Resumo
Eutanásia voluntária ativa (EVA) e suicídio assistido (SA) são práticas de fim de vida que, embora permeadas de tabus e controvérsias, visam minimizar o sofrimento das pessoas com doenças incuráveis, preservando sua dignidade humana diante da morte. Neste artigo, objetivamos investigar a situação jurídico-normativa dessas práticas no Brasil, por meio de uma pesquisa documental qualitativa que buscou dados do período de 1981 a 2020 nos sites do Poder Legislativo Federal. Com base na proposta hermenêutica dialética, discutimos o percurso das decisões políticas sobre EVA, SA (e suas relações com a ortotanásia e cuidados paliativos) e os efeitos práticos de suas construções valorativas e morais para a autodeterminação das pessoas tanto no processo de morte quanto na sociedade.
Palavras-chave:
Eutanásia Ativa Voluntária; Suicídio Assistido; Cuidados Paliativos na Terminalidade da Vida; Valores Sociais; Bioética
Introdução
A ação humana denominada “eutanásia”, práxis entendida desde a antiguidade em seu significado etimológico de “boa morte”, isto é, sem dor e sem sofrimento, situa-se entre as questões cruciais da finitude humana (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 112). O termo eutanásia, todavia, passou por uma evolução semântica ao longo dos séculos. A partir de Tomás Morus e Francis Bacon, no século XVII, esse termo adquiriu um significado que faz referência ao ato de pôr fim à vida de uma pessoa enferma e, enfim, no século XX, passou a ter a conotação pejorativa para muitas sociedades e a representar um mero eufemismo para a voluntariamente provocada supressão indolor da vida de quem sofreu ou poderia sofrer de modo insuportável (Pessini; Barchifontaine, 2012Pessini, L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. Problemas atuais de bioética. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola , 2012.).
De acordo com Stefan Kühl (2002KÜHL, S. The Nazi Connection: Eugenics, American Racism, and German National Socialism. New York: Oxford University Press, 2002.), que investigou a relação entre higienistas raciais alemães e eugenistas americanos, a Sociedade Internacional para a Higiene Racial - fundada em 1907 pelo movimento eugênico internacional liderado por norte-americanos - promoveu, em 1911 (Dresden) e em 1912 (Londres), encontros internacionais em que cientistas expuseram seus estudos sobre eugenia e discutiram seus impactos em relação à legislação e às práticas sociais, à aplicação prática dos princípios eugênicos e à promoção de seus ideais. Os encontros cessaram com a Primeira Guerra Mundial, mas a “nazi conexão continuou”11Destaca-se que a liderança da eugenia americana na Sociedade Internacional para a Higiene Racial, antes de 1933, contribuiu com o movimento eugênico alemão, não apenas com ideias, mas também com apoio e recursos financeiros (Kühl, 2002). e “o movimento alemão de higiene racial seguiu de perto o desenvolvimento do movimento da eugenia americana” (Kühl, 2002KÜHL, S. The Nazi Connection: Eugenics, American Racism, and German National Socialism. New York: Oxford University Press, 2002., p. 15), o que culminou na ciência eugenista nazista e na sua aplicação, criando o programa de “assassinato eugênico” durante a Segunda Guerra Mundial.
Em meados de 1939, um grupo de planejamento da Alemanha nazista organizou uma operação de extermínio de crianças e jovens de até 17 anos e com deficiência física ou mental grave, chamada de “Programa de Eutanásia”. No mínimo 5.000 crianças foram mortas em nome dos ideais “eugênicos” (Azevedo, 2014AZEVEDO, M. A. Eutanásia e suicídio assistido. In: TORRES, J. C. B. (Org.). Manual de ética: questões de ética aplicada. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 666-668. , p. 667). Não há dúvida, portanto, de que o nazismo distorceu o significado do termo “eutanásia”, assim como “a expressão morte digna era usada para legitimar muitos homicídios eugênicos” (Dadalto, 2019DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019., p. 2), gerando conotações diversas que cooperaram com o desenvolvimento de pré-conceitos e suspenderam o debate por quase 20 anos como resultado da associação do seu programa de extermínio de vulneráveis com a prática da “eutanásia”.
Com o término da Segunda Guerra Mundial, gradativamente o significado da eutanásia foi sendo desmistificado e o debate reacendido nos anos 1960. Conforme Diniz e Costa (2004DINIZ, D.; COSTA, S. Morrer com dignidade: um direito fundamental. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p.121-134., p. 124), “por ser um dos temas prioritários à produção intelectual em Bioética, o tema da eutanásia está repleto de sutilezas argumentativas, que procuram diferenciar a eutanásia como o exercício de um direito fundamental do extermínio praticado pela medicina nazista”. Destarte, o debate ressurge em virtude de questionamentos na interrupção do tratamento fútil (ou distanásia), e não propriamente sobre a eutanásia em si. Logo, a disseminação de ideias críticas da distanásia foi decorrente do desenvolvimento tecnológico em saúde a partir das décadas de 1960 e 1970.
A incorporação e/ou desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de suporte à vida, como os ventiladores mecânicos, “[…] permitiu progressos significativos na cura de doenças e na extensão da vida. Entretanto, é preciso considerar possíveis prejuízos do prolongamento da vida de pessoas enfermas” (Mendes et al., 2020MENDES, A. C. et al. A polêmica da Legalização da Eutanásia no Brasil. Brazilian Journal of Development, Paraná, v. 6, n. 10, p. 79803-79814, 2020. DOI: 10.34117/bjdv6n10-417
https://doi.org/10.34117/bjdv6n10-417... , p. 79812) para uma “morte digna” (Dadalto, 2019DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019.). Tal fato evocou importantes análises sobre questões de finitude da vida, como a diferenciação das práticas de eutanásia voluntária ativa, ortotanásia e distanásia. Além disso, “a possibilidade de manter o funcionamento de órgãos vitais por meios técnicos, gerando estados liminares entre a vida e a morte […], conferiu um novo status às intervenções médicas nos momentos finais, e abriu questionamentos e debates sobre as potencialidades e limites no uso dessas tecnologias” (Alonso; Villarejo; Brage, 2017ALONSO, J. P.; VILLAREJO, A.; BRAGE, E. Debates parlamentarios sobre la muerte digna en Argentina: los derechos de los pacientes terminales en la agenda legislativa, 1996-2012. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 24, n. 4, p. 1031-1048, 2017., p. 1032), contribuindo para se romper - ao menos parcialmente - “[…] o tabu que a nossa cultura sempre estabeleceu em torno dos temas relacionados com a morte” (Gracia, 1990GRACIA, D. Historia de la eutanasia. In: GAFO, J. (Ed.). La eutanasia y el arte de morir. Madrid: Universidad Pontificia de Comillas, 1990., p.32). Portanto, o advento das unidades de terapia intensiva (UTI) com as mais sofisticadas tecnologias duras que podem manter “viva” uma pessoa doente contribuiu para o debate sobre a eutanásia, compreendida, nesse contexto, com o sentido de “desligar os aparelhos”. É fundamental destacar que, no cenário atual brasileiro, o ato de desligar os aparelhos não pode ser vinculado à prática de eutanásia, conforme definido pela Resolução CFM 1805/2006 em suas situações específicas.
Ao final do século XX, de acordo com Berlinguer (2010BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010.), entre as questões bioéticas “cotidianas”, isto é, que “acontecem todos os dias e não deveriam mais estar acontecendo”, está a morte com sofrimento de pessoas em fim de vida. Nessa conjuntura surgiu a primeira proposta legislativa brasileira sobre eutanásia, o PL 4662/1981. Embora ainda com a conotação paternalista de “permitir ao médico”, o “desligamento dos aparelhos” de uma pessoa em “coma terminal”, trouxe ao debate a relação entre morte, sofrimento e tecnologias assistenciais. Não por acaso as unidades de cuidados intensivos, os transplantes de coração, as técnicas de suporte vital, entre outros, são alguns dos agentes dessa “revolução” tanatológica. Sem eles, talvez se perdesse muito o sentido do atual debate sobre a eutanásia (Gracia, 1990GRACIA, D. Historia de la eutanasia. In: GAFO, J. (Ed.). La eutanasia y el arte de morir. Madrid: Universidad Pontificia de Comillas, 1990., p. 28).
Entretanto, no contexto brasileiro, com o propósito de se descaracterizar a conotação pejorativa dada ao combate à “obstinação terapêutica” (ou distanásia), criou-se o ideal da “[…] ortotanásia, que pode ser demarcada como a morte no seu tempo certo” (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 114) e com proporcionalidade entre tratamentos e benefícios esperados. Dessa forma, o remédio para a distanásia - a morte postergada com “[…] tratamentos desproporcionais” (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 114) que, ao invés de trazer soluções aceitáveis para a pessoa doente, ocasionam mais sofrimento - passou a ser a ortotanásia, exclusivamente. Nessa direção, defensores da ortotanásia, com a tendência filosófica de associá-la sinonimamente aos cuidados paliativos (CPs), passaram a definir ambas as práticas como “substitutas” da “abreviação do processo de morrer (eutanásia)” (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 114) e do suicídio assistido. Assim, a prática de fim de vida - que era para ser uma das opções de morte com dignidade - passou a ser a única, limitando a autonomia das pessoas. Contudo, há uma obscuridade sobre uma possível definição do que seja “morte no tempo certo” e “proporcionalidade terapêutica”, pressionando o debate sobre outras opções de práticas em fim de vida como a eutanásia voluntária ativa (EVA) e o suicídio assistido (SA), que se apresentam descriminalizadas ou legalizadas em alguns países.
Numa definição mais recente, a “eutanásia pode ser entendida como emprego ou abstenção de procedimentos que permitem apressar ou provocar o óbito de um doente incurável, a fim de livrá-lo dos extremos sofrimentos que o assaltam” (Lepargneur, 2009LEPARGNEUR, H. Bioética da eutanásia argumentos éticos em torno da eutanásia. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 7, n. 1, 2009., p. 3). No âmbito da delimitação lexical dos termos referentes à bioética do fim da vida, se exemplifica que as modalidades utilizadas atualmente para a classificação da eutanásia basear-se-iam no “‘ato em si’ e no ‘consentimento do enfermo’” (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... , p. 113). Quanto ao ato, pode ser classificada em: eutanásia ativa - ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento por fins humanitários; e eutanásia passiva - morte por omissão proposital em se iniciar uma ação médica que garantiria a sobrevida. Quanto ao consentimento do enfermo, pode se classificar em: eutanásia voluntária - ação em resposta à vontade expressa do paciente; eutanásia involuntária - quando o ato é realizado contra a vontade do enfermo, podendo ser igualado ao “homicídio”, pois a vida é abreviada contra (ou sem que se conheça) a vontade da pessoa. Por último, o SA ocorre quando uma pessoa, racionalmente capaz de decisão, solicita o auxílio de outra para alcançar o óbito, a qual lhe assiste intencionalmente durante o ato ou lhe proporciona os meios para realizá-lo (Siqueira-Batista; Schramm, 2005SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200500... ). Há de se diferenciar EVA de SA - objetos desse estudo - uma vez que, na primeira, é o/a profissional de saúde quem realiza o ato; no segundo, é a própria pessoa que efetua a ação para morrer.
No Brasil, tais práticas são deslegitimadas e o debate social é incipiente, fato que nos leva a questionar: o que pensam e propõem nossos representantes legisladores? A presente pesquisa teve como objetivo investigar a situação jurídico-normativa e o panorama de discussões sobre a EVA e o SA no poder legislativo brasileiro, uma vez que compreender as práticas de fim de vida é essencial para inseri-las no debate público e vislumbrar sua descriminalização em prol da qualidade no processo de morrer e da dignidade humana.
Metodologia
Trata-se de pesquisa documental de abordagem qualitativa, seguindo as etapas de operacionalização proposta por Minayo (2014MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.).
Na primeira etapa, que foi a elaboração de categorias analíticas, realizou-se a busca de informações e a seleção documental concernente aos projetos de leis relacionados às práticas de fim de vida nos sites do Congresso Nacional, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, compreendendo o período - a partir do ano de 1981 - em que as informações digitalizadas estão disponíveis online. Projetos de leis (PLs), requerimentos, proposições de plebiscito e audiência pública e discursos em plenária até 6 de setembro de 2020 constituíram o arcabouço das discussões propostas, totalizando 193 documentos entre os quais identificamos 15 projetos de lei sobre eutanásia, SA e ortotanásia (práticas de fim de vida, objetos dessa pesquisa) (conforme Quadros 1, 2 e 3); isso já excluídos os projetos específicos de CPs, sem relação direta com tais práticas. A seguir, elaboramos as categorias analíticas e, por meio de uma leitura horizontal e vertical dos textos, emergiram categorias temáticas, entre as quais a que é objeto de discussão neste artigo: “as práticas de fim de vida (eutanásia e suicídio assistido) - entre o direito à vida e o direito de morrer com dignidade”22Foi eleita, para apresentação e discussão, apenas uma das categorias temáticas que resultaram da fase exploratória da pesquisa e da leitura horizontal/transversal (Minayo, 2014) dos projetos de Leis. Isso porque o presente texto é uma parte dos resultados, alinhado ao objetivo elencado para este artigo..
Para as etapas de ordenação e classificação de dados, as informações coletadas foram armazenadas e organizadas com auxílio do software para pesquisa qualitativa Atlas.ti 9.0. Selecionamos as alocuções representativas dos sentidos estabelecidos pelos autores e as identificamos pela letra D (“documento”) juntamente ao seu número de registro, como forma de citação no texto.
A “análise propriamente dita” e a interpretação dos dados na ótica do método hermenêutico-dialético nos permitiram compreender o percurso das decisões políticas que envolvem a liberdade e as possibilidades de escolha das pessoas diante do sofrimento e da morte. Assim, a escolha do marco temporal para a busca documental - 1981 a 2020 -, consentiu captar mudanças na prática legislativa sobre a temática decorrentes da nova ordem jurídica fundada com a Constituição da República do Brasil de 1988 (CRFB/1988). Ainda, em relação à análise e à interpretação dos dados, adotamos como referencial teórico a Bioética Cotidiana, que busca reatar os elos entre ética e questões de saúde-doença que atingem as populações (Berlinguer, 2010BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010.), e da Bioética da Responsabilidade, que lança as bases para processos de deliberação morais frente a problemas éticos (Gracia, 2010GRACIA, D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2010.; Pose, 2011POSE, C. Bioética de la responsabilidad: de Diego Gracia a Xavier Zubiri. Madrid: Editorial Triacastela, 2011.).
Propostas legislativas apresentadas no Congresso Nacional brasileiro
A análise revelou que na maioria das justificativas contra a descriminalização da EVA e/ou do SA prevalece a defesa do Princípio “da Inviolabilidade do Direito à Vida”, conforme o Art. 5º da CRFB. Todavia, esse princípio constitucional fundamental é visto pelos legisladores de modo absoluto, isto é, como norma universal que não admite exceções, isso em detrimento do “Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” (Brasil, 2020BRASIL. Constituição Federal de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional no107/2020. Brasília, DF: Edições Câmara, 2020.), que abarcaria o direito do morrer com dignidade. Assim, estabeleceu-se uma tendência legislativa predominantemente contrária à EVA/SA a partir da CRFB/1988, como constatado no voto do relator aprovado no parecer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ): “[…] entre as garantias e os direitos individuais consagrados por nossa Carta Política33Referência à Constituição brasileira de 1967, vigente à época. está a inviolabilidade do direito à vida. Qualquer tentativa no sentido de abreviá-la, ou de exterminá-la, encontra barreira intransponível no texto constitucional” (D45).
A partir desse marco, os projetos que tramitaram no legislativo federal sobre as práticas de fim de vida, no que diz respeito à EVA/SA, versaram criminalizar ainda mais tais práticas, propondo redefini-las como crimes hediondos44Crimes hediondos são aqueles que atentam contra os princípios fundamentais da CRFB (Brasil, 2020). A Lei n. 8.072, de 25/07/1990, que trata dos crimes hediondos, regulamenta o Inciso XLIII do Artigo 5º da Constituição, estabelecendo a lista de crimes, tipificados no Código Penal, e suas penas. Os autores dos projetos criminalistas pretendem incluir na lista desses crimes a eutanásia e o suicídio assistido, além do aborto em qualquer situação.. Ao invés de adequarem a recepção do Código Penal vigente (de 1940) à Constituição vigente, já que esse não expressa abertamente a proibição da EVA em situações específicas, buscou-se retroceder, desvirtuando os direitos fundamentais de liberdade e dignidade humana a tempos mais remotos.
Em relação às propostas apresentadas na Câmara e Senado, desde 1981, antes e depois da CRFB/1988, a referida documentação demonstra a presença concreta de informações relacionadas à temática pelos congressistas, tornando elucidáveis diferentes conflitos de valores, de modo que o debate sobre a EVA/SA necessariamente “[…] passa pelo conflito entre dois valores essenciais ao ordenamento jurídico pátrio: a vida, em seu sentido biológico, e o direito à uma existência digna” (Júnior; Goulart, 2022JÚNIOR, M. da S. F. R.; GOULART, L. K. A (des) criminalização da eutanásia: uma análise dos aspectos legais, morais e éticos. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 8, n. 11, p. 391-407, 2022., p. 204), mas também o direito à “morte digna, entendida como a possibilidade que o indivíduo portador de uma doença ameaçadora da vida tem de escolher como deseja morrer” (Dadalto, 2019DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019., p. 8).
O primeiro foi o PL 4662/1981 (Câmara). Este permitiria “ao médico assistente o desligamento dos aparelhos de um paciente em estado de coma terminal ou a omissão de um medicamento que iria prolongar inutilmente uma vida vegetativa, sem possibilidade de recuperar condições de vida sofrível, em comum acordo com os familiares” (D45). O autor desse projeto, o médico deputado Federal Inocêncio Oliveira (PDS-PE), o reapresentou com igual teor sob o número PL 732/1983, sendo novamente arquivado mediante o parecer da CCJ por “inconstitucionalidade” e com a justificativa de que “na área do direito penal, o projeto de lei busca tornar atípica uma conduta criminosa, qual seja a de se permitir a morte de alguém” (D119). É nesse sentido que o autor argumentou que “o projeto visa apenas regulamentar um fato com que os profissionais vêm se deparando comumente, causando problemas à classe [médica], aos hospitais e aos familiares” (D45). Acrescenta, ainda, que, “do ponto de vista ‘médico, o profissional’ deve lutar para preservar a saúde, prolongar a vida e abreviar os sofrimentos, mas ‘deve ter o direito de decidir da inutilidade de prolongar uma vida vegetativa’, sem possibilidade de recuperar condições de vida sofrível” (D45). Noutros termos, o que se defendia era revestir de direito o poder da medicina de decidir sobre “uma vida vegetativa” em “comum acordo com os familiares”. O “paciente” nem seria tratado como tal, mas como um mero corpo, reforçando a medicalização do processo de morrer e da morte.
A partir dessas propostas, observamos também que diversos projetos manifestaram muito mais os interesses corporativos que refletem uma contínua ingerência e domínio sobre o corpo humano do que uma defesa do direito à morte digna que a EVA/SA poderia proporcionar. Quase uma década depois, já sob a égide da CRFB de 1988, o deputado Gilvam Borges (PRN-AP) apresentou o PL 1989/1991, que dispunha “sobre a prática da eutanásia, nas circunstâncias que especifica”. Sua justificativa era que, à época, “a medicina [já] poderia prever, com segurança, a incurabilidade de certos males […] e evitar sofrimentos de pacientes e familiares” (D15). Assim, “a família do doente em fase terminal, diagnosticada a total impossibilidade de recuperação das funções neuro-cerebrais, poderá pedir a um médico a adoção da eutanásia”, ou ainda, “quando a solicitação for efetuada pelo paciente, ele será submetido a uma junta médica para avaliação do quadro” (D15). De qualquer modo, o poder de decisão sobre o processo de morrer também é descentrado do sujeito, o qual continua alienado da sua autodeterminação. Da mesma forma, o relatório da Comissão de Seguridade Social e Família e da CCJ invocaram o Princípio da “Inviolabilidade da Vida” para o arquivamento dessa proposta, alegando que “à vista, pois, deste princípio constitucional, e mesmo com expressa manifestação de vontade do paciente ou de seus familiares, a eutanásia deve continuar sendo tipificada, no Código Penal, como o ‘matar alguém’, repudiando-se a excludência da criminalidade que se lhe quer atribuir” (D15).
A título de comparação, os dois primeiros projetos de autoria do deputado Inocêncio propunham um processo de tomada de decisão médica unilateral sobre “pacientes em coma terminal”, enquanto o PL 1989/1991 previa a comprovação da “impossibilidade de recuperação das funções neuro-cerebrais” e a participação de familiares. Mas ambos desconsideravam a vontade livre da pessoa que sofre, pois não previam o respeito à autodeterminação. Logo, centravam suas propostas na suposta “[…] legitimidade de dispor da vida de qualquer pessoa” ao invés de “centrar” o debate na possibilidade “de a pessoa enferma […] pedir e obter a eutanásia” (Pessini; Barchifontaine, 2012Pessini, L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. Problemas atuais de bioética. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola , 2012., p. 409). Ainda assim, houve uma recusa do debate sobre a temática com os respectivos arquivamentos, baseando-se unicamente no Princípio da Inviolabilidade da Vida, que é interpretado como absoluto. Essa interpretação pode ocultar intenções ilegítimas, como a pauta antiaborto em qualquer situação, pois, como afirma Diego Gracia (2011GRACIA, D. La cuestión del valor. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 2011., p. 110), se a “a saúde e a vida são valores intrínsecos […], são também valores instrumentais, quando se alocam a serviço de outras coisas”.
Ao passo que consideramos a tramitação desses projetos de lei na Câmara favoráveis à descriminalização da eutanásia, salientamos as suas incoerências conceituais para a classificação de práticas de fim de vida. Em relação ao Projeto de Decreto Legislativo n. 244/1993, apresentado pelo deputado Gilvam como uma iniciativa para convocar um plebiscito sobre a eutanásia, esse propunha que “os habilitados para votar dirão sobre a conveniência ou não de se instituir a eutanásia como forma de abreviar sofrimentos de pacientes terminais” (D2). E foi também arquivado pelos mesmos motivos dos anteriores.
Com o passar dos anos, o então deputado se elegeu Senador e reapresentou seu projeto, o PLS 125/1996, conclamando seus pares a analisar a questão com as seguintes palavras:
Sr. Presidente, Sr. e Srs. Senadores, traz-me à tribuna desta Casa um assunto importante e, de certa forma, bastante polêmico, já que confronta com alguns dogmas e valores muito arraigados na sociedade, principalmente, nos segmentos religiosos. Enquanto Deputado Federal, apresentei um projeto de lei e o estou reapresentando neste momento. Esse projeto autoriza a prática da morte sem dor, nos casos em que especifica e dá outras providências: a eutanásia (Brasil, 1996BRASIL. SENADO FEDERAL. Diário do Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n° 125, de 1996. Dispõe sobre a prática da eutanásia, nas circunstâncias que especifica. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/7280?sequencia=31&sequenciaFinal=40#search=DSF-90-1996.%20>.
https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/... , p.8420).
Apesar da eloquência, o referido senador reconheceu não ter “esperança de que o projeto vingue, uma vez que nunca foi colocado em votação”, enquanto os congressistas afirmavam que “ninguém quer discutir a eutanásia porque isso traz prejuízos eleitorais” (Gianello; Winck, 2017GIANELLO, M. C.; WINCK, D. A eutanásia e sua legalização no Brasil e no mundo. Anuário Pesquisa e Extensão Unoesc, Videira, v. 2, 2017., p. 11).
Todavia, percebe-se que houve iniciativas - apesar de problemáticas - que serviram para trazer o debate das práticas de fim de vida. Porém, todas foram arquivadas sem qualquer diálogo com a sociedade para o seu compartilhamento e aprimoramento com bases científicas e bioéticas. Após esse período, iniciou-se a fase mais conservadora do Congresso Nacional sobre o tema, predominando PLs para criminalizar as práticas de fim de vida e ceifar a já limitada autodeterminação das pessoas, ao invés de, à luz da nova Constituição, fortalecer o “[…] uso do princípio da dignidade humana como fundamento para que se possa questionar a possibilidade de se normatizar a eutanásia no país” (Santos; Urnauer, 2023, p. 154) e “[…] a necessidade de reconhecer a existência do direito à morte digna, em toda a sua extensão, no Brasil” (Dadalto, 2019DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019., p. 1).
Eutanásia e suicídio assistido: crimes hediondos ou direito de morrer com dignidade?
Entre inúmeros desafios, buscamos centrar o diálogo nas propostas legislativas que propõem qualificar a eutanásia e/ou o SA em crimes hediondos, já que tais práticas não são expressamente citadas no Código Penal, mas são interpretadas como “homicídio privilegiado”. Há, então, uma disputa política que acirrou a criminalização das práticas de fim de vida.
Nesse contexto, muitos legisladores inverteram a construção de valores para edificar ideias distorcidas em prol de seus interesses particulares, por meio de resquícios históricos direcionados a uma ideologia conservadora e punitivista que contraria o desenvolvimento da autodeterminação e responsabilidade na liberdade humana. Desse modo, expõem as próprias razões que os estimulam, visto que a coerção e a persuasão se manteriam em um “tratamento penal mais severo a fim de se sancionarem, de modo mais adequado, os infratores e desestimular a sua prática” (D31). Inclusive, tais atores políticos temem um maior desenvolvimento de valores conectados à estrutura básica dos seres humanos, ao passo que buscam se opor a outros grupos políticos que representam as propostas de “descriminalização” da ortotanásia.
Ainda que tenhamos exposto algumas das motivações dos PLs que buscam criminalizar tais práticas sob o argumento de que estão agindo em “defesa da vida”, precisamos acrescentar que as justificativas apresentadas nos projetos expressam preconceitos e desvalores, revelando “ódio” e “ressentimento”, como se pode verificar num comentário representativo dos projetos contrários à descriminalização: “por atentarem gravemente contra a inviolabilidade do direito à vida, tais crimes monstruosos e hediondos estão, por sua vez, a merecer um tratamento penal mais severo a fim de se sancionarem, de modo mais adequado, os infratores e desestimular a sua prática” (D49).
Na tentativa de identificar quem seriam os supostos infratores, percebemos que as iniciativas de criminalização demonstram um flagrante desrespeito aos profissionais de saúde, porque são exatamente eles os sujeitos aos quais as propostas legislativas são direcionadas. Apesar do caráter de universalidade da lei, são os profissionais de saúde (sobretudo os médicos, mas não somente eles) os sujeitos a serem criminalizados. Partem do pressuposto de que esses profissionais cometem crimes e que, portanto, precisam de uma lei mais rígida que coloque as suas práticas sob “controle do Estado”. Mas não apenas suas práticas precisariam ser controladas. Alguns “representantes” políticos almejam, inclusive, silenciar as vozes da sociedade e quem eventualmente ouse representá-las verdadeiramente. Nesse sentido, articulada ao objetivo de qualificar a EVA/SA como crime hediondo, está a intenção de interditar o debate público sobre a temática. Logo, pretendem ceifar a necessidade de diálogo e impedir qualquer proposta contrária aos interesses políticos e sociais conservadores.
Essas intenções podem ser constatadas desde a primeira proposição legislativa criminalista em que, ao apresentar um dos projetos de sua autoria, o proponente explicitou claramente a motivação de transformar tais práticas de fim de vida em crime hediondo:
[…] Os doentes e idosos, contra os quais não há quem defenda a prática da eutanásia, […] não somente não têm condições físicas de defesa como estão psicologicamente fragilizados pela doença e a dependência, de modo que, mesmo quando ainda podem declarar sua vontade e consentem na prática da eutanásia, não se pode saber se o fazem com plena lucidez, ou se, levados pelo sofrimento, perderam o instinto inato de preservação. Assim sendo, como muito bem diz o Professor Ives Gandra da Silva Martins em seu trabalho: Fundamentos Natural do Direito Natural à Vida, ‘o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural da vida, principalmente porque exercidos contra insuficientes’. É indispensável, portanto, que se explicite a natureza hedionda de tais crimes, vedando-se a apresentação de qualquer proposição que pretenda descriminalizá-los ou legalizá-los (D63).
Como se percebe, busca-se interditar o debate usando argumentos de autoridade e vedando a apresentação de qualquer posição contrária, pois se teria “reconhecido”, legislativamente, que tais práticas atentariam contra os princípios e cláusulas pétreas fundamentais da CRFB/1988, modificáveis somente por Assembleia Constituinte. Essa era a intenção política desde a primeira proposta que pretendia “definir a eutanásia como crime hediondo […], não sendo permitida a apresentação de proposições que visem legalizá-las ou descriminá-las” no PL 190/1994 (arquivado), do deputado Osmânio Pereira (PSDB-MG). Defendia, ainda, que “é indispensável que se explicite a natureza hedionda de tais crimes [o aborto e a eutanásia], bem como a inconstitucionalidade de quaisquer leis ou dispositivos que estabeleçam exceções à sua proibição, ou visem, direta ou indiretamente, a sua legalização ou descriminalização” (D63). Não apenas o próprio diálogo e as discussões - e inclusive o debate científico e bioético sobre a problemática - estariam bloqueados para qualquer possível avanço na construção de valores progressistas, como poderiam ser passíveis de interpretações que buscam oprimir a liberdade de expressão. A propósito, o deputado Osmânio perseverou com mais dois projetos (PL 999/1995; PL 5058/2005), sempre com o propósito de tornar a eutanásia e a interrupção voluntária da gravidez como crime hediondo, mas não obteve êxito nas suas tentativas até seu último mandato em 2006. Entretanto, os projetos atualmente propostos seguiram um delineamento semelhante aos seus, também baseados em ideais conservadores e punitivistas.
No sentido de aprofundar a criminalização, o deputado Dr. Talmir (PV-SP) atuou em várias frentes. Em 2007, apresentou o PL 2283/2007 (arquivado) para equiparar a pena de eutanásia como “auxílio ao suicídio”, conforme o Código Penal, considerando ambas as práticas crime hediondo. Com base no Princípio Constitucional do Direito à Vida, argumentou que “é dever do Estado, […], garantir a todos” esse direito, diante do qual “os doentes e os idosos devem ser merecedores de proteção especial, dada a sua condição de fragilidade. No entanto, há quem defenda a prática da eutanásia com relação a estas pessoas desprotegidas […]. É indispensável, portanto, que se explicite a natureza hedionda deste crime, bem como se vedem legalmente quaisquer ações nesse sentido” (D63).
Posteriormente, aproveitando-se da comoção pública diante da qual afirmava que “a morte da italiana Eluana Englaro […] chocou o mundo cristão”, o deputado Dr. Talmir apresentou o PL 5008/2009 com o objetivo de “proibir a suspensão de cuidados de pacientes em Estado Vegetativo Persistente” (D56). Por outro lado, entrou na disputa pela regulamentação da ortotanásia, diante da polêmica em torno da Resolução do Conselho Federal de Medicina e sua judicialização. Por isso, apresentou o PL 6544/2009 sobre “cuidados a pacientes em fase terminal”. Formaram-se, assim, dois grupos de projetos que estão tramitando atualmente no Congresso Nacional: (1) aborda a descriminalização da ortotanásia; e (2) pretende tipificar a eutanásia e o SA como crime hediondo.
O conjunto de projetos do primeiro grupo foi apensado ao PL 6715/2009 (substitutivo) para “congregar as várias proposições em uma única”, que “dispõe sobre os cuidados devidos a pacientes em fase terminal de enfermidade” (D112). Diz o relator do substitutivo: “analisando os quatro projetos que tramitam em conjunto, é possível verificar grande sintonia entre eles. Todos posicionam-se contrariamente a qualquer alusão à eutanásia”. Por outro lado, associam a ortotanásia aos CPs e a fundamentam nos conceitos de cuidados ordinários e extraordinários. Ademais, tal projeto substitutivo mantém a descriminalização da ortotanásia conforme prevista no PL 6544/2009 do deputado Dr. Talmir, que é transcrito no Art. 4º do “substitutivo” do relator como: “havendo manifestação favorável do paciente em fase terminal de enfermidade, ou na sua impossibilidade, de sua família ou de seu representante legal, é permitida […] a limitação ou suspensão, pelo médico, de procedimentos e tratamentos desproporcionais ou extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida” (D110). Acrescenta que “a solicitação de limitação ou suspensão dos procedimentos […] será apresentada pelo médico assistente à junta médica especializada para análise e ratificação ou não da conduta”, em que a livre vontade da pessoa pode ou não ser atendida. O aparente avanço, na verdade, “corre o risco de prejudicar a autonomia pessoal, que é precisamente o valor fundamental que é pisoteado […]” (Berlinguer, 2010BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010., p. 9) com a medicalização do processo de morrer e da morte, e não admite que “a eutanásia, seja ela passiva ou ativa, deva ser resultado de um processo livre e informado e, por isso, compreendida como um direito fundamental amparado nos princípios éticos da autonomia e da dignidade” (Diniz; Costa, 2004DINIZ, D.; COSTA, S. Morrer com dignidade: um direito fundamental. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p.121-134., p. 125). Não por acaso, estamos num dos campos em que “o ‘direito de saber’ afirma-se […] como expressão da autonomia pessoal”, e negar a informação e o poder de decisão da pessoa que sofre significa “[…] tratar as pessoas como coisa, significa violar a autonomia pessoal e a liberdade pessoal” (Berlinguer, 2010BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010., p. 25, 35).
Já o grupo de projetos que tratam as práticas de fim de vida como crime hediondo tramitam em conjunto (apensados) com propostas antiaborto. Dois projetos diretamente relacionados com a eutanásia e o SA (além daqueles já arquivados) são o PL 4703/1998 do deputado Francisco Silva (PPB-RJ) e o PL 3207/2008 do deputado Miguel Martini (PHS-MG). O primeiro caracteriza o aborto (em qualquer situação) como crime hediondo. Nesse sentido, o autor justifica sua proposta pelas “matérias jornalísticas veiculadas frequentemente nos meios de comunicação, as quais dão conta de que se encontra disseminada neste país a prática do aborto ilegal, além de registrarem diversos casos de eutanásia” (D31). O segundo, por sua vez, pretende tipificar como crime hediondo o “induzimento, instigação ou auxílio a suicídio”, equiparando-o à eutanásia.
Em suma, as intenções presentes nos projetos analisados que buscam criminalizar a eutanásia e o SA se assemelham quanto à linha argumentativa, e provém, todos, de uma pauta política conservadora dos costumes e da moral. Nesses casos, a aprovação da tipificação dessas práticas como crime hediondo bloquearia o debate na sociedade, pois as propostas de plebiscito ou consulta popular sobre o tema ficariam proibidas e a sociedade brasileira não poderia opinar sobre a resolução desses problemas. Trata-se, portanto, de um movimento neoconservador, focado na “pauta dos costumes”, que identificamos como fortemente liderado por grupos religiosos. A propósito, apresentam proposições legislativas que atentam contra o pluralismo moral vigente e buscam aprovar leis para o restabelecimento da moral única, legitimando seus ideais de concepção de vida e morte por meio do Estado.
Considerações finais
Nas décadas de 1980-1990 houve propostas de regulamentação da eutanásia - em que pese suas limitações - e iniciativas fracassadas de abrir consulta popular sobre a temática. Nas décadas seguintes, o foco do debate passou da eutanásia para a ortotanásia, com PLs que tentam “descriminalizar” a última. Consequentemente, surgiram disputas em torno da delimitação da ortotanásia, que significa limitar a prática médica sobre a permissão de interromper tratamentos/procedimentos ao doente terminal, sujeito principal, mas deixado em segundo plano nas propostas, já que a autodeterminação da pessoa viria depois da segurança jurídica dos profissionais ou nem é mencionada.
Tais iniciativas, com raras discussões públicas, geraram reações em outros grupos políticos que culminaram em forças neoconservadoras radicais nos últimos anos - entre as quais algumas lideranças religiosas - que se ocupam quase exclusivamente daquilo que se convencionou chamar de “pautas dos costumes”. Entre as matérias em tramitação que a “bancada conservadora” leva adiante estão a pauta antiaborto juntamente à criminalização da EVA/SA, propostos como crime hediondo. Em suma, o pano de fundo de ação das forças políticas contrárias ao direito de morrer com dignidade está em controlar as liberdades individuais, impedindo progressos morais e culturais na sociedade.
As disputas políticas são evidentes. Inevitavelmente, tivemos de questioná-las e constatamos que a base dos conflitos está no paradoxo das interpretações dos princípios constitucionais no que diz respeito à inviolabilidade da vida e à dignidade humana. Habitualmente, os contrários a qualquer mudança que aumente a liberdade de decisão em casos concretos tomam para si como inquestionável o Princípio da Inviolabilidade da Vida Humana, considerando o valor da vida como superior e absoluto, independentemente do contexto e das consequências na depreciação da dignidade humana. Assim, o direito à vida é desvinculado do direito de morrer com dignidade, ao contrário da interpretação jurídica que descriminalizou a eutanásia na Colômbia, por exemplo, segundo a qual o direito a uma vida digna implica o direito de morrer com dignidade (Colômbia, 2015COLÔMBIA. Resolución 00001216 de 2015. Por medio de la cual se da cumplimineto a la orden cuarta de la sentencia T-970 de 2014 de la Honorable Corte Constituicional em relacíon com las siretrices para la organizacíon y funcionamento de los Comitês para hacer efectivo el derecho a morir com dignidad. Bogotá, DC: Ministerio de salud y Protección Social, 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.asivamosensalud.org/politicas-publicas/normatividad-resoluciones/prestaciones-de-servicios-de-salud/resolucion-1216-de . Acesso em: 11 mar. 2024.
https://www.asivamosensalud.org/politica... ).
Revelam-se, assim, os conflitos de valores entre os atores que têm o poder legislativo de “representação”, os quais buscam fundamentá-los em uma ética de convicção ao se valerem dos princípios constitucionais, interpretados conforme sua própria moral. Com a escolha de focar a pesquisa nas discussões do legislativo brasileiro, foi possível mostrar, com Berlinguer, que as instituições políticas são construídas de pessoas com morais particulares e distintos interesses, gerando espaços de tensão representados pelos conflitos e problemas do ethos (Lima; Verdi, 2012LIMA, R. C. G. S.; VERDI, M. Giovanni Berlinguer: uma história de luta pela consolidação do direito à saúde. In: HELLMANN, F. et al. (Org.). Bioética e Saúde Coletiva: perspectivas e desafios contemporâneos. Florianópolis: DIOESC, 2012. p. 18-35.).
Quanto ao tema em pauta, “permanece uma situação paradoxal na realidade jurídica […] que transparece nitidamente, de um lado o valor da liberdade e da autodeterminação individual e, de outro lado, o valor da proteção absoluta da vida de alguém, mesmo contra sua própria vontade ou independente da qualidade de vida que a pessoa almeja” (Gianello; Winck, 2017GIANELLO, M. C.; WINCK, D. A eutanásia e sua legalização no Brasil e no mundo. Anuário Pesquisa e Extensão Unoesc, Videira, v. 2, 2017., p. 12). Diante dessa realidade, se predominarem forças políticas conservadoras a tendência é que as práticas de fim de vida sejam mais criminalizadas, inclusive a ortotanásia e outras práticas no âmbito dos CPs, como a sedação paliativa.
Certamente, haveria um longo trajeto para se conseguir qualquer regulamentação de práticas como a EVA/SA, mesmo que houvesse um ambiente político favorável e aberto ao debate público, com democracia participativa. Aliás, essas são condições basilares para a construção de valores sociais moralmente legítimos, pois para se obter algum tipo de regulamentação, é preciso agregar ao debate o pluralismo moral da sociedade e a diversidade de ideias diante da necessidade de analisar os diferentes aspectos que compõe a complexidade da vida humana. Eventuais leis e critérios técnico-científicos que se adotem para a legitimação dessas práticas devem ser construídos de forma a abranger as necessidades e a evolução da moral social, garantindo o direito à autonomia da pessoa de decidir sobre a própria morte e obter o direito à assistência do Estado para morrer com dignidade.
Legalizar e regulamentar a EVA/SA não imporia a ninguém uma obrigação, mas tão somente o direito de decisão e o suporte necessário dos serviços de saúde, pois, como afirma Berlinguer: “[…] no que diz respeito à autonomia pessoal, entre as decisões sobre o próprio destino deve ser, também, incluído de modo laico, a de poder escolher entre continuar ou não a ser curado, se viver ou morrer” (Berlinguer, 2010BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010., p. 61). Em suma, é esse direito de escolha baseado na autodeterminação da pessoa que reveste o significado e “a definição de uma morte como ‘boa’” ou ‘digna’” (Alonso, 2012ALONSO, J. P. Contornos negociados del “buen morir”: la toma de decisiones médicas en el final de la vida. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 191-203, 2012. DOI: 10.1590/S1414-32832012005000003
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201200... , p. 191-192) no cotidiano de cuidado às pessoas em fim de vida.
Referências
- ALONSO, J. P. Contornos negociados del “buen morir”: la toma de decisiones médicas en el final de la vida. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 191-203, 2012. DOI: 10.1590/S1414-32832012005000003
» https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000003 - ALONSO, J. P.; VILLAREJO, A.; BRAGE, E. Debates parlamentarios sobre la muerte digna en Argentina: los derechos de los pacientes terminales en la agenda legislativa, 1996-2012. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v. 24, n. 4, p. 1031-1048, 2017.
- AZEVEDO, M. A. Eutanásia e suicídio assistido. In: TORRES, J. C. B. (Org.). Manual de ética: questões de ética aplicada. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 666-668.
- BERLINGUER, G. Bioetica quotidiana. Firenze: Giunti Editore, 2010.
- BRASIL. Constituição Federal de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional no107/2020. Brasília, DF: Edições Câmara, 2020.
- BRASIL. SENADO FEDERAL. Diário do Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n° 125, de 1996. Dispõe sobre a prática da eutanásia, nas circunstâncias que especifica. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/7280?sequencia=31&sequenciaFinal=40#search=DSF-90-1996.%20>.
» https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/7280?sequencia=31&sequenciaFinal=40#search=DSF-90-1996.%20 - BRANDI, M.; URNAUER, S. A. A eutanásia e o direito à morte digna. Revista Sociedade e Ambiente, Luís Eduardo Magalhães, v. 4, n. 1, p. 137-156, 2023.
- COLÔMBIA. Resolución 00001216 de 2015. Por medio de la cual se da cumplimineto a la orden cuarta de la sentencia T-970 de 2014 de la Honorable Corte Constituicional em relacíon com las siretrices para la organizacíon y funcionamento de los Comitês para hacer efectivo el derecho a morir com dignidad. Bogotá, DC: Ministerio de salud y Protección Social, 2015. Disponível em: Disponível em: https://www.asivamosensalud.org/politicas-publicas/normatividad-resoluciones/prestaciones-de-servicios-de-salud/resolucion-1216-de Acesso em: 11 mar. 2024.
» https://www.asivamosensalud.org/politicas-publicas/normatividad-resoluciones/prestaciones-de-servicios-de-salud/resolucion-1216-de - DINIZ, D.; COSTA, S. Morrer com dignidade: um direito fundamental. In: CAMARANO, A. A. (Org.). Os novos idosos brasileiros: muito além dos 60? Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p.121-134.
- DADALTO, L. Morte digna para quem? O direito fundamental de escolha do próprio fim. Pensar, Fortaleza, v. 24, n. 3, p. 1-11, 2019.
- GIANELLO, M. C.; WINCK, D. A eutanásia e sua legalização no Brasil e no mundo. Anuário Pesquisa e Extensão Unoesc, Videira, v. 2, 2017.
- GRACIA, D. La cuestión del valor. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 2011.
- GRACIA, D. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
- GRACIA, D. Historia de la eutanasia. In: GAFO, J. (Ed.). La eutanasia y el arte de morir. Madrid: Universidad Pontificia de Comillas, 1990.
- JÚNIOR, M. da S. F. R.; GOULART, L. K. A (des) criminalização da eutanásia: uma análise dos aspectos legais, morais e éticos. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, São Paulo, v. 8, n. 11, p. 391-407, 2022.
- KÜHL, S. The Nazi Connection: Eugenics, American Racism, and German National Socialism. New York: Oxford University Press, 2002.
- LEPARGNEUR, H. Bioética da eutanásia argumentos éticos em torno da eutanásia. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 7, n. 1, 2009.
- LIMA, R. C. G. S.; VERDI, M. Giovanni Berlinguer: uma história de luta pela consolidação do direito à saúde. In: HELLMANN, F. et al. (Org.). Bioética e Saúde Coletiva: perspectivas e desafios contemporâneos. Florianópolis: DIOESC, 2012. p. 18-35.
- MENDES, A. C. et al. A polêmica da Legalização da Eutanásia no Brasil. Brazilian Journal of Development, Paraná, v. 6, n. 10, p. 79803-79814, 2020. DOI: 10.34117/bjdv6n10-417
» https://doi.org/10.34117/bjdv6n10-417 - MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
- Pessini, L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. Problemas atuais de bioética. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola , 2012.
- POSE, C. Bioética de la responsabilidad: de Diego Gracia a Xavier Zubiri. Madrid: Editorial Triacastela, 2011.
- SIQUEIRA-BATISTA, R.; SCHRAMM, F. R. Conversações sobre a “boa morte”: o debate bioético acerca da eutanásia. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 111-119, 2005. DOI: 10.1590/S0102-311X2005000100013
» https://doi.org/10.1590/S0102-311X2005000100013
- 1Destaca-se que a liderança da eugenia americana na Sociedade Internacional para a Higiene Racial, antes de 1933, contribuiu com o movimento eugênico alemão, não apenas com ideias, mas também com apoio e recursos financeiros (Kühl, 2002KÜHL, S. The Nazi Connection: Eugenics, American Racism, and German National Socialism. New York: Oxford University Press, 2002.).
- 2Foi eleita, para apresentação e discussão, apenas uma das categorias temáticas que resultaram da fase exploratória da pesquisa e da leitura horizontal/transversal (Minayo, 2014MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.) dos projetos de Leis. Isso porque o presente texto é uma parte dos resultados, alinhado ao objetivo elencado para este artigo.
- 3Referência à Constituição brasileira de 1967, vigente à época.
- 4Crimes hediondos são aqueles que atentam contra os princípios fundamentais da CRFB (Brasil, 2020BRASIL. Constituição Federal de 1988: atualizada até a Emenda Constitucional no107/2020. Brasília, DF: Edições Câmara, 2020.). A Lei n. 8.072, de 25/07/1990, que trata dos crimes hediondos, regulamenta o Inciso XLIII do Artigo 5º da Constituição, estabelecendo a lista de crimes, tipificados no Código Penal, e suas penas. Os autores dos projetos criminalistas pretendem incluir na lista desses crimes a eutanásia e o suicídio assistido, além do aborto em qualquer situação.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
29 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
27 Nov 2022 - Revisado
02 Maio 2023 - Aceito
04 Jan 2024