necessitam ser abordadas de forma indissociável. Tal análise indicou ser fundamental compreender os marcadores sociais da diferença e como as opressões de classe social, raça e gênero se articulam na constituição de vulnerabilidades à VI. À luz dessa compreensão, também foi possível ressaltar o papel essencial da Atenção Primária à Saúde no atendimento às mulheres em situação de violência. Recomenda-se que o poder público, a academia e os serviços de saúde possam coproduzir respostas que mitiguem essas vulnerabilidades e que as medidas sejam tomadas como prioridade.

Palavras-chave:
Violência por Parceiro Íntimo; Violência Contra a Mulher; covid-19; Vulnerabilidade em Saúde; Estratégias

Abstract

In the midst of economic and social crises that occur in the context of pandemics, epidemics and climate disasters, there was an increase in women’s vulnerabilities to Intimate Violence (IV). In this article, the objective is to reflect on strategies in the health field that can collaborate to mitigate these vulnerabilities. It is a theoretical-reflective essay elaborated from the dialogue between the theoretical references of vulnerability and human rights and the ecological model for understanding violence. These references made it possible to list strategies for coping with IV, analyzing them at the individual, family, community and social levels, understanding that the dimensions of vulnerability need to be addressed inseparably. This analysis emphasized that it is essential to understand the social markers of difference and how oppressions of social class, race and gender are articulated in the constitution of vulnerabilities to IV. By this understanding, it was also possible to highlight the essential role of Primary Health Care in assisting women in situations of violence. It is recommended that public authorities, university and health services can co-produce responses that mitigate these as strategies become a priority.

Keywords:
Intimate Partner Violence; Violence Against Women; covid-19; Health Vulnerability; Strategies

Introdução

A pandemia da covid-19 fez surgir novas demandas em saúde e agravou contextos que se apresentavam preocupantes, especialmente em cenários de desigualdade social (Silva; Minayo; Gomes, 2020SILVA, A. A. M.; MINAYO, M. C. S.; GOMES, R. Epidemiologia, ciências sociais e políticas de saúde no enfrentamento da COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, sup. 1, p. 2392, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.1.11152020
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). No Brasil, a população já vinha enfrentando, nos últimos anos, retrocessos importantes em indicadores sociais, econômicos e de saúde, com aumento de desemprego, perda progressiva de renda, aumento da fome e surgimento epidêmico de doenças infectocontagiosas, a exemplo do zika vírus. O quadro instalado com a pandemia, porém, impactou significativamente mais os grupos socialmente vulnerabilizados devido ao precário acesso ao saneamento básico, à moradia, à segurança alimentar e a uma renda que permitisse adotar medidas de prevenção necessárias (Marques et al., 2020MARQUES, E. S. et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, e00074420, 2020. DOI: 10.1590/0102-311x00074420.
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).

Recentes publicações sistematizaram as consequências da pandemia na vida das pessoas, que passaram a se condicionar a novas rotinas em razão do distanciamento social e sob um novo contexto de vulnerabilidades. Um dos grupos que tem sido mais afetados com essas condições tem sido o das mulheres, que geralmente são as responsáveis por cuidar dos filhos e da casa, além das contingências do mundo do trabalho na modalidade remota (Vieira; Garcia; Maciel, 2020VIEIRA, P. R.; GARCIA, L. P.; MACIEL, E. L. N. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 23, e200033, 2020. DOI: 10.1590/1980-549720200033
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). Uma das mais prejudiciais implicações do confinamento/isolamento social na vida das mulheres foi o aumento dos atos violentos perpetrados contra elas em relações íntimas.

Sabe-se que as agressões podem ocorrer dentro ou fora de casa, mas que, na maioria das vezes, o principal agressor é o companheiro ou o ex-companheiro, tornando a violência íntima (VI) pauta central na defesa da vida das mulheres. Dados comparativos do primeiro semestre de 2019 com o mesmo período em 2020 mostram que houve aumento de 1,2% do registro de feminicídios, 0,8% nos casos de homicídio doloso de mulheres e 3,9% nas ligações para o telefone 190 para denúncia de violência doméstica.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, a interpretação desses dados é complexa: ao mesmo tempo em que houve queda de 10,9% nos registros de lesão corporal dolosa, 16,8% nos de ameaça e 23% nos registros de estupro, houve também aumento das consequências mais graves da violência, incluindo a morte. Assim, apesar da dificuldade para realizar denúncias, principalmente aquelas que exigem a presença física da mulher para o exame de corpo de delito, houve aumento das mortes em decorrência da violência de gênero (Bueno; Lima, 2020BUENO, S.; LIMA, R. (Coord.) Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.). Esses dados representam apenas uma porção dos fatos que chegam aos sistemas de registro, pois o isolamento social impôs dificuldades para que as mulheres buscassem um serviço que acolhesse suas queixas, seja na área da saúde ou da justiça.

Esse cenário traz o desafio de mobilizar estratégias de enfrentamento capazes de lidar com um conjunto amplo e complexo de situações subjacentes à VI durante a pandemia. A crise da covid-19 intensificou a sinergia de violências produzidas pela vulnerabilidade social, ao passo que programas de enfrentamento dessas situações se apresentavam precarizados ou limitados a discursos ineficazes e que desconsideravam desigualdades de gênero (Campos; Tchalekian; Paiva, 2020).

Os desafios têm sido incomensuráveis no que tange aos aspectos interseccionais associados à VI e às articulações intersetoriais que deveriam responder ao problema com maior coerência às diversas situações das mulheres que sofrem violência nesse período (Campos; Tchalekian; Paiva, 2020). Assim, entre a necessidade de agir e as condições de vulnerabilização adicionais com a crise sanitária da covid-19, cabe lançar a questão: quais seriam as estratégias mais efetivas para enfrentar a violência íntima nesse contexto? Partindo dessa indagação, este artigo propõe-se a refletir sobre as estratégias para mitigar as vulnerabilidades à violência íntima contra as mulheres durante a pandemia da covid-19 no Brasil.

Mulheres e violência íntima: reflexões sobre vulnerabilização

Muito já se construiu a respeito da violência contra a mulher como um problema de saúde pública (OMS, 2012OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. [S. l.]: Organização Mundial da Saúde: 2012.), e diversos termos têm sido utilizados nesse campo, como violência doméstica, violência intrafamiliar e violência por parceiro íntimo (VPI). Considerando a produção de conhecimento acumulado sobre violência nas relações de intimidade, optou-se, neste artigo, por utilizar VI por ser uma expressão menos sexista do que VPI.

Estudos nacionais e internacionais têm se debruçado sobre a temática da violência, seja sinalizando as dificuldades de profissionais de saúde em abordar o assunto nos atendimentos, seja na formação precária durante o ensino formal e na educação permanente em saúde. Além disso, ainda existe vasto campo de pesquisa em aberto sobre as estratégias de enfrentamento da violência nas relações de intimidade. No contexto da Atenção Primária à Saúde, âmbito de acompanhamento longitudinal para essa e tantas outras demandas, o potencial para a resolutividade, na perspectiva da promoção da saúde, envolve questões conceituais, prepare técnico e mobilização organizacional (Anderson, 2018; D’Oliveira et al., 2020D’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface, Botucatu, v. 24, n. 1, e190164. DOI: 10.1590/interface.190164
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; Mendonça, 2020MENDONÇA, C. S. et al. Violência na Atenção Primária em Saúde no Brasil: uma revisão integrativa da literatura. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 2247-2257, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.19332018.
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; Souza, 2019).

A violência íntima é definida como qualquer tipo de violência/agressão sexual, física ou psicológica, incluindo atos coercitivos, perseguição ou ameaça, praticadas por um parceiro ou uma parceira íntima, independentemente de haver um vínculo formal, como o casamento, entre os envolvidos (OMS, 2012OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. [S. l.]: Organização Mundial da Saúde: 2012.).. Sabe-se que ocorre de maneira bidirecional, sendo que homens e mulheres se alternam no lugar de agressores(as), porém, a ampla evidência mostra que os danos da violência íntima geralmente recaem de forma mais intensa sobre o gênero feminino (OMS, 2012OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. [S. l.]: Organização Mundial da Saúde: 2012.).

Para analisar esse fenômeno, utiliza-se o modelo ecológico de compreensão da VI concebido por Heise (1998HEISE, L. L. Violence against women: an integrated, ecological framework. Violence Against Woman, Thousand Oaks, v. 4, n. 3, p. 262-290, 1998.) e chancelado pela OMS (2012)OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher: ação e produção de evidência. [S. l.]: Organização Mundial da Saúde: 2012.. O modelo sistematizou a compreensão da violência, sendo representado graficamente por quatro círculos concêntricos que contém elementos explicativos a serem considerados nos níveis individual, relacional/interpessoal, comunitário e no nível macroestrutural da sociedade. Os elementos compreendem desde os fatores intrínsecos às mulheres e suas trajetórias, passando pelo nível relacional e pelo nível comunitário, o contexto externo ao do relacionamento, chegando até o macrossistema, que abriga ampla gama de fatores estruturais da sociedade formando uma rede que contribui para o surgimento e a manutenção da violência nas relações de intimidade.

Convergindo com esse diagrama explicativo, outro referencial que parece ser de extrema relevância na compreensão do fenômeno é o da Vulnerabilidade e Direitos Humanos (V&DH). As origens desse referencial remetem à contingência de uma efetiva resposta à pandemia da aids nos anos 1990, que demandava mudar situações em que direitos humanos eram desrespeitados nas trajetórias de vulnerabilidade à doença. A partir desse referencial, a vulnerabilidade é compreendida como um conjunto de aspectos particulares e contextuais relacionados à maior suscetibilidade de indivíduos de um grupo social específico sofrer algum agravo à sua saúde e, de modo inseparável nesse conjunto de aspectos, encontrar menor disponibilidade de recursos para sua proteção (Ayres; Paiva; França, 2012AYRES, J. R.; PAIVA, V.; FRANÇA J. R. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. v. 1.).

O que aproxima os dois referenciais - modelo ecológico e V&DH - é, sobretudo, a interação de diferentes aspectos implicados na produção de um agravo. O que os diferencia é o modo como a interação dos aspectos individual, familiar, comunitário, social e político-cultural é interpretada, impulsionando respostas cabíveis.

Mais identificado com a fatoração desses aspectos, na lógica dos riscos à saúde, o modelo ecológico tende a impulsionar ações mais pontuais relativas a cada segmento analisado. Já o quadro da V&DH consolida sínteses transdisciplinares na compreensão dos problemas, de modo a responder a esses de maneira simultaneamente específica (levando em conta a história de cada pessoa e seu potencial de reação) e global (resposta estrutural e ancorada na transformação social) (Ayres; Paiva; França, 2012AYRES, J. R.; PAIVA, V.; FRANÇA J. R. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. v. 1.).

De todo o modo, quando esses referenciais são postos em diálogo, podemos identificar uma cooperação que qualifica a análise da VI. Ayres et al. (Ayres; Paiva; França, 2012AYRES, J. R.; PAIVA, V.; FRANÇA J. R. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. v. 1.) mostram que a dimensão individual da vulnerabilidade contempla sujeitos relacionados, que constroem, por meio do coletivo, suas realidades de uma forma ativa. Dessa maneira, quando observamos o modelo ecológico, poderíamos compreender que as dimensões individual e relacional (os círculos mais internos do modelo) remetem ao aspecto individual da vulnerabilidade. Já a dimensão social da vulnerabilidade lida com círculos mais externos - o comunitário e o social ou macroestrutural -, visto que esta dimensão abrange as relações raciais, relações de gênero, a religiosidade, o acesso à internet, às mídias, ao emprego.

Por último, a vulnerabilidade programática parece encontrar-se de modo transversal aos aspectos do modelo ecológico, pois descreve como as instituições como a justiça, a segurança e, principalmente, o sistema de saúde se inter-relacionam de modo a garantir (ou não) o direito de sujeitos intersubjetivos de viver sem violência, em um contexto social e comunitário que torne isso possível. A Figura 1 foi adaptada do artigo original de Michau et al. (2015MICHAU, L. et al. Prevention of violence against women and girls: lessons from practice. The Lancet, Amsterdam, v. 385, n. 9978, p. 1672-1684, 2015.) e ilustra a correlação dos níveis do modelo ecológico, compreendendo os dois círculos mais internos, em tons de cinza mais escuro, como equivalentes à vulnerabilidade individual. Os círculos em tons de cinza mais claro seriam os correspondentes à vulnerabilidade social; a faixa branca representa o aspecto transversal da vulnerabilidade programática; e, na parte inferior da Figura 1, podem ser vistos aspectos propositivos para mitigação dessas vulnerabilidades.

Figura 1
Eixos da vulnerabilidade e a sua associação ao modelo ecológico

A dimensão social abrange valores éticos e morais característicos de cada época, compondo uma matriz discursiva altamente influente nas condutas expressas nas interações sociais. Um importante elemento dessa dimensão é a desigualdade de gênero, pois perpetua a noção de que mulheres são inferiores em relação aos homens em termos de inteligência, força e habilidade política, e que deles devem depender e a eles se submeter. Ainda na dimensão social, consideram-se as intersecções com o racismo estrutural e estrutura de classe social, compondo um quadro em que as mulheres, estigmatizadas por serem negras e com menos poder aquisitivo, encontram menos apoio e menos acesso a dispositivos que possibilitem romper os ciclos de violência íntima nos quais se encontram na relação com seus parceiros ou parceiras (Ayres; Paiva; França, 2012AYRES, J. R.; PAIVA, V.; FRANÇA J. R. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. v. 1.).

Na dimensão individual, são avaliadas as condições de poder que cada pessoa tem para transformar as diversas situações que restringem seus direitos fundamentais e que geram contextos que ameaçam sua saúde e sua integridade. Ao se considerar o caráter indissociável entre as dimensões, poderíamos conceber que o poder das mulheres de agir em prol de seu bem-estar e do bem comum está diretamente relacionado a uma dinâmica de interações sociais em que sua dignidade e o respeito aos seus direitos são princípios constitutivos de uma sociedade (Ayres; Paiva; França, 2012AYRES, J. R.; PAIVA, V.; FRANÇA J. R. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. v. 1.). Cada mulher que assimila conhecimentos e saberes emancipadores sobre pertencimento de gênero, raça e classe social tem aumentadas chances de conduzir sua vida a partir de escolhas informadas e de se proteger das situações de violência íntima, muitas vezes através do desenvolvimento de sua resiliência interna (Sánchez, 2015SÁNCHEZ, L. S. Resiliencia en violencia de género: un nuevo enfoque para los/las profesionales sanitarios/as. Journal of Feminist, Gender and Women Studies, Madrid, n. 1, p. 103-113, 2015.).

Observando-se o contexto pandêmico, fica evidente que é na dimensão individual da vulnerabilidade que estão expressas também as dimensões programática e social: a perda ou redução da renda, o estresse resultante das contas por pagar, o aumento do consumo de álcool e outras drogas e a ameaça constante da própria perda da saúde podem propiciar o cenário perfeito para que a violência íntima se instale ou se agrave (Marques et al., 2020MARQUES, E. S. et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, e00074420, 2020. DOI: 10.1590/0102-311x00074420.
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).

Políticas, programas e ações em quantidade suficiente e qualificados na perspectiva acima descrita são elementos de proteção às mulheres em cenários culturais desfavoráveis, nos quais se evidenciam opressões de gênero, raça e classe social. A vulnerabilidade programática pode ser analisada sob quatro aspectos dos serviços públicos - principalmente os da saúde, nesse caso - que deveriam existir: a disponibilidade dos serviços, que deveriam ser suficientes para o tamanho da demanda; a acessibilidade dos serviços; a qualidade dos serviços ofertados; e a aceitabilidade dos serviços, respeitando-se as normas e padrões culturais das pessoas envolvidas nesse processo de cuidado (Gruskin; Tarantola, 2012GRUSKIN, S.; TARANTOLA, D. Um panorama sobre saúde e direitos humanos. In: PAIVA, V.; AYRES, J. R.; BUCHALLA, C. M. (Ed.). Vulnerabilidade e direitos humanos: prevenção e promoção da saúde . Curitiba: Juruá , 2012. p. 23-42. v. 1.). Assim, se observarmos o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), além do próprio discurso misógino das autoridades brasileiras, temos inúmeros fatores que vêm aumentando as vulnerabilidades programáticas das mulheres brasileiras (Signorelli; Taft; Pereira, 2020SIGNORELLI, M.; TAFT, A.; PEREIRA, P. P. G. Authors’ commentary: domestic violence against women, public policies and community health workers in Brazilian primary health care. International Quarterly of Community Health Education, [s. l.], v. 40, n. 3, p. 237-239, 2020. DOI: 10.1177/0272684X19865145
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).

Compreender essas dimensões de vulnerabilidade, preservando a interdependência dos elementos que as compõem, parece ser crucial para aprimorar as ações de enfrentamento à VI. Estabelecer um paralelo entre esse referencial e o modelo ecológico permitiu expandir o potencial explicativo acerca da dinâmica de interação entre aspectos pessoais, sociais, culturais, e políticos envolvidos nessas situações. Se, por um lado, a pandemia de covid-19 trouxe à tona uma série de consequências demandantes de respostas governamentais urgentes, por outro, o que sobressaiu foi a incapacidade dos representantes do Estado em articular propostas eficazes. O incremento de casos de violência íntima que afetou as mulheres durante a pandemia foi flagrante da falta de articulação governamental que desamparou gestores, técnicos e organizações responsáveis por dar suporte às mulheres. O panorama exacerba a necessidade de implicar recursos públicos para garantir o atendimento a mulheres em situação de violência e garantir o seu sustento econômico, mas também chama a atenção para o desenvolvimento de soluções criativas (Campos; Tchalekian; Paiva, 2020).

Importante pontuar que, embora já haja registros na literatura nacional e internacional com recomendações de ações a serem tomadas pelas autoridades, pouco se tem visto em termos de atitudes concretas por parte dos governos brasileiros (Moreira; Pinto, 2020MOREIRA, D. N.; COSTA, M. P. The impact of the Covid-19 pandemic in the precipitation of intimate partner violence. International Journal of Law and Psychiatry, Amsterdam, v. 71, 101606, 2020.). Pelo contrário, o que se vê é a manutenção do chamado “teto de gastos” em saúde e educação, a continuidade de reformas setoriais que desresponsabilizam o Estado na garantia de direitos sociais, a redução do financiamento da saúde e diversos episódios de assédio moral a trabalhadoras e trabalhadores que tentam manter o acesso das mulheres a políticas públicas já existentes, como o aborto legal, por exemplo (Campos; Tchalekian; Paiva, 2020).

Para as moradoras de comunidades periféricas, como favelas, comunidades indígenas, quilombolas ou da zona rural, os descompassos entre as recomendações científicas e baseadas nos direitos humanos e o que acontece na vida real se tornam cada vez maiores (Borret; Vieira, 2020BORRET, R. H.; VIEIRA, R. H. Orientações para favelas e periferias. 2. ed. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade; Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio de Janeiro, 2020.). Durante a pandemia, as operações policiais em favelas foram suspensas por decreto, porém, diversas vezes os serviços de saúde foram obrigados a fechar ou diminuir seus atendimentos por questões de segurança das pessoas atendidas e de profissionais, prejudicando ainda mais o acesso já precário por conta da covid-19 (Cardoso; Campos, 2020CARDOSO, F. M.; CAMPOS, G. W. de S. Aprendendo a clínica do sofrimento social: narrativas do internato na Atenção Primária à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1251-1260, 2020.).

Assim, destacamos, na seção a seguir, reflexões sobre os desafios para implementar estratégias que podem atuar com base nos níveis do modelo ecológico e das dimensões da vulnerabilidade para mitigar os problemas acima descritos.

Estratégias para enfrentar a violência íntima durante a pandemia

As estratégias devem ir muito além da facilitação do acesso aos serviços públicos e estão sintetizadas na Figura 2. Apesar de a vivência biográfica ser a mais reconhecida nos atendimentos rotineiros, o modelo ecológico discutido previamente aponta para necessidades de interação entre os aspectos individuais, familiares, comunitários e estruturais na organização do cuidado (Zampar et al., 2020ZAMPAR, B. et al. Abordagem da violência contra a mulher no contexto da covid 19: versão para profissionais. 1. ed. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho de Mulheres na MFC e Gênero, Sexualidade, Diversidade; Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), 2020.). Retomando-se a Figura 1, é preciso levar em consideração os diversos níveis de ações para o enfrentamento da violência, desde o atendimento individual nos serviços de saúde e assistência social, como no trabalho com homens agressores (Billand; Paiva, 2017BILLAND, J.; PAIVA, V. S. F. Desconstruindo expectativas de gênero a partir de uma posição minoritária: como dialogar com homens autores de violência contra mulheres? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 2979-2988, 2017. DOI: 10.1590/1413-81232017229.13742016
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), tanto no nível comunitário com ações no território quanto na sociedade em geral, com campanhas publicitárias, com mudanças na legislação e nas políticas de proteção, por exemplo. As ações em todos esses níveis devem ser articuladas de modo intersetorial (Michau et al., 2015MICHAU, L. et al. Prevention of violence against women and girls: lessons from practice. The Lancet, Amsterdam, v. 385, n. 9978, p. 1672-1684, 2015.).

Figura 2
Enfrentamento das vulnerabilidades à violência íntima

Apesar do alcance limitado quando colocadas em perspectiva, a maioria das estratégias desenvolvidas no sistema de saúde foca na abordagem individual das experiências de violência das mulheres por meio de ações construídas para atender suas necessidades. Estudos mostram que, em diversas ocasiões, elas querem revelar o ocorrido e, por vezes, encontram uma série de entraves para que possam fazê-lo em ambiente protegido (Esperandio; Moura; Favoreto, 2020ESPERANDIO, E. G.; MOURA, A. T. M. S.; FAVORETO, C. A. O. Violência íntima: experiências de mulheres na Atenção Primária à Saúde no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Interface , Botucatu, v. 24, sup. 1, e190707, 2020.). Também se torna importante, ao indagar e identificar a violência, mapear os riscos que essas mulheres estão enfrentando. Reconhecer os equipamentos públicos e os recursos pessoais que podem ser acessados em momentos de necessidade são passos fundamentais para se construir um plano de segurança adequado (Esperandio; Moura; Favoreto, 2020ESPERANDIO, E. G.; MOURA, A. T. M. S.; FAVORETO, C. A. O. Violência íntima: experiências de mulheres na Atenção Primária à Saúde no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Interface , Botucatu, v. 24, sup. 1, e190707, 2020.).

É fundamental reconhecer as potencialidades do trabalho das equipes da estratégia de saúde da família (ESF) e dos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS). Mapear a rede de apoio das mulheres e marcar retornos frequentes nas unidades de saúde pode ser uma saída potente, pois o serviço de APS é um dos únicos locais que a mulher consegue frequentar sem gerar mais suspeitas ou retaliações por parte de parceiros íntimos (Esperandio; Moura; Favoreto, 2020ESPERANDIO, E. G.; MOURA, A. T. M. S.; FAVORETO, C. A. O. Violência íntima: experiências de mulheres na Atenção Primária à Saúde no Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Interface , Botucatu, v. 24, sup. 1, e190707, 2020.).

É necessário ter em mente o conhecimento que vem se consolidando a respeito do protagonismo da APS na frente de ação à VI. Uma revisão de literatura, em que se compilou obstáculos e facilitadores na APS para o cuidado às mulheres, identificou-se aspectos conceituais, assistenciais e organizacionais que necessitam ser analisados pormenorizadamente. Os aspectos conceituais perpassam desde a desqualificação da VI como um problema de saúde até medicalização de sintomas, com consequente rechaço das causas e oportunidades de enfrentá-las. No que se refere aos aspectos assistenciais, destaca-se falta de respaldo técnico e desconhecimento sobre o tema, podendo os atributos de construção de vínculo e acolhimento serem compensatórios diante dessas deficiências. Nas questões organizacionais, notabiliza-se a necessidade de capacitação profissional e a composição de rede assistencial e intersetorial apta a ser acionada para uma resposta resolutiva e sustentável (D’Oliveira et al., 2020D’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface, Botucatu, v. 24, n. 1, e190164. DOI: 10.1590/interface.190164
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).

No âmbito intersetorial, tem-se que o enfrentamento da VI necessita de soluções loco-regionais, culturalmente sensíveis e adequadas ao contexto. Por isso, no âmbito comunitário, as iniciativas já existentes precisam ser visibilizadas e apoiadas pela ESF, inclusive centralizando propostas de debate de casos e busca de soluções conjuntas (D’Oliveira et al., 2020D’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface, Botucatu, v. 24, n. 1, e190164. DOI: 10.1590/interface.190164
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). Existem diversas organizações de bairros, associações comunitárias, religiosas, grupos de mulheres e organizações não governamentais (ONGs) que são indispensáveis aliadas na proposição de estratégias e caminhos assistenciais para as mulheres. É importante também que as equipes de saúde conheçam os Centros de Atendimento à Mulher, disponíveis em vários municípios sob diversas denominações, e que, em geral, contam com equipes multiprofissionais. Muitos desses serviços já se encontravam com equipes consideravelmente reduzidas e, com as restrições de circulação de pessoas no início da pandemia, mantiveram atendimento remoto, o que pode dificultar o acesso de algumas mulheres.

A VI pode ser vivenciada de inúmeras formas, sendo a violência sexual uma das experiências que trazem para as mulheres e meninas impactos como a gestação indesejada e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). O cuidado deve passar pela prevenção de gestações indesejadas e acesso ao abortamento legal. A oferta de métodos contraceptivos que a mulher possa administrar sem interferência de outras pessoas, sendo seguros e de longa duração, é uma das estratégias para redução de danos que pode ser organizada, além de tratamento preventivo oportuno para ISTs (Zampar et al., 2020ZAMPAR, B. et al. Abordagem da violência contra a mulher no contexto da covid 19: versão para profissionais. 1. ed. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho de Mulheres na MFC e Gênero, Sexualidade, Diversidade; Direitos da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), 2020.). Por isso, a manutenção dos serviços de saúde sexual e reprodutiva é fundamental durante a pandemia, em especial aqueles que oferecem a possibilidade de abortamento legal e as unidades de APS, pela sua abrangência e capilaridade.

No que se refere ao abortamento legal, apenas a manutenção dos serviços existentes não é suficiente, uma vez que o Brasil conta com apenas 65 serviços habilitados em todo o país, o que não garante o acesso de maneira equânime no território nacional. Além disso, num contexto político em que o governo federal ampliou, durante a pandemia, as exigências para realização de abortamento em caso de estupro (Brasil, 2020bBRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria no 2.561, de 23 de setembro de 2020. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 24 nov. 2020b.), violando o sigilo médico, ampliando as barreiras de acesso e promovendo violência institucional, a mobilização organizada pela sociedade civil é fundamental para revogação dessa portaria que aprofunda a vulnerabilidade programática de meninas e mulheres.

Da mesma forma, o agravamento de processos de sofrimento emocional em decorrência da violência deve contar com suporte em saúde mental. A VI é um trauma repetido, pessoal e crônico, que, durante pandemias, pode ter seus efeitos escalonados (Marques et al., 2020MARQUES, E. S. et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19: panorama, motivações e formas de enfrentamento. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 4, e00074420, 2020. DOI: 10.1590/0102-311x00074420.
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). Uma das estratégias nos âmbitos social e programático que podem mitigar as vulnerabilidades também individuais seria fortalecer a luta pelo retorno ao financiamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, parte importante da ESF e que tem sido desvinculada dos incentivos aos municípios (Massuda, 2020MASSUDA, A. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1181-1188, 2020.).

A abordagem das diferentes formas de organização de grupos sociais da família, da conjugalidade, da parentalidade e de parceiros e parceiras é uma estratégia na redução das relações de vulnerabilização de meninas e mulheres. É importante que profissionais que trabalham no atendimento possam se dar conta de que há diversas formas não tradicionais de arranjos familiares e que tratar essas formas com preconceito é uma forma de violência institucional, que pode provocar uma revitimização (Moleiro et al., 2016MOLEIRO, C. et al. Guia de boas práticas para profissionais de estruturas de apoio a vítimas. Lisboa: Comissão Para a Cidadania e a Igualdade de Género, Divisão de Documentação e Informação, 2016.). Diante disso, é fundamental que profissionais participem de atividades de educação permanente em serviço que auxiliem no atendimento humanizado e livre de LBTQIA+fobia, respeitando o nome social das mulheres trans, por exemplo, além de compreender as particularidades das violências que esses grupos sofrem.

É preciso também reconhecer os marcadores sociais de diferença, de forma a agir em prol da equidade. Nesse sentido, a VI atinge mulheres negras de maneira desproporcional (Bueno; Lima, 2020BUENO, S.; LIMA, R. (Coord.) Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.). Além do reconhecimento do racismo estrutural que perpassa a sociedade, estratégias para o enfrentamento da violência precisam levar em consideração o racismo institucional (Werneck, 2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, p. 535-549, 2016.) nos serviços de saúde, que dificulta e desqualifica o cuidado de mulheres negras que sofrem violência, contribuindo para a exacerbação da vulnerabilidade programática. Os serviços de saúde precisam ser reestruturados e, os profissionais, qualificados para uma prática em saúde antirracista.

Com a restrição da circulação imposta pelas medidas sanitárias, recentemente as regras relacionadas ao atendimento médico à distância foram flexibilizadas (CFM, 2020CFM - CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Ofício CFM nº 1756/2020 - CONJUR. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, 2020.). Dessa maneira, o teleatendimento e o telemonitoramento se colocam como possibilidades para acessar serviços de saúde, com protocolos elaborados para suporte de mulheres em situação de violência (Irisi, 2020IRISI. Responding to domestic abuse and sexual violence during telephone and video consultations. [S. l.] IRISI, 2020.). É importante, porém, observar as disparidades de renda e de acesso à internet de qualidade em nosso país, pois, para algumas mulheres, essa pode ainda não ser uma opção.

Canais como a Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 poderão prestar uma escuta qualificada às mulheres em situação de violência. Esse serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, sendo gratuito em todo o território nacional. Além disso, o canal do Disque 100 pode ser acionado para violações de direitos humanos, tais quais violência contra crianças, situações de racismo e LGBTQIA+fobia. Outra possibilidade é o número 190 da Polícia Civil, que pode servir de canal para intervenções em casos de agressão. Recomenda-se que as autoridades reforcem esses canais de atendimento, qualificando as pessoas que se encontram como operadoras, garantindo uma escuta sensível e humanizada, além de ações resolutivas às necessidades das mulheres.

No setor público, torna-se fundamental a ampliação da rede de apoio para as mulheres que necessitam ter acesso à delegacia, além de suporte para sair de casa e poder levar os filhos. Realizar o boletim de ocorrência torna-se um desafio quando a mulher fica impossibilitada de acessar o telefone ou a internet. Durante a pandemia, a Lei 14.022/20 (Brasil, 2020aBRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Lei no 14.022 de 7 de julho de 2020. Dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 jul., 2020a.) foi sancionada indicando que o atendimento às vítimas de violência é considerado serviço essencial e não poderá ser interrompido, exigindo que os órgãos de segurança criem canais gratuitos de comunicação para atendimento virtual, acessíveis via internet. Alguns países implementaram centros de aconselhamento em supermercados e farmácias, além de disponibilizar abrigo em quartos de hotéis. Esses são exemplos de como é possível fazer mais do que o que tem sido feito em nosso país através das políticas públicas e do engajamento junto às estruturas do cotidiano das pessoas (Bueno; Lima, 2020BUENO, S.; LIMA, R. (Coord.) Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.).

O acesso das mulheres à renda, trabalho e emprego foi profundamente afetado durante a pandemia (IBGE, 2020IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Covid (PNAD Covid-19). IBGE, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid >. Acesso em: 9 mar. 2021.
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). A taxa de desemprego entre mulheres, em especial mulheres negras, foi superior ao restante da população em geral. As mulheres que eram mães foram mais demitidas e suas famílias perderam mais renda do que a média das outras mulheres. Isso mostra que são necessárias ações específicas de enfrentamento do desemprego e garantia de renda durante a pandemia, pois estas afetam sobremaneira as mulheres com filhos, constituindo-se em mais um fator que contribui para a manutenção da mulher em casa e no convívio com o agressor.

As estratégias elencadas precisam ser informadas por dados e diagnósticos loco-regionais, tanto referentes aos impactos da doença da Sars-Cov-2 em mulheres e meninas quanto em relação à abrangência da violência como fenômeno associado. Por isso, é necessário que sejam disponibilizados pelos serviços de vigilância em saúde, assistência social e segurança pública dados desagregados por sexo e análise de gênero, incluindo taxas diferenciadas de infecção, impactos diferenciados da carga econômica e de assistência social, barreiras de acesso das mulheres e incidência de VI e sexual (ONU, 2020ONU. Gênero e COVID-19 na América Latina e no Caribe. Brasília, DF: ONU Mulheres, 2020.). As lacunas observadas no Brasil no que se refere à qualidade dos dados, tanto no quesito raça/cor quanto nas análises de gênero, contribui para a negligência das necessidades de saúde e respostas adequadas, de forma a contribuir para a vulnerabilidade programática de mulheres e meninas.

Desafios e barreiras para seguir caminhando

Para seguir no caminho do enfrentamento da violência, faz-se necessário perceber o quanto as relações e os processos de vulnerabilização, embora tenham se agravado durante a pandemia, trouxeram à tona o problema da violência nas relações de intimidade que já existia na sociedade brasileira. Faz-se urgente, mais do que nunca, que a sociedade civil se mobilize, junto à academia e com profissionais de saúde (e também da área jurídica e social), na luta por políticas públicas que democratizam o acesso a bens e serviços públicos que advém da própria contribuição de cidadãos e cidadãs. Por isso, não só a garantia do atendimento às pessoas em situação de violência deve ser realizada, como ações de prevenção precisam de financiamento público. O aporte financeiro para ações que contemplem tanto os serviços de Atenção Primária quanto os Centros Especializados de Atendimento à Mulher se faz urgente e deve ser priorizado. Nesse sentido, o governo brasileiro parece estar na contramão dessas medidas, ampliando cada vez mais a privatização dos serviços públicos e desmontando modelos de cuidado pautados na saúde como um direito e na atenção integral ao problema da VI, como preconizado na APS (D’Oliveira et al., 2020D’OLIVEIRA, A. F. P. L. et al. Obstáculos e facilitadores para o cuidado de mulheres em situação de violência doméstica na atenção primária em saúde: uma revisão sistemática. Interface, Botucatu, v. 24, n. 1, e190164. DOI: 10.1590/interface.190164
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).

Diante dessa realidade, a compreensão das consequências da pandemia de maneira mais ampla na vida das pessoas se faz imperativa. Nesta linha, em um editorial de setembro na revista The Lancet (Horton, 2020HORTON, R. Offline: COVID-19 is not a pandemic. The Lancet, Amsterdam, v. 396, p. 874, 2020.), o pesquisador e editor chefe da revista, Richard Norton, resgatou o conceito de “sindemia” para analisar os processos de saúde/adoecimento que estamos experimentando em decorrência do Sars Cov-2. O conceito de sindemia se propõe a reenquadrar o olhar perante uma situação de saúde mapeando as implicações e interações biológicas e sociais da epidemia, observando a sinergia entre fatores que agravam a saúde e suas consequências na vida das pessoas.

Ao deslocar o foco do controle da doença causada pelo vírus, propõe-se que as estratégias de enfrentamento incluam uma abordagem integrada e abrangente para outras condições de saúde e marcadores sociais de diferença. Nesse sentido, a violência íntima que acomete mulheres em todo o mundo deve ser considerada como uma parte constituinte do fenômeno que vivemos hoje. Este artigo, então, resgata os conceitos de vulnerabilidade e o modelo ecológico da violência para apresentar possibilidades e estratégias para o enfrentamento da violência íntima. Os efeitos da Sars-Cov2 vão muito além da síndrome gripal, com impactos econômicos, sociais e políticos amplos.

A maneira como o Brasil tem respondido tem correlação com a instalação de um cenário desfavorável e na sindemia que vivemos hoje (Mendenhall, 2020MENDENHALL, E. The COVID-19 syndemic is not global: context matters. The Lancet, Amsterdã, n. 20, p. 32222-32224, 2020.). Se os desafios são enormes, também grande deve ser a coragem para atuar sinergicamente nas diversas dimensões da vulnerabilidade. O engajamento coletivo na luta por uma outra sociedade se faz necessário no dia a dia e essa só será conquistada com muitos esforços conjuntos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Revisado
    26 Jan 2023
  • Aceito
    10 Mar 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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